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Igreja
Observações sobre a influência do oculto no discurso tradicional católico
Alistair McFadden
Sumário
Parte I: Valentin Tomberg e Sua Herança
Parte III: A Metafísica Gnóstica da Cabala
Parte IV: Cabala para Católicos? “Católicos hebreus” e seu Cardeal
O texto a seguir, que traduzimos do original em inglês, foi escrito por um autor que se apresenta com o codinome Alistair McFadden.
É uma análise interessante a respeito do esoterismo subjacente em editoras e autores americanos que se apresentam como católicos tradicionais. Essa falsa direita católica está muito disseminada e engana a muitos, como o próprio autor do texto admite.
O artigo original está em
https://justacatholic.medium.com/...
“Porque virá tempo em que muitos homens não suportarão a sã doutrina, mas acumularão mestres em volta de si, ao sabor de suas paixões, (levados) pelo prurido de ouvir. Afastarão os ouvidos da verdade e os aplicarão às fábulas.”
- 2 Timóteo 4:3-4
Eu começo essa monografia, que está dividida em 8 partes, com uma advertência. Eu sou um leigo Católico tradicional sem formação em filosofia ou teologia. Eu escrevo sem autoridade nem desejo de julgar ideias, muito menos pessoas. Apesar disso, meus “ouvidos piedosos” foram ofendidos, e o alarme de meu “sensus fidei” foi disparado, e portanto eu ofereço essas observações na esperança de que a pequena luz que sou capaz de projetar nisso que me tem escandalizado, possa em breve ser acompanhada por outras maiores luzes. Talvez então nós teremos uma claridade, tão necessária.
Parte I: Valentin Tomberg e Sua Herança
Eu li um livro peculiar recentemente: Cor Jesu Sacratissimum: From Secularism e Nova Era para uma Cristandade Renovada, um trabalho semi-autobiográfico no qual o autor, Roger Buck, relata sua conversão ao Catolicismo de um movimento espiritual estilo Nova Era e emite um comovente apelo para um retorno à Tradição Católica. Assim como em seu livro anterior, The Gentle Traditionalist, o qual Buck descreve retrospectivamente como “a versão ‘gibi’ desse trabalho muito maior, mais aprofundado,” Cor Jesu Sacratissimum foi recebido com considerável reconhecimento por Católicos tradicionais após o seu lançamento em dezembro de 2016.
“Roger Buck prestou um grande serviço para a Igreja”, escreveu Dr Joseph Shaw no popular blog Rorate Caeli, um site geralmente considerado como uma voz autorizada da Tradição na blogosfera Católica. “Buck é um dos poucos autores que escrevem atualmente que captam a íntima conexão entre a fé Católica e a cultura Católica,” acrescenta Thomas Storck, provavelmente o maior expoente do Ensino Social Católico tradicional do mundo Anglófono, que recomenda Cor Jesu Sacratissimum por oferecer aos leitores Americanos “a possibilidade de escapar da prisão do triste mundo intelectual e espiritual da cultura Protestante.” O autor tradicionalista Católico Charles A. Coulombe também se juntou ao coro dos admiradores, chamando-o um “livro refinado” que “habilmente critica o mundo moderno, com seus gêmeos horrorosos do materialismo arrogante e ‘espiritualidade’ indeterminada.”
Críticas Positivas que foram feitas para The Gentle Traditionalist e seu sucessor, The Gentle Traditionalist Returns, do mesmo modo vieram do Dr Peter Kwasniewski, que foi tão longe a ponto de incluir Cor Jesu Sacratissimum juntamente com Fundamentals of Catholic Dogma e o Catechism of the Council of Trent de Ludwig Ott na sua lista de oito “livros recomendados para estudo”, publicada no LifeSiteNews, outro site largamente lido por católicos de tendência tradicionalista. A popularidade de Buck entre Católicos tradicionais é ainda mais evidenciada pelo fato de que suas obras, incluindo Cor Jesu Sacratissimum, está disponível para compra na loja online de livros da Latim Mass Society (LMS) do Reino Unido e da comunidade tradicional Beneditina do Priorado de Silverstream da Irlanda.
Eu considero esse livro “muito peculiar” por duas razões. A primeira se acha nos Agradecimentos, que termina do seguinte modo:
“E restam dois autores já falecidos, Valentin Tomberg e Hilaire Belloc a quem, acima de todos, devo por esse livro ... Ambos os escritos de Belloc e Tomberg me guiam e inspiram como nenhum outro. E isso é tão verdade, que embora eu nunca os tenha encontrado neste mundo, dificilmente eu poderia omití-los da lista de meus mais queridos amigos, familiares e apoiadores.” [1]
Belloc, certamente, dispensa a apresentação, mas os leitores provavelmente não estão familiarizados com Tomberg, a quem Buck credita o fato de tê-lo “guiado, não somente para a Igreja, mas, a cada ano, em direção a um Catolicismo tradicional mais profundo.” [2] Buck é tão ligado a Tomberg, que quis que fosse lida uma passagem de sua magnum opus em seu casamento. [3]
E qual é essa magnum opus de Tomberg? É Meditations On Tator: A Journey into Christian Hermeticism, publicado pela primeira vez (anonimamente) em 1980. Esse é o livro que Buck louva como o “trabalho de um gênio – o fruto da vida de um homem idoso que demostravelmente atingiu o mais lúcido pensamento com o mais terno dos corações. Um tour de force de 600 páginas, que caracteriza uma espantosa síntese de teologia, filosofia, história, política, psicologia, ciência --- e, de fato, também assuntos de natureza mais esotérica.” [4]
De fato. Valentin Tomberg, que morreu em 1973 (seu Meditations foi publicado postumamente), era um Russo ocultista e mago que, em seus últimos anos, foi recebido na Igreja Católica. Foi durante esse último período de sua vida que ele escreveu Meditations on the Tarot. O falecido Hamilton Reed Armstrong, escrevendo para o jornal Católico Christian Order, faz o seguinte resumo deste bizarro tomo:
“O autor ´anônimo´ apresenta Gnosticismo, Magia, Cabala e Hermetismo não somente como compatíveis, mas essencial para a verdadeira crença Católica. À medida em que cita São Paulo e São João Evangelista e exalta as visões de católicos místicos como São João da Cruz, Teresa de Ávila e São Francisco de Assis, assim como cita Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e São Boaventura, ele dá igual importância aos ‘iniciados’ Maçons... Papus, Louis Claude de Saint Martin (Martinismo), Saint-Yves dÁlveydre, reconhecido Luciferiano, Stanislau de Guaita, o Mago Satanista Elephias Levy, assim como o falso Messias Cabalista Sabbatai Zevi, Madame Blavatsky, Swami Vivekananda, Rudolf Steiner, Telhard de Chardin, Jacob Boehme, Swedenborg, Carl Jung, e muitos outros.
“A premissa geral do livro – dedicado à Virgem de Chartres – é que há uma energia cósmica geral denominada ‘egregore’ (Deus) que perpassa todas as religiões, assim como a Franco maçonaria. Essa energia unificada é manifestada na dualidade: claro-escuro, macho-fêmea, bem-mal, etc., a qual no Hinduísmo é chamada Advaita Vedanta, Monismo entre osseguidores de Spinoza, e na tradição Cristã (citando São João fora de contexto), estão unidas pelo ‘Amor’ (p. 32). Todos os mestres espirituais entram misticamente nessa espiritualidade cósmica pela ‘iniciação’, entendida como ‘o estado de consciência onde tudo, a eternidade e o momento presente são um’. Nesse estado de consciência, poderes mágicos são adquiridos (p. 87). Jesus era um iniciado, assim como aqueles que viram antes dele. i.e. o Hebreu Moisés e o Egípcio Hermes Trimegisto, assim como Eliphias Lévi, Stanislau de Gauita, e Saint-Yves d’Alveydre, etc. Reincarnação é ‘simplesmente um fato da experiência’ (p. 93), por exemplo, Jesus era consciente de seus poderes ‘mágicos’, e o teurgista Senhor Philip ‘fez de si mesmo um instrumento da divina magia de Jesus Cristo’ (p. 193). A Santíssima Trindade é formada pela Pai, Filho e Espírito Santo ou, Pai, Mãe e Filho intercambiavelmente. A cruz é símbolo do casamento dos opostos (p. 259) e a Virgem Maria é ‘uma entidade cósmica, Sabedoria, A Virgem da Luz da [Gnóstica] Pistis Sophia, ... a Shekinah dos Cabalistas’ (pp. 547-549, 582). ‘O grande Mani [fundador do Maniqueísmo] ensinou uma síntese [que mobilizou] a boa vontade de toda a humanidade – Pagã, Budista e Cristã – para um único e universal esforço de ‘sim’ em direção ao espírito eterno e ‘não’ em direção às coisas da matéria’ (p. 471).
“O autor tece conjuntamente essas crenças sincretistas, Gnósticas, Cabalistas e Maniqueístas, e ao mesmo tempo sustenta que que tudo o que foi dito acima está em conformidade com a Fé Católica ortodoxa...”
Esse ecletismo teológico, Buck concede, é “definitivamente problemático para os Católicos”, mas ele desconsidera esses elementos ocultos por serem “não primários, nem secundários ou mesmo terciários ...” De minha parte, contudo, estou longe de estar convencido de que eles podem ser tão facilmente desconsiderados como apenas obter dicta (apenas retórica); pelo contrário, eu suspeito que eles são substancialmente prejudiciais à ortodoxia católica. De fato, mesmo se pudesse ser dito que Valentin Tomberg fosse noventa porcento ortodoxo e “somente” um por cento herético, nós poderíamos ainda lembrar a advertência do Papa Leão XIII de sua encíclica de 1896 Satis Cognitum:
“Não há nada mais perigoso do que aqueles hereges que admitem quase toda a doutrina, e ainda que seja por uma palavra, como uma gota de veneno, infectam a fé simples e real por Nosso Senhor e transmitida pela tradição Apostólica.”
À medida em que Meditations de Tomberg é conhecido entre Católicos tradicionais é largamente – se não inteiramente – devido ao fato do efusivo Prefácio para a edição em Alemão (e depois em Inglês) que foi escrita por Hans Urs von Balthasar. A preferência por Tomberg do falecido teólogo suíço e Cardeal eleito (ele o chamou um “pensador e pregador Cristão de inconfundível pureza”) e seu esotérico “Hermetismo Cristão” foi muito comentado por blogueiros tradicionais Católicos, incluindo o autor do ensaio que eu acabei de citar, e eu não transcrever o comentário agora. Embora a influência de Balthasar na teologia pós Conciliar – e sobre o Papa “Emérito” bento VXI pessoalmente[5] – dificilmente pode ser subestimada, muitos Católicos tradicionais bem formados já estão a par de seu pensamento heterodoxo, e não o consideram um dos seus.
O mesmo não pode ser dito do filósofo alemão Robert Spaemann, cujo falecimento em 2018 foi lamentado como uma grande perda para a causa da Tradição Católica: “Em Spaemann,” elogiou Rorate Caeli, “o mundo intelectual Católico perdeu uma de suas grandes luzes, e um eloquente defensor da Missa tradicional e da doutrina tradicional Católica ...” Martin Mosebach, autor de Heresy of Formlessness, que se tornou algo como um clássico moderno entre os defensores da Missa Tradicional em Latim (e cujo Prefácio foi escrito pelo mesmo Robert Spaemann), tomou as páginas de First Things para pagar o tributo às “longas décadas de batalha de seu camarada pela liturgia tradicional Católica ... Para Spaemann, era somente no rito – abrangendo todas as épocas – que um pessoa pode experimentar a unidade da família humana.” Na época da controvérsia a respeito de Amoris Laetitia, na qual Spaemann pronunciou seu criticismo aos esforços do Papa Francisco para superar os ensinamentos da Igreja sobre o casamento, a celebridade da mídia social “Trad” Fr John Zuhlsdorf aconselhou os leitores de seu blog homônimo Fr Z, “Quando Spaemann fala, nós devemos escutar.” Num post posterior, ele acrescentou, “Embora teólogos alemães hoje deixem a desejar quanto à claridade e a ortodoxia, Spaemann é claramente o melhor teólogo entre eles. E ele tem fé.”
Causa surpresa, então, que um homem com tal reputação a favor da doutrina ortodoxa junte sua voz à aprovação que dá Hans Urs von Balthasar ao livro Meditations on Tarot. E no entanto ele o fez; dos dois prefácios para a edição alemã de Meditations, o segundo foi escrito pelo professor Robert Spaemann: “O tempo certo para esse livro chegou ... Como somos afortunados ... [de ter] o mundo espiritual aberto para nós pelo autor dessas Cartas [que é o que contém o livro Meditations .]”[6]
O entusiasmo do falecido filósofo pelo tratado esotérico de Tomberg (se diz que ele deu de presente ao Papa João Paulo II a edição em dois volumes que apareceu em uma fotografia de 1988 na mesa do pontífice) poderia explicar um outro inexplicável relatório da conversa entre Spaemann e o autor italiano Pietro Archiati, que apostatou formalmente em 1987. Archiati, como Tomberg, passou a crer na realidade da reencarnação e julgou (diferentemente de Tomberg) que ele não poderia em boa consciência permanecer um Católico. Ele lembra que quando informou seu amigo Spaemann de sua decisão de renunciar à Igreja de seu batismo, “Prof Spaemann ... ficou muito perturbado ... [e] disse que ele iria me mostrar que a Igreja era bem mais aberta e liberal do que eu pensava ... e que há espaço na Igreja para pessoas que, como eu, estão convencidas da reencarnação.” Se o próprio professor Spaemann acreditava na reencarnação não se sabe, mas de acordo com Archiati, ele soube “com certeza” que João Paulo II realmente areditava, e que portanto pode ser considerada uma opinião perfeitamente ortodoxa.
Retornando agora ao livro Cor Jesu Sacratissimum, do auto-declarado “aspirante ao Hermetismo Cristão” Roger Buck, a segunda razão que eu chamo “muito peculiar” se deve à editora que o publicou: Angelico Press.
Católicos Tradicionais provavelmente tem ao menos um título da Angelico em suas prateleiras; em suas próprias palavras, Angelico Press é “dedicada a tornar a rica tradição da vida intelectual e cultural Católica mais disponível para as famílias, estudantes e acadêmicos.” Para esse fim, ela tem publicado muitos trabalhos de luminares da Tradição Católica, tais como o Bispo Athanasius Schneider, o historiador Prof Roberto de Mattei, o advogado e jornalista Christopher Ferrara, Prof John Rao (que faz parte também do conselho consultivo da Angelico), o Dr Peter Kwaniewski, o presidente da LMS Dr Joseph Shaw, o Dr Edmund Mazza, e o jornalista Antonio Socci, assim como tem republicado muitos clássicos Católicos de autores como Ven Fulton Sheen, Fr Bryan Houghton, Bella Dodd, G.K. Chesterton, St Thomas Aquinas, Dom Prosper Gueranger, Bl Columba Marmion e São Francisco de Sales. Entre os títulos originais da Angelico, os leitores tradicionais Católicos irão, sem dúvida, reconhecer In Sinu Jesu, um bestseller e clássico da espiritualidade de 2016, endossado por ninguém menos que suas eminências Raymond Leo Cardeal Burke e Arcebispo Carlo Maria Vigano.
Essa visão geral do catálogo da Angelico – repleta como é de volumes sobre Fátima, a antiga liturgia Romana, Chesterbelloc, a heresia Modernista, e a vida e visões de Anne Catherine Emmerich – serve para demonstrar porque eu, e muitos padres e leigos com os quais conversei, considerei, por muito tempo, a Angelico Press não somente uma editora confiável da literatura ortodoxa Católica (“uma das fundamentais editoras do pensamento Católico hoje em dia,” como coloca Rorate Caeli), mas mesmo uma resposta da vanguarda intelectual de resistência contra o Modernismo na Igreja. Essa impressão é evidentemente compartilhada pelo Dr Peter Kwasniewski, por exemplo, que tem louvado a Angelico como “a primeira editora de livros tradicionais Católicos imaginativos e intelectualmente rigorosos,” e “uma das poucas editoras Católicas de hoje em dia e cujas novas edições alguém pode se inscrever para receber e não ficar desapontado com cada título que chega por e-mail. Publicações da Fraternidade, o ramo de livros e publicações da Fraternidade Sacerdotal São Pedro (FSSP), vendeu não poucos livros da Angelico.[7]
Tudo isso para dizer que, para o bem ou para o mal, a Angelico Press contribui de forma significante para o discurso tradicional Católico, e pode, portanto, ser dito que tem uma certa influência na formação intelectual de Católicos tradicionais.
