A Religião do Concílio Vaticano II - Parte II
Orlando Fedeli
PARTE II - A MODERNIDADE
Leia também:
Parte I: O PECADO DE ADÃO
PARTE III: A MODERNIDADE E O VATICANO II
Capítulo 1: A Modernidade e sua gnose anti-metafísica
“O que Eu quero é .. o conhecimento de Deus mais que os holocaustos. Mas eles, como Adão,violaram a a aliança” (Os. VI, 6-7)
“O mundo moderno veio à luz como uma revolta contra a ordem intelectual da Idade Média”.(Simpson, The Gothic Cathedral).
A Idade Média foi filha da certeza.
A Modernidade nasceu da dúvida.
A Modernidade, que nos tiraniza hoje, é, antes de tudo, o triunfo da Gnose anti Metafísica. Por isso, a Modernidade pode ser definida como sendo anti escolástica. A Modernidade odeia o Ser. Ela foi contra o Teocentrismo da Cristandade medieval, substituindo-o pelo Antropocentrismo. O Homem posto, qual ídolo, no lugar de Deus.
A Modernidade considera o Homem como o centro de tudo, ou seja, o homem seria a causa eficiente pela qual tudo existe, e a causa final para a qual tudo deve tender. O Homem seria o Alfa e o Ômega. E não Cristo.
O Humanismo é a idolatria que triunfou com o Renascimento e se instalou até mesmo no Vaticano. Marsílio Ficino foi seu mistagogo. Leonardo, Michelangelo e Rafael foram os seus profetas. Lutero foi o seu teólogo. Descartes foi o seu Filósofo.
“O que Lutero fez para a religião, Descartes fez para a Filosofia. Ambos determinaram o curso da história intelectual moderna pelo rumo que deram através da forma de um individualizado imanentismo“ (Fr. John F. Kobler, Vatican II, Theophany and the Phenomenon of Man, Peter Lang Publishing, New York, San Francisco. Bern, Frankfurt am Main, Paris, London, 1991, p. 2).
Desse Humanismo pagão vai ser filha a Revolução Francesa (1789) que proclamará os Direitos do Homem e substituirá o Homem pelo Cidadão. A Revelação pela Razão. O Cartesianismo pelo Kantismo.
Da Revolução Francesa, por sua vez, nascerá a Revolução Comunista da Rússia, em 1917, que se apresentará como o triunfo final do Humanismo, e substituirá o Cidadão pelo Proletário, e a Razão pela Dialética da filosofia de Marx ,“ essa bíblia da imbecilidade e do ódio”(Paul Claudel) que O vaticano II recusou condenar.
Neste nosso trabalho, nos ateremos mais ao veio filosófico dessas revoluções, demonstrando como a Modernidade—graças a Deus, agora condenada por Bento XVI na encíclica Spe salvi -- foi a repetição do pecado anti metafísico de Adão, e como a Modernidade, contrária ao Ser e à Verdade, foi adotada pelo Vaticano II, que explicitamente quis adaptar a Doutrina Católica ao pensamento moderno, isto é, à Anti Metafísica.
À Gnose.
*****
Claro que, nestas plagas tupiniquins, até mesmo sacerdotes ditos tradicionalistas consideram exagero ver a Gnose como a grande inimiga da Igreja, na História. Como ignoram eles quase tudo sobre a Gnose, e como confiam em sua miopia, negam que a Gnose tenha um papel fundamental na História.
Para que fique claro que é a Gnose que está por trás da Modernidade, citaremos longos trechos de uma pensadora insuspeita Hannah Arendt.
Veja-se o que escreveu essa autora em seu livro The Human Condition, editado em francês com o título Condition de l´Homme Moderne pela Editora Calmans-Lévy, Paris 19861 e 1983.
Inicialmente, ela mostra que o Homem moderno nasceu da dúvida.
O homem medieval, é filho da certeza católica. A modernidade é filha da dúvida cartesiana:
“A Filosofia moderna começa na dúvida, no omnibus dubitando est de Descartes, mas essa dúvida não é o controle que a inteligência exerce sobre si mesma para se guardar de enganos de pensamento e ilusões dos sentidos físicos; ela não é o ceticismo com relação aos costumes e aos preconceitos dos homens ou de uma época. Não é nem mesmo um método crítico de pesquisa científica e de especulação filosófica. A dúvida cartesiana é de um alcance vasto demais, seu objeto é por demais fundamental, para que se possa restringir seu conteúdo de modo tão concreto. Na Filosofia, no pensamento modernos, a duvida ocupa quase a posição central que tinha sido sempre ocupada antes pelo thaumeizein dos gregos, o assombro maravilhado diante de tudo o que existe, tal qual existe. Descartes foi o primeiro a por em conceito este modo moderno de duvidar, que, depois dele, se tornou naturalmente, sem barulho, o motor das idéias, o eixo invisível de todo o pensamento.. Desde Platão e Aristóteles até os tempos modernos, a Filosofia, em seus maiores e mais autênticos representantes tinha sido a expressão sistemática do assombro maravilhado; a Filosofia moderna desde Descartes consiste em sistematizar a dúvida e a segui-la em todas as suas ramificações” (Hannah Arendt, La Condition de l´Homme Moderne, Ed Calmann-Lévy, Paris, 1983, pp.,. 344-345).
A dúvida cartesiana foi reforçada pela descoberta de Galileu, que, com seu telescópio, pareceu provar que os sentidos enganam o homem; que a Lua não era plana, e que o Sol não girava em torno da Terra, mas, ao contrário, a Terra em torno do Sol. Portanto, que os sentidos enganavam o homem.
“Noutros termos, o homem havia sido enganado todo o tempo em que acreditou que o real e o verdadeiro se revelariam a seus sentidos e à sua razão contanto que ele fosse fiel ao que ele via com os olhos do corpo e do espírito. A velha oposição da verdade dos sentidos e da verdade racional, da inferioridade dos sentidos, menos capazes de atingir o verdadeiro, e da superioridade da razão, mais capaz de verdade, essa oposição se apagava diante do desafio, diante dessa evidência implícita, de que nem o verdadeiro e nem o real não nos são dados, que eles não aparecem nenhum dos dois tais quais são, e que a única operação sobre a aparência, a supressão das aparências, pode fazer esperar um conhecimento verdadeiro” (Hannah Arendt, La Condition de l´Homme Moderne, Ed Calmann-Lévy, Paris, 1983, pp.,. 345-346).
“e se o olho humano pode trair o homem a ponto de que tantas gerações acreditarem que o Sol girava em torno da Terra, é preciso então renunciar à metamorfose dos olhos do espírito (...) Se o Ser e a Aparência se separam para sempre, e tal é bem – como o notou Marx—o postulado fundamental da ciência moderna, então não resta nada para aceitar com confiança; é preciso duvidar de tudo” (Hannah Arendt, La Condition de l´Homme Moderne, Ed Calmann-Lévy, Paris, 1983, p., 346).
Que se nos perdoe tão longas citações de uma mesma obra. Mas é que Hannah Arendt fez uma exposição tão correta e tão objetiva da dúvida cartesiana e de suas conseqüências para a Filosofia e para toda a Cultura moderna, que convém muito citar --ipsis litteris --seu texto.
“O que caracteriza, antes de tudo, a dúvida cartesiana é sua universalidade: nada, nem pensamento, nem experiência podem lhe escapar. Ninguém explorou talvez mais honestamente as verdadeiras dimensões dessa dúvida cartesiana do que Kierkegaard, quando a dúvida, e não a razão, como ele pensava, lhe fez dar o salto na fé, e levar assim a dúvida ao próprio coração da religião moderna. A universalidade [da dúvida cartesiana] se extende do testemunho dos sentidos ao testemunho da razão e ao testemunho da fé, porque essa dúvida está ligada, no fundo, à perda da evidência, e o pensamento sempre começa com o que é evidente, de si, e em si - evidente não só para o pensador, mas para todo o mundo. A dúvida cartesiana não duvidava simplesmente que o entendimento humano fosse aberto a todas as verdades, ou que a visão humana fosse capaz de tudo ver. Ela duvidava que a inteligibilidade pudesse se constituir como prova do verdadeiro, a visibilidade não sendo, de modo algum, prova do real. Essa dúvida cartesiana coloca em dúvida a existência do verdadeiro, e descobre assim que o conceito tradicional do verdadeiro, quer seja ele fundado sobre a percepção, quer esteja fundado sobre a razão, ou sobre a crença em uma revelação divina, tinha se apoiado sobre o duplo postulado de que aquilo que existe verdadeiramente deve aparecer por si mesmo, e que as faculdades humanas são aptas a recebê-lo. Que o verdadeiro tivesse que se revelar foi a crença da Antiguidade pagã, assim como dos Hebreus, da Filosofia cristã assim como da filosofia laica. Foi por isso que a nova Filosofia moderna se levantou com tanta violência – quase que com ódio —contra a tradição e fez tão pouco caso do retorno entusiasta do Renascimento à Antiguidade” (Hannah Arendt, La Condition de l´Homme Moderne, Ed. Calmann-Lévy, Paris, 1983, pp., 347-348).
A negação de que o homem pudesse conhecer o real, a verdade do ser, levava a por em dúvida diretamente a própria realidade. Como Adão e Eva, Descartes admitiu que o ser mente. Mais do que no ceticismo comum, que faz uma distinção entre o ser e as aparências, distinção na qual se pensa que as aparências escondem a verdade do ser, em Descartes a dúvida é mais profunda: para ele o ser mente propositalmente ao homem, gerando aparências que visam enganá-lo.
“Este Ser ao contrário é terrivelmente ativo: ele mesmo cria suas aparências, só que essas aparências são enganos. Tudo o que os sentidos percebem é o produto de forças secretas, invisíveis (...) este Ser prodigiosamente efetivo é de tal natureza que suas revelações devem ser enganos, e que as conclusões tiradas das aparências devem ser ilusões.
A Filosofia de Descartes é obcecada por dois pesadelos que, em certo sentido, se tornaram os pesadelos de toda a época Moderna (...) esse pesadelos são muito simples, muito conhecidos. Num deles, a realidade, quer a do mundo quer a da vida humana, é posta em dúvida; se não podemos confiar nem nos sentidos, nem no senso comum, nem na razão, é muito possível que tudo o que tomamos como real seja apenas um sonho. O outro pesadelo se refere à condição humana em geral, tal como a revelam as novas descobertas e a impossibilidade na qual o homem se acha de confiar em seus sentidos e em sua razão; nessas circunstâncias, a hipótese de que haja um espírito maligno, de um “Deus enganador”, de propósito traindo o homem, por maldade, é muito mais verossímil do que a de um Deus senhor do universo. A magia diabólica desse espírito maligno seria a de ter feito uma criatura dotada de uma noção do verdadeiro, e de, ao mesmo tempo, ter lhe dado capacidades tais que a tornariam incapaz de jamais ter a menor certeza” (Hannah Arendt, La Condition de l´Homme Moderne, Ed. Calmann-Lévy, Paris, 1983, p., 348-349).
Essa concepção de que o Deus criador é um espírito enganador e diabólico é exatamente como a Gnose apresenta o demiurgo, o Deus criador do mundo, aquele que a Igreja Católica denomina Deus Pai, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis. O criador seria o Deus mau. O inimigo do Deus Criador, a antiga serpente, seria o deus bom. A modernidade é diabólica. Hannah Arendt mostra, então, muito claramente como a dúvida cartesiana é de natureza gnóstica, e como a Modernidade é fruto da Gnose.
A Modernidade é, pois, uma forma de Gnose e, por isso mesmo, ela é inimiga inconciliável da doutrina Católica, tendo razão imensa Pio IX de condenar toda a tentativa de conciliar a doutrina católica com o pensamento moderno, coisa que João XXIII propôs que fosse feita pelo Concílio Vaticano II, com os resultados desastroso e patentes, hoje, nas ruínas da Igreja.
Descartes e sua Negação do Ser
Admite-se, hoje, de modo praticamente unânime, que a Modernidade teve por pai a René Descartes (596- 1650).
René Descartes nasceu em La Haye, na região de Tours. Estudou com os jesuítas de La Flèche. Foi soldado em tropas alemãs, e afinal fixou-se na Holanda, onde viveu 23 anos. Lá ele escreveu suas obras mais importantes: Discours de la Méthode ( 1637), Meditationes de Prima Philosophia (1641),Princiapia Philosophiae ( 1644), Des Passions de l’Âme ( 1649). Obras póstumas dele foram o Traité Du Monde, De l’Homme, e as Regulae ad Directionem Ingenii.
Descartes foi à Suécia, em 1632, a convite da Rainha Christina, e lá permanecu até morrer, em 1650..
Descartes afirma em seu Discours sur La Méthode que “na Filosofia, não há coisa alguma sobre a qual não se dispute e que, por conseguinte, não seja duvidosa” (R. Descartes Discurso sobre o Método, Ediouro,Tecnoprint, ,p.48). Das demais ciências, na medida em quer elas se baseavam na Filosofia, julgava-as então que, “tendo fundamentos tão pouco firmes, nada de sólido poderia ser construído sobre elas” (R. Descartes idem , p. 49). Descartes se dedicara também às ciências ocultas, e delas dizia “não ser enganado nem pelas promessas de um alquimista, nem pelas previsões de um astrólogo, nem pelas imposturas de um mágico, nem pelos artifícios ou pela jactância de algum daqueles que fazem profissão de saber mais do que sabem” (R. Descartes, op.cit., p. 49).
Daí, Descartes rejeitar tudo o que se pensara até então. Mais ainda: ele recusou até os testemunhos dos senrtidos, porque, por vezes, eles nos enganam. Duvidou até de que estivesse sentado, pois que, como por vezes se sonha isso, não se poderia ter certeza de estar desperto ou sonhando. Ele disse duvidar de que 2+3=5, ou que um quadrado tivesse quatro lados, porque, como Deus permite que a pessoa se engane, talvez se esteja sempre enganado.
Por isso, ele chega à conclusão que todo conhecimento intelectual é suspeito e duvidoso. E levanta a hipótgese de que estejamos nas mãos de um mau gênio, um Deus mentiroso, que nos engana continuamente, e que se compraz em nos enganar sempre E isto imporia que tivéssemos uma dúvida universal.
Descartes tinha então a certeza de que se deveria partir da dúvida universal. Era falso, pois que ele partia da dúvida. Portanto não partia da dúvida. Pois, se partisse da dúvida, não iria adiante em nada, já que tendo dúvida de sua dúvida universal, nada poderia pensar, dizer ou fazer.
Descartes partia não da dúvida, mas da certeza da dúvida, isto é, estava numa contradição fundamental. Fez então uma filosofia contraditória, duvidante de si mesma. Portanto, uma filosofia falsa e movediça. Contraditória.
Assim prinicipou a loucura da Modernidade, negadora da Verdade e da possibilidade do conhecimento humano.
Negadora de toda Metafísica, pois punha em dúvida a evidência do ser.
E a negação do ser é acarcte’ritica da Gnose,revolta anti metafísica.
***
Para analisar a influência de Descartes na Filosofia Moderna, e naquilo que se chama de Modernidade, apelaremos particularmente às considerações feitas por Tomás Melendo em sua obra Entre Moderno Y Postmoderno: Introducção a la Metafísica del Ser, Edição para Micro Book Studio (http://www.microbookstudio.com/)
Preferimos citar especialmente esse autor, não só porque ele tem ponderações agudas, mas também por ser bem insuspeito, pois confessa:
“(...) o que proponho não é uma espécie de «retorno» — tão ineficaz quanto impossível— a um pensamento anterior. Bem longe disso, ao modo da Aufhebung hegeliana, a superação da metafísica moderna impõe conservar a exigência mais profunda da filosofia recente: a fundamentação definitiva da liberdade humana; porém, além disso, e sobretudo, exige estabelecer o princípio especulativo que permita responder com rigor a esse estímulo, transcendendo o nihilismo terminal a que os pressupostos imanentistas cartesianos a conduziram. O que proponho é uma determinante redefinição do fundamento, capaz de salvar as pretensões de mais alcance da civilização dos últimos séculos”. (T. Melendo, op. cit., p. 50).
Inicialmente, então, convém lembrar que, segundo Melendo, a supressão do ser, em prol de uma consciência desprovida de substância, realizada pelo “cogito” cartesiano tinha que desembocar no nihilismo.
“Sem dúvida alguma, seria possível rastrear a evolução paulatina que nos transporta, desde a posição do cogito, como fundamento primordial de todo existente, até as afirmações antimetafísicas, e por isso contra morais e nihilistas, dos atuais ultra modernos” (Tomás Melendo, Entre Moderno y Postmoderno, p. 42).
Heidegger afirmou: “Toda a Metafísica moderna, inclusive Nietzsche, se mantém na interpretação do existente e da verdade que vem de Descartes” (M. Heidegger, Die Zeit des Weltbilds – A Época da Imagem do Mundo, apud Tomás Melendo, Entre Moderno y Postmoderno, p. 4).
Sem dúvida, todo subjetivismo da Filosofia moderna provem do “cogito” cartesiano.
Também Hegel considera que foi Descartes quem deu início à Filosofia Moderna:
“Em filosofia, Descartes marcou uma direção completamente inédita, até o ponto de que com ele começa a nova idade da Filosofia”, cujo espírito constitutivo é “o saber, o pensamento, enquanto unidade do pensar e do ser” (Apud Tomás Melendo p. 5).
E Lukács afirma: “Partindo da duvida metódica, do cogito ergo sum de Descartes, passando por Hobbes, Spinoza, Leibnitz, há aqui um caminho de desenvolvimento retilíneo cujo motivo determinante, presente nas múltiplas variações, é a idéia de que o objeto do conhecimento pode ser conhecido por nós, porque é, na medida em que nós mesmos o produzimos” (G. Lucácx, História Y Consciência de Classe, México, 1969, p. 155). Apud T. M. , p. 5)
Nosso pensar produziria o mundo conhecido...
Toda a crise atual provém do pecado de ter abandonado a Metafísica Católica fundada no ser, enquanto a modernidade nega o ser. A Modernidade é a perversão da noção de ser. Ela nega o ato objetivamente existente. Portanto, nega o ser. Nega que haja o ato puro. Nega a Deus.
Para a Modernidade, o ser não é. Deus não existe, e nada realmente existiria. Daí, o nihilismo fundamental da Modernidade, daí a sua recusa da Verdade e da Moral. Todo o pecado da Modernidade consiste na negação do ser, portanto na negação da verdade e da capacidade de o homem conhecer a realidade. A Modernidade é anti intelectual e anti epistemológica. E, não sendo possível conhecer a verdade do ser, a Modernidade recusa todo bem e toda a Moral.
Em vez da verdade, ela admite apenas a opinião, e em vez da Moral de origem divina, admite apenas uma Ética convencional e humana. Uma ética consensual que transforma toda a vida num puro jogo sem leis naturais e sem finalidade transcendente.
Descartes foi o pensador que, recusando o ser, colocou o cogito no lugar do ser, e destruiu assim toda a Metafísica aristotélico-tomista medieval.
É bem conhecida a fórmula fundamental de sua Anti Filosofia:
“Penso.
