Artigos
Igreja
Entrevista com o Padre Mercury, excluído da FSSPX: "O Bispo é soberano em sua diocese"
A entrevista teve lugar na França, no mês de dezembro. Nesta primeira parte, ele fala de sua história e das razões de sua exclusão da Fraternidade São Pio X. No próximo trecho, a ser publicado em breve, ele expõe seus estudos sobre o conceito de suplência na vida da Igreja Católica.Entrevista concedida a Alberto Zucchi
Tradução da gravação em francês: Mauro Rocha
1) Padre Mercury, o apostolado que o senhor desenvolve na Córsega teve uma repercussão especial nos meios ditos tradicionalistas no Brasil porque, após a realização da Crisma no rito antigo pelo Bispo diocesano, afirmou-se que o senhor seria transferido para o Brasil. O senhor poderia contar um pouco da sua biografia?
Bem, minha história começa em 1981 quando entrei, em setembro, no seminário de Ecône. Eu tinha dezessete anos, havia acabado o ensino médio. Eu sou francês, originário da Córsega, meu pai era originário da Córsega. Então, eu entrei em 1981 em Ecône, após ter passado um ano na Escola de Chateauroux, que acabava de ser fundada pela Fraternidade São Pio X. Um ano depois, tive que me engajar na Fraternidade São Pio X. Já nessa época o problema foi apresentado ao Superior, porque me disseram que esse engajamento valia como uma incardinação - eu não estou totalmente de acordo com essa terminologia. Fui ordenado em 27 de Fevereiro de 1988 por Dom Tissier de Mallerais. Primeiro fui nomeado para a Bretanha, em seguida para Montpellier, onde eu estive seis anos, antes de me encontrar no sudeste da França - parte na Córsega, parte em Marselha - até 1998 quando fui designado para me ocupar do apostolado na Córsega. Na Córsega, a Fraternidade São Pio X tem duas pequenas comunidades, uma em Ajaccio, outra no norte da ilha, em diversos lugares, porque a comunidade foi obrigada a mudar de local em diversos momentos.2) O senhor poderia ainda contar como era seu relacionamento com o clero na diocese, como se realizou a Crisma e o motivo do atrito com os Superiores da FSSPX?
Antes do caso das Confirmações, fazia quinze anos que eu estava na Córsega. Evidentemente tive alguns contatos com o clero da diocese. Em particular, um ano e meio antes do caso das Confirmações, com o pároco de Ponte-Leccia que colocou a minha disposição, a meu pedido, uma capela para reunir a pequena comunidade do norte da Ilha. Nessa ocasião tivemos grandes dificuldades com o bispo do lugar, Dom Brunin, que foi mudado em 2011, e substituído por Dom Bonfils com o título de Administrador Apostólico. Dom Bonfils foi nomeado por Roma para cuidar da diocese, durante o período de sede episcopal vacante. Ele chegou em outubro e ficou até a nomeação do bispo seguinte, Dom De Germay. É preciso saber que um administrador apostólico, sobretudo do nível de Dom Bonfils, que foi titular em várias dioceses da França, tem praticamente os mesmos poderes de um bispo diocesano. As limitações do seu poder não concerniam em nada o que se passou no caso das Confirmações. Eu me encontrei com Dom Bonfils em dezembro, para obter um dispensa de disparidade de culto, porque na ocasião havia na comunidade uma jovem que queria se casar com um rapaz não batizado e esperava um filho desse rapaz. Dom Bonfils me recebeu, e eu tive uma discussão forte com ele, porque ele me reprovava de não ter uma missão na diocese, de não ter sido enviado por ninguém, ele me acusava de fazer parte de uma associação de Padres que parecia mais uma seita do que outra coisa, já que não tinha nenhuma autoridade vinda de Roma. E o que surpreendeu Dom Bonfils foi que eu admiti inteiramente esse status: eu não tinha nenhuma missão, não havia sido enviado por ninguém. Mas, mesmo assim, eu levantei a questão de saber o que ele estava pronto a fazer pelas duas comunidades para as quais eu rezava a Missa Tradicional todo domingo, e para as quais eu assegurava uma instrução religiosa para as crianças e etc. Ele se viu obrigado a admitir que ele não fazia nada por eles, contrariamente às disposições – novas, é verdade - do Motu Proprio de 2007. Aconteceu que no mês de janeiro, como eu tinha recebido a resposta de Dom Fellay para as Confirmações que deveriam ocorrer na Córsega - eu havia solicitado há meses ao meu Superior para que Dom Fellay