Menos de quatro anos após a publicação de Cor Jesu Sacratissimum, em Janeiro de 2020, a Angelico Press lançou um atraente e ilustrado livro de capa dura que, curiosamente, mesmo um ano após o fato, não pode ser encontrado em nenhuma parte de seu website. Olhando para a contracapa, o leitor é recepcionado por aprovações elogiosas dos autores da Angelico Dr Michael Martin e o falecido Stratford Caldecott, assim como pelo já falecido Prof Robert Spaemann e outros, além da seguinte sinopse:
“Publicado agora com um índice extendido, material suplementar, notas recentemente descobertas, e um exaustivo índice bibliográfico, a edição pela Angelico Press desse clássico espiritual, que tem trazido louvores sem limite, é um presente inestimável para os que buscam espiritualidade atualmente.”
De modo incomum para um “clássico espiritual” Católico proclamado (por Dr Martin) como possivelmente “o mais radicalmente ortodoxo ... trabalho do último século,” o livro está atualmente (no momento em que escrevo esse artigo) na posição 77 do ranking da categoria “Hermetismo & Rosacrucianismo” da Amazon, e na posição 129 na categoria “Magia & Alquimia” da Amazon UK.
O título do livro é Meditations on the Tarot: A Journey into Christian Hermeticism.
Notas:
[1] Buck, R., Cor Jesu Sacratissimum: From secularism and the New Age to Christendom Renewed (Angelico Press, 2016), p.15
[2] Ibid, p.239
[3] Ibid, p.240
[4] Ibid, p.238
[5] A propósito, se diz “que Joseph Cardinal Ratzinger, antes de se tornar o Papa Bento XVI, autorizou a edição Russa de Meditations on Tarot.” [https://corjesusacratissimum.org/2013/12/meditations-on-the-tarot-and-the-vatican/]
[6] Anônimo [Tomberg, V.], Meditations on the Trot: A Journey into Christian Hermeticism (Angelico Press, 2020), pp.v-vi
[7] “Não importa se pela Angelico Press, St. Augustine Academy Press ou vários outros lugares, a FSSP opta por vender o que considera os melhores livros tradicionais sendo atualmente impressos.” [https://www.ncregister.com/features/traditional-books-abound-amid-latin-mass-revival]
Parte II: Perenialismo e a “Unidade transcendente das religiões”
No ano de 2005, o autor já mencionado, publicado em quatro ocasiões pela Angelico Press, Stratford Caldecott, postou – e aparentemente aprovando – o texto de uma carta enviada a ele pelo seu colega na editora Angelico, prof. Wolfgang Smith, no fórum online de seu empreendimento chamado Second Spring, fundado por Stratford e sua esposa, que “oferece serviços editoriais e educacionais no ramo da Fé e da Cultura”. Até hoje essa empresa publicou um total de onze livros sob o selo “Second Spring” com a Angelico, que lamentou por Caldecott (que faleceu em 2014) considerando-o “uma luz orientadora para todos nós da Angelico Press”. A carta do prof. Smith diz, em um excerto:
“Só nos últimos tempos (talvez nos últimos um ou dois anos) parece que finalmente fiz as pazes com a doutrina da UT [Unidade Transcendente]…
“Estou plenamente convencido de que EXISTE uma unidade transcendente da qual toda religião autêntica constitui uma manifestação desejada por Deus. Parece-me que esta unidade transcendente é de fato a pérola da verdade consagrada em cada religião, que os fiéis estão destinados a descobrir e tomar posse no final do caminho, quando tiverem, Deo volente, alcançado o que o cristianismo chama de theosis; pois, de fato, essa verdade não é mais uma questão de doutrina, de concepções teológicas ou metafísicas, mas é o próprio Deus: eu sou a verdade, disse Cristo”.
Do meu ponto de vista de simples leigo, não posso compreender como essa “unidade transcendente das religiões” seja materialmente diferente da afirmação “O pluralismo e as diversidades de religião [...] fazem parte daquele sábio desígnio divino”, à qual o Papa Francisco, de forma controversa, deu assentimento papal ao assinar o “Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum”, em 2019, e por este foi tão duramente criticado nos círculos católicos tradicionais, inclusive por Mons. Athanasius Schneider, aquele grande defensor da Fé em nossos tempos. De fato, a carta de Smith vai ainda mais longe, tornando explícito o que esse documento apenas insinua; ou seja, que Deus certamente deseja uma multiplicidade de religiões. E, no entanto, essa parece ser uma opinião compartilhada pelos principais autores da Angelico, que consideram Stratford Caldecott – “Strat” para seus fãs – como um líder visionário deles [ ].
Eu exagero? Creio que não. Outra evidência do consenso da “unidade transcendente” que existe na Angelico Press pode ser encontrada em outra de suas publicações, a coleção “Sophia Perennis”, sob a qual Angelico publicou dezenove títulos até o momento, tornando-se a principal da Angelico. Pertence a uma editora de mesmo nome, liderada pelo cofundador da Angelico Press, James Wetmore[ ]., cujo site declara sua missão nestes termos:
“Sophia Perennis se dedica a publicar os melhores escritos contemporâneos sobre as tradições de sabedoria do mundo, em grande parte conforme uma perspectiva tradicionalista ou “perenealista”, bem como reimprimir clássicos reconhecidos. Tentamos permanecer fiéis aos princípios centrais tradicionalistas – notadamente a Unidade Transcendente das Religiões – enquanto exploramos novas aplicações desses princípios, bem como retornamos às próprias grandes revelações para uma nova visão.”
De acordo com a página “FAQ” de Sophia Perennis, a “regra” cardeal do Tradicionalismo/Perenealismo – daqui em diante usarei este último termo quando me referir à escola filosófica para evitar confusão com o tradicionalismo católico – é que “um tradicionalista deve permanecer fiel ao seu ou sua prática pessoal e a uma, e apenas uma, das Tradições reveladas...” Nesse sentido, a Escola Perenealista se posiciona em contraposição ao sincretismo religioso (como defendido pela Teosofia ou a Nova Era, por exemplo):
“O tradicionalismo rejeita todo sincretismo. As diferenças entre as religiões são tão providenciais quanto os aspectos que têm em comum. Misturar religiões é como tentar trilhar caminhos separados, mas paralelos ao mesmo tempo; não se deve fazer, exceto na fantasia. As religiões verdadeiras e reveladas foram todas enviadas, remetem e dão acesso à mesma Realidade Absoluta, mas seus caminhos não convergem neste mundo; a Unidade das Religiões existe apenas no Transcendente. Assim, o Tradicionalismo, enquanto permanecer fiel aos seus princípios primeiros, se opõe totalmente a todas as tentativas de confederar as religiões do mundo sob uma autoridade não-religiosa, ou de criar uma religião global”.
Isso, no entanto – como qualquer leitor católico reconhecerá imediatamente – é o puro indiferentismo religioso; como tal, cai na mesma categoria de erro que o sincretismo a que pretende se opor. O autor da seção “FAQ” da página Sophia Perennis, reconhecendo esse aparente paradoxo, procura resolvê-lo colocando e respondendo às seguintes perguntas:
“O tradicionalismo implica que somos obrigados a assumir um compromisso sério com UMA das religiões reveladas. Isso não entra em conflito com a ideia de que mais de uma religião é válida? Como é possível se comprometer seriamente com uma religião, se ela não é vista como a própria Verdade?
“A única maneira, em última análise, é desenvolver um senso tão profundo e inabalável de Deus ou Realidade Absoluta que ela mesma, e não sua religião em particular, se torne o foco principal de sua fé – e então entender seu caminho religioso como um presente incomparável dado a você por Aquele Único, O Qual especificamente o chamou para se aproximar Dele por meio desse caminho. Sua religião torna-se, assim, como sua amada, sua “primeira e única”; compará-la com outras religiões é inútil, irrelevante - na verdade, um insulto Àquele que o chamou a Ele por meio dela - uma vez que tais comparações exigem que você desvie sua atenção Dele e se concentre em questões secundárias. Ao perseguir a Unidade Transcendente das Religiões, aprendemos a deixar os outros em seus próprios caminhos designados e descobrimos (se Deus quiser) que nosso único dever é seguir nosso próprio até o fim último”.
Esses “assuntos secundários”, é claro, são as óbvias diferenças doutrinárias que existem entre as múltiplas religiões do mundo. Na linguagem perenealista, são chamados de representações meramente circunstanciais, “exotéricas” (externas e superficiais) de verdades universais, “esotéricas” (íntimas e profundas); qualquer um que leve o primeiro modo muito a sério – evangelizando não-católicos, por exemplo – está perdendo o foco.
É somente trabalhando a partir de tal premissa que se pode chegar à mesma conclusão do professor da Angelico Wolfgang Smith, “que a verdade não é mais uma questão de doutrina, de concepções teológicas ou metafísicas, mas é o próprio Deus: eu sou a verdade, disse Cristo.” Embora não sem uma certa lógica interna, é revelador que esta conclusão exija do cristão perenealista uma abreviatura bastante dissimulada da declaração de Nosso Senhor: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai, senão por mim”. (João 14:6). Cristo, em outras palavras, compreendido da maneira devida, não é apenas o destino final (“a verdade”), a se “tomar posse no final do caminho”, como Smith imagina, mas também é a via (“o caminho”) em si; aliás, o caminho único e exclusivo, na direção contrária ao perenealismo.
Qualquer esforço para forçar a forma quadrada do cristianismo – e especialmente do catolicismo – no buraco redondo do perenialismo, invariavelmente mutila tanto a Escritura quanto a Tradição. Dá testemunho disso, por exemplo, esta tentativa do falecido professor James S. Cutsinger, outro estudioso cristão da Escola Perenealista, de reconciliar sua fé com a sua filosofia, em um ensaio com que contribuiu para Christianity: The Complete Guide: “Deve-se admitir”, ele escreve, “que o cristianismo tradicional é amplamente hostil à filosofia perene...”
“De acordo com [Frithjof] Schuon e outros perenealistas, essa atitude dominante entre os cristãos não é surpreendente, nem deve ter sua utilidade questionada em relação à grande maioria dos crentes. O objetivo de qualquer religião é garantir a salvação do maior número possível de pessoas, e a maioria das pessoas, sejam cristãs ou não, são capazes de levar sua tradição a sério apenas ao estarem convencidas de que é a melhor, se não a única forma para chegar a Deus…”
[Há ecos aqui de Valentin Tomberg (vide Parte I), que supostamente impressionou um de seus discípulos – note bem, após sua conversão ao catolicismo – sobre a importância de “Viver na Tradição! Somente aquele com gênio deve (e pode) transcendê-la”. As conotações gnósticas são inconfundíveis; as verdades mais altas, mais profundas e mais puras devem permanecer veladas e inacessíveis ao homem comum, e ensinadas apenas aos iniciados.]
“…Os críticos têm argumentado que o Novo Testamento, tomado como um todo, se opõe à filosofia perene, e isso é, em geral, verdade... Mas para o perenealista isso simplesmente mostra que o objetivo principal das religiões do mundo, começando com suas escrituras e autoridades apostólicas, é ajudar seus adeptos a permanecerem focados em uma única forma da verdade salvífica, não para estabelecer as bases do diálogo inter-religioso. Por outro lado, dada a origem comum das religiões em uma Fonte transcendente que, como todas as próprias tradições atestam, excede infinitamente até mesmo suas próprias auto-expressões, é da natureza das coisas que as formulações escriturísticas e dogmáticas de cada religião incluam certas aberturas ou pistas para a validade subjacente da filosofia perene...”
“Seguindo o fio de tais pistas [como são encontradas no cristianismo], começa-se a sentir que o Filho ou Verbo, longe de estar limitado a uma única religião, é o princípio divino por trás de toda revelação e a fonte eterna de salvação em toda tradição autêntica. Embora verdadeiramente encarnado como Jesus Cristo no cristianismo, ele também opera de forma salvífica dentro e por meio de religiões não-cristãs. Em algumas está presente de forma também pessoal, como em Krishna e nos demais avatares hindus, nos quais também “fez-se homem” (Credo de Nicéia), enquanto em outros aparece de forma impessoal, como no Alcorão, do Islã, onde se fez livro…”
Que Nosso Senhor é simultaneamente um homem, um livro e um demônio – “Porque todos os deuses dos gentios são demônios…” (Salmo 95:5) – e que os dogmas da Fé existem apenas para manter obedientes as massas não iniciadas, espero, seja um choque para os fiéis católicos. Mas a Angelico Press aparentemente não se incomoda com a sugestão e mantém sua parceria com Sophia Perennis independentemente. De fato, Stratford Caldecott até se juntou a seu colega prof. Smith ao contribuir com um longo endosso de contracapa para um dos títulos exclusivos de Sophia Perennis, Guénonian Esoterism and Christian Mystery [Esoterismo guenoniano e Mistério cristão], do filósofo perenialista francês Jean Borella.
Sem dúvida será de interesse para os leitores católicos tradicionais que Borella, um auto-intitulado tradicionalista católico [ ], que Caldecott frequentemente citou em seus escritos e recomendou [ ] a seus leitores, foi o tema de um livro de 1996, The Gnostic Heresies of Professor Jean Borella, para o qual o Bispo Bernard Tissier de Mallerais da Fraternidade São Pio X (SSPX) escreveu o prefácio:
“[Muitas] das ideias centrais ao pensamento de Borella se chocam com as condenações históricas da Igreja aos erros gnósticos…
“O Pecado Original, ele argumenta, é ‘a vontade do ser condicionado de se conhecer como tal’, e acabar com aquele é simplesmente uma questão de o homem ‘retornar ao poder operativo e à eficácia salvífica do conhecimento’. Essa é uma cosmovisão convidativa, na qual o pecado é um erro intelectual e a salvação uma questão meramente de conhecimento?” [5].
O gnosticismo (do qual falaremos mais na Parte III) está intimamente ligado ao perenealismo. O professor Smith certamente percorre com dificuldade suas águas turvas no tratamento que dá à “afirmação de um ingrediente sobrenatural no homem…, [a] “pequena centelha” em cada ser humano,... chamada ‘incriada e incriável’...” da mística heterodoxa de Mestre Eckhart. Smith claramente concorda com este ensinamento de Eckhart (apesar de sua condenação pelo Papa João XXII em 1329[6]), mas, no entanto, aplaude a rejeição “pastoral” da Igreja, porque “tais concepções são compreensíveis para muito poucos, e... a divulgação para os fiéis em geral não é apenas desnecessária, mas perigosa ao extremo; como disse Clemente de Alexandria: ‘Não se estende uma espada a uma criança’”. Valentin Tomberg (não estritamente um perenialista, mas cuja crença em “uma energia cósmica geral… que permeia todas as religiões” certamente o situaria dentro dessa tradição filosófica) assume a mesma postura obscurantista em relação à reencarnação em suas “Meditações sobre os 22 arcanos maiores do Tarô” (página 361):
“Vê agora, caro amigo desconhecido, por que a Igreja era hostil à doutrina da reencarnação, embora o fato de repetidas encarnações fosse conhecido... por um grande número de pessoas fiéis à Igreja com autêntica experiência espiritual... sucumbir à tentação de preparar-se para uma futura vida terrestre... Vale cem vezes mais... negar a doutrina da reencarnação, do que direcionar pensamentos e desejos para a futura vida terrestre e assim ser tentado...”
Mons. Tissier de Mallerais continua:
“Borella também é altamente heterodoxo no que diz respeito ao Apocalipse, afirmando ‘a origem divina das revelações’ – note o plural – ‘após a necessária revelação de Cristo’, bem como “a presença de um elemento central e propriamente divino na religião não-cristã”. Isso, afirma ele, se deve à generosidade desenfreada do dom divino da salvação, à existência de visionários em religiões não-cristãs e à beleza transcendente, que não pode ter origem humana, dessas religiões.”
“Borella afirma que ‘a inteligência, em sua forma pura, supera a ordem da natureza... [e] é, em si, ordenada ao transcendente’. Ao fazê-lo, ele nega tanto a gratuidade quanto a origem sobrenatural da graça infundida do Batismo. Da mesma forma, ele afirma que ‘o conhecimento da fé, no qual consiste a verdadeira gnose, não precisa ser gerado por uma infusão de uma graça particular, como uma experiência mística extraordinária’, mas ‘é capaz de ativar (isto é, ser posta em ação) [a] capacidade natural [do intelecto], ou pelo menos permitir ao intelecto realizar um ato cognitivo que começa a revelar ao intelecto sua própria natureza deiforme/teomórfica’. Isso, novamente, equivale a uma negação da distinção entre as ordens natural e sobrenatural: uma negação que não deixa espaço para a crença na gratuidade ou na origem sobrenatural da graça santificante e da virtude teologal da fé... virtude do sacramento do Batismo!”
A Angelico Press, de fato, publicou cinco livros de Borella; e, claramente, vários de seus autores mais proeminentes sorveram de maneira profunda das taças do perenialismo. Mas há outras razões para supor que não apenas esses indivíduos, mas a própria Angelico Press, como instituição, abraçou essa filosofia. De que outra forma explicar a publicação, no próprio site, de um artigo chamado “The Covenants of the Prophet Muhammad” [As Alianças do Profeta Maomé], que afirma que “as alianças em questão não foram o produto de sua própria iniciativa humana [de Maomé], não o resultado de inspiração divina, mas sim a consequência real da revelação divina”, e fala do Alcorão como “o livro divinamente inspirado e agraciado a Muhammad ibn 'Abd Allah por meio do Anjo Gabriel”?