Logo, existo”.
Muito cedo, notaram alguns que essa fórmula era um silogismo manco. Acusaram mesmo a Descartes de ter mal plagiado Santo Agostinho, que afirmou:
“Todo ser que pensa, existe.
Eu penso.
Logo, eu existo”.
Desse silogismo Descartes teria excluído a premissa maior.
Entretanto, Descartes protestou contra essa acusação, e negou ter feito um falso silogismo. Afirmou ele que colocou o pensar – a intuição do “cogito” -- como fundamento de tudo.
Tomás Melendo lança a hipótese de que “Descartes não podia admitir tal qual a afirmação agostiniana, pois esta constituiria um raciocínio implícito de que, na premissa sobre entendida, se consagra a primazia do ser como pressuposto de qualquer operação, incluídos o conhecer e o equivocar-se. A proposição cartesiana, pelo contrário, repudia essa prioridade: de nenhum modo deve se considerar uma espécie de raciocínio implícito, uma espécie de entimema, e por isso se coloca nos antípodas de santo Agostinho” (Tomás Melendo, Modernidade o Póstmodernidade, La Anédocta Postmoderna, p. 6).
Melendo sustenta que “Descartes defende o caráter intuitivo de seu “cogito, ergo sum”. Descartes acaba por sustentar que o pensamento não exige previamente, com prioridade de natureza, a existência, ou o ser. Pelo contrário, seria o próprio pensar, ou a consciência em qualquer de suas manifestações, quem confere sua realidade ao pensado. Somente desse modo o pensamento (e, em geral, a subjetividade) se eleva como princípio primeiro não fundamentado, como princípio sem princípio, de qualquer realidade posterior: do eu, de Deus, do mundo material, os três enquanto pensados-existentes. E somente assim entendido se compreende o influxo revolucionário do descobrimento cartesiano na maior parte dos filósofos posteriores”. Estamos diante do atestado de nascimento de toda a Modernidade e de seu epílogo pós moderno, concebidos, como anunciava, não em sentido meramente temporal, mas axiológico. Graças a Descartes, a consciência ocupa o lugar que correspondia ao ser” (Tomás Melendo, Modernidade o Póst Modernidade, La Anédocta Postmoderna, p. 7).
Melendo confirma essa interpretação que ele dá do “cogito, ergo sum” de Descarte ao escrever:
‘O que sustento é que Descartes realiza algo mais sutil. Como disse antes, o chamado pai do racionalismo obriga a consciência, em suas múltiplas manifestações, a ocupar o lugar que corresponde ao ser. Ou seja, faz do cogito a primeira consistência de tudo o que é. Não se trata, portanto, de que esse cogito gere o sum, mas que mais propriamente o substitua; e por isso, como voltarei depois a advertir, toda a realidade do eu ficará reduzida a pensamento; e daí, do pensamento como pensamento (ou das idéias nele incluídas), extrairá Descartes Deus e o mundo enquanto existentes-pensados ou pensado-existentes.
Independentemente das intenções pessoais de Descartes, sobre as quais é vão e impossível pronunciar-se, o que o princípio por ele estabelecido produziu foi uma corrente filosófica e cultural na qual o eu, em suas mais variadas formas, vai se impondo de maneira clara ainda que progressiva, até se converter no centro e no todo da inteira atividade especulativa e prática.
Este é o sentido de minha tese: o da inversão das relações entre ser e consciência, ou a substituição daquele por esta última” (Tomás Melendo , op. cit., p.8).
Tomás Melendo insiste nesse ponto ao dizer que “Descartes não coloca em primeiro plano absoluto a consciência de um sujeito que se conhece como sendo cognoscente, mas o puro conhecer sem sujeito e sem ser. E desse conhecer surge, mais tarde, o ser de um sujeito, de uma substância cujo único conteúdo se limita a pensar. E, daí, desse pensamento subsistente surgem [ademais do eu] Deus, e o mundo material, como é sabido” (T. Melendo. Op. cit., p. 13).
Por isso escreveu Descartes:
“Eu compreendi daí que eu era uma substância cuja essência ou natureza era apenas o pensar, e que para ser não precisa de nenhum lugar e nem depende de nenhuma coisa material”
[“Je connus de là que j´étais une substance dont toute l´essence ou la nature n´est que de penser, et qui, pour être, n´a pas besoin d´aucun lieu, ni ne dépend d´aucune chose matérielle”].
Por isso mesmo, Heidegger reconheceu que “no início da Filosofia moderna se acha a proposição de Descartes ”Cogito, ergo sum”. Todo o conhecimento das coisas e do ente em sua totalidade é referido à consciência de si do sujeito humano, enquanto fundamento inconcusso de toda certeza” (Apud T.M. op. cit.p. 14).
E Millán-Puelles confirma essa assertiva dizendo:
”Nem sequer se poderia falar de inversão da ordem da natureza entre os três elementos --[Deus, o Mundo e o Eu] – porquanto o terceiro, [o eu] desvinculado de sua condição prévia de ente, já não é o mesmo que se nos mostra na fenomenologia do conhecer. Não é a consciência de um sujeito que é—e que se sabe – cognoscente, mas a de um puro conhecer, sem sujeito e sem ser” (Apud T.M. op. cit.p. 14).
E conclui Melendo:
“Quando Descartes concede a primazia absoluta à consciência dessubstancializada, o que ele está repudiando, como antes sugeria, é a própria condição do real de tudo quanto existe (enquanto não se ache mediado pelo pensamento). ”(Apud T.Melendo, op. cit.p.14).
Na Filosofia moderna nascida de Descartes, “o ente se verá substituído pela consciência, pela subjetividade. A História do pensamento no Ocidente, desde Locke, ou Hume, passando por Kant ou Hegel até Marx, ou no próprio Heidegger, apesar de seus protestos, o demonstra sobejamente, e de modo variado e abundante” (T.Melendo, op. , cit., p. 115)..
E ainda diz Melendo:
“Por isso, -- caberia concluir—como sendo em sentido estrito, nada poderá ser conhecido por quem se situa seriamente no sulco aberto por Descartes. E por isso, por quanto a metafísica é saber do que é, e enquanto é, a “escolástica” que lança suas raízes em Descartes acabará por declarar formalmente a morte ou a superação da Metafísica” (Apud T.M. op. cit.p.15).
O cartesianismo decretou a morte do ser.
“ o pré suposto do “cogito” cartesiano é negativo: consiste ele na supressão inicial de qualquer existente mediante a dúvida metódica corrosiva, capaz de deixar o universo inteiro, e a própria humanidade, à disposição do poder racional”(Apud T.M. op. cit.p.15).
Descartes abriu o caminho para o nihilismo da Modernidade.
“Voltando ao fundo da operação cartesiana, cabe sustentar, em estrita síntese, que a supressão do ser a favor de uma consciência da qual se retirou toda substância, forçosamente tem que desembocar no nihilismo” (T. Melendo, op. cit. p. 42).
Nem Deus, nem o Mundo, nem o eu têm existência. Nada existe. E essa negação absoluta do ser, e a afirmação de que tudo é nada, colocam toda a Filosofia moderna no campo da Gnose.
Desse modo, a Filosofia cartesiana, como a Gnose, é anti metafísica.
E esse nihilismo gnóstico conduz a duas coisas:
- a odiar a realidade deste mundo tal qual foi criado por Deus;
- a inventar uma supra realidade fantasmagoria anti metafísica—como se fez no Surrealismo.
É o que salienta Melendo neste trecho de seu trabalho:
"O nihilismo, enquanto estado psicológico, tem todavia uma terceira e última forma. Uma vez adquiridas essas duas compreensões —a saber, que o vir a ser não desemboca no nada, que não se deve esperar que leve a nenhum lugar, e que junto a esse devir não existe nenhuma magna unidade na qual o individuo possa submergir como em um elemento de supremo valor—, não resta outra escapatória senão condenar o mundo do vir a ser em seu conjunto como ilusório, e inventar outro mundo, além deste, que seria o mundo verdadeiro. Porém, enquanto o homem se dá conta que esse outro mundo está construído apenas por necessidades psicológicas e que nada absolutamente autoriza semelhante construção, se produz a última forma de nihilismo, que inclui o ceticismo a respeito de um mundo metafísico e, por isso mesmo, proíbe a crença em um mundo verdadeiro. Como conseqüência, se concede à realidade do devir a categoria de única realidade e se proíbe qualquer caminho que nos desvie em direção a mundos “mais além» e a falsas divindades. Porém, não se suporta em absoluto este mundo aqui, que, entretanto, não se quereria negar de nenhum modo…"[65]. (São bem resumidos em seu fundo, e inclusive antecipados, os últimos meandros nos quais está desembocando, hoje, o cogito).(T.Melendo, op., cit´, p. 31).
Como não ver nessas considerações uma descrição típica dos desvarios da Gnose?
Ora, essa Filosofia nihilista anti metafísica é a da Gnose e é a da Modernidade, totalmente inconciliável com a doutrina católica.
Razão de sobra tinha, pois, Pio IX ao condenar como erro – o 800 do Syllabus – a afirmação de que os Sumos Pontífices da Igreja poderiam se conciliar com a Modernidade. Assim como errou muito o Papa João XXIII,quando, no discurso de abertura do Concílio Vaticano II quis que a doutrina católica fosse expressa de acordo com o pensamento moderno. Isso é impossível, pois a doutrina Católica se fundamenta no ser, no Verbo, e o pensamento moderno é nihilista. Nega o ser.
Entre o nihilismo da Gnose e a doutrina católica não é possível nenhuma conciliação. Catolicismo e Modernidade são inconciliáveis.
E o Vaticano II tentou o impossível ao procurra expressar a doutrina católica de acordo com o pensamento moderno.
Por isso, errou.
Conseqüências do Nihilismo Cartesiano
1ª Negação da Verdade e da Capacidade Intelectiva do Homem. O Verum seria inatingível.
A negação do ser, expressa por Descartes, tem como conseqüência direta a negação dos transcendentais. E, em primeiro lugar, a negação do verum, a negação da verdade do ser.
Não havendo ser, não existe nada de verdadeiro. Conseqüentemente, a inteligência nos enganaria ao nos dar a noção da realidade e da verdade das coisas. Nem as coisas são, e nem as idéias que temos delas seriam verdadeiras e reais. É a destruição do inteligível, e a negação do intelecto, outra característica da modernidade. Toda a Modernidade nega a objetividade do ser e da verdade.
A recusa de considerar a verdade como objetiva, significa uma repulsa a toda Metafísica.
Curioso é que a Modernidade critica e se opõe à Idade Média considerando-a a idade das trevas. E coloca-se como a Idade da luz, idade do saber e da ciência. Na realidade, a Modernidade recusou a luz da verdade. A Modernidade mergulhou nas trevas, e fez das trevas, da ignorância, a sua meta. A Modernidade é a Idade da Noite e da Mentira.
“A verdade nunca pode ser alcançada. "É preciso abandonar a busca da certeza, desistir de uma base segura para o conhecimento"[145- K. R. Popper, Conocimiento Objetivo: un Enfoque Evolucionista, Madrid 1974, p. 45]. Nenhum saber pode ser qualificado de verdadeiro, mas apenas de conjetural”. (T. Melendo, op. cit., p. 67).
Descartes fez o ser depender do pensar. Desse modo, o homem seria como Deus, pois foi Deus quem criou todas as coisas através de seu Verbo, de sua palavra interior. Quando Deus pensou luz, ela foi criada. Cada criatura é a realização de uma idéia de Deus. Descartes atribui ao pensar humano o mesmo poder do Verbo de Deus. No Verbo divino, Deus teve idéia de uma criatura, e essa criatura fez-se. O cogito humano cartesiano, como o cogito divino, criaria. Descartes diviniza o homem, ao tornar o cogito humano criador da realidade.
Racionalismo e irracionalismo coincidem no pensamento cartesiano.
De um lado, Descartes defende o racionalismo, isto é, ele crê na capacidade da razão humana de tudo poder compreender, pela aplicação de seu método racionalista. Ora, quem tudo compreende é Deus. A fé de Descartes na razão humana a faz divina. Tal posicionamento racionalista de Descartes conduz diretamente à divinização do homem, portanto ao panteísmo. O empirismo e Spinoza foram até lá.
Husserl vai criticar o racionalismo cartesiano, que leva a uma visão panteísta do universo, que, de um lado, vai conduzir ao empirismo inglês, e de outro lado, ao iluminismo subjetivista moderno, lembrando que a pretensão de tudo entender racionalisticamente era uma queda na ingenuidade do objetivismo, que excluía a compreensão do espírito, ou que o incluía, mas sob a condição de objetivá-lo, e, portanto, de renunciar ao espírito exatamente como sujeito.
Husserl, para fazer essa crítica, cita inicialmente a comparação da razão com o sol feita por Descartes, para, a seguir criticar a ingenuidade do objetivismo do método, cartesiano:
“Como o sol é o único sol que ilumina e aquece todas as coisas, assim também a razão é a única razão”( Descartes). O método [cartesiano] também deverá penetrar os segredos do espírito. O espírito é uma realidade natural, um objeto do mundo e como tal fundado na corporeidade. Por conseguinte, a compreensão do mundo adota imediatamente, e em todos os domínios a forma de um dualismo psico-físico. A mesma cuasalidade, apesar de estar dividida em duas, abrange o único mundo; a explicação racional tem o mesmo sentido em toda a parte, entendendo-se que toda explicação do espírito, se deve ser única e ter um alcance filosófico universal, há de conduzir-se para o plano físico. Não pode haver uma investigação explicativa pura e fechada em si do espírito, uma psicologia ou teoria do espírito voltada totalmente para o interior, que vá diretamente desde o eu, desde o psíquico imediatamente vivido, à psique do outro, é preciso tomar o caminho exterior, o caminho da física e da química.(…) O ser espiritual é fragmentário. Indagando, agora, pela fonte de todas as tribulações pode-se responder: este objetivismo ou esta concepção psico-física do mundo é, apesar de sua aparente evidência, uma unilateralidade ingênua que, como tal, permanecia incompreendida. É um absurdo conferir ao espírito uma realidade natural, como se fosse um anexo real dos corpos e pretender atribuir-lhe um ser espácio-temporal dentro da natureza”( Edmund Huserl, A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, Introduçõ e tradução de Urbano ZIlles, Filosofia 41 – Porto Alegre, 1996, p. 79).
De outro lado, Descartes defende o irracionalismo. O “cogito ergo sum” de Descartes, fazendo o real depender do pensar humano, e atribuindo ao homem um poder criativo, considera que a intuição humana tudo entende, mas não de modo silogístico, não racionalmente. O homem tudo compreenderia, como Deus, intuitivamente, e não ao modo humano, por meio de raciocínios. E isso é o modo de conhecimento irracional, que a Gnose atribui ao homem.
Desse modo, racionalismo e irracionalismo são dialeticamente coincidentes na filosofia cartesiana
Do subjetivismo cartesiano nascerá o subjetivismo do Idealismo, desde Kant até Hegel. Para os filósofos idealistas alemães, não haveria verdade objetiva, pois que o ser real e a verdade seriam produtos da idéia do sujeito. Toda a mentalidade contemporânea está embebida desse subjetivismo que faz cada um ter a sua verdade pessoal, a sua moral pessoal, a sua noção particular de beleza. Para o mundo posterior ao idealismo, para o democratismo liberal, para o romantismo, verdade, bem e beleza seriam valores subjetivos, sem nenhuma base no real.
Depois de 1789, entrou-se na era do “achismo”. Cada um acha o que quer. O mundo virou um hospício. Pois é no manicômio que cada louco acredita em “sua” verdade. Nada seria objetivamente verdadeiro ou certo.
Daí, comentar Melendo:
“O nihilismo [nascido de Descartes] impõe que o mundo careça de qualquer verdade, de qualquer exigência derivada da natureza das coisas, somente assim se mantém o reino do possível sem nenhum tipo de coação. Porque, com efeito, para a lógica nihilista, a verdade é coercitiva. Por isso, suspeita-se dela. Proscreve-se culturalmente aquele que pretende—como se diz—ter a verdade. Como, se a verdade fosse uma posse e não uma relação enriquecedora e geradora de liberdade, para o próprio homem que a aceita e para os outros” (T. Melendo, op, cit p. 34).
Descartes e o humanismo “libertaram” o Homem de Deus e da verdade objetiva. Mas, negando ao homem a possibilidade de alcançar a verdade objetiva dos seres, Descartes e o Humanismo reduziram o homem ao agir, não movido pelo intelecto, mas apenas pelo querer, e por um querer instintivo, um querer não racional. O agir humano foi reduzido ao nível do agir animal, movido só pelo instinto. Poucas vezes na história o ditado francês que diz ‘Qui fait l´ange, fait la bête” – quem quer bancar o anjo, age como animal—foi tão bem comprovado.
Claro que essa recusa em aceitar a verdade objetiva, renuncia também a todo poder do intelecto humano. A inteligência nos enganaria ao nos dar idéia de uma realidade que, de fato, não existiria. Certo teria estado Lutero ao chamar a razão de ”a meretriz louca”.
A recusa da possibilidade de conhecer a verdade, instituída pelo cogito cartesiano significou uma recusa do ens. A Metafísica passou a ser vista como uma espécie de “proto ciência” ou como uma fantasmagoria científica
Para Descartes, “a eliminação da verdade como termo conclusivo da tarefa filosófica, [leva] à troca dessa tarefa por outros objetivos, como os da manobrabilidade ou da utilidade [das coisas]. Veremos que essa ausência de uma referência clara à verdade é outro dos componentes da atividade técnico científica, ou, melhor ainda, da determinação que dela fazem os mais destacados epistemólogos do século XX. E que essa recusa da verdade se verá ser acompanhada necessariamente do conseqüente repúdio da Metafísica, cujo fim é estudar o ens verum-bonum” (T. Melendo, op. cit., p. 66).
E a Ciência moderna? Como se sustenta ela, negando-se que exista a verdade?
Paradoxalmente, porém, o cartesianismo conduziu ao cientificismo técnico e à magia. O cientificismo daria o único conhecimento válido. O cartesianismo, de um lado, fez da Ciência a fonte do conhecimento absoluto. Mas, negando-lhe base metafísica, levou a fazer da Ciência pura técnica, isto é, a transformar o conhecer científico em puro utilitarismo.
Por outro lado, o cartesianismo, negando toda a certeza, levou a ter a Ciência como Magia.
O triunfo do cientificismo paradoxalmente leva ao triunfo da magia.
Toda época cientificista vê florescer a magia. O cientificismo cartesiano produziu, lado a lado, no século XVIII, o racionalismo da Enciclopédia e as doutrinas mágicas de Mesmer e do magnetismo animal. O século XX, apogeu do cientificismo e do materialismo viu crescerem as seitas esotéricas, a crença em duendes, a astrologia e a magia satanista. No século XX, acreditou-se em Marx e em Duendes. No Brasil, hoje, se crê em Paulo Coelho e em Lula...
Em Lula, que confessa e proclama não saber de nada.