viesse fazer Confirmações na Córsega - então a data havia chegado no mês de janeiro, exatamente um pouco antes de uma nova reunião que tive com Dom Bonfils. Portanto, no fim da reunião com Dom Bonfils, a respeito do matrimônio de que eu já falei, eu o informei de que Dom Fellay deveria vir no dia 1 de maio à Córsega, para celebrar a Crisma de 18 crianças. Prontamente, Dom Bonfils me respondeu: “Inútil ele vir, eu mesmo farei as Confirmações”. É claro que eu verifiquei se ele havia compreendido que as Confirmações se fariam no rito tradicional, assim como a missa que sucederia às Confirmações! Ele me garantiu que era isso que ele pretendia, como também a Missa, a qual ele já tinha celebrado pois havia sido ordenado no rito tradicional, e então faria as Confirmações no rito tradicional. Eu respondi que nessas condições não existia nenhum inconveniente mas que, evidentemente, eu informaria o Superior da Fraternidade São Pio X, o que eu fiz imediatamente. Bem, eu não estou com minha agenda em mãos, então vou contar a história de memória. Quando Dom Bonfils me disse que iria celebrar as Confirmações eu informei imediatamente meu Superior direto - o Superior de Marselha - que, eu suponho, teria informado o Superior de distrito e o Superior geral. Tive outros contatos com Dom Bonfils sobre esse assunto, evidentemente. Ele foi participar de um retiro e pediu para que eu desse uma resposta para ele no fim desse retiro. O retiro começou num domingo. Nesse domingo à noite eu falei com ele por telefone e ele então me disse: “Escute, fale com seus Superiores e dê-me uma resposta na sexta-feira próxima”. Foi isso que eu fiz, eu informei os meus Superiores, eu lhe perguntei o que ele pensava disso. Até a sexta-feira eu não tive nenhuma resposta. No sábado ao meio-dia, eu dei a resposta a Dom Bonfils, dizendo a ele que - quem cala consente - embora não houvesse uma resposta dos meus Superiores, não haveria dificuldade para se fazer as Confirmações. Dom Bonfils, então, olhou a sua agenda e disse que as Confirmações poderiam ocorrer em 11 de março. Queria deixar bem claro que eu agi dessa forma pois Dom. Lefebvre disse várias vezes - eu mesmo escutei ao menos uma vez de sua boca - que ele deixava bem claro, antes de fazer Confirmações, que ele procedia a essa cerimônia porque o Bispo diocesano se recusava a dar os sacramentos no rito no qual os fiéis queriam recebe-los. Esse rito nunca foi ab-rogado - o que foi confirmado pelo Moto Proprio de 2007 - e portanto os fiéis tinham direito de receber - por exemplo as Confirmações - no rito tradicional. Então, se minha memória é exata, eu dei a resposta a Dom Bonfils no sábado. Somente na quarta-feira seguinte, portanto cinco dias depois da data-limite que eu tinha dado ao Superior de Marselha, este me telefonou para saber em que estado se encontrava esse caso. Eu lhe informei que as Confirmações ocorreriam em 11 de março. Como ele estava com o Superior de distrito [Padre de Cacqueray], este me enviou um e-mail dando razões - bastante superficiais - para me pedir para dizer a Dom Bonfils, que agradecíamos sua proposta, mas que não poderíamos aceitá-la. Na sequência, eu tive algumas trocas de e-mails, bastante ácidas, com o Superior de distrito sobre essa situação, porque que eu não concordava em fechar a porta a Dom Bonfils, sendo que ele viria celebrar as Confirmações no rito tradicional. É preciso saber que a data de 11 de março não estava longe e que então eu já havia começado a preparação para o sacramento da Confirmação com as crianças. Nessa situação era evidentemente impossível adiar as Confirmações indefinidamente, salvo se Dom Fellay tivesse aceitado adiantar sua viagem para o dia 4 ou mesmo o dia 11 de março, coisa que em nenhum momento foi levada em consideração. Portanto, as dificuldades que tive com o Superior de distrito provêm disso, do fato de que eu resisti a esse pedido que me foi feito de fechar as portas a Dom Bonfils. Eu havia colocado bem em relevo que o bispo é soberano em sua diocese e a partir do momento que ele aceita fazer as coisas tais como pedimos, não existe nenhuma razão para lhe impedir o acesso a nossas capelas, salvo se nos reconhecermos como estando fora da Igreja. Depois de tudo isso, o Superior Geral enviou inicialmente o Superior de Marselha, quinze