Por mais chocante que seja ler tal declaração em um site ostensivamente católico, cuja página inicial é encabeçada pelo slogan: “Aprofundar nosso conhecimento da tradição católica. Encontrar novas maneiras de viver nossa fé dentro dessa tradição”, está, no entanto, em perfeita harmonia com o pensamento de Stratford Caldecott – a “luz guia” da Angelico, lembre-se – que opinou em “O Mistério do Islã: Reflexões Adicionais”, que “o Islã e o cristianismo podem, de fato, estar doutrinariamente mais próximos do que se supõe frequentemente...”
“[Fr Roch] Kereszty escreve: ‘Os cristãos não podem deixar de reconhecer que Deus falou através do Alcorão e comunicou a experiência e o conhecimento de si mesmo a um número incontável de milhões de pessoas’. O Islã é uma árvore que deu inúmeros frutos bons, e também maus…”
Além disso, o fundador da Angelico Press e atual Presidente John Riess – que, segundo ele mesmo admitiu, criou a Angelico “para dar vazão a vozes católicas contemporâneas como Stratford Caldecott, Jean Borella e Jean Hani” (o último dos quais é mais um filósofo perenialista) – pertence a “uma academia e grupo de reflexão”, Restore the Arts Inc., cujo manifesto Junguiano “neo-humanista” declara que “muitos membros deste grupo são pessoas de fé e crentes no Deus Único das revelações Judaico-Cristãs-Islâmicas” – uma formulação decididamente indiferente (para não mencionar praticamente maçônica).
Que esse assim chamado perenialismo tenha suas origens no ocultismo é tão óbvio que dificilmente precisamos nos deter nisto. Basta notar que o fundador da Escola Perenialista, o ocultista francês e apóstata católico, René Guénon, era um maçom de rito escocês; e citar um texto de Morals and Dogma of the Ancient and Accepted Scottish Rite of Freemasonry (1871) do Maçon Albert Pike:
“O Brâmane, o Judeu, o Maometano, o Católico, o Protestante, cada um professando sua religião peculiar, sancionada pelas leis, pelo tempo e pelo clima, deve mantê-la, e não pode ter duas religiões; pois as leis sociais e sagradas adaptadas aos usos, costumes e preconceitos de países particulares são obra dos homens. Mas a Maçonaria ensina, e preservou em sua pureza, os princípios cardeais da antiga fé primitiva, que dão forma e são o fundamento de todas as religiões”.
Notas:
[1] E eu quero dizer “visionário” no sentido literal: “O próprio Stratford, quando jovem, teve sonhos visionários com o Santo Graal…”. Ele também afirmou que testemunhou a ascensão da alma de seu falecido pai: “enquanto eu rezava sozinho com seu corpo, acredito que tive um vislumbre da batalha por sua alma, e sabia que ele havia sido vitorioso.” (https://www.patheos.com/blogs/standingonmyhead/stratford-caldecott-gnosis-and-grace)
[2] Em uma entrevista com o padre Dwight Longenecker sobre o trabalho da Angelico Press, o fundador John Riess faz referência a “Meu parceiro de negócios James Wetmore e eu…” Roger Buck também expressa sua gratidão a “John Riess e James Wetmore da Angelico Press” nos Agradecimentos de sua obra The Gentle Traditionalist Returns.
[3] “Algumas figuras luminares como Jean Borella... estavam de fato associadas tanto à Escola Perenialista quanto ao movimento tradicionalista católico...”.
[4] Por exemplo, “eu também recomendo os escritos de Jean Borella, um perenialista que se tornou católico ortodoxo, especialmente... seu livro tratando do... “Esotérisme guénonien et mystère chrétien”.
[5] Original em francês. Todas as citações deste trabalho são do próprio autor e traduzidas do inglês.
[6] João XXII “condenou dezessete das proposições de Eckhart consideradas heréticas, e onze consideradas obscuras, precipitadas e suspeitas de heresia...”. (CATHOLIC ENCYCLOPEDIA: Meister Eckhart (newadvent.org))
Parte III: A Metafísica Gnóstica da Cabala
O que é essa “velha fé primitiva” que, segundo os maçons, é o “fundamento de todas as religiões”? Todo o opúsculo de Albert Pike é uma resposta maçônica a esta pergunta:
“Todas as religiões verdadeiramente dogmáticas saíram da Cabala e volvem a ela: tudo que é científico e grandioso nos sonhos religiosos de todos os illuminati, Jacob Boehme, Swedenborg, Saint-Martin e outros, é tomado de empréstimo da Cabala; todas as associações maçônicas devem a esta seus segredos e seus símbolos.”
“Somente a Cabala consagra a aliança da Razão Universal e do Verbo Divino; estabelece, pelos contrapesos de duas forças aparentemente opostas, o eterno equilíbrio do ser; só ela reconcilia Razão com Fé, Poder com Liberdade, Ciência com Mistério; tem as chaves do Presente, do Passado e do Futuro.”
“A Bíblia, com todas as alegorias que contém, expressa, de maneira apenas incompleta e velada, a ciência religiosa dos hebreus...”
“A Cabala é a tradição primeva... e nas Tradições Secretas da Cabala encontramos uma Teologia inteira, perfeita, única... O Segredo do EQUILÍBRIO UNIVERSAL… entre o Bem e o Mal, a Luz e as Trevas no mundo, que assegura que tudo é obra da Sabedoria Infinita e de um Amor Infinito...”
A Cabala (como se escreve mais comumente) é uma tradição mística judaica esotérica de origem incerta. O rabino Geoffrey W. Dennis, professor de Cabala na Universidade do Norte do Texas e autor de The Encyclopedia of Jewish Myth, Magic, and Mysticism, oferece a seguinte introdução aos princípios básicos e à prática no site oficial da Union for Reform Judaism:
“Cabala (também grafada Kabbalah, Cabala, Qabala) – às vezes traduzida como ‘misticismo’ ou ‘conhecimento oculto’ – é uma parte da tradição judaica que lida com a essência de Deus…”
“Seus praticantes tendem a ver o Criador e a Criação como um continuum, e não como entes díspares, e desejam experimentar intimidade com Deus... Dentro da alma de cada indivíduo há uma parte oculta de Deus que está esperando para ser revelada..., o cabalista Moses Cordovero escreve: “A essência da divindade encontra-se em cada coisa, nada existe senão Ela ... Ela existe em cada existente”.
“Há três dimensões em quase todas as formas de misticismo judaico, que provavelmente serão compreendidas por apenas um pequeno número de pessoas que possuem conhecimento especializado ou interesse no tópico:”
“O aspecto especulativo da Cabala envolve a busca da realidade oculta do universo e do conhecimento secreto sobre suas origens e sua organização – uma busca que é mais esotérica do que mística…”
“A dimensão da experiência da Cabala envolve a busca real pela experiência mística: um encontro direto, intuitivo e imediato com uma Divindade próxima, mas oculta. Como escreveu Abraham Joshua Heschel, os místicos ‘… querem provar todo o trigo do espírito antes que seja moído pelas mós da razão’. Os místicos buscam especificamente extasiante de Deus, e não meramente o conhecimento sobre Deus...”
“A dimensão prática da Cabala envolve rituais para ganhar e exercer poder para efetuar mudanças em nosso mundo e nos mundos celestiais além do nosso. Este poder é gerado pela ação dos mandamentos, convocando e controlando forças angélicas e demoníacas, e de outra forma explorando as energias sobrenaturais presentes na Criação… O verdadeiro mestre desta arte cumpre o potencial humano de ser um co-criador junto a Deus…”
Se tudo isso – o dualismo, o panteísmo, os segredos, a feitiçaria – parece ao leitor católico com o odor fragrante da heresia gnóstica, não parece erroneamente. O filósofo israelense Gershom Scholem, o proeminente estudioso moderno da Cabala, admite isso na Encyclopaedia Judaica:
“Desde o início de seu desenvolvimento, a Cabala abraçou um esoterismo próximo ao espírito do gnosticismo, que não se restringia à instrução no caminho místico, mas também incluía ideias sobre cosmologia, angelologia e magia”.
Com base na erudição de Scholem, o falecido professor Orlando Fedeli, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, explica que, como os gnósticos, “a Cabala supõe que há dois princípios opostos em Deus: o do bem e o do mal... [Citando Scholem:] “Tudo o que é diabólico tem suas raízes em alguma parte do mistério de Deus”.
O caráter inegavelmente gnóstico desse misticismo judaico também é reconhecido por Joseph Dan, professor de Cabala na Universidade Hebraica de Jerusalém, que observou a apresentação da Cabala do “universo como um campo de batalha entre poderes divinos satânicos e poderes divinos benéficos, traçando um mundo paralelo de divinas “emanações da esquerda”, que são os inimigas de Deus, mas são divinas no sentido total do termo... A Cabala crê firmemente que o destino dos poderes divinos é decidido pelas boas e más ações dos seres humanos, e que é tarefa do povo judeu ‘corrigir’ (tikkun) a incompletude da própria divindade”; isto é, unificando os opostos de Deus e Satanás, bem e mal, ser e não-ser, ordem e caos.
“Ai de vós os que ao mal chamais bem, e ao bem mal, que tomais as trevas por luz, e a luz por trevas, que tendes o amargo por doce, e o doce por amargo!” (Isaías 5:20). “ “Até quando claudicareis vós para os dois lados (inclinando-nos umas vezes para o Senhor e outras para Baal)? Se o Senhor é Deus, segui-o; se, porém, o é Baal, segui-o”. (1 Reis 18:21)“ “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há-de odiar um e amar o outro, ou há-de afeiçoar-se a um e desprezar o outro”. (Mateus 6:24) “Pois, que união pode haver entre a justiça e a iniquidade? Ou que sociedade entre a luz e as trevas? Que concórdia entre Cristo e Belial?” (2 Coríntios 6:14-15). Estas são as perguntas bíblicas que eu colocaria não apenas ao maçom Pike e ao judeu Dennis, mas aos autores católicos promovidos pela “principal editora de livros católicos tradicionais de imaginação e intelectualmente rigorosos”, Angelico Press: Valentin Tomberg, prof. Jean Borella, Roger Buck, Stratford Caldecott, prof. Wolfgang Smith e Dr. Michael Martin, como também para aqueles outros católicos, supostamente tradicionais, de opinião teológica semelhante (alguns dos quais encontraremos nas Partes IV e V) .
Já vimos (na Parte I) que a Cabala é uma grande influência nas Meditações sobre os arcanos do tarot de Tomberg, em que, para citar apenas um exemplo, o leitor é informado “que Jesus Cristo é a chave para o mundo, e que o mundo – como era antes da Queda e como será depois de sua Regeneração – é o Verbo, e que o Verbo é Jesus Cristo...” (p. 195) Nesta curta passagem estão contidas as duas doutrinas mais fundamentais (e, acredito, as mais errôneas) da Cabala: emanacionismo e apocatástase, que foram condenadas – e seus proponentes anatematizados – no Concílio Vaticano I[1] e no segundo Concílio de Constantinopla[2], respectivamente. Contra essas heresias gêmeas que o grande padre Reginald Garrigou-Lagrange se levantou quando escreveu seu famoso ensaio de 1946, “Onde nos leva essa ‘nova teologia’?”:
Autores como Téder e Papus, em sua explicação da ‘doutrina martinista’, ensinam um panteísmo místico e um neo-gnosticismo pelo qual tudo sai de Deus por emanação (há então uma queda, um ‘mal cósmico’, um pecado original ‘sui generis’), e todos aspiram ‘ser reintegrados’ na divindade, e “todos” lá chegarão. Isto está em muitas obras de ocultistas recentes tratando do ‘Cristo moderno’, e ‘plenitude em termos de luz astral’, ideias que não são as da Igreja e que são inversões blasfemas porque sempre negam por um meio panteísta o verdadeiro sobrenatural, e muitas vezes até mesmo a negação da distinção entre bem moral e mal moral, a fim de permitir apenas o que é um bem útil ou desejado, incluindo o mal cósmico ou físico, que, com a reintegração [i.e. apocatástase] de todos, sem exceção, desaparecerá”.
O pensamento Gnóstico-Cabalista do autor de Meditações é igualmente claro em uma observação feita por seu amigo (ainda vivo), Dr. Martin Kriele, representante literário e herdeiro de Tomberg:
“Ocasionalmente, [Tomberg] falava do mal no qual via não apenas só uma ‘ausência de ser’, mas poderes reais múltiplos e caóticos... Para combater isso, havia a necessidade de um Esoterismo Cristão ‘branco’, do bem, que por si estava à altura dessa tarefa. Poderia desenvolver efeitos ‘mágicos’ se a vontade do homem estiver em perfeita harmonia com a vontade de Deus.”
Tais ideias, como diria o padre Garrigou-Lagrange, “não são de modo algum as da Igreja”, porque toda a tradição da Igreja testemunha, com São Tomás de Aquino, que “bondade e ser são realmente a mesma coisa... nenhum ser pode ser mal, formalmente como ser, mas apenas na medida em que carece de ser”. Afirmar que o mal existe é insistir que Deus criou o mal e, portanto, é Ele mesmo em certa medida mal – o que, é desnecessário dizer, tanto constitui uma blasfêmia no catolicismo quanto evidentemente um truísmo na Cabala: “Quando o Santo, bendito seja Ele, criou o mundo”, ensina o Zohar, o texto fundamental da Cabala, “…todas as coisas estavam contidas umas nas outras, a boa e a má inclinação, a direita e esquerda, Israel e as nações, branco e preto. Todas as coisas dependiam umas das outras.”
Nada disso, no entanto, impediu a “luz-guia” da Angelico Press, o falecido Stratford Caldecott, de exaltar Valentin Tomberg como um profeta quase como Elias clamando no deserto do catolicismo decrépito, como ele faz quando proclama, na parte de trás capa da edição cuidadosamente revisada e atualizada da Angelico, sobre a magnum opus de Tomberg, “Meditações sobre o Tarot mostra que o cristianismo não foi perdido, mas vive e respira”. Além disso, dois dos livros de Caldecott – All Things Made New [3] e The Radiance of Being – fazem menções frequentes à Cabala, em cujos textos abstrusos, ele afirma, pode-se encontrar “o anel da verdade”.
O amigo e colega de Caldecott, Dr. Michael Martin, um católico bizantino que, em suas próprias palavras, “se inspira muito nas formas espiritualmente nutritivas do catolicismo... na obra de Stratford Caldecott”, é igualmente apaixonado por Tomberg: “As Meditações sobre o Tarot são uma companhia e uma fonte de renovação espiritual”, escreve ele, e defende a crença do autor na reencarnação (que ele considera “provavelmente verdadeira”) alegando que, embora “alguns sugiram que a Bíblia não ensina a reencarnação, eu não acho é tão simples assim... [porque] a cabala, um ensinamento místico judaico nascido da profunda contemplação das Escrituras, propõe uma doutrina de sod ha-gilgul, “a revolução das almas”. O Dr. Martin também se inspira no trabalho de outro “cristão esotérico”, Rudolf Steiner, cujas próprias especulações metafísicas são igualmente Cabalísticas:
“Nos últimos anos, achei a concepção de Rudolf Steiner de Lúcifer e Ahriman muito útil para diagnosticar nossas próprias lutas com o Espírito do Tempo. Embora eu discorde de Steiner em certos aspectos de sua cristologia... acho que algo se aproveita em relação a Lúcifer e Ahriman”.
“Para Steiner, Lúcifer é o princípio (ou ser espiritual) que nos tenta com promessas de ‘liberdade’, o desejo de autoexpressão, individualização e uma criatividade absoluta. Ahriman, por outro lado, é o princípio (ou ser espiritual) que promete ordem e uma espécie de eficiência tecnológica e corporativa que nos escraviza ao subumano, nos transforma efetivamente em máquinas. Entre essas duas polaridades, Steiner aponta para Cristo como aquele princípio que nos guia através dos perigos das promessas feitas por Lúcifer e Ahriman e nos ajuda a permanecer no real”.
No post do blog citado acima - publicado no site da Angelico Press - vemos ainda outra expressão do dualismo gnóstico no coração da Cabala, que a cristologia de Steiner, como a de Tomberg (e aparentemente também a de Martin), fazem de Nosso Senhor o “princípio” harmonizador no qual a ordem (Ahriman) e o caos (Lúcifer) encontram seu equilíbrio. Tal é a concordância que Cristo tem com Belial; São Paulo tem a resposta.