O posicionamento anti intelectual e anti metafísico do cartesianismo, contrário à objetividade, colocou em cheque a famosa e idolatrada Ciência Moderna. Pois se nada conhecemos realmente, que vale a Ciência?
O cartesianismo matematizou o mundo e criou a Ciência Moderna. Entretanto, que tipo de Ciência é a moderna, se se nega a existência do real e da objetividade da verdade? Que conhecimento científico pode haver, se não existe verdade objetiva? O conhecimento moderno é o de uma verdade inexistente a respeito de um mundo não real. É o conhecimento de um oco a respeito de um vazio. O conhecimento do nada sobre o não ser. É a “sabedoria” do abismo.
Mas, se não há conhecimento real objetivo, a Ciência Moderna tem que renunciar ao saber enquanto tal. Ela passa a buscar apenas o útil e fica reduzida a pura técnica. A Ciência moderna, no máximo, teria a verdade como “um ideal remoto do qual as sucessivas teorias científicas se aproximariam progressivamente, mediante a eliminação de erros”
“Porém, mais do que remoto tratar-se-ia de uma ideal inalcançável. A verdade nunca poderia ser obtida”. (T Melendo, op. cit., p. 67).
É de surpreender então que Karl Popper tenha chegado à conclusão que a Ciência moderna deveria abandonar a tentativa de alcançar a certeza sobre o conhecimento científico?
“Há que se abandonar a busca da certeza, uma base segura para o conhecimento”(K. R. Popper, Conhecimento Objetivo: um enfoque evolucionista, Madrid, 1977, p. 45. in T Melendo, op. cit., p. 67).
Também J. Habermas chega a conclusão semelhante de que a Ciência moderna, que pretendia tudo poder vir a saber, acabou confessando sua incapacidade radical de alcançar a verdade plena:
"O «cientificismo» significa a fé da ciência em si mesma, ou dito de outra maneira, o convencimento de que já não se pode entender a ciência como uma forma de conhecimento possível, mas que devemos identificar o conhecimento com a ciência" [Nota138: J. HABERMAS, Conocimiento e interés, Madrid 1982, p. 13, apud T. Melendo, op. cit., p.65).
Sanguinetti, comentando Conjetures and Refutations: The Growth of Scientific Knowledge (Londres 1963), diz,:
"Deste modo, entra em cena o último fundamento assinalado por Popper à evolução do pensamento e da ciência: a aproximação à verdade (ou verossimilhança). Podemos conhecer apenas com certeza nossos erros, aproximando-nos deste modo da verdade, sem jamais alcançá-la por completo” (Apud T. Melendo, op. cit., p. 67).
A Ciência moderna faria teorias sobre o que não conhece, substituindo uma teoria por outra sem jamais chegar a alcançar a verdade, pois que a verdade não poderá jamais ser atingida com certeza. O conhecimento se torna assim uma miragem da qual a Ciência sempre se aproxima tropegamente sem jamais poder alcançá-la, pois que ela não existe. A ciência moderna considera o conhecimento como o horizonte. Sempre que damos um passo para alcançá-lo, ele se afasta um passo, e jamais o atingiríamos. O horizonte é Inálcansável. O conhecimento moderno busca o incognoscível. E isso é Gnose: conhecimento do incognoscível.
2ª – A Negação do Bonum
Mais grave ainda que o cientificismo acompanhado da magia, causados pelo anarquismo epistemológico nascido de Descartes, foi a negação do ens como bonum. Pois se não há ens verum, não há ens bonum. Se nada se conhece, nada pode ser amado. Pois só se ama o que se conhece. Não havendo verdade, nada poderia ser amado. Não haveria bem, pois aquilo que é verdade para o intelecto é bem para a vontade. A negação de toda verdade objetiva faz ruir toda e qualquer possibilidade de amar e de agir de acordo com uma Moral objetiva. Bem e mal, lícito e ilícito, passam a ser tidos como valores relativos, sem base no real objetivo. Daí nasceu o positivismo jurídico. Daí nasceu aquilo que, hoje, se chama de “ética”, conjunto de regras convencionadas, para substituírem a Lei de Deus.
Só podemos amar o que conhecemos como verdadeiro. E só podemos agir tendo em vista um fim real e objetivamente verdadeiro. Por isso afirma Clavell:
“a crise do projeto moderno [...] desembocou no vazio de sentido, no nihilismo, segundo o qual não existem valores, não há diferença entre real entre o bem e o mal, a própria existência carece de significado. Tratar-se-ia de aceitar essa nova situação na qual o homem não tem já pontos de referência e de anular a ânsia de significados. O programa nihilista consiste em viver deixando-se guiar pelas próprias tendências tal como se vão apresentando nas diversas circunstâncias da vida. O super homem de Nietzsche se torna no pensamento débil de Vattimo, o desaparecimento do homem em sua especificidade. O sujeito, centro absoluto da modernidade, se dissolve no amontoado de instintos que encontram equilíbrios diferentes com o passar do tempo”. (Apud T. Melendo, op. cit., p. 35).
O homem passa a ser animalizado, na medida em que se admite que ele se move apenas por instinto, e não pelo intelecto.
A negação do ser leva à negação do bonum, pois que, uma coisa é na medida em que tem qualidades em ato. O ato é o bem. Se não há nem o ato do existir, não pode haver bem em si. O bem em si, para o homem moderno, passa ser apenas o bem para mim, isto é, o útil, o prazeiroso, o que me traz alguma vantagem. A intelecção é substituída pelo sentir, pelo gozar, pelo fruir.
“Desde a profunda perspectiva tradicional, resultaria bastante fácil advertir como a dissolução virtual da metafísica implica o sufocamento da antropologia e da ética e, por assim dizer, a transformação em seus contrários. Bastaria apelar, para apreciá-lo, à equivalência clássica entre o ente e a bondade; então, em virtude da equação que acabo de recordar, que equipara ens e bonum, perceberíamos, sem problemas, que a substituição do ser pela consciência supõe a troca do bem em sí, ou bem propriamente dito, pelo bem-para-mim, que traz necessariamente vinculada a si a negação de toda ética e gera, de forma inevitável, a despersonalização do ser humano” (T. Melendo, op., cit., p. 16).
É de se estranhar então que, hoje, quando se nega a objetividade do ser, do verum e do bonum, se diga que se vai “curtir” um som, um passeio, curtir uma namorada, um cão de estimação, e até curtir uma esposa e um filho? Disso, só podia nascer o divórcio, o amor livre, o egoísmo mais radical e descarado.
Nada teria um fim superior, transcendente, Toda ação teria fim em si mesma. Tudo seria um jogo, isto é algo que tem fim em si mesmo.
É o que salienta Melendo:
“Sem verdade, como acabo de esboçar, não pode dar-se nem contemplação, nem ação finalizada. Cabe apenas um atuar, interno ou externo, especulativo ou prático, individual ou coletivo…, que é fim para si mesmo. Isto é. Um jogo..
Algo que tem certas regras internas, mas que não quer realizar nem dar cumprimento a nada a não ser ao próprio jogo. Tocam-se, para dizer em termos clássicos, jogo e ócio. Confunde-se a insubordinação pragmática própria do jogo, com o Fim final definitivo: a amorosa contemplação do Ser Absoluto, também não apoiada, com falhas próprias do passatempo. Interpreta-se a ausência de submissão do jogo como sinônimo de liberdade… carente do menor traço de responsabilidade. Intercambiam-se teoricamente amor e namoro lúdico… exatamente porque o amor é a máxima expressão do comportamento livre!
Tudo é fútil, banal, anódino, insubstancial, epidêrmico… e, por isso, ainda que não se queira reconhecer, trivial, comum, ordinário, medíocre, prosaico, vulgar. Como bem havia visto Nietzsche, o jogo se transforma de maneira implacável em cifra nihilista de todo o agir humano. A vida, como jogo, se torna uma nova compreensão nihilista da existência: jogo erótico, jogo lingüístico, hermenêutico, jogo político… Porque tudo foi privado de verdade e de finalidade”.
"O jogo é a síntese necessária da ética sem verdade"[79]. A regra do comportamento é agora a espontaneidade jogada com os elementos disponíveis nos distintos universos de jogo. A liberdade sem fim se torna produtora de valor: Não importa o que se queira; o fato de querer algo já torna justificado o que se quer. (T. Melendo, op., cit., p. 36).
“O nihilismo impõe que o mundo careça de qualquer verdade, de qualquer exigência derivada da natureza das coisas: somente assim se mantém o reino do possível sem nenhum tipo de coação. Porque, de fato, para a lógica nihilista, a verdade é coercitiva. Por isso se suspeita da verdade. Se proscreve culturalmente ao que pretende —como se diz— possuir a verdade. Como se a verdade fosse uma posse e não uma relação enriquecedora e geradora de liberdade para uma pessoa… e para as outras”! (T. Melendo, op., cit., p. 34).
Mas, unindo-se a ciência sem verum com a pseudo ética do “bem-para-mim”. a ética do útil e do hedonismo, a Ciência moderna se transforma em pura técnica, capaz de produzir apenas “bens-para-mim”. Daí nasceram o utilitarismo, e o consumismo atuais.
“Agora, quisera apenas sugerir, nas pegadas de Ernst Schumacher, que as palavras do Discurso implicam em certo modo, culturalmente e em suas grandes linhas, o desaparecimento da ciência para saber, e sua substituição pela ciência para manipular”(34 Cfr. E. F. SCHUMACHER, Guia para os Perplexos, Madrid 1984, p. 82, apud T. Melendo, op., cit., p. 16).
"A conexão que hoje se observa entre conhecimento científico e manipulação não encontra nada similar entre os clássicos e os medievais. Nós nos afastamos da verdade ao dizer que para eles a ciência (física) era, sobre tudo, sabedoria, isto é, contemplação das leis da natureza, ao passo que a técnica era principalmente fruto de uma invenção artesanal, de um golpe de engenho que se apoiava na inteligência e na inventiva; o fim da investigação não era aplicar metodicamente os novos conhecimentos científicos, como ocorre hoje. A novidade radica na lógica das ciências modernas: o que em outro tempo era contemplação pura, ocasião de alegria e de atitude religiosa, se transformou em uma espécie de fúria inquieta, encaminhada na busca das leis do cosmos, da vida social, da psique e da genética, com o objetivo declarado de explorar a natureza, dominar a sociedade, manipular ao homem"(35 A. LIVI, "Il Cientismo como Pseudo-Metafisica", Scienza, Filosofia e Fede, in Cultura & Libri 52, nov. 1989, p. 25, apud T. Melendo, op., cit., p. 17).
“Não parece exagerado afirmar, então, que o alcance mais imediato da revolução cartesiana neste ponto é a potencial ruptura da equação de equipolência entre ens e verum, em cujo lugar se situa o binômio ente-manipulável” (Nota 36 A interpretação heideggeriana do Sein und Zeit faria desta conversão virtual uma transformação em ato. A ela corresponde a consideração do ente como aquilo que está à mão, como simples instrumento, como algo relativo à operação humana e não diretamente relacionado com o contemplar teorético. O radicalmente definitório do ente é sua Zuhandenheit (Cfr. Sein und Zeit, § 15). Como se sabe, o segundo Heidegger modifica parcialmente esta colocação, dando em certo modo primazia ao aspeto contemplativo). (T. Melendo, op., cit., p. 17).
“Como sugeria Botturi, inspirado em Nietzsche, para alcançar seu apogeu por si mesmo, o homem tem que começar por colocar a totalidade do existente à sua disposição; à disposição de seu entendimento e, mais radicalmente, de sua vontade. Somente então poderá cimentar-se ex novo a integridade do cosmos desde a força (auto) colocativa do sujeito. Por isso o suposto do cogito cartesiano é negativo: consiste na supressão inicial de qualquer existente mediante a dúvida metódica corrosiva, capaz de deixar o universo inteiro, e a própria humanidade, à disposição do poder racional. Unicamente com semelhantes condições a universalidade do real poderá ser construída em virtude da potência criadora do sujeito” (T. Melendo, op. cit p. 28).
Como dissemos, é curiosamente paradoxal chamar, hoje, a Idade Média de Idade das trevas, da ignorância, e julgar o mundo moderno trouxe a luz da “Ciência”.
Nada mais falso. Toda a Sabedoria medieval fundava-se na verdade do Ser. Na Verdade de Deus, que é Luz; “Deus lux est”(I Jo, I, 5). A Idade Média, por isso mesmo, tinha a certeza da verdade. Certeza que vem da Fé e que ilumina toda ciência humana. “In lumine tuo, videbimus lumen”( ) Na luz da Fé, veremos a luz da verdade da ciência.
O mundo moderno, nascido de Descartes, partiu da dúvida metódica. Partiu da obscuridade.
É de estranhar que, depois da dúvida, tenha nascido a opinião subjetivista do idealismo alemão? Que da obscuridade tenha nascido a incerteza?
E é de se estranhar que do subjetivismo tenha nascido o relativismo?
É de surpreender que do relativismo se tenha chegado à negação de toda a verdade? È de espantar que da incerteza da obscuridade tenha nascido a treva da negação e da ignorância?
De Descartes proveio a “escolástica moderna”.
A ”escolástica” da treva, negadora do ser e do conhecimento objetivo.
A “escolástica” do Nada.
Capítulo 2: Do Idealismo Alemão à Filosofia Contemporânea.
A Modernidade é subjetivista. Cada um teria uma opinião sobre as coisas ontologicamente inexistentes. Ninguém teria a verdade. Haveria apenas opiniões. O livre exame que Lutero proclamou da Bíblia, a Modernidade o aplicou ao ser. Cada um interpreta livremente o sonho da “realidade”. Nenhuma interpretação seria certa. Nenhuma interpretação seria condenável A não ser a interpretação da objetividade da realidade e da verdade. O objetivismo seria a única heresia intolerável para o subjetivismo cético do homem Moderno. Daí a tolerância universal do Vaticano II ter levado à contraditória condenação de Dom Lefebvre e de Dom Mayer.
Da dúvida cartesiana proveio inicialmente a negação da Metafísica por Kant, e o opinionismo do idealismo alemão. E, deste, veio a negação de tudo.
KANT — O FILÓSOFO DO PROTESTANTISMO
Emmanuel Kant nasceu em Koenisgberg (Prússia Oriental) em 1724, vindo a falecer em 1804. Sua mãe era pietista, seita protestante fundamentada na mística cabalísta e gnóstica de Jacob Beohme. A mãe de Kant teve forte influência em sua mentalidade, que sempre foi marcada pelo misticismo pietetista.
Kant passou toda a sua vida em Koenisgberg
Inicialmente, seu pensamento foi influenciada pela nova ciência do também pietista Newton, e pela filosofia de Leibnitz e de Wolff. Mais tarde, Kant sofreu forte influência do empirismo de Hume.
Filosoficamente, então, o pensamento de Kant foi filho quer do empirismo racionalista inglês, quer do misticismo irracionalista, bem embutido no cartesianismo. Ele procurou conciliar o racionalismo e empirismo de Hume com o pietismo e o cogito místico cartesiano, e com a m;istica pietista. Daí, sua tentativa de conciliar ciência racionalista e intuição irracional..
Para os fins deste trabalho, interessa-nos focalizar apenas a doutrina kantiana do conhecimento e não toda a sua filosofia. E convém salientar então, antes de tudo, que Kant foi um pensador anti metafísico.
Para ele, a Metafísica, tal qual a conceberam os gregos e a filosofia escolástica medieval, seria uma ciência falsa porque impossível. Ela não seria ciência. A Metafísica clássica daria apenas um conhecimento ilusório—portanto, falso—das realidades supra-sensíveis. (Frederick Coplestone, A History of Philosophy, Image Books, Doubleday, New York, Volume VI, p. 216).
“Metafísica como ciência é, entretanto, impossível. Isso significa que metafísica especulativa é suposta ser uma ciência concernente a objetos correspondentes às Idéias transcendentais de pura razão, Mas tais objetos não existem. Logo não pode existir ciência deles” (F. Copleston, A History of Philosophy, Image Books, Doubleday, New York, Volume VI p. 304).
Isso não significa que Kant negasse a existência do mundo real. Para Kant, “as coisas existem em si mesmas, mesmo que não possamos conhecer o que elas são em si mesmas” (Frederick Coplestone, A History of Philosophy, Image Books, Doubleday, New York, Volume VI, p.270). Das coisas, conheceríamos apenas as aparências, os fenômenos e não as coisas em si, os noumenos.
Poder-se-ia fazer um paralelo dessa doutrina de Kant com a doutrina da Kabbalah para a qual jamais poderemos ter conhecimento do Ein Sof, a Divindade oculta, mas só conheceríamos o Deus revelado, o criador do mundo, aquele que aparece na Bíblia com o nome de Yahwé.
Como ensina a Gnose, de toda criatura, a inteligência conheceria apenas o exterior e jamais a partícula divina sepultada na matéria. Dessa partícula divina se tomaria conhecimento por uma intuição mística, nunca pelos sentidos ou pelo intelecção racional.
Comare-se essa doutrina com o que diz Kant:
“Segundo a filosofia do conhecimento (Crítica) de Immanuel Kant (1724-1804), nós não podemos conhecer as coisas inteiramente, porque nem todos os sinais que recebemos das coisas são aceitos pela mente, e disto resulta que não podemos conhecer inteiramente o real. Conhecemos do real apenas aquilo que a mente pode assimilar, e que ele chamou fenômeno; ao que permanece incognoscível para nós ele chamou o noumeno. Então Kant tomou a série de conceitos que Aristóteles havia listado como o que podemos dizer das coisas, e transformou-a em uma série de categorias que são o que podemos conhecer das coisas. Para Kant, o dado empírico tem validade, porém nunca validade absoluta ou apodítica”. (Rubem Queiroz Cobra, Fenomenologia, www.cobra.pages.nom.br).
Desse modo, negando o conhecimento do ser real, Kant abriu caminho para a negação de todo ser.
Foi em 1770 que Kant declarou ter recebido a “grande luz” que iluminou sua mente, dando origem a seu sistema filosófico pessoal, visando solucionar o problema do objeto e do conhecimento.
Suas obras principais foram: Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática, Crítica do Julgamento, Prolegômenos de toda Metafísica Futura.
A filosofia de Kant é brumosa, servindo-se de terminologia muito particular, que dificulta a compreensão, dando a impressão de uma visão que se esgueira em novelos de fumaça. Nada da clareza tomista nos textos de Kant. Mas eles dão a impressão de uma mentira fantasmagórica que se desfaz em fumaça, quando se pretende tê-la alcançado. Kant tem um pensamento fugidio que dá a sensaçao de enganar através de frases esvanecentes.
Kant teve enorme influência em toda a Filosofia moderna. Todo imanentismo e subjetivismo contemporâneo provieram dele.
Não pretendemos fazer aqui um estudo completo da filosofia kantiana, mas tratar apenas de alguns aspectos de sua antimetafísica e de sua negação do conhecimento humano, tal qual foi elaborado pela filosofia aristotélica-tomista, visando compreender de que modo o pensamento veio a ter influência no Modernismo, na Fenomenologia, nos sistemas derivados dela, e, finalmente no imanentismo do Vaticano II.
