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Igreja
A grande intervenção
Paolo Giorgi, APRILE Info On Line
ATENÇÃO: Este texto não reflete a opinião da Associação Cultural Montfort
E foi assim que no ano da graça de 2007 foi colocada a pedra tumular sobre o Concílio Vaticano II, para cujo sepultamento há anos já se havia cavado a fossa. A Exortação pós Sinodal Sacramentum Caritatis, publicada hoje, não é senão o selo definitivo de Bento XVI à grande Restauração.
Um processo iniciado sob o pontificado wojtyliano, votando ao degredo, através da Missa, todas as opções progressistas internas do catolicismo (e a contemporânea benevolência para com as alas extremistas a começar pelos lefrebvistas), o crescimento excessivo de realidades “laicas” mais integristas de boa parte do clero (desde Comunhão e Libertação até a tentacular Opus Dei), em constante sufocamento das instâncias teologicamente mais avançadas, desde os padres mais corajosos, das batalhas sociais da África e na América Latina, da colegialidade episcopal. E a lista poderia continuar até o infinito.
O Papa João abriu a janela da Igreja, para “fazer entrar — ele mesmo o disse — "o ar fresco do mundo”. Seu sucessor alemão volta a fechá-la, sem hipocrisias e sem nem mesmo derramar sequer uma lágrima pela herança conciliar dissipada e pisoteada. Depois de pouco mais de 40 anos do fechamento do Concílio, podem se contradizer abertamente as constituições dogmáticas (e sublinhamos dogmáticas) de um Concílio Ecumênico, presidido por um Papa e composto por todos os Bispos do mundo? Isso se perguntam os que se têm como verdadeiros católicos, os que estão convencidos que o caminho para a situação atual só pode ter sido tomada desde os primeiríssimos anos 80, quando o mesmo Ratzinger foi chamado ao Santo Ofício. De fato, o Concílio aprovara a distinção entre o plano espiritual e o plano político temporal. “A comunidade política e a Igreja – estabelecia a Gaudium et Spes – são independentes e autônomas uma da outra em seu próprio campo”. Hoje, em vez, a ingerência é a norma.
O Papa se lança na Sacramentum Caritatis contra os Dico [os gays], reafirmando que "políticos e legisladores católicos conscientes de sua grave responsabilidade social" não devem votar leis que vão contra "a natureza humana". Um verdadeiro e próprio diktat universal (uma exortação pós sinodal tem natureza magisterial, e é obrigatória para todos os católicos). A Igreja se arroga o direito de estabelecer os programas políticos dos governos presentes e futuros, despojando os deputados católicos de todo vínculo com relação a seus eleitores, e em definitivo da comunidade política que os escolheu, e de fato manipulando-os em nome não do bem comum e da salvaguarda da pessoa, mas por motivo de (presumidas) verdades de fé. Os desventurados parlamentares católicos, ordena Ratzinger, devem "dar público testemunho da própria fé" na defesa da família, do matrimônio, em suma, da vida, em todos os “valores fundamentais ".
É o fim do sonho de tentar conciliar o catolicismo com os direitos individuais dos cidadãos, com a liberdade de consciência, com a autonomia da esfera política. Aqueles direitos confirmados (ou assim se esperava) por João XXIII na Pacem in Terris: "Em uma convivência ordenada e fecunda - escrevia Roncalli em 1963 – deve ser posto com fundamento o princípio que todo ser humano é pessoa, isto é, uma natureza dotada de inteligência e de vontade livre; e, portanto, é um sujeito de direitos e de deveres que brotam imediatamente e simultaneamente da sua própria natureza: direitos e deveres que são, por isso mesmo, universais, invioláveis, inalienáveis". Hoje, em vez, é colocado um verdadeiro e próprio ultimatum ao político católico: "Os valores fundamentais como o respeito e a defesa da vida humana" tem "um nexo objetivo com a Eucaristia". Traduzindo: se vocês votarem leis "erradas" não pensem mais em comungar. Um diktat gravíssimo, com o único precedente da excomunhão dos comunistas em 1949, em plena guerra fria, e, entretanto, muito freqüentemente ignorada. E depois, exatamente, não tinha ainda ocorrido o Concílio que estabeleceu a distinção entre erro e errante, definição caridosa de Roncalli que permitia manter firmes algumas convicções doutrinárias da Igreja sem por isso marginalizar os “pecadores”.