Mas, de todos os autores da Angelico, nenhum é um devoto mais entusiasmado da Cabala do que o professor Wolfgang Smith. Em nenhum lugar isso é mais claramente evidenciado do que em sua correspondência com o falecido padre Malachi Martin, compilada pela Angelico Press sob o título In Quest of Catholicity e comercializada como uma “fascinante troca de cartas entre dois célebres tradicionalistas católicos...”:
“Se eu fosse mais jovem, adoraria seguir seus passos para aprender hebraico e mergulhar na literatura cabalística – sem, é claro, esquecer Jacob Boehme. Na verdade, parece-me que a Cabala, o Hermetismo e a doutrina da nossa mística alemã dificilmente podem ser separadas. Esses três legados parecem formar uma tradição subjacente, uma grande doutrina perene, que, como você disse, brota do próprio Cristo. O que Boehme fez foi expor essa doutrina mais claramente e em termos abertamente cristãos. Talvez, graças a ele, a Igreja Católica um dia faça da Cabala coisa própria! E eu me pergunto se talvez não será com base nessa Cabala assimilada que a Igreja acabará por resolver o enigma das ‘religiões separadas’ e, ao fazê-lo, realizará sua própria catolicidade autêntica e definitiva” [4].
Jacob Boehme, é claro, era um herege luterano. Mas o odor da heresia não parece nada desagradável ao professor Smith, que não foi dissuadido de “envolver-se” com o pensamento de Boehme, nem com os ensinamentos místicos de Mestre Eckhart (ver a Parte II), censurados pelo papa, como lemos na sinopse da obra Christian Gnosis de Smith (publicado conjuntamente pela Sophia Perennis e Angelico Press):
“Baseando-se em fontes cristãs – literalmente ‘de São Paulo a Mestre Eckhart’ – Wolfgang Smith formula o que chama de um relato ‘não expurgado’ da ‘gnose’, e demonstra seu lugar central na perfeição da vida centrada em Cristo... O ‘fato da gnose’... tem uma influência decisiva na noção teológica de ‘creatio ex nihilo’... O que assim exige-se, ele afirma, é a noção inerentemente cabalística de uma ‘creatio ex Deo et in Deo’ [ie emanacionismo], não para substituir, mas para complementar a ‘creatio ex nihilo’. Isso leva a um envolvimento com a Cabala Cristã (Pico de la Mirandola, Johann Reuchlin e Cardeal Egidio di Viterbo especialmente) e com Jacob Boehme, culminando em uma exegese da doutrina de Mestre Eckhart. O autor argumenta, em primeiro lugar, que Eckhart não defende (como muitos pensaram) uma teologia de “Deus além de Deus”: em outras palavras, não sustenta uma visão inerentemente sabeliana da Trindade. Smith sustenta que Eckhart de fato não transgrediu um único dogma trinitário ou cristológico; o que ele nega implicitamente, fica demonstrado, não é outra coisa senão a ‘creatio ex nihilo’, que de fato Eckhart substitui pela ‘creatio ex Deo’ cabalística. Nessa mudança, além disso, Smith percebe a transição de ‘exotérico’ para ‘esotérico’ dentro do domínio integral da doutrina cristã”.
Por que razão a integração de “noções Cabalísticas” na doutrina católica é “exigida”? Por que é tão desejável que a Igreja “faça a sua própria Cabala”? Acredito ter encontrado a resposta do prof. Smith para essas perguntas, oculta nas páginas de Sophia: The Journal of Traditional Studies:
“Há níveis de significado no Novo Testamento também [como no Antigo] – que podem incluir o mais alto! – que provam ser acessíveis apenas por meios cabalísticos”.
Mas, se assim for, e se, como diz São Jerônimo, “ignorar as Escrituras é ignorar a Cristo”; e se, além disso, como nos assegura o Catecismo de Baltimore: “Quando O conhecermos, O amaremos... [e] quanto melhor O conhecermos, mais o amaremos”; então por que é, eu me pergunto, que na marcha dos “Cabalistas Cristãos” que vieram antes de nós – Pico della Mirandola, Johann Reuchlin, Egídio de Viterbo, Francesco Giorgi, Paolo Riccio, Athanasius Kircher, e assim por diante – com toda a erudição mundana que possuíam e “conhecimento” cabalístico inferido de Cristo, nem um foi reconhecido como santo?
Notas:
[1] “Se alguém disser que as coisas finitas, tanto corporais como espirituais, ou pelo menos espirituais, emanam da substância divina; ou que a essência divina, pela manifestação e evolução de si mesma se torna todas as coisas ou, finalmente, que Deus é um ser universal ou indefinido que, por autodeterminação estabelece a totalidade das coisas distintas em gêneros, espécies e indivíduos: seja anátema” (Decretos do Concílio Vaticano I).
[2] Se alguém disser que todos os seres racionais um dia unir-se-ão em um, quando as hipóstases, bem como os números e os corpos, tiverem desaparecido, e que o conhecimento do mundo vindouro levará consigo a ruína dos mundos, e a rejeição dos corpos como também a abolição de [todos] nomes, e que haverá finalmente uma identidade da γνῶσις e da hipóstase; além disso, que nesta pretensa apocatástase, só os espíritos continuarão a existir, como era em uma pretensa forma de preexistência: seja anátema” (Segundo Concílio de Constantinopla – Sessão I – Sumário dos Atos).
[3] “De uma forma erudita e ao mesmo tempo acessível, encontramos consultas à Cabala…” [All Things Made New de Stratford Caldecott].
[4] Martin, M. & Smith, W., In Quest of Catholicity: Malachi Martin Responds to Wolfgang Smith (Angelico Press, 2016), p. 76
Parte IV: Cabala para Católicos? “Católicos hebreus” e seu Cardeal
Quando tomei conhecimento da crescente influência da Cabala no diálogo católico tradicional, entrei em contato com um estimado padre-teólogo franciscano em boas relações com a Igreja, a quem conheço pessoalmente e em cujo julgamento em tais assuntos confio de maneira tácita. Perguntei-lhe diretamente se a Cabala poderia ter alguma aplicação legítima na teologia católica ortodoxa. Sua resposta foi estranhamente incisiva: “Não, não pode”. De fato, como eu li mais tarde na Enciclopédia Católica, “várias de suas doutrinas lembram as de Pitágoras, Platão, Aristóteles, os neoplatônicos de Alexandria, os panteístas orientais, ou egípcios, e os gnósticos das primeiras eras cristãs. Suas especulações sobre a natureza e a relação de Deus com o universo diferem materialmente dos ensinamentos da Revelação”.
Deve-se notar neste ponto, para evitar dúvidas, que a radical irreconciliabilidade da Cabala com o Depósito da Fé não é de forma alguma um preconceito dos tradicionalistas católicos judeufóbicos, e até os estudiosos católicos e filo-semitas reconheceram o fato. O Dr. John Lamont, da Universidade Católica da Austrália, por exemplo, ao escrever o que é um tratamento extremamente simpático ao judaísmo (intitulado “Por que os judeus não são os inimigos da Igreja”) para a revista de grande circulação Homiletic & Pastoral Review, interpola uma qualificação importante: “Deve-se mencionar que a Cabala… não é compatível com o monoteísmo”. Não apenas incompatível com o cristianismo, mas até com o monoteísmo!
A extensão em que os Cabalistas estão ganhando força no meio da Tradição Católica é difícil de quantificar com precisão, mas talvez possamos avaliar um pouco considerando o caso da Associação de Católicos Hebreus (AHC em inglês: Association of Hebrew Catholics), um apostolado leigo antes sediado na Diocese de Lansing, nos EUA, e ostentando cerca de dez mil membros em todo o mundo, cuja missão declarada é “preservar a identidade e a herança dos judeus dentro da Igreja... ajudar todos os católicos a entender as raízes judaicas da fé católica e servir a todas as pessoas em sua jornada espiritual, tanto dentro como fora da Igreja Católica”. A AHC se esforça para alcançar esses objetivos conectando seus membros separados geograficamente para facilitar, entre outras coisas, “Havurot” (no plural; “Havurah” no singular) – irmandades regionais e informais dos chamados “católicos hebreus” que se reúnem regularmente para socializar, rezar e estudar. Um exemplo de atividades típicas de Havurah é dado no site da AHC:
“Do Bnei Miriam Havurah, Tasmânia, Austrália…”
“Nossas atividades de Havurah incluem uma celebração semanal da tradicional refeição do Sabá Judaico. Acendemos as luzes usando as orações tradicionais e depois fazemos a oração da noite presente no ofício católico. Rezamos o Salmo judaico do dia e depois cantamos o Lecha dodi (“Vem, meu amado”) em homenagem a Nossa Senhora, a Rainha do Sabá. Também cantamos a canção de boas-vindas aos anjos e rezamos outras orações do Sidur antes de dizer o Kidush. Após a refeição, rezamos o Birkat Mazon (Graça). Durante a refeição conversamos ou compartilhamos algum aspecto da vida judaica da Torá. Em outras ocasiões, também estudamos os ensinamentos de Rebe Nachman [cabalista] ou do Zohar ou outros escritos judaicos à luz de nossa fé católica. Também participamos de certos eventos com a comunidade judaica ortodoxa local em Hobart”.
Entre 2002 e 2004, The Hebrew Catholic, o boletim trimestral oficial da associação AHC, publicou em três edições um ensaio, “A Eucaristia e a Tradição Mística Judaica”[1], no qual o autor, líder da AHC e ativista Athol Bloomer, opina que “o estudo da tradição mística judaica [ie Cabala] à luz da Eucaristia é… essencial no desenvolvimento futuro de uma espiritualidade Católica Hebraica que enriqueceria toda a Igreja”. Para Bloomer, “uma das coisas importantes para o movimento Católico Hebreu é desenvolver uma autêntica teologia e espiritualidade Católica Hebraica que seja centrada na eucaristia. Se vamos ser apenas católicos gentios, helenísticos-romanos, que por acaso já foram judeus, acho que devemos fechar a boca e admitir que o regime da assimilação triunfou”. Seu ensaio foi posteriormente republicado no site da AHC, onde ainda pode ser lido hoje [2].
Também estão disponíveis no site da AHC – com o objetivo presumido de promover essa “autêntica teologia e espiritualidade Católica Hebraica” – textos como “The Book of Understanding” (O livro do entendimento), do “estudioso das Escrituras e de textos rabínicos”, Michael Anthony, que o falecido rabino Joseph H. Ehrenkranz recomenda como “uma obra enciclopédica que nos permite subir a Escada do Entendimento... Enquanto [o autor] apresenta cada degrau da escada, ele invoca as Sagradas Escrituras, Midrashic e outros textos rabínicos, o Talmude Babilônico e de Jerusalém, o Zohar, além de comentários da tradição Cristã e Judaica”. Confesso que não li esta obra, mas se é uma leitura adequada para a edificação dos católicos, então como é que um rabino judeu ortodoxo – um adepto de uma religião completamente diferente (e falsa) – pode descrevê-la como “em essência um livro para a vida, uma grande contribuição para aqueles que procuram um modo de vida baseado na fé fundamental que conduz ao Entendimento”?
Em 2006, dois anos após o texto “A Eucaristia e a Tradição Mística Judaica” aparecer no The Hebrew Catholic, a AHC transferiu sua sede para a Arquidiocese de Saint Louis, onde o arcebispo em exercício provou ser um anfitrião muito complacente. Em uma carta a David Moss, presidente da AHC, ele escreveu:
“Em primeiro lugar, permita-me expressar minha estima pelo apostolado da Associação dos Hebreus Católicos. A missão da vossa associação responde, da maneira mais adequada, ao desejo da Igreja de respeitar plenamente a característica vocação e herança dos Israelitas na Igreja Católica. A Igreja Católica Romana conhece e valoriza o vosso quinhão particular e privilegiado na economia da salvação, atribuída por Deus Pai ao povo de Israel...”
“A sede da Associação dos Católicos Hebreus é muito bem-vinda vindo para ser realocada na Arquidiocese de Saint Louis. Além disso, se houver algo que eu possa fazer para vos ajudar a estabelecer a sede da Associação na Arquidiocese, por favor me avise. Instruí minha equipe a dar-vos toda a ajuda possível na localização de um local adequado para a sede e aposentos pessoais”.
O mesmo arcebispo - agora emérito - atualmente faz parte do Conselho de Assessores da AHC. Ele é o Cardeal Raymond Leo Burke, o suposto porta-estandarte da Tradição na Hierarquia Católica!
Talvez Sua Eminência desconheça as inclinações cabalísticas da AHC. Talvez o Dr. Taylor Marshall, outro decano do movimento católico tradicional, também não soubesse quando discursou em uma conferência da AHC, em 2010, e depois escreveu em seu blog popular: “Foi um momento maravilhoso e espero participar novamente no futuro”. Não posso falar por nenhum deles, é claro, embora suspeite que o Dr. Marshall – que mais tarde provocaria a ira dos católicos liberais ao se manifestar contra a prática “judaizante” dos cristãos que celebram o Seder de Pessach, que o AHC encoraja ativamente – de fato tenha participado sem plena consciência desses problemas. O Cardeal Burke, por outro lado, participou de pelo menos um desses Seders organizados pela AHC que o Dr. Marshall argumenta convincentemente (citando São Tomás de Aquino e o Concílio de Florença) é pecado mortal para um católico participar. Como se explica isso?
Surpreendeu-me que o Cardeal Burke, por quem sempre tive o maior respeito e admiração, não só deixasse de censurar uma organização sob sua jurisdição que se propõe a “enriquecer toda a Igreja” com uma espiritualidade Gnóstico-Cabalista, mas optasse por endossar e até mesmo associar-se pessoalmente a ela. Eu posso estar mostrando minha ingenuidade de leigo aqui, mas eu teria pensado que qualquer prelado católico que pretenda ser fiel à Tradição necessariamente defenderia essa tradição em sua totalidade, incluindo o decreto de 1887 do Papa Leão XIII proscrevendo os vários textos da Cabala (entre outros), onde se lê, em parte:
“Vossa Santidade, o Papa Clemente VIII, em sua Constituição contra escritos ímpios e livros judaicos, publicada em Roma no ano de Nosso Senhor 1592... expressamente e especialmente estabeleceu e desejou que os ímpios Talmúdicos, Cabalísticos e outros nefastos livros dos judeus sejam inteiramente condenados e que devem permanecer sempre condenados e proibidos, e que sua Constituição sobre esses livros deve ser observada perpétua e inviolavelmente”.
Talvez Sua Eminência possa fazer a gentileza de esclarecer sua posição sobre o assunto?
Notas
[1] Parte I (edição nº77 verão-outono de 2002); Parte II (edição №78, inverno-primavera de 2003); Parte III (edição №80, verão de 2004) [PDF indisponível]
[2] Disponível em:
https://www.hebrewcatholic.net/eucharist-jewish-mystical-tradition-part-1/
https://www.hebrewcatholic.net/eucharist-jewish-mystical-tradition-part-2/
https://www.hebrewcatholic.net/eucharist-jewish-mystical-tradition-part-3/
Parte V: O Renascimento do Neoplatonismo e a Tradição Hermética
Intimamente relacionado ao fenômeno da Cabala está o Hermetismo, o qual, de acordo com Albert Pike, “pode ser precisamente definido como Cabala em ativa realização...” Os assim chamados Hermetistas são discípulos de (o mitológico) Hermes Trimegistro – um suposto oráculo (ou algumas vezes a encarnação humana) do antigo deus Egipcio Thoth – e estudantes de antigos textos a ele atribuídos, coletivamente conhecidos como Corpus Hermeticum. É para esses praticantes das ocultas “ciências Herméticas” que Valentim Tomberg endereça as epístolas que compõem seu Meditations on the Tarot.
Já vimos (na Parte Um) que Roger Buck, o celebrado autor de Cor Jesu Sacratissimum e The Gentle Traditionalist, simultaneamente se identifica como um “Católico tradicional” e “um aspirante ao Hermetismo Cristão” (“A tradição Hermética originando com Hermes Trimegistro deve ser Cristianizada – não repudiada,” ele defende[1]); e (na Parte Três) que o “tradicionalista Católico” Professor Wolgang Smith concebe o Hermetismo como um afluente da “única grande doutrina perene, a qual ... jorra de Cristo Mesmo.”[2] Na lista desses defensores do Hermetismo podemos adicionar o já mencionado Dr Michael Martin – um confesso “Rosacruciano” – e Stratford Caldecott, que argumentou que “os escritos Herméticos ... fornecem muitos dos recursos que nós precisamos para desenvolver uma mistagogia contemporânea efetiva”; e, em outro lugar:
“[Citando Tomberg:] Agora é o momento para o movimento Hermético fazer a verdadeira paz Cristã com a Igreja e deixar de ser seu filho semi-ilegítimo, levando uma vida parcialmente tolerada mais ou menos na sombra da Igreja – e para tornar-se eventualmente uma criança adotada, e mesmo um filho reconhecido como legítimo. Mas ‘são precisos dois para que haja amor’ ... [fim da citação.]”
“O desafio de desenvolver uma ciência dos ‘milagres’ (no senso comum e largo da palavra) é sério. Não se deve descartar todo o movimento Hermético como se significasse somente o ressurgimento da heresia e culto satânico.”