*****
Para compreender a filosofia anti metafísica de Kant, devemos partir das classificações que ele faz dos juízos humanos, para, depois, entendermos sua negação do conhecimento objetivo e sua recusa de toda Metafísica.
Principiemos pela exposição de sua teoria dos juízos.
Kant distingue dois tipos de juízos fundamentais: juízos analíticos e juízos sintéticos.
Juízos analíticos seriam aqueles nos quais o predicado enuncia algo já incluso no conceito que se tem do sujeito da frase. Por exemplo, todo corpo é substância extensa.
O juízo analítico então seria tautológico, porque expõe o que já está expresso no sujeito da frase, nada lhe acrescentando de novo. O juízo analítico seria então estéril.
Os juízos sintéticos seriam de dois tipos:
- Juízos puramente sintéticos;
- Juízos sintéticos a priori.
Os Juízos puramente sintéticos seriam aqueles nos quais a razão atribui ao sujeito da frase algo que não está nele, pondo então no predicadao uma coisa nova, dando-lhe um predicado estranho ao sujeito e proveniente da experiência puramente pessoal. Ex. Fulano está triste. Doi-me o braço esquerdo.
Estes são juízos puramente subjetivos, provenientes de uma intuição sensível e que nada têm de científico.
Os Juízos Sintéticos a priori seriam aqueles nos quais a razão atribui ao sujeito da frase um predicado estranho a ele, mas predicado que, além da intuição sensível, reveste o predicado de um caráter necessário e universal, mas independente de uma experiência. Por exemplo, quando se diz que todo ser contingente tem uma causa, na idéia de ser contingente não está incluída a noção de causa. Mas isso deveria ser deduzido da realidade sensível, experimental. Entretanto, nenhuma experiência sensível poderia nos dar a noção de necessidade de causa para um ser contingente. Kant conclui, então, que a noção de causa provém de uma condição a priori, existente no espírito humano. Esses juízos a priori seriam necessários e universais, existentes em todos os homens, e seriam eles que permitiriam o progresso científico.
Kant faz então a verdade depender de algo existente no espírito humano: as formas a priori.
Desse modo Kant deslocou definitivamente o conhecimento para o interior do homem. Enquanto na escolástica o conhecimento se fundamentava a partir da realidade do ser, no kantismo, o conhecimento provém do interior do homem. Por isso, Kant insiste que sua filosofia fez uma inversão copernicana. Com Kant, a verdade passa a depender não mais do ser real, mas do pensamento. A ontologia se transmuta em criteriologia. Ele não leva em conta a realidade subsistente do objeto conhecido. A verdade de um sistema passa então a depender de sua coerência interna, e não mais da realidade objetiva.
O kantismo passa a estudar a razão pura, isto é, a razão enquanto separada da realidade objetiva, exterior ao homem.
Desse modo, em Kant estão as raízes do subejetivismo moderno.
Kant distingue na realidade exterior ao homem:
- o objeto real, o noumeno, a coisa em si, inatingível pela razão;
- a aparência, o fenômeno, do qual temos um juízo.
Kant repete à saciedade que evidentemente o noumeno, --a coisa em si – seria incognoscível para o homem.
Desse modo, Kant estabelece vários dualismos:
- O dualismo entre a coisa em si (o noumeno incognoscível) e o fenômeno, (as aparências cognoscíveis pelo entendimento humano).
- Um segundo dualismo é posto por Kant quando ele faz uma separação absoluta da coisa em si (o noumeno) , da coisa em nós, a coisa como fato da consciência.
- Um terceiro dualismo existiria no homem entre o entendimento (Verstand) --capaz de atingir o fenômeno-- , e a razão (Vernunft), incapaz de alcançar o noumeno.
- Um quarto dualismo existiria entre a coisa em si, o objeto exterior, e a coisa em nós, o conceito que formamos da coisa exterior.
As Ciências teriam por fim o conhecimento dos fenômenos. Apenas as ciências práticas, que estudam os fenômenos, seriam válidas. As ciências especulativas, trabalhando abusivamente com os conceitos, criariam ilusões. Mais ilusória do que todas as demais ciências especulativas seria, então, a Metafísica.
Para Kant, a Metrafísica especulativa seria uma ilusão transcendental. O Kantismo decretou a morte da Metafísica, portanto, a morte da verdade ontológica.
Kant considerava sua filosofia um idealismo transcendental. Para ele, os fenômenos, por causa das elaborações que sofre, manteria um valor em grande parte subjetivo.
Como já vimos, Kant se considerava um Copérnico da Filosofia por ter invertido a relação intelecto – objeto. Antes dele, se fazia partr o connhecimento do objeto. Kant quer explicar a realidade pelas leis do espírito humano, através da formas a priori, que seriam universais e necessárias. Não formas simplesmente individuais. Esse seria o seu idealismo transcendental, por ser regulado por leis transcendentes, impostas pela natureza de nosso espírito. Daí, as formas a priori terem um efeito universal necessário. Por isso, Kant admite que o consenso universal é um critério de verdade.
Infelizmente, até em livros de apologética católica, ainda no tempo de Pio XII, se admitia como prova válida da existência de Deus, o consenso universal dos povos kantiano...
Thonard explica então que “Esta concepção de verdade põe em evidência o princípio imanentista e o racionalismo radical da filosofia moderna. Para Kant, toda a nossa ciência é verdadeiramente tirada de nós próprios: a nossa razão é autônoma e impõe as suas leis ao real, mas com esta precisão bem característica: estas leis dominam também os indivíduos, e é antes a humanidade ou a razão impessoal que se torna o centro de tudo” (J.F. Thonard, Compêndio de História da Filosofia, Desclée, Paris, Tournai, Roma, 1953, p. 649).
Para Kant, então, a verdadeseria a conformidade do juízo com as leis psicológicas dos a priori que regem a elaboração do fenômeno.
Kant admite que exista a “coisa em si”, geradora dos fenômenos. A “coisa em si” seria uma realidade substancial, e distinta do eu, sujeito crítico. Mas, “a coisa em si” – o noumeno-- seria inatingível por nosso conhecimento. Dela só poderiamos ter um conhecimento apofático, por negação, nunca por afirmação. Do noumeno inalcançável, viriam os fenômenos.
Sem a admissão de que há uma “coisa em si”, os fenômenos seriam inexplicáveis. O noumeno seria a realidade estável, existente em si mesma, substancial, objeto último de nossa inteligência que, porém, jamais o pode atingir.
Vê-se que Kant dá à “coisa em sí” as qualidades da Divindade. O que não deve surpreender, pois que Kant conheceu essas noções através de Jacob Boehme e da Kaballa.
Só os fenômenos seriam suscetíveis de serem expostos por meio de conceitos, efeitos do entendimento (Verstand). Ora, a Metafísica pretende expressar o noumeno- a “coisa em si” – por meio de conceitros, o que seria impossível. A Razão (Vernunft) pensa em falso sobre o noumeno querendo explicá-lo por meio de conceitos. Daí, a Metafísica ser enganadora, uma pseudo ciência que trata suas ilusões e miragens como realidade. A Metafísica poderia levantar hipóteses, mas jamais teses. Isto leva Kant a dizer que a Metafísica é a ilusão transcendental.
Ela é incapaz de alcançar a verdade do noumeno, produzindo apenas um mundo de abstrações vagas e irreais. Contra a Metafísica clássica, a Metafísica moderna ao invés de procurar atingir o ser inalcançável pela razão, procura apenas criticar a razão, demarcando os limites de sua atuação.
Kant opõe o conhecimento sensível das aparências à incognoscibilidade do noumeno, do ser, da coisa em si. Como nota Hannah Arendt, para Kant, “somente (...) na eliminação das aparências, pode haver esperança de atingir-se o verdadeiro conhecimento” (Hannah Arendt, A Condição Humana, 10a edição Ed. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2008, p 287). Mas esse conhecimento não será o conhecimento racional humano.
O Ser que gera as aparências faz isso para enganar o homem: “Este Ser é agora tremendamente ativo e enérgico: cria suas próprias aparências, e AC ontece que essas aparências são embustes” (Hannah Arendt, A Condição Humana, 10a edição Ed. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2008, p 289). O noumeno, o Ser em si de Kant é o malévolo deus criador da Gnose antiga com roupagem moderna e pseudo filosófica.
Com a separação entre o fenômeno e o noumeno se nega todo conhecimento humano racional e real. O conhecimento possível passa a ser uma Gnose racional e alógica.
“Se o Ser e a Aparência estão definitivamente separados – e este , como observou Marx certa vez, é realmente o pressuposto básico de toda a ciência moderna--, então nada resta que posa ser aceito de boa fé; tudo deve ser posto em dúvida” (Hannah Arendt, A Condição Humana, 10a edição Ed. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2008, p 287).
Com essa filosofia, Kant lançou os germes do subjetiviso moderno, que os filósofos idealistas alemães farão eclodir, causando os delirios do Romantismo e do modernismo, causadores da loucura filosófica da Idade Contemporânea com o Marxismo, o Nazismo e a Fenomenologia, filosofia esta usada pelo Vaticano II para “cristianizar” a Gnose moderna. O Vaticano II, ao pretender exprimir a doutrina católica sob as formas do pensamento moderno, como pediu João XXIII, adotou alguns princípios kantianos, nas adotou especialmente as teses da Fenonologia, filodofia nascida do kantismo.
Capítulo 3:
OS FILÓSOFOS DO IDEALISMO ALEMÃO
É comum encontrar quem oponha o Iluminismo racionalista ao Idealismo anti racional, como se fossem absolutamente inconciliáveis.
Na realidade, o iluminismo racionalista deságua no panteísmo, enquanto o Idealismo irracionalista acaba na Gnose. Ora, o panteísmo é uma doutrina que prepara para a Gnose. Amb
Iluminismo e idealismo ambos se julgam iluminados: os primeiros se ufanam de serem iluminados pela luz da razão, enquanto os idealistas irracionalistas se gabam de serem iluminados pelo Espírito Santo ou pela Divindade. Embora antagônicos com irmãos gêmeos siameses, Panteístas e Gnósticos se julgam divinos. E nisso ambas as correntes estão de acordo. Elas formam os dois ramos da língua da serpente, os dois ramos da Religião do Homem: o antropoteísmo.
A luta superficial dessas duas correntes vem desde sempre. No século XVIII, esses dois tipos de iluminados disputavam entre si, quem tinha a verdadeira luz, quem eram os verdadeiros iluminados. É o que explica Antoine Faivre em seu livro L’Ésotérisme en France et en Allemagne au Dix -Huitième Siècle.
Costuma-se colocar Kant como iluminado pela razão, enquanto Fichte, Schelling, Hegel são colocados entre os iluminados pelo “Espírito”
O idealismo alemão - cujas figuras exponenciais foram Fichte, Schelling e Hegel - é uma explicitação filosófica das experiências de místicos irracionalistas alemães, tais como Mestre Eckhart, Tauler, e Jacob Boehme. Desses místicos, o idealismo herdou sua "visão central" e adotou a sua terminologia.
"(...) A 'visão central' da filosofia idealista é o reflexo direto da experiência mística. Enfim, a terminologia da própria filosofia idealista religiosa foi conscientemente tirada da linguagem dos místicos, na qual eles interpretaram sua experiência mística de divinização" (E. Benz - Les Sources Mystiques de la Philosophie Romantique Allemande, Vrin, Paris, 1968, p. 31).
E diz ainda esse autor: "poder-se-ia demonstrar que o conceito idealista do ‘Eu’, em Fichte, foi diretamente influenciado pela especulação do misticismo alemão da Idade Média, como Von Bracken o provou em seu livro sobre Fichte e mestre Eckhart" (E. Benz, idem, p. 30).
Outra fonte do idealismo alemão foi a Cabala. Esta foi introduzida nos ambientes cristãos na Alemanha, por Reuchlin, no século XVI. Mas, segundo o que os rabinos disseram a Oetinger, quem melhor escreveu sobre a Cabala, nesse país, foi Jacob Boehme. Foi através de Boehme, e de Oetinger que a Cabala chegou até os filósofos idealistas e aos românticos, especialmente a Schelling (Cfr. E. Benz, op. cit. p. 56). Franz von Baader foi o grande divulgador de Boehme na Alemanha, de cujas obras ele preparou uma edição, em 1813 (Cfr. E. benz, op. cit. p. 7), enquanto Hegel foi adepto de Boehme o elogiou muitas vezes (cfr. E. Benz, op. cit. p. 20).
Desde muito cedo ficou patente que o idealismo alemão, cujas raízes se estendiam a Eckhart, a Boehme e à Cabala, devia ser visto como uma forma de Gnose.
"Em 1835, apareceu a monumental obra de Ferdinand Christian Baur, Die Christilich Gnosis, oder die Religion philosophie in ihrer geschchlichen Entweckung. Sob o título "Gnosticismo antigo e filosofia moderna da religião", a última parte dessa obra examina: 1) a teosofia de Boehme ; 2) a Filosofia da Natureza de Schelling; 3) a Doutrina da Fé, de Schleiermächer; 4) a Filosofia da Religião, de Hegel. A especulação do idealismo alemão é justamente enquadrada em seu contexto no âmbito do movimento gnóstico, cujas origens remontam à Antigüidade" (Eric Voegelin, Il Mito del Mondo Nuovo, Milano, Rusconi, 1976, p. 58).
Voegelin afirma ainda que Baur não estava sem fundamento nessa sua posição. Os trabalhos de Johann Lorenz von Mosheim, de Johann August Neander e de Jacques Matter permitiram concluir que: "com o iluminismo e com o idealismo alemão o movimento gnóstico tinha adquirido um grande relevo social" (Cfr. Eric Voegelin, op. cit. p. 58).
É certo então que a chamada filosofia alemã - sempre abstrusa-- esteve continuamente sob a influência da Gnose cabalista de Jacob Boheme, o inspirador do pietismo. Kant e os filósofos que a ele se seguiram foram quase todos pietistas. Sendo gnósticos os filósofos idealistas não é de espantar então que eles se manisfestassem como anti metafisicos, contrários ao conhecimento racional tal como foi exposto pela escolástica.
Nos filósofos alemães, sucessores de Kant, a Gnose foi se tornando cada vez mais explícita. E não nos referimos somente a Schleiermächer e a Franz Von Baader, mas, particularmente a Fichte, Schelling e Hegel, pensadores dos quais nasceram o romantismo, o materialismo de Marx, como também a teologia liberal alemã, a Fenomenologia, e, enfim, o Modernismo teológico, que triunfou no Vaticano II.
O que São Tomás foi para o Catolicismo, e Descartes foi para a Modernidade, Kant foi para o pensamento filósófico protestante alemão.
Fichte (1762-1814), Schelling (1775-1854), e Hegel (1770-1831) os filósofos do chamado idealismo alemão, pretendiam ser os continuadores de Kant, embora manifestassem divergências com relação a certos pontos do pensamento dele. Esses três filósofos supracitados, por vezes, são apresentados como panteístas, mesmo por autores competentes, como Thonnard, quando na realidade, são gnósticos contrários à razão e contrários ao mundo material..
Neste trabalho, como fizemos com outros filósofos modernos, não pretendemos fazer uma exposição completa de seus sitemas filosóficos. Daremos particular atenção à sua teoria do conhecimento, tratando de sua visão do ser, de Deus e do mundo, apenas na medida necessária para que se compreenda a teoria do conhecimento deles.
De Kant, os três citados filósofos acima citados aceitam a doutrina de que o conhecimento vem ao homem condicionado pelas formas a priori. Eles aceitam a distinção entre fenômeno e noumeno. Porém, recusam separar o noumeno do eu. (Cfr F.J.Thonnard, Compêndio de História da Filosofia, Desclée et Cia, editores pontifícios, Paris, Tournai, Roma, 1953, p. 673, n0 422).
Para os sucessores de Kant, é a atividade do intelecto que explica toda a existência. É essa attividade que cria o fenômeno e o noumeno. “Nada há fora da nossa idéia e do nosso conhecimento , de modo que nos esforçamos por explicar tudo apenas por nossa atividade intelectual” (apud F.J.Thonnard, Compêndio de História da Filosofia, Desclée et Cia, editores pontifícios, Paris, Tournai, Roma, 1953, p. 673, n0 422).
Entretanto, segundo os sucessores de Kant, nossa construção do mundo seria inconsciente, e só depois de construi-lo, é que receberiamos dele as impressões que nos chegam à mente.
Portanto, a realidade objetiva proviria do sujeito.
Daí, o subjetivismo do idealismo alemão: a verdade vai do sujeito para o objeto real.
Os filósofos idealistas e os românticos alemães defenderam o subjetivismo para o qual a verdade não brota do ser conhecido, gerando a idéia correspondente em nosso intelecto, mas, pelo contrário, seria a idéia do sujeito conhecedor que poria o objeto. A verdade decorreria do sujeito. A idéia concebida causaria a existência do objeto.
Isso faria do homem o próprio Verbo de Deus, pois que a criação do mundo foi feita exatamente assim: Deus pensando algo, criava esse algo. O subjetivismo idealista e romântico faz de cada sujeito que pensa o próprio Verbo de Deus, criador do universo. Daí, cada um teria a sua verdade.
Hegel dará um passo adiante, ao dar entidade ao não ser: Marx fará da matéria a única realidade, explicitando o ateísmo.
Johann Gottlieb Fichte (1762-1814)
Este filósofo usou a terminologia kantiana e pretendeu dar desdobramento ao sistema de Kant.
Ponto de partida de Fichte é o Eu. Porém, Fichte distingue o eu individual do Eu absoluto, um Eu transcendental, princípo infinito supra individual, do qual teriam derivado, por queda, todos os eus individuais.(Cfr. Nicola Abbagnano,Storia della Filosofia, Tea Edizioni, Milano, 1993, vol. V, La Filosofia del Romanticismo, da Fichte a Nietzsche, pp. 49-50).
O eu individual ( o eu fenomenal) é apenas um aspecto de Deus ( o Eu noumenal universal) (Cfr. F.J. Thonnard, Compêndio de História da Filiosofia, Desclée et Cia, editores pontifícios, Paris, Tournai, Roma, 1953, p. 676, n0 425). Na consciência individual, através do conhecimento, se daria a síntese do sujeito com o objeto, do eu com o não-eu. O que é clara formulação gnóstica.
O Eu infinito seria pura atividade, portanto não-ser substancial. Dele proviriam, por queda, tanto o mundo objetivo, assim como os eus individuais mergulhados neste mundo material em que estamos
O único princípio do conhecimento humano seria então o eu fenomênico, a auto consciência, à cuja atividade se deveria atribuir não apenas o pensar a realidade objetiva, mas “construir”, “por” a própria realidade objetiva enquanto tal (N. Abbagnano, op. cit, vol V, p. 49).
Fichte variou na formulação de sua doutrina do conhecimento.
Em sua primeira Doutrina da Ciência (1794), Fichte considerava que “o infinito era o eu, a auto consciência, o saber reflexo ou filosófico, ou, numa palavra, o homem na pureza e absolutidade de sua essência. Nas obras sucessiva, o infinito é o Ser, o Absoluto ou Deus, e o eu, a auto consciência, o saber se tornam imagens, cópias ou manifestações dele” (N. Abbagnano, op. cit, vol V, p. 50).