Uma bela lápide também sobre isso: os divorciados recasados, por exemplo, adverte Ratzinger, são um problema espinhoso, antes certamente uma "verdadeira chaga da atual contexto social", e não podem absolutamente ser admitidos aos sacramentos.
O Papa focaliza também sobre o problema da castidade dos padres, come é bem conhecido uma condição não dogmática mas apenas histórica, revista por todas as confissões cristãs exceto a católica: o celibato "é uma riqueza inestimável". E vacila também talvez a mais conhecida constituição conciliar: a da liturgia. Bento XVI deseja um retorno ao latim e ao canto gregoriano, desde sempre armas ideológicas dos nostálgicos de uma Igreja monárquica e tridentina. "Pois bem - escreve, referindo-se sobretudo aos grandes encontros internacionais - que tais celebrações sejam em língua latina; assim também sejam recitadas em latim as rações mais conhecidas pela tradição da Igreja e eventualmente executados trechos em canto gregoriano". E ainda, o convite a preservar o domingo, e aquele ainda da salvaguarda do papel da mulher. Um papel, bem entendido, que a enquadre rigorosamente em "seu ser próprio de esposa e de mãe".
Em suma, um verdadeiro e próprio manifesto contra reformista, alguma coisa similar á encíclica "Quanta Cura" de 1864, assinada por Pio IX. Frente a um mundo político tremente e incerto (e se era lícito esperar isso do centro direita, porém causa desagrado notar a mesma fraqueza estrutural no centro esquerda) a Igreja volta a ditar normas e comportamentos. Enterra com o Concilio, a grande tradição do catolicismo liberal, de Gioberti a Rosmini, de Manzoni a De Gasperi que se opôs à Operação Sturzo projetada por Pio XII. Objetivamente quebra a política italiana, constrangida a dilacerar-se sobre questões que em toda a Europa foram enfrentadas e largamente superadas (freqüentemente, como na França, por ações de governos de direita), e a fazer as contas entre quem é mais católico e que o é menos (e para quando se voltará a usar o termo "infiel"?).
Um documento, esta "Sacramentum caritatis", que não tem nada de caridosa, um documento gravíssimo, nos limites do crime. Chantagear um Deputado regularmente eleito, foi dito já, é contra a Constituição. É verdade. Mas, em nossa opinião, é muito mais grave o total deslocamento da Igreja para a direita, que assim se auto condena ao isolamento, se fecha na defesa da Verdade, e, numa época de confronto de civilizações oferece de si mesma uma imagem especular à do mundo islâmico. Não é por acaso que Ratzinger, há poucos meses atrás chegou a indicar, como exemplo a espiritualidade e a luta contra o relativismo vigentes em países maometanos.Os ferozes dardos que o Osservatore Romano lançou às manifestações gays têm as cores foscas da intolerância e do obscurantismo, e quem estava ali no sábado à tarde não esquecerá que a poucos metros, no Campo de Fiori, tinham brilhado os tenebrosos fulgores da fogueira para queimar Giordano Bruno. Agrada-nos, para não estragar o dia de muitos leitores, concluir usando as palavars do já citado Papa João, com a esperança que a Igreja volte a fazê-las suas: "Nada de condenações doutrinárias — disse falando do Concílio — hoje a Igreja prefere antes demonstrar a validade das suas doutrinas e fazer uso da medicina da graça".