Num post em um blog, “imaginação Hermética,” o escritor tradicional Católico Charles A. Coulombe – o autor de muitos livros Católicos, incluindo o recém lançado Blesses Charles of Austria: A Holy Emperor and His Legacy (O Bendito Carlos da Austria: Um Santo Imperador e Sua Herança), da tradicionalista TAN Books – que fez um grande elogio para Cor Jesu Sacratissimum (ver Parte Um), inicia com uma “extensa citação [que] serve bem como uma introdução à visão de mundo Hermética ou Mágica”:
“Além desses campos e dessa fronteira há o lendário mundo-maravilha da teurgia, assim chamado, da Magia e Bruxaria, um mundo de fascinação e terror, e à medida que a mente o observa ela é acalmada, mas de qualquer modo é a antítese de uma possibilidade que possa ser admitida. Lá todos os paradoxos parecem ser realizados, contradições coexistem logicamente, o efeito á maior do que a causa e a sombra é mais do que a substância. Lá o visível derrete no não visto, o invisível é manifestado abertamente, o movimento de um local a outro é alcançado sem que se atravesse a distância que os separa, matéria atravessa matéria. Lá duas linhas retas podem definir um espaço; o espaço tem uma quarta dimensão, e campos inexplorados além dele; sem metáfora e sem fraude, o círculo é matematicamente quadrado. Lá a vida é prolongada, a juventude renovada, a imortalidade física assegurada. Lá a terra se torna ouro, e ouro terra. Lá palavras e desejos possuem poder criativo, pensamentos são coisas, o desejo realiza seu objeto. Lá, também, os mortos vivem e as hierarquias de inteligência extra-mundana se comunicam facilmente, e se tornam ministros ou algozes, guias ou destruidores do homem. Lá a Lei da Continuidade é suspensa pela interferência da lei superior da Fantasia. (A.E. Waite, The Book of Ceremonial Magic, University Books, NY 1961, pp. 3-4)”
Se o “lendário mundo-maravilha” de Waite parece totalmente estranho e pertubador, o que segue é mais estranho ainda – porque o texto de quase 8.000 palavras que este longo excerto precede é uma aprovação da “visão mágica do mundo” que ele descreve. Mais que isso, é praticamente um tributo à oculta Ordem Hermética Golden Dawn (na qual o notório Satanista Aleister Crowley começou sua diabólica carreira) e aos gigantes literários cuja espiritualidade esotérica ele influenciou:
“A G.D. [Golden Dawn] aspirava não somente a ser uma academia completa de conhecimento oculto... mas também um forum para a prática Místico-Mágica – e essa Mágica era entendida no mesmo sentido que dava Eliphas Levi. Nas palavras de Stephan Hoeller, Mágico nesse sentido é ‘um termo guarda-chuva para o crescimento ou expansão da consciência por meio de modalidades simbólicas.’ Para transmitir ambos conhecimento e prática, um elaborado sistema de graus foi estabelecido; à medida que o estudante alcançava esses graus, ele ou ela aprendia habilidades ainda mais esotéricas. Essas incluíam conhecimentos de Cabala (a qual... era a estrutura conceitual básica da G.D.); Tarot; Geomancia; Astrologia; Alquimia; e ritual Mágico. Os trabalhos associados a esse último incluíam a confecção de símbolos mágicos e talismãs, comunhão com espíritos, evocação de Demônios, e invocação de Anjos. Além disso, o iniciado na Golden Dawn aprendia a ‘perscrutar,’ o que incluía tanto a clarevidência quanto a viagem astral ...
“Não pode haver dúvida de que muitos irmãos e irmãs da G.D. alcançaram em suas próprias vidas devocionais a mesma síntese entre Hermetismo/Neoplatonismo e Cristianismo Sacramental que caracterizou os Ultra-Realistas Medievais [e] Humanistas Renascentistas... Em uma palavra, seu Cristianismo, enquanto ligados aos dogmas da Revelação, viu o mundo tanto como um símbolo e ocultação de realidades mais elevadas, contato que era alcançado através de mágica e adivinhação, quanto num mais puro e mais elevado nível, através dos Sacramentos.”
“O maior representante destes foi talvez o Católico A.E. Waite, o qual ... escreveu sobre a própria Golden Dawn: ‘Não está em competição com Igrejas Cristãs externas, mas é uma Igreja dos Eleitos, uma Assembleia Oculta e Santa... é uma Casa do Santo Graal na santidade de um Elevado Simbolismo, onde o sagrado intento da Ordem é consumado sobre Pão e Vinho’...
[A ideia de uma “Igreja dos Eleitos”, secreta e mística, tipicamente identificada com o Apóstolo São João, distinta (embora nunca separada) da visível e “exotérica” Igreja de São Pedro, é um tema recorrente na tradição Cristã-Hermética, e é explícita nas Meditations de Tomberg (p. 6): “O discípulo amado que ouviu o coração do Mestre era, é, e sempre será o guardião deste coração... A missão de João é manter a vida e a alma da Igreja viva até a Segunda Vinda do Senhor... Este é o espírito do Hermetismo.”]
“Por diversas razões escritores Cristãos e não-Cristãos tentam estabelecer uma dicotomia entre elementos Cristãos e ocultos nos textos deles [os autores que discutimos]... onde na verdade o que há é uma síntese...
“Essa união do Católico com o Hermético, do Cristão com o Esotérico, teria... feito todo sentido para o Ultra-Realista, o Humanista, ou o camponês...”
“Todos esses conceitos, aplicados à Cristandade, podem parecer peculiares... Mas somente é idiossincrático se alguém se refere às formas Aristotélicas e/ou à pós-Reforma do Cristianismo...”
“O hermetismo Cristão contemplado pela Golden Dawn, como todo Hermetismo deste tipo, poderia bem... ser simbolizado pelo Ás de Copas do Baralho de Tarot. Considerado meramente como uma ferramenta de advinhação da sorte, ele pode significar planos ou pensamentos ocultos, pronto para ser posto em ação mas cujo sentido ainda está escondido. Em um nível mais elevado pode significar proteção e conhecimento. Mas sua aparência sugere um mundo de significados. Pois ele mostra um cálice sustentado por uma mão que sai de uma nuvem. A Pomba do Espírito Santo leva uma hóstia, que tem gravada uma cruz, diretamente para dentro do cálice, e água pura e viva sai do cálice e jorra para o mar. Nós temos num só desenho a representação do sistema Sacramental (a Eucaristia e o Batismo), e do Santo Grall. Dois mistérios, um conquistado somente no fim de uma longa busca, e o outro tão próximo que pode ser considerado garantido. Ainda que, de fato, eles sejam um. Este é certamente o mais profundo Hermetismo Cristão. É uma honra para a Golden Dawn que a Ordem ao mesmo tempo desenvolveu uma autêntica vertente desse Hermetismo, e atraiu membros do calibre necessário para transmiti-lo a um mundo que necessita dele.”
[Coulombe – outro dos admiradores de Tomberg – tem uma particular afinidade com o Tarot, como veremos.]
A síntese Cristã-Hermética exemplificada pelos ocultistas da Golden Dawn, nos asseguram repetidamente, teria feito “todo sentido” para os Católicos “Ultra-Realistas” (i.e. Neoplatonistas) da Renascença, e é com esses que Coulombe resolutamente se alinha, como fica evidente em outra de suas postagens em blog, “Ultra-Realism FAQ.” Nesse artigo, o convicto Neoplatonista Coulombe zomba da filosofia “Aristotélica” de São Tomás de Aquino, a qual ele denuncia como “adequada para Católicos débeis”, “simplesmente falsa”, e “uma receita para o desastre” e responsável por “devastar” a Cristandade. “A canonização de São Tomás”, ele lamenta, “e o emprego de sua filosofia (ou, para ser mais preciso, versões mais ou menos distorcidas dela) na Contra-Reforma, pareceu dar a ela um status oficial, como se fosse A filosofia Católica.” Na avaliação de Coulombe, a Cristandade tem percorrido uma espiral em direção à ruína desde então: O Tomismo “contribuiu para o declínio da Igreja... [e] abalou as fundações da Igreja e do Estado Medievais,” ele escreve.
O único modo de parar e reverter esse suposto declínio é repudiar o Tomismo e abraçar a “visão de mundo Mágica” da Golden Dawn; esse é o argumento fortemente implicado no texto citado acima, e dito explicitamente no “A Ortodoxia Esotérica do Catolicismo,” um artigo de 1990 escrito por Coulombe para a décima sexta edição da (agora extinta) revista Gnosis, na qual ele (supostamente)[3] escreveu:
“Ninguém pode dizer com completa precisão o que irá acontecer. Mas nós podemos saber o que deve acontecer para que a Igreja funcione de forma adequada. Ela deve retornar para a... visão mágica da vida; e o processo de batizar o Hermetismo, interrompido pela Reforma, deve ser completado.”
Um malabarismo retórico está sendo feito aqui, já que a “Reforma” Protestante somente pode realmente ser acusada de ter interrompido “o processo de batisar o Hermetismo” na medida em que provocou a Contra-Reforma inaugurada pelo Concílio de Trento, no qual – como o Papa Leão XIII ressaltou em sua (vigorosamente Tomista) encíclica Aeterni Patris – “os Padres de Trento ordenaram que no conclave deve estar presente no altar, juntamente com a sagrada Escritura e os decretos dos supremos Pontífices, a Suma de Tomás de Aquino, para buscar Conselho, razão, e inspiração.”
O Tomismo, em outras palavras, foi efetivamente canonizado em Trento (uma honra frequentemente renovada pelos mais sábios dos Pontífices Romanos, incluindo especialmente Leão XIII e São Pio X) e isso foi este ato Católico – e não a heresia Protestante por ele rejeitada – que bloqueou os esforços dos Hermetistas de insinuarem-se com o Magistério: “Elementos ortodoxos da Contra-Reforma,” explica Dr John F. Nash, Editor Emérito da coleção revisada Esoteric Quarterly, “... [produzida] para abafar qualquer influência que o Hermetismo ainda tivesse nos altos escalões da Igreja Romana. Em uma deliberada desfeita para com o Neoplatonismo Renascentista e para com o Hermetismo, ao qual este último havia dado legitimidade, o Concílio de Trento reafirmou o Aristotelismo de Tomás de Aquino como sendo a filosofia oficial da Igreja Católica.” Que desgosto para Charles A. Coulombe!
É irônico que Coulombe pudesse asseverar que “não podemos dizer ... o que irá acontecer,” porque há inúmeros arquivos de áudio disponíveis online nos quais ele – juntamente com seu amigo de longa data Dr Stephan A. Hoeller, um “bispo” da Ecclesia Gnostica (Igreja Gnóstica) – tenta predizer o futuro através da leitura de cartas de Tarot. Esses são registros do evento anual “Tarot Forecast for the U.S.A.” organizado (numa loja Teosófica) pela Sociedade Gnóstica de Los Angeles, cujo website orgulhosamente anuncia a participação de “nosso bom amigo, Charles Coulombe” na sua “popularíssima sessão de advinhação anual.” Não sou de modo algum um filósofo, mas se isso é a aplicação prática do “Ultra-Realismo” Neoplatonista, que foi colocado de lado pela ascensão do Tomismo, então não estou nem um pouco surpreso ou desapontado de que a Divina Providência tenha escolhido o Doutor Angélico, com sua grande sabedoria e com o trabalho de sua vida, para inocular a Igreja contra maléfica influência.
Charles Coulombe, certamente, é um excêntrico. Mas ele é também um Editor Contribuinte da tradicionalista Crisis Magazine, assim como da “Scholar-in-Residence” na Tumblar House, um editor pequeno mas prestigioso que reclama para si “uma reputação por publicar livros Católicos de qualidade que são aderentes à tradição e ortodoxia Católica,” e cujos autores incluem Robert Cardinal Sarah, Fr Chad Ripperger, e Dr Taylor Marshall. A “Imaginação Hermética” e o “FAQ Ultra-Realismo” de Coulombe, citado acima, foram ambas publicadas no blog oficial da Tumblar House.
Fr Ripperger pode ter sido mais que correto do que imaginou quando ele alertou no mesmo blog (apesar de que um pouco hiperbolicamente) que “o movimento tradicionalista está lentamente se tornando um movimento Gnóstico entre alguns ...”
Notas:
[1] Buck, R., Cor Jesu Sacratissimum: From Secularism and the New Age yo Christendom Renewed (Angelico Press, 2016),p.249
[2] Martin, M. & Smith, W., In Quest of Catholicity: Malachi Martin Responds to Wolfgang Smith (Angelico Press, 2016), p.76
[3] Eu digo supostamente porque não consegui encontrar o artigo em questão online, embora ele certamente exista e foi de fato redigido por Gnosis – como o nome sugere, uma publicação Gnóstica – pelo Sr Coulombe; a citação aqui reproduzida foi postada em um forum de internet Católico.
Parte VI: Rumo a uma Síntese Tradicionalista-Modernista?
Até aqui tenho apresentado uma pesquisa bem limitada, longe de ser completa, sobre os discursos inter-relacionados, Perenialistas, Cabalistas e Hermetistas, que penetraram no movimento tradicional Católico – mais notavelmente via Angelico Press (ver Partes Um, Dois, Três e Cinco). Duas óbvias e importantes questões surgem: Por que alguns Católicos tradicionais se mostram suscetíveis a essas influências ocultas, e por que outros de fato aderem? E como isso poderia afetar o futuro desenvolvimento do tradicionalismo Católico e, finalmente, a própria Igreja? Nas últimas três partes dessa monografia, me empenho em articular algumas ideias que eu – como leigo sem formação – tenho a oferecer e que penso ser de valor aos esforços de comentadores melhor qualificados para responder a essas questões primordiais.
Esteticamente falando, ocultistas e tradicionais Católicos tem muito em comum; ambos tem um profundo respeito e aspiração pelo ritual, mistério e tradição transcendente, e um correspondente profundo desdém pelo materialismo, racionalismo e secularismo crasso da espiritualidade árida de nosso mundo moderno. Alguém pode certamente considerar, portanto, como uma predileção por esse “ambiente espiritual” poderia facilmente, na ausência da fé sobrenatural, excitar a curiosidade por “feitiçaria”. Isso não é hipotético. Um artigo na Anglicana Church Times ilustra o quanto disseminado esse fenômeno pode se tornar:
“EM 1978, A. N. Wilson publicou ‘Unguarded Hours’, uma sátira da vida em um seminário Anglo-Católico... No clímax do livro, um reitor liberal, visitando o seminário, encontra alguns seminaristas envolvidos em um ritual mágico...
“Wilson sabia sobre o que estava escrevendo ...”
“O envolvimento Anglo-Católico com o ocultismo é maior e mais profundo do que a maioria das pessoas poderia suspeitar. Considere, por exemplo, a Ordem Hermética da Golden Dawn... [a qual] recruta pesadamente membros do clero...”
“Leigos Anglo-Católicos destacados como Evelyn Underhill, Arthur Machen e Charles Williams se arriscaram no ‘misticismo’ iniciático da Golden Dawn, formando suas próprias ideias a respeito da relação entre hermetismo e Cristandade em conversas com seu amigo comum A. E. Waite (1857-1942). Waite, embora não pessoalmente crente, mantinha um saudável respeito por formas rituais da Cristandade – especialmente a missa em Latim...”
“Essas figuras tão diferentes foram unidas por dois segmentos normalmente considerados como mutuamente exclusivos. Primeiro, todos ele compartilham um comprometimento com a tradição Católica Anglicana. Eles também têm um profundo interesse em (e, em alguns casos, participam) várias crenças e práticas ocultistas.”
“As fronteiras entre essas duas tendências provaram ser permeáveis. O Anglo-Catolicismo e o ocultismo tiveram, âmbos, um senso do ritual, com frequência um romantismo Gótico, e uma visão de mundo sacramental. Ambos sugeriram que o sobrenatural poderia perpassar o mundo material, e ambos ofereceram suas próprias vias de ‘misticismo’ para penetrar além do mundo material...”
“O ocultismo Anglo-Católico era, nas mentes de muitos de seus praticantes, uma censura ao mundo descrente exterior ao claustro e ao sanctum... O Ocultismo poderia aumentar a religião convencional, e não era de forma alguma tão marginal quanto se pudesse supor.”