Fichte vai distingui entre o que ele chama de conhecimento dogmatico do que ele denomina conhecimento crítico.
Segundo Fichte, no dogmatismo, a coisa, o objeto, o ser real precede o sujeito conhecedor e nele imprime a idéia. A verdade é então a correspondência entre idéia cocebida no sujeito conhecedor e o objeto conhecido. E a idéia conhecida corresponde ao objeto e dele depende,
Portanto, no que Fichte chama de dogmatismo, a verdade é objetiva.
No conhecimento crítico, defendido por Fichte e pelos idealistas, se dá o oposto: o eu conhecedor, o sujeito precede o objeto, a coisa conhecida é produzida pela aitividade inteletual do sujeito conhecedor. Portanto, a verdade seria subjetiva. A idéia do sujeito geraria o objeto exterior ao eu. O que é conhecido é ser para nós, e não ser em si, como pretende o dogmatismo
“O fundamento do ser [para Fichte] não é o ser em si mesmo, de que fala o dogmatismo, mas a atividade em virtude da qual o ser vem a ser fundamentado; e esta atividade não pode ter outra relação senão consigo mesma, e só pode ser uma atividade que retorna a si mesma. Trata-se de uma atividade originária a qual é, conjuntamente, o seu objeto imediato, isto é que intui a si mesma. Ela é, portanto, auto intuição ou auto consciência. O ser para nós (o objeto) só é possível sob a condição da consciência (do sujeito) e esta só é possível sob a condição da auto consciência. A consciência é o fundamento do ser, a auto consciência é o fundamento da consciência”(Fichte, Werke, I, 1, p. 463, apud N. Abbagnano, op, cit., vol. V, p.51).
Veja-se como Coplestone explica a Gnose de Fichte, negadora da realidade material, do mundo criado.
“Só a Razão existe, o infinito em si mesmo, o finito existe somente nele e através dele. Somente em nossas mentes Ele cria um mundo, em úllima análise, que dele e por ele, nós o desenvolvemos” (Frederick Coplestone, S.J., A History of Philosophy, Vol. VII , ModernPhilosophy – From Fichte to Hegel, Doubleday, Image Books, New York, 1963, p. 109).
Portanto, o Absoluto se manifesta necessariamente no mundo.
Mais: o Absoluto é , ao mesmo tempo, dialeticamente, sujeito e objeto. Desse modo, o Absoluto, Deus, é o Mundo e é também o eu. Mundo e eu individual são Deus depois da queda da Divindade. A Gnose de Fichte é bem clara.
Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775-1854)
Schelling foi o filósofo do Romantismo. Estudou em Tubingen, e nessa universidade formou um trevo pietista com Hoelderlin e Hegel. Depois, foi discípulo de Fichte, em Iena. Ligou-se aos fundadores do Romantismo: Augusto W.Schlegel, Frederico Schlegel, Novalis e Tieck. O teósofo Franz Von Baader o levou a ler Jacob Boehme. Que o encantou.
Schelling foi ainda mais claramente gnóstico do que Fichte. Os pontos de contato da filosofia de Schelling com a Cabala e com a teosofia são muito claros, embora sejam pouco conhecidos, mesmo por muitos manuais de Filosofia que, de modo geral, não tratam disso.
Como os gnósticos, Schelling aceita o irracionalismo. A reflexão, separando o sujeito do objeto, seria a responsável pela separação do ideal do real, isto é da queda da Divindade e do homem.
Pelo sentimento é que o homem atingiria a união com a natureza. Mas se o homem começa a refletir, se ele separa o seu eu dos objetos exteriores, distinguindo sujeito e objeto, então o homem, ele mesmo, se torna um objeto para si próprio. Ele então separa Espírito e Natureza e sua reflexão o torna espiritualmente doente. Pensar lógica e objetivamente seria uma enfermidade do espírito humano. O homem teria por fim agir, e não pensar.
Para Schelling, o sujeito impõe suas formas cognoscitivas à realidade em determinadas experiências, e, dessa forma, ele cria a realidade fenomênica. ( Cfr. F. Coplestone, A History of Philosophy, Image Books Doubleday, New York, 1963, vol. VII, Modern Philosophy-- From Fichte to Hegel, p. 134). Essa idéia é que faz Schelling ser um subjetivista.
DO ABSOLUTO AO REINO
Na base de todo o pensamento ““metafisico”” de Schelling estaria o que ele chama de Absoluto, que ele identificará com Deus e com o Mundo.
O Absoluto, para Schelling, seria pura identidade entre sujeito e objeto. O Absoluto fundiria, numa síntese perfeita, sujeito e objeto, Natureza e Espírito.
Desse modo, o Absoluto se identifica com o Todo universal. Deus o Mundo e o Eu seriam absolutamente idênticos, num monismo espiritual evolutivo contínuo.
O Absoluto poderia ser intuído, mas não compreendido.
Como a Cabala, Eckhart e Boehme, Schelling distingue, no Absoluto, a Divindade impessoal - o Ungrund de Boehme - que seria a contração, à qual se oporia a expansão, ou o Amor (Cfr. Schelling - "Conférences de Stuttgart", in "Essais" de Schelling, tradução e prefácio de S. Jankelovitch, Aubier-Montaigne, Paris, sem data, pp. 320-321).
Vê-se por aí, que Schelling utiliza a terminologia de Jacob Boehmee as concepções gnóstico-alquímicas da natureza (Cfr. A. Koyré, op. cit., p. 506).
Haveria, portanto, um dualismo na Divindade, que seria, ao mesmo tempo, como dizia Eckhart, ser e não-ser (Cfr. Schelling, Conférences de Stuttgart, op. cit., p. 319; Cfr. Vladimir Lossky, Théologie négative et connaîssance de Dieu chez Maître Eckhart, Paris, Vrin, 1973,, pp. 38, 200, 244; Cfr. Maître Eckhart - Sermons, introdução e tradução de Jeanne Ancelet-Hustache, Seuil, Paris, p. 102, Sermão n. 9, "Quasi stella matutina").
Assim como a Cabala, Schelling fala ainda de um dualismo de trevas e luz na Divindade, e que a luz nasceria das trevas (Cfr. Schelling, Conférences de Stuttgart, op. cit. p. 315; Cfr. Gershom Scholem, A Mística Judaica, ed. cit., pp. 219-220).
Esse dualismo constituído por um princípio obscuro e outro de luz terá repercussões na metafísica idealista assim como em todo o Romantismo.
Schelling afirma ainda que o processo teogônico – a “vida” do Absoluto --seria dialético e catárquico, consistindo numa purificação que se daria pela eliminação de algo negativo existente no Absoluto, através da emanação do mundo, o que posibilitaria também o auto-conhecimento da Divindade (Cfr. Schelling - Conférences de Stutttgart, pp. 316-317). Ora, o mesmo pensamento existiu no sistema cabalista (Cfr. G. Scholem, A Mística Judaica, p. 220).
A cosmogênese visaria a dois objetrivos:
- a eliminação do mal existente na Divindade;
- o auto conhecimento da Divindade através de seu reflexo no espelho do mundo.
Que é exatamente o que ensina a Cabala de Isaac Luria de Safed.
A CATARSE DIVINA: A ELIMINAÇÃO DO MAL NA DIVINDADE
A criação era vista como uma queda necessária da Divindade para poder auto-revelar-se (Cfr. Schelling, Philosophie et Religion, in Essais, pp. 195-196).
Schelling pretende que essa teoria da queda divina no universo tem origem em Platão e nos mistérios gregos. Ele não diz, porém, que essa mesma idéia aparece em Boehme e na Cabala (Cfr. A. Koyré - op. cit. p.421).
Gershom Scholem, tratando da doutrina de Rabi Isaac Luria de Safed sobre o Tzim tzum, contração da Divindade, e da subseqüente emanação do mundo, diz : "(...) para todos esse conceito de Zimzum era de fato muito próximo que, mais tarde, foram desenvolvidas pelas modernas filosofias idealistas, como as de Schelling e de Whitehead" (G. Scholem ,Kabbalah, p. 134).
Doutrinas semelhantes se encontram no sistema cabalista de Isaac Luria (Cfr. G. Scholem, A Mística Judaica, p. 270).
O elemento obscuro e inferior, que Deus procurou eliminar de si mesmo e que teria produzido o universo, seria a matéria, mas, procurando purificá-la e atraí-la de novo a si, procurando despertar nela, que é inconsciente, o consciente (Cfr. Schelling Conférences de Stuttgart, p. 317).
Como dissemos, a catarse do Absoluto teria sido feita para eliminar o mal que existiria na própria Divindade. Como dizia Isaac Luria, a Divindade procurou eliminar de si as “cascas”,--as klippoth-- as imundíces, que existiriam nela.
Ao examinar o problema do mal em Filosofia e Religião, Schelling, como Luria, procura demonstrar que o mal tem origem na própria essência divina e proviria de uma queda de Deus. Na opinião de Hartman, Schelling teria tirado sua idéia de Jacob Boehme (Cfr. Nicolai Hartman, op. cit. p. 169). Entretanto, a origem real dessa tese é cabalista (Cfr. Gershom Scholem -Kabbalah, Ketter, Jerusalém, 1974, pp. 122 a 128).
Como todos os gnósticos, Schelling afirma que a queda de Deus provocou o aprisionamento de um elemento divino (existente no mais íntimo das almas) no corpo material. Estaríamos neste mundo para pagar uma falta anterior ocorrida, enquanto estávamos em Deus (Schelling, Philosophie et Religion, inEssais, p. 204).
Da matéria provém a individuação, a limitação ao espaço e ao tempo. De tudo isso, a partícula divina que há no homem seria libertada através da morte (Schelling - Philosophie et Religion, pp. 216-217).
O AUTO CONHECIMENTO DIVINO E O CONHECIMENTO HUMANO
Para os idealistas, a criação do universo foi resultante de um processo necessário, existente na Divindade, para que ela se auto-conhecesse (Cfr. Schelling, Conférences de Stuttgart, p. 315).
Entre o Absoluto e o Mundo haveria então idendidade completa. Por isso, segundo Schelling, se pode dizer que o Absoluto na ordem ideal é o Absoluto na ordem real.
Para Schelling, a Natureza é o Espírito visível e o Espírito é a Natureza invisível. Natureza e Espírito formariam o Absoluto. E note-se como essa reversibilidade entre Espírito e Natureza se assemelha ao conceito alquímico de que a matéria é o espírito cristalizado, enquanto o Espírito seria a matéria sublimada, conforme explicam Oetinger e Bengel.
A “Natureza” seria a criadora da realidade fenomenológica.
“No apêndice à Introdução às Idéias (1803),e ainda mais nos Aforismos (1805-1807) ele [Schelling] reconhece o caráter divino da Natureza e a identifica com Deus. Deus é razão, e a razão de Deus se identifica com as idéias de Deus. Mas as idéias de Deus são tudo, portanto, Deus é tudo e é a totalidade do vir a ser que se realiza em infinitas formas. “O Absoluto não é apenas um querer a si mesmo., mas também um querer em infinitos modos, portanto em todas as formas, em todos os graus, e em todas as potências da realidade. A expressão desse eterno e infinito querer é o mundo” (Schelling, Werke, I, II, p. 362. Apud N. Abbagnanano, Storia della Filosofia, Vol. V – La Filosofia del Romanticismo – De Fichte a Nietzsche, p. 78).
Assim como o Absoluto se identifica com a Natureza, unindo sujeito e objeto, assim também o Eu absoluto (noumenal e universal), se identifica com cada eu (fenomênico, individual). Todos os eus seriam uma substância única, sendo os eus individuais emançoes objetivas do Eu noumenal, sujeito universal.
Na obra Sistema do Idealismo Transcendental (1800), Schelling “fala como Fichte, do Eu, ou auto consciência absoluta, mas imediatamente reconhece no eu uma dualidade de forças. Se o eu, ao produzir (e pois no limita-se mediante o objeto produzido) fosse consciente de produzir algo, não existiria para ele um objeto oposto a si, porque esse objeto se revelaria a ele imediatamente como a sua própria atividade. Mas o ato com que o eu produz o objeto, intuindo-o , e o ato pelo qual ele se torna consciente do objeto, refletindo-o, são dois atos diversos. O segundo ato encontra o objeto já produzido e o reconhece pois extranho a si. O primeiro ato, aquele da produção ou intuição, é portanto inconsciente. Schelling distinge no eu uma atividade real que produz o objeto, e uma atividade ideal que o percebe, ou se torna consciente dele. Mas, já que a atividade real (imaginação produtiva) não é conscia de produzir, a atividade ideal sente o objeto como algo estranho, de não colocado por si, portanto como algo externo. A realidade se identifica pois com a produção inconsciente, a idelalidade se identifica com o conhecimennto do produzido e com a consciência (filosófica não originária) do produzir. O caráter inconsciente da produção originária que o eu faz do objeto fundamenta, conforme Schelling, a realidade do conhecimento” (Nicola Abbagnano, Storia della Filosofia, Vol. V – La Filosofia del Romanticismo – De Fichte a Nietzsche, p. 87. Os destaques são do autor).
.
O Absoluto projetou então o mundo como um espelho para se auto conhecer, identificando a si mesmo ( como Sujeito absoluto) com o mundo (como objeto)
O Absoluto, em si, é um eterno ato de conhecimento. Embora seja eterno, nele Shelling distingue três momentos a temporais:
10 momento: O Absoluto se objetiva a si mesmo na Natureza ideal no modelo ideal da Natureza que Schelling chama, como Spinoza, de natura naturans;
20 momento: o Absoluto como objetividade é transformado em Absoluto como subjetividade;
30 momento: é aquele em que a absoluta objetividade e a absoluta subjetividade se fundem sinteticamente num Absoluto único subjetivo-objetivo Cfr. F. Coplestone, A History of Philosophy, Image Books Doubleday, New York, 1963, vol. VII, Modern Philosophy-- From Fichte to Hegel, pp. 136-137).
Da mesma forma, cada eu fenomênico individual teria o conhecimento verdadeiro quando identifica-se a si mesmo (sujeito) com o objeto conhecido, acabando com a distinçao de seu eu com os objetos exteriores.
A EVOLUÇÃO E A HISTÓRIA COMO PROCESSOS DE AUTO-REVELAÇÃO E AUTO-LIMITAÇÃO DE DEUS
Havendo em todo ser criado, como na Divindade originária, um elemento material obscuro e um elemento luminoso divino, em tudo haveria um processo dialético que faria a luz tender a libertar-se das trevas, o divino a libertar-se do que é material.
Nesse processo dialético, a matéria bruta é inconsciente e evoluiria para a matéria viva e consciente. No homem, o espírito divino readquiriria auto-consciência e procura libertar-se definitivamente de sua casca material, para alcançar, pela morte, a divinização (Cfr. Schelling - Conférences de Stuttgart, pp. 325 e 340).
A Gnose do Padre Teillard de Chardin, que tanto influiu na teologia modernista e no Vaticano II, não diz coisa diferente.
Esta auto-conscientização de Deus no homem, isto é, o conhecimento do Absoluto, não seria possível de ser alcançada através da reflexão, mas sim por meio de uma intuição dialética que apreende os contrários como idênticos, fazendo coincidir sujeito e objeto, o Eu e a coisa (Cfr. Schelling - Bruno [M. 328-3229] ed. Abril, São Paulo, 1973, p. 314).
O homem, redentor de si mesmo e da natureza
Fazendo isto, o homem se auto-redimiria e seria o redentor da natureza, levando-a ao seu fim último, que seria a reintegração no Absoluto (Cfr. Schelling - Nature de l liberté humaine, in Essais, ed. cit. p. 297).
Ora, esse tema do homem como redentor de si mesmo é tipicamente gnóstico, e será um dos grandes temas do Romantismo (Cfr. Hans Jonas - La Religion Gnostique, Flammarion, Paris, 1978, p. 93 e 111).
A História é o processo de retorno e de reconstituição do Absoluto
Para Schelling depois da queda de Deus no universo, a evolução começou o processo de retorno ao Absoluto. Na História, esse retorno se torna consciente. Em decorrência, na História, Deus se revela ao homem e se revela a si mesmo. Mais do que isso: Deus realiza-se no processo histórico (Cfr. Schelling - Philosophie et Religion, p.42). O espírito divino tomaria, então, consciência de si mesmo; primeiro, no homem, individualmente considerado; depois, o Absoluto divino alcançaria um estágio superior de consciência e de libertação, no Estado.
Hegel desenvolvera esse ponto.
Jacob Boehme considerava que todo espírito necessitaria de um corpo para não se tornar diabólico. Daí, os filósofos idealistas, particularmente Hegel, afirmarem que todo espírito coletivo nacional - a alma de um povo - necessitaria encarnar-se num Estado. Foi dessa tese que nasceram o nacionalismo, o pan-germanismo, e, mais tarde, o nazismo racista.
O Reino milenarista ecumênico
A última etapa do processo histórico seria a formação de um Reino universal e ecumênico. As nações são limitadas e não podem realizar a união última de todos os espíritos. Por isso, ao final do processo histórico, a realização do Absoluto exigiria a formação de um Estado Universal, que eliminaria tudo o que é particular, individual, nacional. Seria a realização do "Lilienzeit" profetizado por Jacob Boehme, e aspirado por correntes das mais diversas, desde os tradicionalistas, como Joseph de Maistre (Cfr. J. De Maistre - Du Pape, ed. cit., p. XXXIX), e pietistas, como Oetinger, até os marxistas, passando antes pelos românticos. Esse Reino universal exigiria ainda uma fusão de todas as religiões, porque um só é o Absoluto que elas cultuaram com nomes diversos. Surgiria então uma só Igreja - a Igreja ou Religião do Amor, ou do Espírito - profetizada por Joaquim de Fiore, por Jacob Boehme e por Novalis.
AS TRÊS IGREJAS
Curioso ainda é aparecer em Schelling a teoria, tão cara aos gnósticos e maçons, de que haveria na História da Igreja uma sucessão de três igrejas:
- A Igreja de Pedro, ou da fé, que corresponderia à Antiguidade e à Idade Média;
- A igreja de Paulo, ou da Escritura que seria a igreja reformada protestante;
- Finalmente, uma Nova Igreja do Amor, ou do Espírito Santo, em que seria abolida a Fé pela implantação do ecumenismo, igreja na qual a Lei seria abolida, para vigorar apenas o amor, a caridade.
"É surpeendente, portanto, encontrar Schelling dando uma interpretação da história da Cristandade que, sob certos aspectos, é uma reminiscência do Abade do século XII, Joaquim de Fiore. De acordo com Schelling, há três períodos principais no desenvolvimento da Cristandade. O primeiro seria o Petrino, caracterizado e correlacionado com o nível final do ser em Deus, que é identificado com o Pai da teologia trinitária. O segundo período, o Paulino, principia com a Reforma Protestante. Ele é caracterizado pela idéia de liberdade e corresponde com o princípio ideal em Deus, identificado com o Filho. E Schelling vê adiante, no futuro, um terceiro período, o Joanino, no qual haveria uma síntese mais elevada dos dois primeiros períodos. E unirá conjuntamente a lei e a liberdade numa única comunidade cristã. Este terceiro período é correlacionado com o Espírito Santo, o Amor divino, interpretado como uma síntese dos dois primeiros momentos da vida divina interior" (Cfr. F. Copplestone, S.J. - A History of Philosophy, Image Books, New York, 1965, Vol. VII, p. 175; Cfr. Marjorie Reeves - The influence of prophecy in the later Middle-Ages, Oxford- Clarendon Press, 1969, pp. 135-137).