dias antes das Confirmações, para fazer pressão sobre os fiéis para retirar seus filhos da Crisma. É preciso dizer que o Superior de Marselha obteve como único resultado o de irritar os fieis. No domingo seguinte - nunca se viu tal número de Superiores virem à Córsega em tão pouco tempo - em 4 de março, o segundo assistente do Superior geral, Padre Nély, veio diretamente da Suíça, para ler um comunicado do Dom Fellay. Esse comunicado foi publicado em http://www.a-crucetta.fr/confirmations_14_285.htm . Nesse comunicado Dom Fellay diz claramente que os fiéis que apresentassem seus filhos para as Confirmações celebradas por Dom Bonfils não teriam mais direito ao ministério dos Padres da Fraternidade São Pio X. Isso equivale ao que o Direito Canônico chama de excomunhão. Alguns ficaram profundamente escandalizados e chocados com esse comunicado de Dom Fellay. Outros tiveram medo. Depois disso, uma divisão muito nítida se criou entre os fiéis, divisão essa que já estava latente, é verdade, entre aqueles que sustentavam as pretensões de Dom Fellay de um lado e, do outro lado, aqueles que reconheciam as prerrogativas do Administrador Apostólico, Dom Bonfils. O Padre Nély, para obter a adesão dos fiéis, foi até mesmo desonesto na apresentação dos fatos, pois ele se serviu de uma citação fora do contexto de um sermão de Dom Bonfils – sem dizer que era dele - atribuindo a essa citação o caráter de heresia. Em seguida, o próprio Padre Nély, quando foi ler o texto de Dom Fellay, revelou que a citação era de Dom Bonfils – o que fazia, é claro, pensar que Dom Bonfils era um herege. O Padre Nély reconheceu, de todo modo, diante dos fiéis, que ele não concordava com certas frases do comunicado de Dom Fellay. Gostaria de deixar claro que o Padre Nély não havia me avisado de que ele daria esse golpe, que viria para pressionar os fiéis, ele me havia dito apenas que viria para sentir a temperatura dos fiéis. Essa intervenção deixou certo número de fiéis numa grande desolação. Eu me vi obrigado, como responsável por todas essas ovelhas, a enviar uma carta para lhes dar total segurança com relação às Confirmações que seriam celebradas por Dom Bonfils. Essa carta não foi muito bem compreendida... As pressões exercidas pelo Assistente do Superior de distrito e mesmo as pressões por telefone, exercidas por Padres da Fraternidade, que tentavam persuadir os fiéis a retirar seus filhos dessa Crisma, não surtiram efeito pois todas as crianças que, num primeiro momento, tinham se inscrito, se apresentaram para as Confirmações celebradas por Dom Bonfils. Apenas duas pessoas, um adulto e um adolescente, que haviam se inscrito depois, não foram crismadas por Dom Bonfils e se apresentaram somente à Crisma celebrada por Dom Fellay, já que os Superiores fizeram questão que Dom Fellay viesse, de todo modo, em 1º de maio. Aconteceu que a associação de leigos que era responsável pela capela onde a Fraternidade celebrava as suas missas, essa associação escandalizou-se, em seu conjunto, com o comunicado de Dom Fellay e abriu as portas a Dom Bonfils. Ela pediu também que Dom Fellay retirasse seu comunicado, senão eles não aceitariam que Dom Fellay celebrasse Confirmações em sua capela e, como Dom Fellay não quis retirar seu comunicado, a porta foi fechada para ele, que celebrou as Confirmações em uma sala de jantar, em Ajaccio. Quanto às Confirmações, elas se passaram sem dificuldades. Dom Bonfils não fez nenhuma provocação no seu sermão, ele fez um sermão totalmente clássico, de Crisma, que qualquer bispo poderia fazer. Depois ele celebrou a missa tradicional sem grandes problemas. Eu estava sempre a seu lado para ajuda-lo - como ele mesmo me havia pedido - para lhe indicar um esquecimento ou uma falha no rito. Logo, ele crismou as dezoito crianças como estava programado desde o começo desse caso. No dia seguinte às Confirmações, eu fui demitido das minhas funções e nomeado, com efeito, para o Brasil. Hoje eu posso dizer que, se eu não fui ao Brasil, é porque houve uma campanha para denegrir a minha pessoa, que foi organizada pelo próprio Superior do distrito da França (Padre De Cacqueray) e por isso eu protestei. Em consequência de meu protesto, o Superior geral modificou minha transferência: eu não seria mais enviado ao Brasil, mas eu esperaria