Isso deveria ser lido pelos Católicos tradicionais como uma lição; aconteceu com o Anglicanismo, mas poderia facilmente acontecer com a gente. Pode ser considerado que a multiplicação de heresias entre hereges é esperada – o que é bem verdade – mas não deveríamos ser tão complacentes; a Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica, diferentemente da Anglicana, é indefectível, mas seus membros individuais não. Católicos tradicionais e os chamados “Anglo-Católicos” – embora não compartilhemos nenhuma comunhão (nem “imperfeita”, nem de qualquer forma) – têm, no nível natural, mais do que alguns traços, atitudes e preferências em comum, e isso nos torna vulneráveis aos mesmos perigos espirituais; consequentemente foi dado o alerta do Ven Papa Pio XII contra qualquer indulgência ao misticismo exótico como “uma censura ao mundo descrente”, em sua encíclica Mystici Corporis Christi de 1943:
“Enquanto ainda sobrevive um falso racionalismo, que ridiculariza qualquer coisa que transcenda e desafie a genialidade humana, o qual é acompanhado de um erro cognato, o assim chamado naturalismo, que vê e deseja ver na Igreja nada além de uma união social e jurídica, há por outro lado um falso misticismo se infiltrando, o qual, na sua tentativa de eliminar a inamovível fronteira que separa as criaturas do seu Criador, falsifica as Sagradas Escrituras.”
Todo falso misticismo (como eu o entendo) é, fundamentalmente, uma consequência da fusão das ordens natural e sobrenatural – ou seja, natureza e graça – (a qual o Professor “Católico tradicional” Jean Borella, por exemplo, parece culpado; ver a Parte Dois), porque fazendo isso nos incentiva – ao invés de olhar ao alto para Deus – a olhar para dentro, para a auto deificação; ou para fora, para um cosmos divinizado – de qualquer modo, uma negação implícita do Pecado Original. (O Budismo seria o exemplo perfeito). O Papa São Pio X visa os propagadores desse tipo de erro em sua encíclica anti-Modernista Pascendi Dominici Gregis:
“E sobre este ponto nos vemos de novo obrigados a lamentar que não faltem católicos que, conquanto rejeitem a doutrina da imanência como doutrina, todavia se utilizam dela na apologética; e fazem-no tão incautamente, que parecem admitir não somente certa capacidade ou conveniência na natureza humana para a ordem sobrenatural, (o que os apologetas católicos com as devidas restrições sempre demonstram), mas também uma estrita e verdadeira exigência. Para sermos mais exatos, dizemos ainda que esta exigência da religião católica é sustentada pelos modernistas mais moderados. Pois, aqueles que podem ser denominados integralistas, pretendem que se deve mostrar ao homem que ainda não crê, como se acha latente dentro dele mesmo o gérmen que esteve na consciência de Cristo, e que Cristo transmitiu aos homens. Eis aqui, Veneráveis Irmãos, sumariamente descrito o método apologético dos modernistas, em tudo conforme com as doutrinas; e tanto o método como as doutrinas estão cheios de erros, capazes só de destruir e não de edificar, não de formar católicos, mas de arrastar os católicos à heresia...”
Não é essa uma refutação direta, antecipada, da afirmação do Professor Wolfgang Smith, “de que há um ingrediente sobrenatural no homem,” a “pequena centelha” teorizada por Mestre Eckhart (veja a Parte Dois), da qual ele presume “uma natural disposição para o sobrenatural”? Desse modo Smith, o Cabalista (veja a Parte Três) – juntamente com o Perenialista (e acusado de Gnóstico) Jean Borella, com o Hermetista Valentin Tomberg, e sua turma – se junta à tradição de falsos místicos proto-Modernistas que “desejam eliminar a inamovível fronteira que separa as criaturas de seu Criador” e, assim fazendo, “falsificam as Sagradas Escrituras.” O Ven Pio XII iria mais tarde dar continuidade à sua Mystici Corporis Christi com Humani Generis em 1950, na qual ele reforça a crítica de que “novidades deste tipo já deram seus frutos mortais” por, inter alia, “destruir a gratuidade da ordem sobrenatural” e “perverter o conceito de pecado original...”
Um perfeito exemplo desse “falso misticismo insinuante” aparece no artigo de Church Times citado acima, pois entre os “ocultistas Anglo-Católicos” citados, Dom Aelred Carlyle – um entusiasmado estudante de Voodoo – iria mais tarde “cruzar o Tibre,” com a comunidade Beneditina que ele fundou em Caldey Island. A boa fé tradicionalista do abade (ele amava a liturgia Tridentina) nada fez para prevení-lo de abastecer a biblioteca de seu mosteiro com uma “enorme seleção de livros e panfletos que abordavam a Teosofia, o Rosacrucismo, a reencarnação, e formas similares de misticismo não-cristão”, nem de procurar o que ele dizia serem as relíquias do Bl Richard Whyting por meio de uma sessão espírita. (E eu sou inclinado a acreditar que os múltiplos escândalos de abuso sexual de crianças que abalaram Caldey Abbey – que agora aloja uma comunidade de monges Trapistas – em 2017, não foram desvinculados das atividades ocultistas que lá ocorreram um século antes. Os exorcistas conhecidos meus, estou certo, concordariam).
A fortaleza da Tradição Católica, nós sabemos, tem estado sob contínuo ataque por, no mínimo, os últimos cem anos – pelas forças nominalmente Católicas do Modernismo em uma frente, e de legiões de racionalistas expressamente anti-Católicos em outra. Condições de cerco como essas podem produzir estranhas companhias, e há sempre a tentação de compromisso, especialmente quando o compromisso oferecido se reveste de uma síntese simpática (como aquela sustentada por Charles A. Coulombe, por exemplo; veja a Parte Cinco). Uma vez mais Roma nos alertou antes exatamente a respeito dessa ameaça, dessa vez através do Papa Pio XI, em uma carta de 1926 para o Cardeal Andrieu, Arcebispo de Bordeaux:
“Nós lemos com alegria a resposta de Sua Eminência para o grupo de jovens Católicos que lhe questionaram a respeito da ‘Action Française’... Sua eminência indica... um perigo que... toca, mais ou menos diretamente, e sem parecer, a moral e a fé Católicas; poderia involuntariamente causar o desvio do verdadeiro espírito Católico...”
“Sua Eminência corretamente lista e condena... os sinais de um novo sistema religioso, social e moral, por exemplo no que se refere à noção de Deus, da Encarnação, da Igreja e, genericamente, da moral e do dogma Católicos... Em substância, há, nessas manifestações [da Ação Francesa], traços de um renascimento do Paganismo, ao qual está ligado o Naturalismo... contra os quais eles mesmos sempre combateram tão ardentemente...”
Muitos Católicos tradicionais – incluindo o santo Marcel Lefebvre[1] – argumentaram que Pio XI agiu imprudentemente ao condenar a Action Française, cujos líderes positivistas eram pragmaticamente pro-Católicos (reconhecendo, como fizeram, a Igreja como um pilar essencial da sociedade Francesa) mas privadamente detestavam a Fé e achavam o paganismo mais apto para gerar uma civilização grandiosa. É possível que ele tenha de fato errado em seu julgamento, talvez tendo exagerado a percepção do risco para a fé dos piedosos Católicos franceses que se juntaram ao movimento, dos quais havia muitos. De qualquer modo, algum risco realmente existia, embora a aliança entre Católicos e positivistas representada pela Action Française fosse somente um síntese política. Quanto mais, então, devemos nós, Católicos tradicionais, estarmos de alerta em relação à síntese teológica proposta por Perenialistas, Gnósticos, Cabalistas e Hermetistas?
Tal síntese pode muito bem ser sedutora. Ela pode apelar para o nosso orgulho intelectual, como o Gnosticismo sempre faz, nos tentando com a promessa de um conhecimento secreto, e a iniciação em um círculo mais interno de uma elite de crentes “iluminados”. (Fr Chad Ripperger notou a particular vulnerabilidade dos Católicos tradicionais a essa tentação em uma palestra da Sensus Fidelium, “10 Problemas no Movimento Tradicionalista,” cujo primeiro é “Tornar-se Gnóstico e Elitista.”) Ou, como no Perenialismo, que parece nos trazer o luxo de manter os aspectos “positivos” da Tradição – a antiga liturgia e os costumes da Igreja pré-Conciliar – e ao mesmo tempo desprezando (ou ao menos mitigando) os aspectos “negativos”: extra Ecclesiam nulla salus, o escândalo da particularidade, e o Pecado Original. Mas nunca devemos oferecer nem um grão de incenso aos falsos deuses do ocultismo: “O que adianta a um homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua alma?” (Mateus 16:26)
Não adianta combater o Modernismo com o Martinismo, ou qualquer outra teosofia, assim como não é prudente tratar enjôos matinais com talidomida; poderia ser eficaz, mas a que custo? Muitas das mulheres grávidas a quem foi administrada talidomida tiveram, em consequência, crianças horrivelmente deformadas. Se a Igreja “se apropriasse da Cabala,” como o Prof Smith esperançosamente previu (veja a Parte Três), o que poderia resultar desse casamento? Pensando sobre a questão, me lembrei do Segredo de La Salette:
“Antes que isto aconteça [a era do Anticristo], haverá uma espécie de falsa paz no mundo. Não se pensará em outra coisa, senão em se divertir. Os maus se entregarão a toda sorte de pecados...”
“Tremei, ó Terra, vós que fizestes profissão de servir a Jesus Cristo, mas que no vosso íntimo adorais a vós próprios. Tremei, pois Deus vos entregará a seu inimigo, porque os lugares santos estão imersos na corrupção. Muitos conventos não são mais casas de Deus, mas pastagens de Asmodeu e os seus [demônios].
Durante esse tempo nascerá o Anticristo de uma religiosa hebraica, uma falsa virgem que terá comunicação com a velha serpente. E o mestre da impureza, seu pai, será bispo. Ao nascer, vomitará blasfêmias e terá dentes. Numa palavra, será o diabo encarnado. Dará gritos aterrorizadores, fará prodígios, alimentar-se-á só de impurezas.”
“Roma perderá a fé e se tornará sede do Anticristo...”
“A Igreja será eclipsada, o mundo estará na consternação... Todo o universo será tomado de terror, e muitos se deixarão seduzir, porque não adoraram o verdadeiro Cristo vivo entre eles. Chegou a hora, o sol se obscurece, só a fé viverá...”
Estamos familiarizados com os quatro sentidos da Sagrada Escritura; poderia aí também haver múltiplas camadas de significado, além do histórico-literal, nesta revelação privada para Melanie Calvat? Claro que eu posso apenas especular, mas eu pergunto se essa aterrorizante mensagem de Nossa Senhora, entendida como alegoria pressagia uma tentativa de cruzamento entre a Cabala Judaica (personificada como “uma religiosa hebraica”) e o Catolicismo Romano (“um Bispo”) – com desastrosas consequencias para a Igreja.
Notas:
[1] “Não era um movimento Católico, mas era um movimento contra a desordem semeada por Francomaçons no país, na França: era uma reação saudável, uma determinação para reestabelecer a ordem e a disciplina, um retorno à moralidade e para a moralidade Cristã... Pio XI não era um liberal. Mas ele era fraco, muito fraco na esfera prática e, ao contrário, inclinado para o compromisso com o mundo...”
Parte VII: A Letal Eclesiologia do Neo-Tradicionalismo Tomberguiano
No curso de minha investigação sobre a influência do oculto no discurso Tradicional Católico, o Hermetista Valentin Tomberg – cujas Meditations on the Tarot eu apresento, devem ser estudadas e criticadas por estudiosos Católicos fiéis à Tradição – surgiu como o denominador comum, ao qual quase todos os tradicionais Católicos citados nessa monografia estão ligados ou são por ele inspirados.
A força da atração de Tomberg entre tradicionalistas, apesar de seu ecletismo, está nas suas notáveis credenciais contra-revolucionárias. Tomberg se opunha consistentemente e veementemente não somente às revoluções políticas da América, França e Rússia, mas também às revoluções religiosas de Martinho Lutero e, mais relevantemente, o Concílio Vaticano Segundo. Em seu livro (póstumo) de 1985, Lázaro, Saia!, ele escreve:
“O Concílio foi convocado pelo Papa João XXIII por um desejo de renovação, ou seja, aprofundar, elevar e expandir a herança tradicional da Igreja. Uma tremendo mal-entendido então surgiu; ao invés da renovação da Igreja no sentido de aprofundamento, elevação e expansão da tradição, surgiu um esforço para revisar a tradição...”
“O Concílio não refletiu as inspirações atemporais do céu, mas, ao contrário, as necessidades, queixas, desejos terrenos e aspirações da época. Tornou-se uma espécie de ‘parlamento religioso’ com uma ‘esquerda progressista’, ‘uma direita conservadora’, e um ‘centro moderado’. Então se falou de uma ‘democratização’ da Igreja, agora se realizando. O ‘mundo’ notou com satisfação: a Igreja Católica está se aproximando de nós; sim, mais um pouco e ela será parte de nós – o Concílio exala um ‘vento fresco’, o vento de um espírito livre e moderno! E um ‘vento fresco’ de fato soprou do Concílio. Ele detonou problemas como: a abolição do celibato dos padres, de repente se tornando urgente; o problema dos casamentos mistos com pessoas de outra fé; o problema da aceitação da ‘pílula’ e outros métodos de contracepção; o problema da ‘desmitilogização’ da Sagrada Escritura e da tradição; o problema da Missa, no sentido de abolir o Latim como a língua litúrgica e sagrada, e a substituição por diversas línguas nacionais; e muitos outros problemas associados com a conformidade ao espírito da época, ao custo da tradição.”[1]
A ladainha de queixas sentidas de Tomberg mexerá com qualquer tradicional Católico digno do nome. Mas nem tudo que brilha é ouro; o que achamos nos textos de Tomberg, se pode ser chamado de tradicional, é extremamente heterodoxo, e mesmo um “tradicionalismo Católico” dubiamente Católico, o qual Roger Buck (que venera Tomberg como “um autêntico gênio e santo”) caracteriza “ao mesmo tempo menos que tradicional e extremamente tradicional.” Um outro Tomberguiano declarado, Dr Michael Martin – para quem Meditations é “uma fonte de constante renovação e companheirismo espiritual” e “o trabalho mais radicamente ortodoxo... do último século” – coloca da seguinte forma:
”Parte da maravilha presente em ‘Meditations’ é a forma como ele equilibra um sutil (ainda que altamente idiossincrático) tradicionalismo com algumas proposições ousadas a respeito de astrologia, reencarnação e, mais importante para sua mensagem, a sofiologia...”
“O tradicionalismo não-tradicional de Tomberg (para resumir numa frase) reside em sua devoção aos dogmas da Igreja, sua defesa do papado, e sua veneração pelos santos, doutores e professores de Catolicismo (ele é particularmente afeiçoado a João da Cruz, Tereza de Ávila, Boaventura e Bernardo de Claraval, entre outros) – enquanto ao mesmo tempo expressa sua admiração por certas figuras do Reavivamento Ocultista Francês do século dezenove (por exemplo, Joséphin Péladan, Eliphas Levi, Louis-Claude de Saint-Martin, e assim por diante). Seu tradicionalismo, de fato, vai tão longe a ponto de questionar o Vaticano II...”
“Desnecessário dizer que uma boa parte do mais zelozos leitores de Tomberg seguem essa mesma trilha... e se juntam ao coro dos detratores do Vaticano II, quando não flertando com o Sede-vacantismo ou outras bizarrices da direita Católica. Mas o desgosto com o Vaticano II não é tudo o que há em Valentin Tomberg.”
“Mais importante, Tomberg era também um inovador religioso que nutria uma profunda admiração por Teilhard de Chardin..., Henri Bergson e C. G. Jung. Ele também entendia a reencarnação como uma realidade metafísica e reconhecia a influência das estrelas sobre a vida humana... De forma que ele não era tão tradicional assim. Tomberg é um paradoxo.”
“O que Tomberg faz, eu penso, é sugerir noções complacentes com aquilo que significa ser ‘Católico’...”