Scholem relaciona essa expectativa milenarista com o conceito de Shemittah, do livro Temunah (Cfr. G. Scholem- A Mística Judaica, p. 181).
E é impossível não verificar ecos clamorosos dessa doutrina herética naquilo que se fez e se ensinou após o Vaticano II, convocado por João XXIII, que disse certa vez, numa audiência: “Eu sou vosso irmão João”.
Friedririch Daniel Ernst SchleiermächeR (1768-1834)
Schleiermächer foi o primeiro teólogo do Romantismo e um dos precursores do Modernismo. Ele era de família pietista, pertenceu e foi educado num grupo dos irmãos morávios. Essas origens explicam sua indiferença dogmática e sua redução da Fé a um mero sentimento do coração.
Entrou na Universidade de Halle. Foi pastor protestante em Berlim
Estudou Spinoza e Kant, que acabaram por destruir nele todo cristianismo verdadeiro.
Ligou-se ao primeiro grupo dos autores românticos, constituído pelos irmãos Schlegel, e colaborou na revista Athaeneum, primeiro órgão do Romantismo.
Em 1799, publicou sua primeira obra Discursos sobre a Religião. A seguir, publicou Monólogos. Em 1800 ainda, publicou Cartas Confidenciais, nas quais explica a teoria exposta por Frederico Schlegel no romance Lucinda, segundo o qual haveria uma unidade do elemento espiritual divino com o sentimento humano, no amor. É claro que essa idéia só podia favorecer a gnose, os amores sentimentais de todo o tipo, e até os amores adulterinos. Schleiermächer teve uma paixão platônica para com a esposa de um seu amigo. Em 1803, ele publicou a obra Crítica da Doutrina Moral. Tornou-se professor em Halle, e depois em Berlim.
Em 1822, publicou sua principal obra A Fé Cristã.Várias de suas obras foram publicadas postumamente
Seguindo Kant, Schleiermächer considerava que o homem era incapaz de aceder ao conhecimento das coisas.
Para ele, a realidade última seria a identidade do Espírito e da Natureza, no universo, e isso constituiria Deus.
“Não haveria Deus sem o Mundo, nem o Mundo sem Deus” (Schleieräacher, Werke, ed. Braun e Bauer, Leipzig,1911-1913, 4 vol, vol III, p. 81. Apud F. Copleston, A History of Philosophy, Modern Philosophy, Image Books, New York,1965, Part I, vol VII, From Fichte to Hegel, p. 189).
Desta forma, Schleiermächer caía ou na Gnose, ou no panteísmo. Ver-se-á logo que ele foi um gnóstico.
Essa identidade entre Deus e o Mundo não poderia ser alcançada pela inteligência, mas somente pelo sentimento, ligado à auto consciência, à uma intuição-sentimento de dependência, que seria a própria essência da religião. A religião seria sentimento, e nunca pensamento doutrinário.
Para ele, a religião era absolutamente separada da Filosofia e da Moral.
A essência da religião não seria nem o pensamento, nem a ação, mas sim apenas intuição e sentimento. A religião intuiria o universo e o divino através do sentimento. A religião via, e visava apenas intuir o infinito no finito, como diziam os românticos, entendendo que havia algo da própria substância divina oculta e aprisionada no finito. A Religião era então definida por Schleiermächer como o sentimento do infinito.
Daí, Schleiermächer conceber a religião mais com algo relacionado com o coração do que com o intelecto, mais uma questão de “fé” do que de conhecimento. Por isso, exatamente, como dirão mais tarde os Modernistas, os dogmas seriam mais símbolos inefáveis e não verdades intelectivas. A religião não seria nem uma crença em supostas verdades, nem um código moral fundamentado nessas crenças. Seria só um sentimento do Infinito, do qual o homem se sente dependente e com ele se sente relacionado, mas não por conheciemnto intelectivo, doutrinário.Por verdades.
A “presença” do infinito no finito, da Divindade no Mundo, faria com que toda a História fosse vista como ação de Deus. Essa seria uma religião viva. A concepção da religião com fundamento na metafísica seria uma tentativa frustra, porque a inteligência e a metafísica seriam incapazes de intuir o infinito no finito. Só o sentimento interior do homem revelaria o infinito presente no homem, e em cada coisa. As coisas individuais, a humanidade, a religião seriam manifestações de um Todo único, que seria a própria Divindade. A humanidade seria apenas uma etapa intermédia entre o indivíduo e o infinito divino.
Toda e qualquer religião acenaria para um infinito que está além da individualidade e além do mundo, através do sentimento interior de cada indivíduo. Mas esse sentimento seria inexprimível em linguagem racional. Daí, o romantismo pretender exprimir vagamente o infinito e o sentimento interior causado pela Divindade aprisionada na natureza.
Para Schleiermächer, os fatos históricos, e mesmo os milagres, enquanto fatos, não terem nenhuma importância e nada provariam. Eles, como qualquer outro fato, seriam apenas acenos para o infinito. Do ponto de vista da religião, tudo seria milagre. Tudo seria revelação. E essa doutrina vai repercutir diretamente no Modernismo de Maurice Blondel e dos modernistas, até hoje.
Para Schleiermächer, Deus não seria substância ou ser imóvel, ato puro. Deus seria, sim, Vida infinita que se revelaria necessariamente no mundo. ( Coplestone, op cit vol. VII, p. 190)
“Deus, na religião, não é tudo, mas apenas parte. O universo é, na religião, mais do que Deus” (Schleiermächer, Redden, II, p. 86, apud Nicola Abbagnano, Storia della Filosofia, TEA, Milano,1993, vol. V, p.35).
Essa frase, só teria algum cabimento se se admite a distinção gnóstica entre Divindade e Deus criador.
A própria idéia de imortalidade da alma seria uma mera aspiração de fusão do homem, enquanto parte finita, no todo infinito da divindade.
“Tornar-se uma coisa só com o infinito, mesmo estando em meio ao finito, ser eterno em um momento do tempo, esta é a imortalidade da religião” (Schleiermächer, Redden, II, p. 86, apud Nicola Abbagnano, Storia della Filosofia, TEA, Milano,1993, vol. V, p.36).
A revelação da Divindade seria uma experiência interior, um sentimento inefável, impossível de ser traduzido em palavras. Daí, a relativização dos dogmas e dos credos. Toda revelação dar-se-ia no sentimento do coração, seria pessoal, no interior de cada homem.
A revelação mostraria que a derradeira realidade de cada homem seria a própria divindade. A revelação verdadeira consistiria no homem ter conhecimento do mistério do homem.
Como a percepção do infinito, em cada homem, é bem imperfeita, disso nasceria uma tendência a relacionar o que se sente pessoalmente com o que os outros sentem, para melhor alcançar a Divindade. Assim nasceriam as religiões organizadas, com sua hierarquia eclesiástica, que buscaria exprimir o sentimento religioso num credo com palavras inteligíveis, coisa porém impossível de se realizar. A infinitude da religião explica a multiplicidade de igrejas, visto que nenhuma igreja concreta, particular, finita poderia exprimir o infinito da Divindade.
“A religião infinita não pode existir senão enquanto todas as infinitas intuições religiosas sejam reais, e reais exatamente na sua diversidade na sua independência recíproca. Cada indivíduo tem a sua religião, e esta pode ser mais ou menos reconhecida e ser encontrada nas religiões já estabelecidas. Mas ainda que permaneça obscura a religião de um indivíduo, ela é sempre um elemento da infinita religiosidade universal” (N. Abbagnano, op. cit. p. 36). É impossível não perceber, nessa formulação, a raiz da doutrina do ecumenismo do Modernismo e do Vaticano II.
Assim como o Modernismo admitia que a religião nascia de um sentimento interior, e, desse modo, toda revelação, de qualquer religião que fosse, seria verdadeira, assim também dizia um dos mestres do Modernismo, o gnóstico romântico Schleiermächer.
Sobre o seu conceito de uma religião ecumênica, que estaria acima de todas as igrejas organizadas, ou seja, das religiões positivas, haveria uma Igreja espiritual, invisível, que seria constituída por elementos de todas as revelações parciais. E a essa Igreja invisível pertenceriam os iniciados nesse conceito gnóstico de religião ecumênica.
As igrejas organizadas estariam para a a Igreja Espititual assim como o fenômeno kantiano estaria para o noumeno.
É o que confirma o seguinte texto de Abbagnano:
“Todas as manifestações individuações religiosas se justificam igualmente, porque todas exprimem o sentimento do infinito e constituem, em seu conjunto, a religião infinita. Mas, enquanto para Hegel o infinito é razão, e absorve e anula, pois, a individualidade, para Schleiermächer o infinito é sentimento, e, portanto, ele exalta a individualidade. O Romantismo estava destinado a oscilar entre a negação da individualidade e a sua exalação, ignorando o equilíbrio da fundamentação da própria individualidade” (N. Abbagnano, Storia della Filosofia, vol. V, La Filosofia del Romanticismo, Ed. TEA, Milano, 1993, p. 36).
É bem interessante comparar este conceito de Schleiermächer de Religião e de Igreja Espiritual, com o conceito de Igreja de Cristo, do Vaticano II, tal como foi apresentado num estudo pela Fraternidade São Pio X, -- (organização a que nos opusemos, denunciando seu cisma pela instituição de Tribunais com pretensos poderes papais), -- trabalho enviado a todos os Cardeais, com o título Do Ecumenismo à Apostasia Silenciosa- 25 anos de Pontificado, Écône, Janeiro de 2.004.
Uma religião valeria pelo sentimento que a gerou, e não pelas verdades que ela pretende possuir. Nenhuma religião teria o monopólio da verdade, que, aliás, seria algo secundário, se comparado com o amor.
Dever-se-ia esperar um mundo regenerado—um Vadutz milenarista—que seria a Civilização do Amor, sem guerras, sem males, sem pobreza, um verdadeiro retorno ao Éden, uma recuperação da inocência primeva. Assim como o Vaticano II, Schleiermächer admitia que era preciso reunir todas as confissões religiosas acima de suas divisões de crença, porque as crenças, sendo produtos da inteligência, deveriam ser postas de lado, buscando a união o sentimento religioso, no amor. A união de todas a religiões se faria buscando o que as une —o amor, a caridade—e deixado entre parênteses o que as divide: o credo e os dogmas.
Schleiermächer distinguia três tipos de religião:
- A religião mais primitiva, que concebia o mundo como um caos, e a divindade ou sob a forma pessoal de um fetiche, ou sob a forma impessoal de um destino cego.
- Aquela em que se divinizavam as forças da natureza, dando origem ao politeísmo (greco-romano).
- Na terceira forma de religião, a Divindade seria concebida como unidade e totalidade do múltiplo, e a religião se tornaria ou monoteísta ou panteísta.
Segundo Schleiermächer, o cristianismo é a forma mais pura de religião.
Entretanto, ele não afirma que Jesus é Deus. Para esse teólogo do sentimento romântico e ancestral do Modernismo, a questão de saber se Jesus é Deus é absolutamente sem sentido. A Divindade de Jesus dependeria da consciência que ele tinha de ser Deus. Tese que prepara Loisy.
Para Schleiermächer, Jesus é o mediador que realiza a conciliação do finito com o infinito. A unidade da natureza divina com a humana, em Cristo, seria a própria unidade que a religião realiza de toda a humanidade e de todo o universo finito com o infinito da Divindade. Maurice Blondel com a sua doutrina da Cristificação, e Teilhard de Chardin, com a sua doutrina do Cristo Ômega não ensinarão uma Gnose diferente.
Para Schleiermächer, natural e sobrenatural seriam duas faces da mesma realidade. Seriam coisas praticamente indistintas. Daí, os românticos misturarem, em suas narrativas, a natureza e a graça. A rom6antica Anna Katharina Emmerick falará de chuvas que traziam graças, fazendo da graça divina algo mágico, que teria manifestações ou comunicações físicas.
Blondel e o Padre Henri de Lubac, entre os Modernistas, a TFP entre os novos tradicionalistas, repetirão essa indistinção entre natural e sobrenatural.
Wilhelm Dilthey (1833 -- 1911)
Dilthey nasceu em 1833, em Biebriche am Rhein (Nassau), e estudou em Basiléia, Kiel, Breslau e Berlim.
Sua primeira obra, escrita ainda em sua juventude, foi Preisschrift über die Hermeneutik Schleiermächers (1860).
Sua obra inacabada mais importante foi Das Problem der Religion.
Todo o problema de Dilthey consistiu na tentativa de conciliar a relatividade histórica mutável de cada religião com o que cada religião tem de absoluto.
Para Dilthey, tudo é história. Ele defende o historicismo, isto é, que cada fenômeno só é verdadeiro em determinadas circunstâncias históricas concretas, e para determinado tempo.
Como, então, afirmar que haveria um valor absoluto em cada religião que transcendia o tempo?
Dilthey inspirou-se profundamente, e quase que exclusivamente, em Schleiermächer, seu grande mestre. Tornou-se amigo íntimo de L. Jonas, genro de Schleiermächer e guardião de seu legado filosófico.
Schleiermächer teria descoberto, segundo Dilthey, que “a essência da religião, aquele elemento constante que se exprime na necessária e providencial pluralidade de religiões” (R. Gibellini. op. cit. p. 38).
Os atuais teólogos do pluralismo religioso não diriam de outro modo. Veja-se, por exemplo, o que escreveu o Padre Jacques Dupuis, que instituiu uma religiosidade cristã hinduísta, numa capela-“ashram”, na Índia, e que, depois, foi nomeado professor na Universidade Gregoriana, em Roma, e, finalmente, teve suas teses repreendidas e condenadas pela Declaração Dominus Iesus.
O romântico Schleiermächer pretendia que a religião fosse, de um lado, uma experiência religiosa única e íntima, uma experiência pessoal, e, ao mesmo tempo, que essa experiência pessoal fosse manifestada numa enorme pluralidade de expressões religiosas.
Dilthey partilhava dessa mesma posição:
“Também Dilthey partilha esse nexo indissolúvel de unicidade da Erlebnis [experiência religiosa] e de pluralidade das Objektivationen [objetivações]: “A religião é um conjunto psíquico, que, como a filosofia, a ciência e a arte, constitui um elemento dos indivíduos e objetiva-se nos modos mais diversos em seus produtos. assim, esse conjunto é nos dado duplamente: como experiência religiosa e como sua objetivação. A experiência permanece sempre subjetiva: só a inteligência das criações religiosas baseadas na experiência retrospectiva torna possível um conhecimento objetivo da religião. É por isso que o procedimento metódico para a determinação da essência da religião deve ater-se às suas criações. A religião existe, na verdade, em formas variadas, cada uma das quais representando um conjunto concreto particular. Cada uma dessas religiões tem uma história, e todas essas criações históricas podem ser submetidas ao método comparativo, para captar a essência da religião, comum a elas” (R. Gibellini, op. cit. p. 39. O destaque é nosso).
Para Dilthey, como para Schleiermächer, “a religião (...) é uma ‘concepção do mundo’, ou seja, um conjunto coerente de sentimentos e de idéias sobre o sentido e sobre o valor da vida” (R. Gibellini, op. cit., p. 40).
“A religião... é a relação viva do homem com o Invisível, que implica a participação integral da pessoa; é uma relação primariamente interior, a experiência de uma “presença” [Como isso parece a linguagem de Monsenhor Giussani !] -- e de uma “dependência”: “A influência do Invisível (Unsichtbares) é a categoria fundamental da vida religiosa elementar” (W. Dilthey, Die Typen der Weltanschauung und ihre Ausbildung in den metaphysischen Systemen, apud R Gibellini, op cit., p.40).
Schleiermächer não considerava que a essência da religião estivesse nem nos dogmas, isto é, naquilo que se consideram as verdades da religião, nem nos ritos ou cerimônias, mas sim na relação direta do homem com a Divindade. Os Modernistas repetirão essa mesma doutrina, que será condenada na encíclica Pascendi, e que, hoje, se ensina quase que por toda parte.
Veja-se a coincidência do pensamento de Dilthey com o dos modernistas:
“Dilthey não rejeita nem o intimismo nem o sentimentalismo de Schleiermächer -- de preferência os supera (...) A própria teologia, que é a extensão natural da religião na humanidade racional, enquanto busca, na medida do possível, racionalizar uma experiência originariamente não racional, constitui, por certo, o ponto de passagem da religião para a filosofia; mas deve continuamente deter-se no seu processo de clarificação intelectual e reencontrar a sua força no dado fundamental, obscuro e dinâmico, da experiência religiosa, que é a relação vital com o Uno Todo, mediante a oração e o sacrifício” (R. Gibellini, op. cit., p. 41).
Assim como os Modernistas dirão que o dogma jamais explicita conveniente e completamente a experiência religiosa interior, assim também o dirá Dilthey, como explica Gibellini:
“Nessas intuições do mundo, sempre se conserva um núcleo obscuro, especificamente religioso, que o trabalho conceitual dos teólogos jamais é capaz de explicar e de justificar. Jamais pode ser superada a unilateralidade de uma experiência que brota da relação de oração, de solicitação, de sacrifício de si mesmo com seres supremos e que das relações da alma com eles consegue captar os seus predicados. daqui nasce uma relação pela qual a intuição religiosa do mundo é, sim, a preparação da instituição metafísica, mas não pode jamais resolver-se completamente neta última” ( R. Gibellini, op. cit., p. 41).
“De Schleiermächer, portanto, Dilthey deriva e conserva a convicção do caráter originário e originalmente sentimental da religião, inconfundível com qualquer outra experiência: “A religião deve ser uma postura especial diante do mundo, deve ter sua própria legítima origem, ou então é uma mistura impura, uma violação da crítica da esfera consciencial da moral e da ciência. Existe uma experiência religiosa, que age na vida psíquica de maneira legítima, autônoma, originária e indestrutível: é essa experiência vivida a origem de todos os dogmas, cerimônias e organizações da vida religiosa comunitária. Essa foi a grande descoberta de Schleiermächer nos “Discursos sobre a Religião” (R. Gibellini, op. cit. , p. 42).
Se de Schleiermächer Dilthey herdou a idéia da experiência religiosa pessoal com a Divindade, de Ferdinand Christian Baur, Dilthey adotou a sua idéia de historicidade de todo fenômeno espiritual e de sua incompreensibilidade, se examinado fora de sua condição histórica.
Como os Modernistas, mais tarde, Dilthey considerará que a fé como experiência religiosa original, é superior ao dogma que a expressa, aliás, imperfeitamente.