uma resposta em Marselha. Apenas que eu ainda tinha aquele matrimônio, com a dispensa de disparidade de culto, que deveria ser celebrado. Eu pedi que outro Padre celebrasse no meu lugar, mas isso implicaria em certo número de problemas do ponto de vista administrativo, pois era eu quem tinha a delegação do bispo, diretamente. Os Superiores insistiram para que eu fosse completar a preparação dos dois jovens, já que eu os conhecia, para o matrimônio e que então celebrasse também a cerimônia. Essa é razão pela qual eu voltei à Córsega aí pelo dia 5 de maio, para o casamento que teve lugar, creio, em 5 de junho. Antes de partir para Marselha, eu tinha pedido aos Padres que iriam me substituir que não levassem em conta o que havia acontecido em relação aos fiéis, ou seja, que não fizessem distinção entre os fiéis com relação à posição tomada por ocasião do caso das Confirmações. No retorno à Córsega em 5 de maio e no começo de junho, eu pude constatar que isso acontecia: os fiéis que haviam aceitado as Confirmações - porque estavam convencidos de que o bispo tinha todo direito de fazê-las - eram objeto de discriminação. No fim de julho, eu informei aos meus Superiores que eu retomaria meu ministério na Córsega, já que as condições que eu havia pedido para me afastar não tinham sido respeitadas. Portanto, no fim de julho eu retomei meu ministério e no mês de agosto eu encontrei dificuldades, particularmente ligadas a incompreensões e a atitudes mal intencionadas. Aconteceu que, no começo de setembro de 2012, após eu ter assumido o cuidado das capelas de Ajaccio e de Ponte-Leccia, a Fraternidade, de sua parte, implantou duas missas, uma em Ajaccio em um local comercial, uma empresa, e outra no norte da Ilha, na casa de um particular, em uma sala de jantar. Essa situação durou até o momento em que, depois de um pseudo processo canônico - um processo canônico entre aspas - eu fui colocado para fora da Fraternidade. Eu diria apenas uma coisa sobre esse processo canônico: meus Superiores começaram me julgando invocando a legislação do antigo Código (de Direito Canônico), eu protestei dizendo que essa legislação não se encontrava mais em vigor, eles mudaram de legislação e continuaram seu julgamento, agora utilizando o novo Código. Eu nunca fui recebido pelo Superior geral - o que em princípio é uma regra a ser respeitada em casos como esses - e eu não soube nem mesmo quem foram os Padres que me julgaram. O que eu constato simplesmente é que eu fui colocado para fora com a assinatura de Dom Fellay, o que faz com que Dom Fellay seja juiz e parte ao mesmo tempo. Quero notar isso porque mais tarde vou falar disso a respeito da suplência.3) E como está hoje seu apostolado na diocese?
Atualmente o meu apostolado na Córsega se desenvolve sob a tutela de Dom de Germay, sucessor de Dom Brunin, que chegou à Córsega no mês de maio de 2012. Ele disse imediatamente que ele desejava que eu fosse integrado à diocese. No momento eu não estou ainda incardinado, espero que isso não demore muito. Eu mesmo havia pedido um prazo de espera, até que eu fosse oficialmente colocado para fora da Fraternidade, para começar um processo de integração. No mês de novembro de 2012, esse processo foi iniciado com contatos regulares com Dom De Germay. No mês de setembro de 2012, Dom De Germay me pediu para deixar a capela de Sanguinaires onde eu celebrava a Missa e confiou a mim a igreja de Santo Erasmo no centro da cidade de Ajaccio. No momento estamos numa fase de instalação, sabendo que existem algumas coisas que devem ser organizadas com a confraria de Santo Erasmo, que se ocupa da manutenção dessa igreja de Santo Erasmo ... No norte eu continuo celebrando a missa em Ponte-Leccia, graças ao pároco que me havia recebido. Como a comunidade cresceu largamente, eu faço catecismo com eles durante a semana, tanto em Ajaccio como em Ponte-Leccia. Em Ajaccio, há mais ou menos 50 ou 60 pessoas, em Ponte-Leccia há umas quarenta pessoas, estamos organizando tudo com a diocese.Para citar este texto:
"Entrevista com o Padre Mercury, excluído da FSSPX: "O Bispo é soberano em sua diocese""
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/igreja/entrevista-com-o-padre-mercury-excluido-da-fsspx-o-bispo-e-soberano-em-sua-diocese/
Online, 21/11/2024 às 15:20:22h