Tomberg deplorava toda novidade – religiosa, política ou outra qualquer – e isso pesa a seu favor, mas seu zelo desordenado pela tradição levou ele à rejeição dos erros modernos (e.g. o racionalismo) com a adoção de erros antigos (falso misticismo; ver a Parte Seis). Nem tudo que é antigo e venerável é útil para a salvação pois, de fato, que criatura pode reclamar uma maior antiguidade do que a serpente primordial? Todo erro, não importa se antigo ou moderno, procede em última instância do demônio, “o pai da mentira,” (cf. João 8:44) e no fim conduz de volta a ele – o verdadeiro paradigma emanacionista-apocatastático (veja a Parte Três), o diabólico solve et coagula do credo dos alquimistas. Esse é o infeliz resultado que decorre necessariamente de todo tradicionalismo não-Católico, como São Paulo – um ex tradicionalista não-Católico se é que havia existido algum – bem compreendeu: “Vede que ninguém vos engane por meio da filosofia inútil e enganadora, segundo a tradição dos homens, segundo os elementos do mundo, e não segundo Cristo.” (Colossenses 2:8)
Nós podemos justificadamente suspeitar, portanto, que quando Tomberg expressa sua esperança por “um aprofundamento, elevação e expansão da tradição,” e especialmente quando, algumas linhas depois em Lázaro, Saia!, ele substitui a palavra “tradição” por “revelação,” e começa, ao invés, a falar “do ‘milagre do segundo Pentecostes’ esperado e rogado pelo Santo Padre [Papa João XXIII] – a proclamação pelo Concílio Mundial de um tesouro aprofundado, elevado e expandido da revelação da Igreja...” A era da revelação pública não terminou definitivamente com a morte do Apóstolo São João na ilha de Patmos, por volta do ano 100? O que precisamente, então, significa este “aprofundamento, elevação e expansão da tradição” e/ou “revelação”? Dado que Tomberg está agora há 50 anos no túmulo (e era para a maioria um escritor impenetrável, de qualquer forma), a questão deva ser colocada para seus discípulos. Então voltemos, mais uma vez, ao Dr Martin:
“Em 1986, o ano seguinte ao da publicação pela primeira vez em inglês, eu me deparei com ‘Meditations on the Tarot’ de Tomberg. Além de meu espanto em relação à largura e profundidade do conhecimento do autor sobre as tradições espirituais, tanto do Ocidente como do Oriente (Budismo, Vedanta, yoga, Cabala, misticismo Católico, Ortodoxia Oriental, Sufismo, Teosofia, Antroposofia, e assim por diante), sem mencionar sua familiaridade com ciências, política e as artes e suas discussões sobre reencarnação, astrologia e alquimia, eu fui particularmente surpreendido por sua visão expansiva do Catolicismo. Em resumo, após ler o texto tive um entendimento de que o Catolicismo era algo muito maior do que... meu limitado contato com a ‘tradição’ foi capaz de me mostrar. Muito, muito maior. ‘Na casa de meu pai há muitas moradas’. [João 14:2]”
Falar de “uma visão expansiva do Catolicismo” englobando um vasto conjunto de crenças e práticas pagãs e ocultistas é alarmante, para dizer o mínimo – especialmente quando o Catolicismo “expansivo” e contrastado, favoravelmente, com o que Martin, no mesmo post, chama “o terrível Catecismo de Baltimore,” do qual ele teve seu “limitado contato com a ‘tradição’...” Esta noção de uma tradição Católica escondida mais profunda, mais rica e mais autêntica – da qual o ignorante “Trad,” agarrado miseravelmente a sua cópia do Catecismo de Baltimore, é inteiramente e lamentavelmente ignorante – é o sine qua non do Catolicismo “esotérico”. Isso pode ser percebido, por exemplo, nos escritos do “bispo” reformado Sedevacantista [2] Jason Spadafore, que promove o que ele chama de “Ocultismo Católico” em seu website:
“As fontes do Ocultismo Católico são as mesmas fontes da religião Católica: A Bíblia, o Credo, os Padres da Igreja, os Concílios Ecumênicos, os escritos dos Místicos e Santos, os Manuais (livros texto dos seminários), a Liturgia, as devoções Católicas e os Decretos Papais. Essas fontes são consultadas juntamente com o ‘paradigma científico’ [i.e. Hermetismo] tal como conhecidas e entendidas pela Igreja Medieval (quatro elementos, sete planetas, doze signos, as ervas e outros conhecimentos disponíveis naquele tempo)...”
“O Ocultismo Católico é um produto do Catolicismo pré-Vaticano II, o que significa que ele é compatível com o Catolicismo Tradicional e mais compatível ainda com o Catolicismo pré-Tridentino...”
“Ao contrário do Católico exotérico, o Ocultista Católico... não tem medo de se envolver com o ensino ou a prática espiritual de outros períodos da história da Igreja (em relação à qual o Católico exotérico médio ou desconhece ou se sentiria desconfortável), ou fazer uma sóbria análise do ‘joio versus o trigo’ em sistemas não-Católicos...”
“Como os Católicos Ocultistas buscam suas práticas diferentemente, o primeiro livro que nós recomendaríamos é ‘A Mágica do Catolicismo: Mágica Real para Católicos Devotos’ (Irmão A.D.A. [um dos pseudônimos de Spadafore], 2015), o qual apresenta o conceito de Catolicismo como um sistema mágico, discute suas iniciações e práticas, e dá um quadro claro para alguém iniciar sua própria prática.”
A semelhança deste “Ocultismo Católico” com o “Hermetismo Católico” de Charles A. Coulombe (discutido na Parte Cinco) é imediatamente óbvio, especialmente na sustentação de ambos escritores de que o Concílio de Trento, ao invés de revivificar uma Igreja mergulhada no escândalo e heterodoxia, representou um infeliz estreitamento da Tradição Católica. Do mesmo modo Dr Martin lamenta “o reacionarismo da Contra Reforma Católica... que posteriormente sempre denegriu [a astrologia] como sendo ‘ocultismo’ e ‘esoterismo’...”
“Como [o historiador] Ioan Couliano escreveu, ‘Como resposta a Lutero e ao Puritanismo, a Igreja empreendeu sua própria reforma... Longe de consolidar as posições assumidas pelo Catolicismo durante a Renascença, esse movimento se separou completamente delas e foi nas mesmas direções tomadas pelo Protestantismo. Foi tomando uma linha de severidade e dureza que a Reforma se desenvolveu, tanto do lado Protestante quanto do lado Católico’... Eu acho que é o momento de recapturar uma relação saudável com o cosmos.”
Um outro escritor, o teólogo Oriental Ortodoxo David Bentley Hart (publicado duas vezes pela Angelico Press) exibe o mesmo viés anti-Tridentino em seu ensaio, “O Mito do Cisma,” no qual ele venenosamente zomba de “um certo tipo de extremismo eclesial...”
“...quem pode imaginar uma versão da fé Católica que não esteja conforme, em cada detalhe, com as práticas e preconceitos de sua infância... De fato, em quase todos os casos, a grande ironia dessas pessoas... é que o que elas geralmente assumem ser a herança imemorial da fé Católica é a forma distintamente moderna da Igreja que manteve o controle nos dias em que suas mentes infantis ainda tinham uma flexibilidade idílica. Então quando um determinado padre Católico militantemente conservador ensinava que o celibato sacerdotal era a prática universal da igreja primitiva, estabelecida por Cristo em seus apóstolos..., alguém historicamente astuto entre nós reconhece que tal delírio é possível somente para uma pessoa sem compreensão de um sacerdócio mais sofisticado do que as memórias imaculadas de menino de Fr O´Reilly, e o exemplo brilhante de seu celibato, e a calma autoridade com a qual ele comandou a vida da igreja paroquial de St Anne of Green Gables. E quando esse mesmo padre se aventura a dar opiniões teológicas ou eclesiológicas, é quase certo que o que ele entende ser Catolicismo apostólico na verdade é um tipo de Catolicismo Barroco pós-Tridentino, mantido a partir de princípios sacramentais e eclesiológicos não anteriores a 1729...”
Esse é o mesmo David Bentley Hart cuja coleção de ensaios, The Dream-Child’s Progress, pertence ao vasto catálogo da seção de “Esoterismo Cristão”, que tem mais de 30 títulos, da Angelico Press, incluindo trabalhos do filósofo Perenialista Prof Jean Borella (veja a Parte Dois), do Cabalista Prof Wolfgang Smith, do entusiasta de Tomberg Roger Buck, de Stratford Caldecott, e – o mais expressivo de todos, com nove volumes “esotéricos” em seu nome – o “Rosacruciano” Dr Michael Martin. Esses escritores Católicos “esotéricos”, ainda que convenientemente tradicionais em muitos aspectos, são muitas vezes descritos como neo-tradicionalistas – um rótulo que eu teria dificuldade em definir exatamente, mas que parece ser caracterizado em primeiro lugar por uma eclesiologia inédita, quase-Joaquimita – os quais, com seu pai espiritual, Valentin Tomberg, avidamente esperam aquele “milagroso segundo Pentecostes” (a ser introduzido pelo “batismo” do Hermetismo e da Cabala), através do qual “um tesouro aprofundado, elevado e expandido da revelação da Igreja” emergirá, das cinzas do Catolicismo Tridentino, cuja era acabou.
O que isso significa para o futuro da Igreja? O falecido Caldecott, ‘luz-guia” da Angelico, sugere enigmaticamente em uma resposta:
“Cristo veio uma vez como homem, e isso foi no meio do inverno. A vida que ele trouxe criou – do chão estéril, logo encharcado com o sangue dos mártires – uma civilização reconhecidamente Cristã, ainda que profundamente imperfeita. Aquela civilização tinha sua vida natural, com altos e baixos e, após 2.000 anos, foi em grande parte reduzida a cinzas. Mas seu propósito foi atingido; ela deu nascimento a muitos santos. Suas sementes foram plantas para dar origem a uma nova primavera, que desta vez não irá suceder e sim preceder sua Vinda. A Segunda Vinda é causada pelas energias dispensadas na terra pela Cruz, e pelo grão que tem que morrer para frutificar cem vezes mais. Seu propósito é preparar os vales e as colinas para Aquele que vem. Ele virá num momento que não esperamos. Mas quando ele vier, as flores desabrocharão, de modo que caminharemos nos prados, não em terra nua.”
Esta enigmática previsão, em si, desafia uma interpretação fácil. Mas eu suspeito que Tomberg, a quem Caldecott tanto admira, tem a chave para decifrar seu significado. E quem melhor para manejar esta chave do que o colega e amigo de Caldecott, o esotérico mor da Angelico, Dr Michael Martin, inspirado como é pelas “formas espiritualmente enriquecedoras de Catolicismo... dos trabalhos de Stratford Caldecott”; e cujo livro de Sofiologia, A Realidade Submersa, Roger Buck “plenamente recomenda... a qualquer um que esteja tentando entender o projeto de Tomberg para curar o Oeste”? Martin escreve:
“Pode ser que nem mesmo Tomberg percebeu a força do que propôs. [Sua] Sofiologia, no contexto da Cristandade contemporânea, traz uma completa mudança de paradigma. Ninguém gosta de mudanças, muito menos de mudar paradigmas, mas isso é claramente com o que somos confrontados no trabalho de Tomberg. Mais uma vez, para citar [o Marxista filósofo Eslavo] Zizek:
“... ‘É possível hoje redimir a essência do Cristianismo somente com uma atitude de abandono da carapaça de sua organização institucional (e, ainda mais, de sua específica experiência religiosa). A lacuna é irredutível: ou se cai na forma religiosa, ou se mantém a forma mas se perde a essência. Esse é o último gesto heróico que espera a Cristandade: para salvar seu tesouro, ela tem que sacrificar a si própria – como Cristo, que teve que morrer para que a Cristandade pudesse emergir’.”
Se a consequência lógica do neo-tradicionalismo Tomberguiano é nada menos do que a morte da Santa Madre Igreja então o que realmente, em última análise, o diferencia do Modernismo – que é a “síntese de todas as heresias”, e cujos adeptos “se vangloriam de serem reformadores da Igreja” enquanto pedem, invariavelmente (conscientemente ou não) “a destruição... da religião Católica,” como o Papa São Pio X astutamente observou? É um Modernismo “da Igreja Conservadora”, na melhor das hipóteses. Ainda que redigido em termos que apelam para as naturais simpatias entre tradicionalistas e conservadores, a pretensão de Tomberg do “aprofundamento, elevação e expansão da tradição,” como foi concebida, resulta na prática em um deliberada eliminação (ou uma “reinterpretação”) de, no mínimo, quatro séculos de desenvolvimento eclesiástico e maturação doutrinária do período entre os Concílios de Trento e Vaticano II – indiscutivelmente uma idade de ouro do Catolicismo, como de fato argumentou o grande Servo de Deus Prosper Gueranger em sua obra prima de quinze volumes, O Ano Litúrgico:
“[O Bispo Jacques-Benigne] Bossuet, falando do Concílio de Trento..., afirma que ele trouxe a Igreja para a sua pureza original, na medida em que a iniquidade do tempo permitiu. E quando as sessões ecumênicas do [Primeiro Concílio] Vaticano foram iniciadas, o Bispo de Poitiers, o futuro Cardeal Pie, falou ‘daquele Concílio de Trento, que mereceu, mais verdadeiramente mesmo do que o de Nicéia, ser chamado o grande Concílio; aquele Concílio, no que se refere ao que nós podemos afirmar com confiança, que desde a criação do mundo nenhuma assembleia de homens teve sucesso em comunicar à humanidade tamanha perfeição; aquele Concílio a respeito do qual tem sido dito que, como uma árvore da vida, restaurou para sempre na Igreja o rigor de sua juventude. Mais de três séculos se passaram desde que seus trabalhos foram acabados, e sua virtude de cura e fortalecimento ainda é sentida’.”
Há um nome para o tipo de ideologia, que ficaria adormecida ao lado de séculos de tradição, e que pede a restauração dessa tradição; e vem a nós através do Papa Pio XII, e é enfaticamente não o piedoso tradicionalismo, mas impiedoso antiquarianismo. Em sua encíclica de 1947 sobre a liturgia (mas cujos princípios não são menos aplicáveis a qualquer outro aspecto do patrimônio da Igreja), Mediator Dei, o último dos pontífices pré-Conciliares escreve:
“A Igreja é sem dúvida um organismo vivo, e como um organismo, também quanto à sagrada liturgia, ela cresce, amadurece, se desenvolve, se adapta e se acomoda às necessidades e circunstâncias temporais, desde que a integridade de sua doutrina seja preservada. Não obstante isso, a temeridade e o atrevimento daqueles que... solicitam a restauração de ritos obsoletos sem harmonia com as leis e rubricas em vigor, merecem severa reprovação...”
“A liturgia dos primeiros tempos é certamente digna de toda veneração. Mas o uso do que é antigo não deve ser estimado como mais próprio e adequado, tanto em seu próprio direito ou em sua significância para tempos futuros e novas situações, com base simplesmente no fato de que ele tem sabor e aroma de antiguidade. Os ritos litúrgicos mais recentes merecem, do mesmo modo, reverência e respeito. Eles, também, devem sua inspiração ao Espírito Santo, que assiste a Igreja em cada época até o fim do mundo...”
“Não é também sábio nem louvável reduzir tudo à antiguidade de qualquer modo que seja...”
“Claramente nenhum Católico sincero pode recusar aceitar a formulação da doutrina Cristã elaborada mais recentemente e proclamada como dogmas pela Igreja, sob a inspiração do Espírito Santo com abudantes frutos para as almas, porque lhe agrada se voltar para as velhas fórmulas...”
“Esse modo de agir considera justo reviver o antiquarianismo exagerado e sem sentido, o qual o ilegal Concílo de Pistóia fomentou. Tenta igualmente restituir uma série de erros que foram responsáveis pela convocação daquele encontro, assim como os resultados dele, com graves danos para as almas, e aos quais a Igreja, a guardiã sempre atenta do ‘depósito da fé’ e que recebeu essa tarefa de seu divino Fundador, tinha todo direito e razão de condenar...”
O que faz os neo-tradicionalistas antiquarianos, penso eu, é que ao invés de genuínos tradicionalistas, sua ideia de Igreja (pelo menos nos resultados práticos) não é “um organismo vivo” que “cresce, amadurece, se desenvolve e se adapta” – sua “Tradição” somente sempre esmaece e decai – mas como algo morto e enterrado, a ser exumado e reanimado. Eles são os Victor Frankensteins do Catolicismo – e os resultados de sua necromancia Prometeana (como veremos na Parte Oito), não importa quão bem intencionados, são previsivelmente mostruosos.
Notas:
[1] Tomberg, V., Lazarus, Come Forth! Meditations of Christian Esotericist (SteinerBooks, 2006)
[2] A propósito, um dos pensadores principais da Escola Perenialista de origem ocultista é Rama Coomaraswamy, outro Sedevacantista. Ele foi ordenado padre pelo bispo da linha de Thuc (embora a validade de sua ordenação tenha sido questionada) em 1997, após romper com a SSPX, em cujo seminário de Connecticut ele tinha ensinado durante cinco anos. Desse modo, parece que a influência do ocultismo não está limitado ao tradicionalismo Católico mainstream, mas se estende também fora de suas fronteiras.
Parte VIII: Tudo flui para o Tibre! A sincrética “Igreja Vindoura”
A eclesiologia distorcida de modo perigoso, infundida com o espírito do que o Venerável Papa Pio XII condenou como um “antiquarianismo exagerado e sem sentido”, e ainda mais poluída por um “falso misticismo” adulatório sobre o qual esse mesmo santo pontífice soou o alarme (ver Parte VI), é provavelmente o que leva o esotérico responsável da Angelico Press, Dr. Michael Martin, em um post de blog refletindo sobre as implicações dos crimes hediondos do ex-Cardeal Theodore McCarrick, a concluir:
“Para mim, pelo menos, o escândalo McCarrick... põe em questão a própria noção de um Magisterium – por que alguém confiaria em um corpo tão disposto a jogar cordeiros aos lobos? E não me refiro apenas a voltar ao Vaticano II, ou Vaticano I, ou Trento, ou mesmo IV de Latrão. E eu tenho que me questionar se muitos dos assim chamados hereges ao longo dos tempos foram meras vítimas de alguma política intramuros muito viciada, para não mencionar a coerção de Teilhard [de Chardin] e [Henri] de Lubac. Você vê? De repente, tudo é suspeito…”
“[A] Igreja, a verdadeira Igreja, pode agora ser, em grande parte, invisível. E provavelmente sempre foi...”