“A atenção do historiador pelas objetivações da religião não exclui a reivindicação da prioridade da fé sobre o dogma (Schleiermächer), embora seja reconhecida a necessidade de uma tradução histórica da fé no dogma historicamente condicionado (Baur). O adversário comum, aliás, tanto de Schleiermächer-Baur quanto de Dilthey, é a ortodoxia tradicional, surda à consciência histórica. O dogma não esgota a religião, mas apenas exprime de modo cifrado o sentir religioso de certa época, o qual é um elemento de um todo mais vasto, que é a história das religiões, na qual diversa e sucessivamente se encarna o único e perene Erlebnis da “religio”. Eis o que escreverá Dilthey a este respeito, em dezembro de 1892, ao Conde Yorck”
“Todos os dogmas devem ser levados ao seu universal valor de vida para cada vitalidade humana. Eles foram concebidos numa delimitação historicamente fundada. Libertos dela, são naturalmente a consciência da natureza transcendental e supra racional da historicidade em geral.. Nessa proposição, uno-me à tendência universal do que caracterizo como teísmo universal, teologia transcendental. Rejeito, porém, ao mesmo tempo, a concepção intelectual do dogma. Ela predomina tanto na interpretação especulativa de Hegel e Baur quanto na luta de Ritschl e Harnack “; para que refliaem, seja qual for o gênero a que pertençam, a partir da profundeza do espírito, tudo o que está contido nesses poderosos símbolos é envolto por uma relação transcendental, histórica, prescindindo totalmente da particularidade teológica”. (Carteio entre Paul Yorck von Wartenburg e W. Dilthey , 1877- 1897, p. 341, apud R. Gibellini, op. cit., p. 43).
Em outra carta de Dilthey ao Conde de Yorck, em Setembro de 1897, se pode ler o seguinte:
“No ponto de partida, estou de acordo com Schleiermächer. Também a visão do mundo só pode ser desenvolvida a partir da análise do sujeito em suas relações com o que o influencia e ao qual reage. Não se pode ter a natureza em si e dela aprender o que seriam e o que significariam o mundo e a vida. É preciso, pelo contrário, basear-se no homem histórico como ponto de partida. Ora, a sua concepção atemporal e a-histórica das formas de vida ignora tudo isso. Também quanto ao ulterior ponto central estamos de acordo com ele, porque o estamos com todos os filósofos místicos, historiadores e heróicos.. É preciso partir da vida. Isso não quer dizer que ela deva ser analisada, mas que é preciso revivê-la em todas as suas formas e que é preciso tirar as conseqüências internas que existam nela. A filosofia é uma ação que leva a sério e pensa a vida, isto é, o sujeito nas suas relações como vitalidade. Este foi o ponto forte de sua personalidade: ele sabia que o homem quer por em ação o que existe em nós, a relação com algo que se deve entender como transcendente na simbolização e nas sumas figuras, quer reviver a experiência vivida (hermenêutica).”(Dilthey - Yorck, Carteio, p. 353, apud R. Gibbelini, op. cit., p. 44).
Gibellini lembra que, no desenvolvimento da filosofia da religião, autores como Otto, Scheler, van der Leeuw, Guardini, Eliade e Wachy, aplicaram o método fenomenológico para resgatar a experiência religiosa. (Cfr. R. Gibellini, op. cit. p. 48).
Capítulo 4:
TEORIA DO CONHECIMENTO NA GNOSE DE BERGSON
“O sistema bergsoniano é essencialmente anti intelectualista”
Albert Farges
Um filósofo que influenciou diretamente o Modernismo foi Henri Bergson. Sua teoria do conheciemnto é francamente anti intelectual. Decididamente, ele opõe a intuição à intelecção, negando qualquer valor à razão. Desse modo, ele é um pensador claramente gnóstico, propondo como solução para a o problema da verdade o princíio de imanência que visa acabar com a dicotomia entre sujeito e objeto, identificando a ambos através do método intuitivo. Ora, se o objeto do conhecimento é Deus, esse principio conduz diretamente à Gnose. E quando o objeto do conhecimento é o Mundo, se cai no panteísmo. De todo modo, o princípio de imanência, que vai ser fundamental para a filosofia do modernista Blondel, leva à identificação do Eu com o Mundo e com Deus (Eu=mundo= Deus). E esse princípio de imanência, no sentido dado por Bergson e Blondel foi repelido por São Pio X na encíclica Pascendi que condenou o Modernismo
a) O Conhecimento é Inefável
Para Bergson, sendo o conhecimento inefável...“Desde que falamos, mentimos”
(Jacques Maritain. Op. cit. p. 69).
A Inteligência
“O mundo moderno veio à luz como uma revolta contra a ordem intelectual da Idade Média”.(Simpson, The Gothic Cathedral).
A cosmovisão católica medieval era sábia e se fundamentava no ser e no conhecimento intelectual do ser, por meio da abstração.
A Gnose da Modernidade recusa o ser e, por isso mesmo, recusa o conhecimento intelectivo da realidade. A Modernidade, como a gnose, é anti-metafísica e anti-racional.
Para Francês Yates, a Modernidade significa magia mais Gnose (Cfr. F. Yates, Giordano Bruno e a Tradição Hermética ed. Cultrix, p. 180).
Essa Gnose do Humanismo renascentista se desenvolveu em Descartes, Kant, Hegel e, depois, penetrou na Igreja com o Modernismo de Blondel e de Bergson, alcançando seu triunfo no Modernismo anti intelectualista do Vaticano II.
O Modernismo recusa o ser e a verdade estáveis. Recusa a inteligência e abstração que conduzem á verdade objetiva e estável.
b) Inteligência X Intuição
Na filosofia de Bergson, assim como a mudança se opõe ao ser, a intuição se opõe paralelamente à inteligência.
c) A Inteligência seria enganadora
Esta seria voltada para a matéria, e, influenciada por ela, tudo geometriza, fixa e divide. A consciência enganaria o homem porque, conceituando, produz uma visão petrificada de cada coisa, fazendo supor que existe fixidez. Mais ainda, a inteligência isola cada conceito, fazendo imaginar que a realidade é fixa, e formada por um número infinito de seres isolados uns dos outros. Para Bergson, a inteligência nega a mudança, e nos ilude forjando miragens de seres inexistentes. A lógica e a razão, trabalhando com conceitos ilusórios, completariam o engano do homem.
“Então, pode-se bem dizer que a inteligência só conhece o imóvel e o descontínuo, que ela não compreende nada da vida, que ela decompõe artificialmente o real, que ela substitui a realidade por elementos fictícios escolhidos no que é já conhecido, e que assim, buscando a facilidade, não a verdade, e esvaziando todas as coisas da sua realidade própria, ela não pode mais se deter senão nos elementos quantitativos e geométricos aos quais ela quer tudo reduzir. Corruptio optimi péssima” (J. Maritain, op cit., p. 55).
Por esse motivo, Bergson considera que o ver tudo fixamente, e como se o todo fosse uma mosaico estilhaçado, constituiria o “pecado do raciocinar” (J. Maritain, op cit., p. 183).
“A faculdade humana que corresponde à matéria espacial é a inteligência, e esta se caracteriza por sua exclusiva orientação para a ação. É a ação que comanda, sem mais, a forma da inteligência. Como para a ação necessitamos de coisas exatamente definidas, o objeto principal da inteligência é o fixo corpóreo, inorganizado, fragmentário; a inteligência não concebe claramente senão o imóvel. Seu domínio é a matéria. Ela a capta para transformar os corpos em instrumentos; é o órgão do homo faber e subordinado, essencialmente, à construção de instrumentos. (...) Bergson abandona o fenomenismo de Kant e dos positivistas, e confere à inteligência, no domínio do corpóreo, a capacidade de penetrar na essência das coisas. Segundo ele, a inteligência é também analítica, ou seja, capaz de decompor segundo qualquer lei ou sistema e de recompor de novo. Suas características são a clareza e a capacidade de distinguir.
“Mas, ao mesmo tempo, a inteligência caracteriza-se igualmente pelo fato de, por natureza, lhe ser impossível compreender a duração real, a vida. Constituída de acordo com a matéria, ela transfere as formas materiais, extensivas, calculáveis, claras e determinadas, ao mundo da duração; interrompe a corrente vital única e introduz nela a discontinuidade, o espaço e a necessidade. Não pode sequer compreender o simples movimento local, como o provam os paradoxos de Zenão”. (J. M. Bochenski, Henri Bergson, Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. in A Filosofia Contemporânea Ocidental, Herder, São Paulo, 1968).
Maritain confirma essa recusa de Bergson dos dados da inteligência com relação ao real:
“Precisamente concedendo a Kant seu pressuposto essencial, admitindo com ele que a abstração só permite ver que, de si, o conceito é vazio, inapto a nos comunicar o real—simples fórmula exprimindo não mais as funções a priori kantianas, mas as atitudes práticas de nosso espírito fabricador, e os hábitos da materialidade – sustentando então que, por si mesma, a inteligência, modelada sobre a corporalidade, não pode, desde que ela cessa de manipular matematicamente a matéria, senão nos enclausurar num mundo de ilusões mecanicistas; e pedindo então conseqüentemente os meios para uma evasão, no real, há uma intuição que transcende a inteligência, e que mergulhará como o sentido, e muito mais ainda do que ele, no puro concreto como tal” (J. Maritain, op. cit., p. XXVI).
Para Bergson, “porque a duração contínua da vida escapa a toda lógica, e não poderia se acomodar ao princípio de não-contradição, o método tornado necessário para esta densidade própria às coisas da alma só pode ser inteiramente “irracional”, nota Vladimir Jankélevitch(Apud J. Maritain, op. cit., p.XLIX).
Para Bergson, o conhecer não poderia ser intelectual, mas vivencial. “Quanto mais se conhecesse intelectualmente menos se compreenderia. A tragédia do espírito consiste em que nosso conhecimento dos objetos como que nos obstrui para a concepção íntima e central” (J. Maritain, op. cit., p. L ).
Daí, os seguidores de Bergson desprezarem o estudo intelectual e o conhecimento por abstração. Mais que a erudição, valeria uma captação quase que mágica do real por meio de uma misteriosa intuição não racional.
É a inteligência que nos enganaria, pondo os princípios de identidade e de não-contradição, princípios que deveríamos abandonar para atingir a realidade pelo único meio possível de conhecimento: a intuição mística, não conceitual, mas experimental.
“O sistema de Bergson é essencialmente anti intelectualista” (Albert Farges, La Philosophie de M. Bergson, p. 463, apud Padre Diamandino Martins, S.J., Bergson, a Intuição como Método da Metafísica, Livraria Tavares Martins, Porto, 1946, p. 59).
É o que afirma também Maritain:
“O bergsonismo é, portanto, essencialmente uma filosofia anti intelectualista”; ele nega à inteligência seu privilégio de faculdade do verdadeiro” (J. Maritain, op. cit., p. 121).
Despedaçar o real universal em conceitos, raciocinar, seria cometer o pecado de pensar (Cfr. J. Maritain, op. cit., p. 183).
A inteligência seria abstrativa, universalizante, racionalista, e discursiva. Ela só contornaria o objeto do conhecimento.
A intuição, pelo contrário, seria experimental e não teórica ou abstrativa; seria do singular e não o conhecimento de um conceito universal; seria exclusiva, pessoal; unificadora do sujeito com o objeto; inefável, e, por isso mesmo incomunicável.
Querer transmitir os conceitos seria ilusão, pois que o conhecimento verdadeiro – que só a intuição atinge—seria inefável.
Portanto, falar, ou escrever, seria mentir.
E Bergson disse e escreveu isso!
Logo, mentiu.
d) A Intuição não engana
A intuição daria, então, um conhecimento oposto ao da inteligência, pois que nos proporcionaria um conhecimento absoluto do objeto. Só a intuição teria a capacidade de “apreender a verdade, graças a um processo de conhecimento sui generis, graças a um contato imediato, a uma coincidência absoluta com o real” (Cfr. J. Maritain, op. cit., p. 125).
Conforme Bergson, “a linguagem e a inteligência fixam termos que realmente não existem. Tal conhecimento não é, portanto, um conhecimento metafísico da realidade” (Padre Diamandino Martins, S.J., Bergson, a Intuição como Método da Metafísica, Livraria Tavares Martins, Porto, 1946, p. 61).
“Em resumo, existem dois domínios: de um lado, o domínio da matéria espacial e rígida, subordinado à inteligência prática; de outro lado, o domínio da vida e da consciência que dura, ao qual corresponde a intuição”. (J. M. Bochenski, Henri Bergson, Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. in A Filosofia Contemporânea Ocidental, Herder, São Paulo, 1968).
Bergson é bem um filósofo moderno já que para a Filosofia Moderna o conhecimento intelectual seria falsificador do real.
“Para a Filosofia Moderna haveria um outro recurso último que não a inteligência. Se fosse possível à Filosofia Moderna demonstrar que ao lado do nosso conhecimento ordinário, acima da inteligência, haveria um outro modo de conhecimento, uma faculdade mais intuitiva e mais próxima do absoluto; se lhe fosse possível agarrar essa faculdade, e lhe arrancar o segredo do real, não poderia ela sair, ao mesmo tempo, do absurdo círculo indicado mais acima, e do dilema de que acabamos de falar; de um lado, determinando, graças a este conhecimento superior, a verdadeira relação do sujeito com o objeto, e julgando assim a inteligência e a certeza; de outro lado concedendo que a inteligência conduz invencivelmente ao mecanicismo, mas sustentando que uma faculdade mais alta nos faz “transcender” o mecanicismo e nos introduz no absoluto? Ao mesmo tempo, a Filosofia teria o orgulho de permanecer verdadeiramente moderna, porque ela teria achado um novo fundamento para o pensamento humano, o mínimo indispensável para toda doutrina que se respeita” (J. Maritain, op. cit., p.5).
Ora, esse conhecimento intuitivo pretensamente superior ao intelectual, esse conhecimento que permitiria aceder ao absoluto de modo irracional, não conceitual, é aquilo que sempre se chamou de Gnose. Bergson é um gnóstico moderno.
“A operação pela qual nós nos apoderamos de nós mesmos no vir-a-ser, e pela qual, transportando-nos para o interior das coisas, tomamos contato com a essência das coisas, o Sr.. Bergson a chama de intuição. A intuição não raciocina, não discorre, não compõe, e não divide. Pois que ela é a própria consciência se voltando sobre a duração, e porque a duração é o fundo vivo no qual todas as coisas se comunicam, ela nos faz coincidir com o objeto conhecido, ou antes sentido, ou melhor vivido, ela nos assimila, numa experiência transcendente e inexprimível, à sua mais íntima realidade: “esta intuição atinge o absoluto”(J. Maritain, op. , cit., pp. 7-8).
Não se poderia descrever melhor a experiência mística da Gnose em sua pretensão de reunir o éon divino de cada ser ao todo da Divindade universal, ao Absoluto.
O conhecimento intuitivo bergsoniano é uma forma de Gnose.
A Intuição
Bergson é muito vago sobre o que entende por intuição. E isto é bem compreensível, visto que ele afirma que a intuição é inefável. Daí, as várias formulações brumosas do que seria a intuição.
“A intuição, sendo de si mesma evanescente, pode e deve exprimir-se, ou antes, ser sugerida, em representações mais flexíveis e mais fluidas que os conceitos ordinários” (J. Maritain, Op. cit.,p. 67).
Sendo a intuição incomunicável, inefável, ela “não pode ser traduzida em conceitos ou proposições. Somente metáforas sensíveis podem sugerir a outrem o que percebemos, ajudando outros a fazerem o mesmo esforço metafísico”( J. Maritain, op. cit., p. 92).
O bergsonismo prefere metáforas e comparações a conceitos, imagens a idéias.
Por exemplo, segundo Lydie Adolphe:
Intuição filosófica, seria expressão para designar” o conhecimento íntimo do espírito pelo espírito, subsidiariamente o conhecimento, pelo espírito, daquilo que há de essencial na matéria” e que está no fundo” [das coisas] (Bergson, La Pensée et le Mouvant, p. 244, apud Lydie Adolphe, op. cit. p. 139).
Para Bergson, a inteligência procura conhecer o objeto, girando em torno dele, enquanto a intuição penetra no objeto (cfr. Bergson, La Pensée et le Mouvant, p. 202).
Para Bergson, a intuição resulta de uma experiência, pois “não há outra fonte de conhecimento, a não ser a experiência (Bergson, Deux Sources, p. 265 apud, Fr. Sébastien Tauzin, O.P., Bergson e São Tomaz, Desclée de Brouwer, Rio de Janeiro, 1943, p. 70).
“Só a intuição é capaz de atingir imediatamente na sua totalidade concreta, o real” (Padre Diamantino Martins, S. J., Bergson, Livraria Tavares Martins, Porto 1946, p.107).
Contra o que ele considera a falsa ciência do intelecto, Bergson opõe o conhecimento intuitivo da duração, do impulso vital causador da mudança perpétua. Só a intuição nos permitiria aceder ao verdadeiro conhecimento, não racional, não conceitual, não intelectual, do perpétuo mudar. Desse modo,
Bergson opõe conhecimento intuitivo a conhecimento intelectual.
“Julgo que um dos sinais aparentes mais característicos do bergsonismo, encontra-sena oposição entre inteligência e intuição(...)” (J. Maritain, op. cit., p. XIX).
“Mas, de fato, a noção bergsoniana da duração e a da intuição são estritamente correlativas, elas não podem subsistir uma sem a outra” (...)” (J. Maritain, op. cit., p. XIX).
“A intuição bergsoniana se caracteriza essencialmente por oposição ao conhecimento intelectual.
“O conhecimento intelectual é abstrato, universal, e se serve do raciocínio ou do discurso. O conhecimento intuitivo requerido pelo bergsonismo será experimental, singular; excludente do raciocínio e do discurso, ao menos no que propriamente o constitui”. A intuição, nos diz Bergson, transcende a inteligência e a razão, é uma simpatia de todo o nosso ser com o real pela qual nós no comunicamos plena e absolutamente com ele, se bem que de modo fugidio, e por assim dizer evanescente” (J. Maritain, op. cit., p.123).
O conhecimento intuitivo seria como que uma iluminação fulgurante, mas, momentânea, que nos uniria ao objeto conhecido, determinando uma como que fusão do sujeito conhecedor com o objeto conhecido.
Só a intuição, oposta à inteligência, seria capaz de captar a realidade ”graças a um processo sui generis de conhecimento, graças a um contacto imediato, a uma coincidência absoluta com o real, isto é a intuição” (Cfr. J. Maritain, op. cit., p.124).
A “Metafísica” decorrente da idéia de duração e vir a ser exigiria uma “experiência integral” do mudar para produzir o conhecimento do fluxo universal (Cfr. J. Maritain, op. cit., p.123).
“Onde se deve, pois buscar o conhecimento pleno da realidade, da Metafísica verdadeira? Na direção do instinto, na direção da simpatia” (Padre Diamandino Martins, S.J., Bergson, a Intuição como Método da Metafísica, Livraria Tavares Martins, Porto, 1946, p. 54).
O conhecimento intuitivo do mudar proposto por Bergson é um conhecimento não intelectivo, mas experimental, místico, que é de fato uma gnose, no sentido literal desta palavra.