(tradução nossa)
O documento Sacramentum Caritatis não é outra coisa senão o definitivo selo papal à Restauração. O Sumo Pontífice – Bento XVI – reafirmou que “os políticos e legisladores católicos” não devem votar leis contrárias à “natureza humana”. Isto é o fim do Concílio Vaticano II. |
E foi assim que no ano da graça de 2007 foi colocada a pedra tumular sobre o Concílio Vaticano II, para cujo sepultamento há anos já se havia cavado a fossa. A Exortação pós Sinodal Sacramentum Caritatis, publicada hoje, não é senão o selo definitivo de Bento XVI à grande Restauração.
Um processo iniciado sob o pontificado wojtyliano, votando ao degredo, através da Missa, todas as opções progressistas internas do catolicismo (e a contemporânea benevolência para com as alas extremistas a começar pelos lefrebvistas), o crescimento excessivo de realidades “laicas” mais integristas de boa parte do clero (desde Comunhão e Libertação até a tentacular Opus Dei), em constante sufocamento das instâncias teologicamente mais avançadas, desde os padres mais corajosos, das batalhas sociais da África e na América Latina, da colegialidade episcopal. E a lista poderia continuar até o infinito.
O Papa João abriu a janela da Igreja, para “fazer entrar — ele mesmo o disse — "o ar fresco do mundo”. Seu sucessor alemão volta a fechá-la, sem hipocrisias e sem nem mesmo derramar sequer uma lágrima pela herança conciliar dissipada e pisoteada. Depois de pouco mais de 40 anos do fechamento do Concílio, podem se contradizer abertamente as constituições dogmáticas (e sublinhamos dogmáticas) de um Concílio Ecumênico, presidido por um Papa e composto por todos os Bispos do mundo? Isso se perguntam os que se têm como verdadeiros católicos, os que estão convencidos que o caminho para a situação atual só pode ter sido tomada desde os primeiríssimos anos 80, quando o mesmo Ratzinger foi chamado ao Santo Ofício. De fato, o Concílio aprovara a distinção entre o plano espiritual e o plano político temporal. “A comunidade política e a Igreja – estabelecia a Gaudium et Spes – são independentes e autônomas uma da outra em seu próprio campo”. Hoje, em vez, a ingerência é a norma.
O Papa se lança na Sacramentum Caritatis contra os Dico [os gays], reafirmando que "políticos e legisladores católicos conscientes de sua grave responsabilidade social" não devem votar leis que vão contra "a natureza humana". Um verdadeiro e próprio diktat universal (uma exortação pós sinodal tem natureza magisterial, e é obrigatória para todos os católicos). A Igreja se arroga o direito de estabelecer os programas políticos dos governos presentes e futuros, despojando os deputados católicos de todo vínculo com relação a seus eleitores, e em definitivo da comunidade política que os escolheu, e de fato manipulando-os em nome não do bem comum e da salvaguarda da pessoa, mas por motivo de (presumidas) verdades de fé. Os desventurados parlamentares católicos, ordena Ratzinger, devem "dar público testemunho da própria fé" na defesa da família, do matrimônio, em suma, da vida, em todos os “valores fundamentais ".
É o fim do sonho de tentar conciliar o catolicismo com os direitos individuais dos cidadãos, com a liberdade de consciência, com a autonomia da esfera política. Aqueles direitos confirmados (ou assim se esperava) por João XXIII na Pacem in Terris: "Em uma convivência ordenada e fecunda - escrevia Roncalli em 1963 – deve ser posto com fundamento o princípio que todo ser humano é pessoa, isto é, uma natureza dotada de inteligência e de vontade livre; e, portanto, é um sujeito de direitos e de deveres que brotam imediatamente e simultaneamente da sua própria natureza: direitos e deveres que são, por isso mesmo, universais, invioláveis, inalienáveis". Hoje, em vez, é colocado um verdadeiro e próprio ultimatum ao político católico: "Os valores fundamentais como o respeito e a defesa da vida humana" tem "um nexo objetivo com a Eucaristia". Traduzindo: se vocês votarem leis "erradas" não pensem mais em comungar. Um diktat gravíssimo, com o único precedente da excomunhão dos comunistas em 1949, em plena guerra fria, e, entretanto, muito freqüentemente ignorada. E depois, exatamente, não tinha ainda ocorrido o Concílio que estabeleceu a distinção entre erro e errante, definição caridosa de Roncalli que permitia manter firmes algumas convicções doutrinárias da Igreja sem por isso marginalizar os “pecadores”.