A esta última declaração, o Catecismo de Baltimore responde inequivocamente: “A Igreja é a congregação de todos aqueles que professam a fé em Cristo, participam dos mesmos Sacramentos e são governados por seus pastores legítimos sob uma cabeça visível”. Mas o Dr. Martin provavelmente reluta em levar a sério um livro tão “terrível” (ver a Parte VII). O Papa Leão XIII acrescentaria: “Aqueles que arbitrariamente evocam e imaginam uma Igreja oculta e invisível estão em erro grave e pernicioso”; e Pio XII, da mesma forma, “Erram em matéria de verdade divina [aqueles] que imaginam a Igreja invisível, intangível, algo... pelo qual muitas comunidades cristãs, embora difiram umas das outras em sua profissão de fé, estão unidas por um vínculo invisível” – para citar apenas dois pronunciamentos magisteriais da Santa Sé. Para que não sejam demasiado modernos para o gosto de antiquário de Martin, podemos também acrescentar o testemunho de Santo Inácio de Antioquia, escrevendo em 107 DC: “Onde está o bispo, ali está o povo, assim como onde está Jesus Cristo, ali está a Igreja Católica”.
Os “chamados de hereges” do Dr. Martin, entre os quais ele conta o cabalista e rosacruz inglês Robert Fludd, o alquimista galês Thomas Vaughan, o astrólogo Sir Kenelm Digby (um inglês católico que apostatou em prol de sua carreira política), “e muitos da coorte a que dediquei minha atenção acadêmica não eram malucos ou pontos fora da curva. Na verdade, se foram algo, foram tradicionalistas contra um neoescolasticismo intelectualizado e corrupto... Em suma, eles estavam defendendo o que entendiam como tradição cristã” Estes, Martin afirma – mais uma vez, no blog oficial da Angelico Press – são os verdadeiros tradicionalistas:
“Pode ser que esses chamados hereges possuam algo que muitos cristãos supostamente ‘fiéis’ não possuíam: uma abordagem sincera da figura de Jesus, livre de obrigações dogmáticas. Por causa de tal sinceridade, Jesus é capaz de sangrar para além da obscuridade e da fábula. Isso não acontece, infelizmente, com uma quantidade significativa da teologia ortodoxa.”
“Opiniões hereges ou heterodoxas – ou simplesmente ideias antigas – muitas vezes assustam as pessoas que sentem a necessidade de aderir a um pacto de lei e não a um pacto de sabedoria…”
“No entanto, aprendi muito sobre Jesus com os hereges. Que eles sejam abençoados”.
Já vimos (na Parte VII) que Roger Buck – o autor tradicionalista católico e incansável promotor de Valentin Tomberg cuja alardeada semi-autobiografia, Cor Jesu Sacratissimum, primeiro me alertou para o crescente problema do ocultismo entre os católicos tradicionais (ver Parte I) – recomenda fortemente os escritos de Michael Martin “a qualquer um que tente entender o projeto de Tomberg para curar o Ocidente”. Ele conclui a resenha do livro (de The Submerged Reality, de Martin, publicado pela Angelico Press) da qual extraí essas palavras, com um apoio efusivo:
“Este livro é uma chama viva no escuro. Se você se preocupa com o destino da humanidade, peço que considere estudar Martin. Ele está, junto a Valentin Tomberg, apontando para a única esperança que tenho para o Ocidente: um catolicismo obediente, piedoso e profundamente tradicional, que não tem medo de abraçar o cristianismo oriental, nem mesmo qualquer sabedoria cristã, onde quer que se encontre”.
Aqui, novamente, ouvimos o som do clarim para forjar a “visão expansiva do catolicismo” apresentada por Tomberg, que é tão ampla que abrange todos os tipos de hereges e suas heresias, ao mesmo tempo em que se disfarça de “um catolicismo obediente, piedoso, profundamente tradicional...”. O professor Wolfgang Smith – um “celebrado tradicionalista católico”, nos dizem – aceita esse desafio em seu In Quest of Catholicity (também publicado pela Angelico Press, e citado na Parte III), uma troca epistolar entre ele e o saudoso Pe. Malachi Martin, no qual prescreve que “nos incumbe alargar o nosso horizonte ontológico – abrir portas e janelas, se assim se pode dizer, que estão fechadas há muito tempo...
“O que é realmente necessário é uma compreensão radicalmente mais profunda do cosmos: a descoberta – ou redescoberta, para ser preciso – de estratos ontológicos inacessíveis não apenas à percepção sensorial comum, mas também ao modus operandi da ciência contemporânea... O que está em questão são as chamadas ciências ‘tradicionais’, que também podem ser chamadas de ciências ‘sagradas’ na medida em que pertencem potencialmente à busca religiosa...”
“Em certos aspectos, o caso da ciência tradicional, lamento dizer, é ainda pior entre os católicos conservadores [do que entre os progressistas]: o fato de que essas ciências sejam ‘sagradas’ – que elas constituem, em outras palavras, um complemento à religião – é, em geral, o suficiente para provocar uma denúncia no mesmo instante: ‘superstição pagã’ parece ser o termo canônico. Agora, sempre considerei tal resposta instintiva como indigna de um católico, como ‘un-katholikos’ de fato. Mas indo direto ao ponto: investi décadas na exploração de tais ‘superstições pagãs’, não apenas por meio de fontes escritas, mas por meio de contatos pessoais envolvendo meia dúzia de longas estadias em partes da Índia e do Nepal, por exemplo, onde felizmente a nossa cultura de McDonald’s ainda não havia penetrado. E, à luz dessas investigações, estou convencido de que existe uma sabedoria pré-cristã de origem supra-humana, perpetuada por meio de cadeias ininterruptas de transmissão de mestre a discípulo – começando concebivelmente com o próprio Adão – cujos vestígios ainda podem ser encontrados em várias partes do mundo. Além disso, passei a acreditar que a sabedoria em questão – essa verdadeira ‘sophia perennis’ – é algo de que nós da época atual precisamos urgentemente...”
“Desde o início, senti-me inclinado a submeter minhas – às vezes aparentemente ‘não ortodoxas’ – concepções ao escrutínio deste grande homem e sacerdote, [P. Malachi Martin,] que era alguém qualificado para julgar e aconselhar... que, de um ponto de vista católico ultratradicional, muito desse material era suspeito, para dizer o mínimo, e que seria de fato fútil abrir meus pensamentos sobre tais assuntos para teólogos de base de cada lado do racha contemporâneo. Percebi, ao mesmo tempo, que partes do que eu tinha a dizer seriam de fato bem recebidas pelos aficionados do Vaticano II; mas deixe-me ser absolutamente claro: submeto-me sem reservas ao ensinamento autêntico da Igreja Católica, que transcende tanto a estreiteza pedante e às vezes farisaica da extrema direita teológica quanto às fantasias liberais e os sonhos da esquerda...”
“Isso me leva finalmente ao meu ponto final: além de qualquer interesse humano que as cartas de Malachi Martin possam ter e a luz que possam lançar sobre este grande homem, seu significado primordial, parece-me, reside no fato de que elas testemunham a Igreja, não apenas como era, mas também – e especialmente – como será. Ele parece estar de olho tanto no futuro quanto no passado, e nos dá a entender que, enquanto as verdades essenciais de nossa fé católica precisam naturalmente ser preservadas, há elementos estranhos a serem descartados e fronteiras artificiais a serem destruídas. Certamente tudo o que é ortodoxo será encontrado novamente na Igreja que está se formando agora silenciosamente sob os escombros da atual desintegração; no entanto, essa Igreja vindoura estará, sem dúvida, livre das limitações de perspectiva e idiossincrasias endêmicas desta ou daquela época, como também da autocracia de qualquer estilo teológico particular: por exemplo, do Tomismo como geralmente o concebemos. E isso explica não apenas por que ‘precisamos realmente de um novo Tomás de Aquino’, mas também coloca em perspectiva a resposta afirmativa de Malachi Martin às várias doutrinas ‘estranhas’ com as quais o confrontei, começando com os ensinamentos de Jacob Boehme, o visionário que, na opinião de alguns, ‘cristianizou’ a sabedoria alquímica pertencente à tradição Hermética. Isso explica por que Malachi Martin pôde abraçar tais doutrinas ‘suspeitas’ com alegria sem fingimento e visível entusiasmo... No lugar das referências costumeiras, abertas ou veladas, a ‘superstições pagãs’, encontramos... a perfeita receptividade de uma mente e coração purificados no Sangue de Cristo. E quem pode duvidar que este padre fala, ainda agora, pela Igreja vindoura!”
De alguma forma, o professor Smith é capaz de sustentar essas opiniões e ainda professar – para satisfação de si próprio, se não para os demais – sua submissão “sem reservas ao ensinamento autêntico da Igreja Católica”, assim como Tomberg “tece... crenças sincréticas, gnósticas, cabalísticas e maniqueístas juntas, defendendo que tudo [isso] está em conformidade com a fé católica ortodoxa”. Como é possível? Eu pergunto com toda a sinceridade.
Se minha pesquisa (cujos frutos são apresentados nesta monografia) serve de base, a “igreja por vir” da imaginação dos neotradicionalistas tomberguianos encarna “um catolicismo obediente, piedoso, profundamente tradicional” em toda sua glória pré-conciliar, com sua antiga liturgia e costumes restaurados, mas “que [não] tem medo de abraçar... a sabedoria cristã, onde quer que se encontre” (Buck) e, de fato, a encontra devidamente nos supostos ditos do deus egípcio Thoth – “a sabedoria alquímica pertencente à tradição hermética” da “grande doutrina perene, que... brota do próprio Cristo” (Smith) [1] e “deve ser Cristianizada – não repudiada” (Buck)[2] – e na Cabala, onde vê um “anel da verdade”. (Caldecott) É “com base nesta Cabala assimilada” que a “Igreja vindoura” “realizará sua própria catolicidade autêntica e definitiva”, tendo finalmente “resolvido o enigma das ‘religiões separadas’...”(Smith)[3] Separadas, isto é; não que uma seja falsa, porque “a presença de um elemento central e propriamente divino na religião não-cristã” (Borella) não seria mais negada, mas afirmada: “Os cristãos não podem deixar de reconhecer que Deus falou através do Alcorão”, por exemplo, “...[que] deu inúmeros bons frutos...” (Caldecott).
Esta nova Igreja Católica, mais autenticamente Católica, ao retomar “o processo de batizar o Hermetismo” e retornar à “visão mágica da vida”, finalmente alcançará uma “síntese entre Hermetismo/Neoplatonismo e Cristianismo Sacramental” – uma “união da Igreja Católica com o Hermético” (Coulombe) – tendo se livrado dos grilhões do Tomismo; (Smith, Coulombe) “da Neo-Escolástica intelectualizada e corrompida”; e “o reacionarismo Tridentino da Contra-Reforma”, que durante séculos impediu o desenvolvimento de “uma relação saudável com o cosmos” baseada na astrologia (Martin), que negou o acesso aos “escritos Herméticos... que precisamos para desenvolver uma mistagogia contemporânea efetiva” e uma “ciência dos milagres”; (Caldecott) e “contribuiu para o declínio da Igreja” ao minar “os próprios fundamentos tanto da Igreja Medieval quanto do Estado” (Coulombe).
Como possuiremos uma “visão expansiva do Catolicismo” (Martin), quando a Igreja estiver “livre das limitações de perspectiva e idiossincrasias endêmicas desta ou daquela época, como também da autocracia de qualquer estilo teológico particular” (Smith) e quando os neo-tradicionalistas, seguindo Tomberg, terminarem de “implodir as noções complacentes do que significa ser ‘Católico’...”! (Martin).
Uma vez que é “muito mais aberta e liberal” do que a antiga Igreja, “há espaço na [nova] Igreja para pessoas que... estão convencidas da reencarnação” (Spaemann)[4] – um “fato da experiência” (Tomberg , p. 93) que é “provavelmente verdade”, porque a Cabala afirma. (Martin) A “Igreja futura” não será tão “aberta” a ponto de promulgar formalmente isso como dogma, no entanto, pois “vale cem vezes mais... negar a doutrina da reencarnação do que transformar pensamentos e desejos para a futura vida terrestre e, assim, ser tentado...” (Tomberg, p. 361). Qualquer coisa que não seja uma repetida obscuridade sobre o assunto não seria “pastoral…” (Smith). No entanto, “a revolução das almas” (Martin) fará parte de um magistério superior e esotérico de ensinamentos secretos - para incluir também a “afirmação de um elemento sobrenatural no homem ... [que é] ‘incriado e incriável’”, e “a unidade transcendente das religiões”, entre outros - que “são compreensíveis para muito poucos, e… [cuja] divulgação para os fiéis em geral não é apenas desnecessária, mas perigosa ao extremo” (Smith) e, portanto, serão ensinadas apenas aos iniciados, que podem se beneficiar delas. Para todos os outros, o magistério inferior, tradicional e exotérico será suficiente: “Somente aquele com gênio deve (e pode) transcendê-lo”. (Tomberg)
Mas antes que o Corpo Místico de Cristo possa ser transfigurado dessa maneira – antes que o “segundo milagre de Pentecostes” do “aprofundamento, elevação e expansão da tradição” (Tomberg)[5] possa acontecer – o Catolicismo deve passar por “uma completa mudança de paradigma” pelo “abandono da casca de sua organização institucional”, a Igreja de outrora, que “deve se sacrificar – como Cristo, que teve de morrer para que o Cristianismo pudesse emergir”; exceto, neste caso, que o que emerge será “a verdadeira Igreja”, que até agora tem sido “em grande parte invisível” (Martin) conduzida através dos tempos pelo espírito de São João Apóstolo, o “discípulo amado que... foi, é e sempre será o representante e guardião do coração [de Cristo]...” (Tomberg, p. 6). Os católicos não devem se alarmar com essa transformação aparentemente cataclísmica, no entanto, porque a velha Igreja “teve sua vida natural” e “seu propósito foi cumprido; as sementes foram plantadas para uma nova primavera, que desta vez não se seguirá, mas pressagiará à vinda [de Cristo]”. (Caldecott)
E quando Cristo vier, quão melhor Ele será do que o velho Cristo de nossos equívocos tão estreitos! O velho Cristo era apenas um Homem-Deus; o novo e verdadeiro Cristo – revelado a nós pelos “chamados hereges… livre de obrigações com dogmas”, como “aquele princípio que nos guia através dos perigos das promessas feitas por Lúcifer e Ahriman e nos ajuda a permanecer no real” (Martin) – é muito mais do que a mera Segunda Pessoa da Santíssima Trindade: Ele é o próprio universo, pois “Cristo é a chave para o mundo, e esse… mundo – tal como era antes da Queda e tal como será depois de sua Regeneração – é o Verbo, e esse... Verbo é Jesus Cristo” (Tomberg, p. 195) a quem os fiéis de todas as religiões “estão destinados a descobrir e tomar posse no final do caminho, quando eles tiverem, Deo volente, alcançado o que o cristianismo chama de theosis; pois, de fato, essa verdade não é mais uma questão de doutrina, de concepções teológicas ou metafísicas, mas é o próprio Deus”. (Smith)
Ó admirável nova Igreja, que tem gente assim...!
Como diz o Dr. Martin, “ninguém gosta de mudar, muito menos mudar os paradigmas...”, pois é, de fato: “...mas isso é claramente o que nos confronta na obra de Tomberg”. Pode me chamar de ludita, mas não tenho certeza de que essa seja uma direção que o movimento católico tradicional queira tomar – porque nada disso tem qualquer semelhança com a fé na qual fui catequizado quando era apenas um jovem convertido.
Mas, de novo, me ensinaram “o terrível Catecismo de Baltimore”, então que sei eu?
Alistair McFadden é um pseudônimo. Embora ele deseje permanecer anônimo, ele pode ser contactado por e-mail em justacatholic@protonmail.com, ou @JustACatholic1 no Twitter
Notas:
[1] Martin, M. & Smith, W., In Quest of Catholicity: Malachi Martin Responds to Wolfgang Smith (Angelico Press, 2016), p. 76
[2] Buck, R., Cor Jesu Sacratissimum: From Secularism and the New Age to Christendom Renewed (Angelico Press, 2016), p. 249
[3] Martin, M. & Smith, W., In Quest of Catholicity: Malachi Martin Responds to Wolfgang Smith (Angelico Press, 2016), p. 76
[4] Isto é, Pietro Archiati, parafraseando o que ele alega que Spaemann lhe transmitiu (e que Spaemann nunca negou).
[5] Tomberg, V., Lazarus, Come Forth! Meditations of a Christian Esotericist (SteinerBooks, 2006), [sem paginação]
Para citar este texto:
"Observações sobre a influência do oculto no discurso tradicional católico"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/igreja/tradignose/
Online, 30/10/2024 às 04:32:22h