Uma bela lápide também sobre isso: os divorciados recasados, por exemplo, adverte Ratzinger, são um problema espinhoso, antes certamente uma "verdadeira chaga da atual contexto social", e não podem absolutamente ser admitidos aos sacramentos.
O Papa focaliza também sobre o problema da castidade dos padres, come é bem conhecido uma condição não dogmática mas apenas histórica, revista por todas as confissões cristãs exceto a católica: o celibato "é uma riqueza inestimável". E vacila também talvez a mais conhecida constituição conciliar: a da liturgia. Bento XVI deseja um retorno ao latim e ao canto gregoriano, desde sempre armas ideológicas dos nostálgicos de uma Igreja monárquica e tridentina. "Pois bem - escreve, referindo-se sobretudo aos grandes encontros internacionais - que tais celebrações sejam em língua latina; assim também sejam recitadas em latim as rações mais conhecidas pela tradição da Igreja e eventualmente executados trechos em canto gregoriano". E ainda, o convite a preservar o domingo, e aquele ainda da salvaguarda do papel da mulher. Um papel, bem entendido, que a enquadre rigorosamente em "seu ser próprio de esposa e de mãe".
Em suma, um verdadeiro e próprio manifesto contra reformista, alguma coisa similar á encíclica "Quanta Cura" de 1864, assinada por Pio IX. Frente a um mundo político tremente e incerto (e se era lícito esperar isso do centro direita, porém causa desagrado notar a mesma fraqueza estrutural no centro esquerda) a Igreja volta a ditar normas e comportamentos. Enterra com o Concilio, a grande tradição do catolicismo liberal, de Gioberti a Rosmini, de Manzoni a De Gasperi que se opôs à Operação Sturzo projetada por Pio XII. Objetivamente quebra a política italiana, constrangida a dilacerar-se sobre questões que em toda a Europa foram enfrentadas e largamente superadas (freqüentemente, como na França, por ações de governos de direita), e a fazer as contas entre quem é mais católico e que o é menos (e para quando se voltará a usar o termo "infiel"?).
Um documento, esta "Sacramentum caritatis", que não tem nada de caridosa, um documento gravíssimo, nos limites do crime. Chantagear um Deputado regularmente eleito, foi dito já, é contra a Constituição. É verdade. Mas, em nossa opinião, é muito mais grave o total deslocamento da Igreja para a direita, que assim se auto condena ao isolamento, se fecha na defesa da Verdade, e, numa época de confronto de civilizações oferece de si mesma uma imagem especular à do mundo islâmico. Não é por acaso que Ratzinger, há poucos meses atrás chegou a indicar, como exemplo a espiritualidade e a luta contra o relativismo vigentes em países maometanos.Os ferozes dardos que o Osservatore Romano lançou às manifestações gays têm as cores foscas da intolerância e do obscurantismo, e quem estava ali no sábado à tarde não esquecerá que a poucos metros, no Campo de Fiori, tinham brilhado os tenebrosos fulgores da fogueira para queimar Giordano Bruno. Agrada-nos, para não estragar o dia de muitos leitores, concluir usando as palavars do já citado Papa João, com a esperança que a Igreja volte a fazê-las suas: "Nada de condenações doutrinárias — disse falando do Concílio — hoje a Igreja prefere antes demonstrar a validade das suas doutrinas e fazer uso da medicina da graça".
(tradução nossa)
Para citar este texto:
"A grande intervenção"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/igreja/grande_intervencao/
Online, 21/12/2024 às 16:00:52h