“Só podemos conhecer a duração graças à intuição; mas com ela conhecemo-la diretamente e como algo íntimo. A intuição distingue-se por características que se contrapõem às características da inteligência. Órgão do homo sapiens, a intuição não está ao serviço da prática; seu objeto é o fluente, o orgânico, o que está em marcha; só ela pode captar a duração. Enquanto a inteligência analisa, decompõe, para preparar a ação, a intuição é uma simples visão, que não decompõe nem compõe, mas vive a realidade da duração. Não se adquire facilmente a intuição; tão habituados estamos ao uso da inteligência que se torna necessária uma viragem íntima violenta, contrária a nossas inclinações naturais, para podermos exercitar a intuição, e só em momentos favoráveis e fugazes somos capazes de o fazer”. (J. M. Bochenski, Henri Bergson, Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. in A Filosofia Contemporânea Ocidental, Herder, São Paulo, 1968).
e) Intuição é flash iluminante evanescente inefável
A intuição daria um conhecimento fulgurante, mas fugaz do real. Seria como que um “flash” de luz, que permitia unir o sujeito conhecedor com o objeto do conhecimento, pela união das “almas”, que, como vimos, estão em tudo e que constituem uma só alma.
f) Intuição identifica sujeito e objeto causando a Imanência
Essa identificação do sujeito com o objeto constituiria o princípio de imanência, tão querido dos modernistas, e que foi condenado na encíclica Pascendi.
É o que explica o Padre Macdowell:
“Reduzida à sua expressão mais simples, a idéia de imanência implica apenas que a realidade só nos é acessível enquanto presente à consciência. Seria evidentemente impossível, para o sujeito sair de si mesmo para considerar-se o ente fora da própria consciência. Daí se segue que a conformidade entre o conteúdo imanente do pensar e o seu objeto não é obtida nem reconhecida através da comparação entre um e outro”(Padre J. A. Macdowell, S.J., A Gênese da Ontologia Fundamental de Martin Heidegger, Editora Herder, São Paulo, Edusp, 1970, p. 51).
Portanto, o princípio de imanência identificaria o sujeito com o objeto, permitindo o verdadeiro conhecimento. Desse modo, Deus e Mundo, como objetos do conhecimento, só nos seriam conhecidos pela identificação do eu com Deus e com o mundo. Deus se tornaria assim imanente ao homem. Daí o panteísmo ou a gnose da modernidade e do modernismo.
A intuição daria o conhecimento verdadeiro, superior ao da abstração intelectiva:
“Caracteriza-se a intuição como supra intelectual. Para além do conceito, e mesmo virando contra ele a direção do pensamento, além e acima de tudo o que a atividade da inteligência humana comporta inevitavelmente de abstrato e de propriamente racional, um conhecimento imediato, uma intuição do real, que é espírito, é “o instrumento específico” da filosofia. A intuição alcança o espírito”. (Carta de Bergson a M. Chevalier). Em outros termos, uma captação direta e supra conceitual da natureza do espírito; uma percepção imediata e concreta do universo metafísico, por mais esvaescente que se a declare, ´por mais contrária à inclinação natural da inteligência, é o único órgão proporcionado do conhecimento filosófico, enquanto este se eleva acima da matéria”.(J. Maritain, op. cit., pp. XXVI – XVII).
Porém, bem nota Maritain que a intuição bergsoniana, negando que a inteligência seja capaz de, pela abstração captar o real, ela é, de fato, infra intelectual:
“De outro lado, não adianta que se nos apresente a intuição bergsoniana como “supra intelectual”, ou como “ultra-intelectual” , é preciso reconhecer que, de fato na realidade, ela só pode ser infra-intelectual” ”(J. Maritain, op. cit., p. XVII).
Como bem nota Maritain, Bergson mutila a inteligência.
“Sendo a atitude da inteligência exclusivamente prática, a filosofia não pode utilizar senão a intuição. Os conhecimentos, obtidos por este meio, não podem ser expressos em idéias claras e precisas, nem tampouco são possíveis as demonstrações. A única coisa que o filósofo pode fazer é ajudar os outros a experimentarem uma intuição semelhante à dele. Assim se explica a riqueza de imagens sugestivas que as obras de Bergson oferecem”. (J. M. Bochenski, Henri Bergson, Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. in A Filosofia Contemporânea Ocidental, Herder, São Paulo, 1968).
Para se ter a intuição, seria necessário um esforço imenso, a fim de contrariar e de anular o processo normal, intelectual, do conhecer humano.
Frei Tauzin aponta qual seria o método para se obter a experiência da intuição.
Seria preciso:
- eliminar toda memória (lembranças, recordações) assim como todos os afetos;
- não fazer distinções e classificações;
- tentar quebrar os quadros da linguagem; “rejeitar expressões verbais” Padre Diamantino Martins, S. J., Bergson, Livraria Tavares Martins, Porto, 1946, p.121)
- combater a noção de estabilidade das coisas;
- procurar unir o ver com o querer, isto é procurar conhecer pelo amor;
O conhecimento por intuição assim obtido será momentâneo e evanescente. Seria como um flash, extremamente luminoso, mas passageiro, fugidio, evanescente, inefável, e, por isso mesmo, incomunicável. Na realidade, a intuição bergsoniana é uma verdadeira experiência do tipo místico. (Cfr. Fr. Sébastien Tauzin, O.P., Bergson e São Tomaz, Desclée de Brouwer, Rio de Janeiro, 1943, pp. 71-72).
Quem tivesse um flash, uma intuição, poderia dizer: “Quem viu, viu. Quem não viu, não viu”, pois o que se capta no tal flash intuitivo seria incomunicável.
Também Lydie Adolphe relaciona a intuição bergsoniana com a mística unificadora do sujeito com o objeto do conhecimento ou do amor, isto é, ao princípio de imanência:
“Cremos que é nesse sentido que é preciso compreender a intuição bergsoniana. A intuição deve coincidir em seu ritmo com todos os demais anéis da cadeia [do mudar], com todas as durações respectivas dos seres. Há assim como que uma comunhão, uma “relação”, no sentido místico da palavra, entre o sujeito e o objeto, independentemente do espaço e do tempo. Esta coincidência é comunhão, endosmose, derramamento mutuo, transmutação insuspeitada, de um modo geral, troca. Como definir de outro modo a ação?”(Lydie Adolphe , op. cit. p. 178).
Há, sim, uma palavra que define bem esse derramamento mútuo do sujeito no objeto e deste no sujeito: Kenosis.
É na doutrina eslavófila e gnóstica imanentista da Kenosis que se dá essa fusão do conhecedor no conhecido, por intuição, de modo que um se identifique com o outro, esvaziando-se nele. Sendo um no outro.
A intuição bergsoniana é kenótica sem que ele use esse termo. E a Kenosis é um conceito imanentista da Gnose romântica dos místicos eslavófilos.
Que a intuição de Bergson, sob forma de filosofia é uma Gnose que busca fazer conhecer que somos algo que desprendeu do todo original, e que, para salvar-nos, temos que conhecer isso, e buscar retornar à união primeva com o todo em perpetua evolução é fácil de entender nestas palavras de Bergson:
“A filosofia não pode ser senão um esforço para fundir-se de novo no todo. A inteligência, se reabsorvendo em seu princípio, reviverá ao avesso sua própria gênese” (Bergson, L´Évolution Créatrice, p. 209. apud Lydie Adolphe, op. cit. p. 182).
E isso é claramente Gnose e imanentismo.
Se a intuição produz uma união do sujeito com o objeto, então um caminho para alcançar a intuição seria a simpatia, que já é uma certa forma de união no sentir com o outro. “Simpatia é, portanto, caminho da intuição do exterior” (Fr. Sébastien Tauzin, O.P., Bergson e São Tomaz, Desclée de Brouwer, Rio de Janeiro, 1943, p. 82).
“A intuição” seria “a coincidência vivida, sentida do sujeito e do objeto” (J. Maritain, op. cit., p. 13).
“A intuição do sr. Bergson é uma identificação vivida do espírito e da coisa em seu ser real (e não em seu ser intencional, que o sr. Bergson não poderia admitir).bem que supra –intelectual na intenção do sr. Bergson, ela se reduz na realidade à ordem sensível pois que ela é uma experiência da própria materialidade da coisa(...) Com uma tal intuição nós não damos luz às coisas, nós vamos buscar nas coisas um contato que nos transforme nelas. Nós não possuímos as coisas, somos possuídos por elas, nós não intelectualizamos a matéria, mas materializamos o espírito” (J. Maritain, op. cit., p. 64).
Seria, de fato, uma intuição cega.
g) Intuição, “Mergulho” e Simpatia.
Desse modo a intuição seria uma imersão nossa nas coisas, um “mergulho” nas coisas para que nos identificássemos com elas e, por elas, ao todo universal, ao absoluto.
O próprio Maritain alude à similitude que tem a intuição simpática bergsoniana com as experiências místicas da Gnose e das seitas teosóficas:
“(...) enfim, a uma parte do misticismo natural que aparentaria esta intuição ao êxtase de Plotino, e com as diversas imitações que as seitas gnósticas ou teosóficas tentaram da verdadeira contemplação” (J. Maritain, op. cit., p. 65).
Seria a simpatia que abriria caminho para a intuição, a qual seria um como que mergulho no objeto intuído:
“Donde se segue que um absoluto só pode ser atingido numa intuição, isto é, na ‘simpatia pela qual nos transportamos ao interior dum objeto, para coincidir com aquilo que ele tem de único,e conseqüentemente de inexprimível” (Bergson, Introduction à la Métaphysique, p. 205 , apud Padre Diamantino Martins, S. J., Bergson, Livraria Tavares Martins, Porto, 1946, p.107).
Essa idéia da identificação plena do sujeito com o objeto através do “mergulho” da intuição levou Maritain a fazer os seguintes comentários:
A doutrina de Bergson “opõe então sua intuição à idéia, ao conceito, ao conhecimento abstrato; e à razão e ao conhecimento discursivo. Ela não vê que, suprimindo do conhecimento a idéia, isto é, a similitude subjetiva do objeto, formada no sujeito conforme o modo de ser do sujeito, ela se condena a fazer de seu conhecimento intuitivo uma identificação do objeto e do sujeito, conforme o modo de ser do objeto; de modo que para ter, nesse sentido, a intuição da vida vegetativa ou da matéria, seria preciso que de um certo modo o filósofo se tornasse, ele mesmo, materialmente, vegetal ou mineral. A intuição bergsoniana, deste ponto de vista, só pode nos aparecer como uma tentativa de fazer violência ao espírito para absorvê-lo na materialidade das coisas” (Jacques Maritain, La Philosophie Bergsonienne,Librarie P. Téqui, Paris, 1948, p. 133).
E ainda :
“Deixemos agora de lado a lógica e o raciocínio, e tentemos captar o real, não mais por uma idéia, e graças ao conhecimento intelectual, mas diretamente em si mesmo, graças a uma espécie de simpatia vivida que nos faz coincidir com ele, ou antes, para chamar as coisas por seu nome, por uma dilatação de percepção, e graças a um esforço de nossa alma toda para nos transformar no objeto, para enganá-lo, [pour le jouer], para entrar nele”( J. Maritain, op. cit., p. 91).
Intuindo um rubi, o homem unindo-se a ele se “rubinizaria”; intuindo uma safira, ele se safirizaria, intuindo o mar, ele se identificaria com ele, etc... Intuindo Deus...
“A intuição não é uma visão de algo, mas contato, é bem uma simpatia ‘ pela qual se daria um transporte ao interior de um objeto para coincidir com aquilo que ele tem de único, e, por conseqüência de inexprimível” Bergson, La Pensée et le Mouvant, p. 205, apud Lydie Adolphe, op. cit. p. 163).
Alguns pretendem que este modo de conhecimento intuitivo, pelo qual se daria um “mergulho” no outro, é relacionado como conhecimento por conaturalidade de que falam Aristóteles e São Tomás. Ora, o conhecimento por conaturalidade dar-se-ia, segundo Aristóteles e São Tomás quando alguém, possuindo uma certa virtude, embora sem ter a ciência dela, teria um certo conhecimento de quem atua de acordo com essa mesma virtude.
Bergson não diz isto.
Bergson julga que, por meio da intuição haveria uma coincidência do intuidor com o intuído, que se tornariam um só e o mesmo absoluto.
Daí, escrever Frei Tauzin:
“Se conhecer é ser, conhecer o outro é ser o outro” (Frei Sébastien Tauzin, O.P., Bergson e São Tomaz, Desclée de Brouwer, Rio de Janeiro, 1943, p. 272).
h) Supervalorização da Imaginação
Outro meio auxiliar para alcançar a intuição seria a imaginação:
, p. 202, apud Padre Diamantino Martins, S. J., Bergson, Livraria Tavares Martins, Porto, 1946, p.105).
“Se falamos dum movimento absoluto, é, diz Bergson, porque atribuímos ao móvel ‘um interior e como que estados de alma ”e neles nos inserimos“ por um esforço de imaginação” (Bergson, Introduction à la Métaphysique. La Pensée et le Mouvant
É interessante notar como a intuição bergsoniana influiu na Arte Moderna, especialmente no Surrealismo, pois disse Bergson que ela exige ação violenta que rasgue o véu da figuração simbólica que recobre a realidade. Ela exigiria um olhar ‘naif’ [ingênuo] para alcançar uma outra realidade superior àquela que vemos (Cfr.Lydie Adolphe, op. cit., p. 165).
i) Nova Moral “Aberta” contra a Moral “Fechada”
A filosofia do devir de Bergson deu origem a uma nova Moral.
“Segundo Bergson, há duas espécies de moral, a moral fechada e a moral aberta. A moral fechada deriva dos fenômenos mais gerais da vida; consiste numa pressão exercida pela sociedade, e as ações que lhe correspondem são levadas a cabo de modo automático, instintivamente. Só em casos excepcionais se trava luta entre o eu individual e o social. A moral fechada é impessoal e triplamente fechada: visa a conservação dos costumes sociais, faz coincidir quase inteiramente o individual com o social, de sorte que a alma se move constantemente dentro do mesmo círculo, e, por último, é sempre função de um grupo limitado e nunca pode ser válida para a humanidade inteira, porque a coesão social, da qual é função, repousa em grande parte na necessidade de autodefesa”
“A par desta moral fechada, que obriga absolutamente, existe a moral aberta. Esta aparece encarnada em personalidades. eminentes, em santos e heróis, e não é moral social, mas humana e pessoal. Não consiste numa pressão, mas num apelo; não é fixa, mas essencialmente progressiva e criadora. É aberta no sentido que abarca a vida inteira no amor, proporciona até o sentimento da liberdade e coincide com o próprio princípio da vida. Procede de uma emoção profunda que, do mesmo modo que o sentimento provocado pela música, carece de objeto”. (J. M. Bochenski, Henri Bergson, Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. in A Filosofia Contemporânea Ocidental, Herder, São Paulo, 1968).
j) Fanáticos Propagadores de Metáforas.
Por fim, seria conveniente mostrar que o bergsonismo, afirmando que o único conhecimento possível é o intuitivo –que seria inefável e incomunicável—se condena a não poder ser transmitido. Bergson na podia ter discípulos mas só repetidores. É o que nota Maritain:
“ Uma filosofia anti intelectualista não poderia formar discípulos em sentido próprio, porque discípulo é aquele cuja inteligência, posta em ato por uma doutrina recebida, a pensa de novo por sua própria conta; somente as idéias se comunicam, as impressões, sensações e simpatias intuitivas só podem ser individuais. O bergsonismo, portanto, só pode ter propagadores mais ou menos fiéis à “corrente de pensamento” de seu mestre, e que repetem, mais ou menos bem, as metáforas que aprenderam” (Jacques Maritain, La Philosophie Bergsonienne,Librarie P. Téqui, Paris, 1948, p. 300).
Resumindo.
As características da teoria do conhecimento do gnóstico Bergson são:
- O Conhecimento é Inefável.
- A Inteligência é contrária à Intuição
- A Inteligência é Enganadora
- A Intuição não engana
- Intuição é Flash Iluminante, Evanescente e Inefável
- A Intuição, identificando sujeito e objeto, causa a Imanência.
- Intuição, “Mergulho” e Simpatia.
- Supervalorização da Imaginação
- Nova Moral “Aberta” contra a Moral “Fechada”
- Fanáticos Propagadores de Metáforas.
A FENOMENOLOGIA.
EDMUND HUSSERL E A FENOMENOLOGIA
A -- INTRODUÇÃO
1- Biografia de Edmund Husserl, o filósofo fundador da Fenomenologia
A Fenomenologia de Edmundo Husserl é a filosofia que maior domínio alcançou no século XX. Foi ela que deu ao Modernismo muitas de suas idéias assim como foi a grande inspiradora dos “peritos” do Vaticano II, que adotaram sua linguagem abstrusa, praticamente esotérica, para introduzir nos textos do Concílio doutrinas não católicas. E isso foi tanto mais fácil quanto a Fenomenologia, muitas vezes, usava termos escolásticos, dando-lhes, porém, um sentido completamente diferente do que eles tinham na Filosofia católica medieval. Desse modo, com uma roupagem terminológica ambígua, com redação equívoca, foi fácil fazer triunfar idéias modernistas no Vaticano II, sem que muitos Bispos nem se apercebessem da fraude que estavam sofrendo. Veremos isso, quando tratarmos do Vaticano II, na III Parte deste estudo.
Tanto é real a fluidez praticamente esotérica dos conceitos da filosofia de Husserl, que até mesmo os defensores da Fenomenologia reconhecem que ela é de difícil interpretação e entendimento. (Cfr. Monsenhor Urbano Zilles, A Filosofia Husserliana como Método Radical, exposição anexa à obra de E. Husserl A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, EDIPUC, Porto Alegre 1996, p. 15).
Edmund Husserl era de origem judia, e nasceu na aldeia da Moravia de Prossnitz, então pertencente ao Império Austríaco, em 8 de Abril de 1858. Ele vai falecer em 1938, em Friburgo, in Brisgau.
Estudou em Leipzig, Berlim e Viena, tendo se doutorado em Matemática, nesta última cidade, em 1882, quando tinha 24 anos.
A seguir, tornou-se discípulo do filósofo Franz Brentano. Converteu-se ao luteranismo, e se casou com Malvine Steinschneider.
Em 1886, lecionou em Halle. Foi ai, em 1891, que foi editada sua primeira obra Philosophie der Arithmetik: Psychologische und logische Untersuchungen.
Dedicou-se, depois ao estudo dos filósofos empiristas ingleses, e disso nasceu a sua obra intitulada Logische Untersuchungen -- "Investigações lógicas" (1900-1901), obra na qual iniciou o método que ele denominou de fenomenológico.
De 1901 a 1916, enquanto grassava a crise modernista na Europa, ele ensinou em Gottingen, cidade onde esboçou a sua doutrina da redução fenomenológica, que se preocupava não com as coisas como elas existem na realidade, mas sim como essas coisas eram captadas na experiência da consciência. Visava, dizia ele, conhecer o fenômeno puro e não as coisas na realidade extra mental.
Em 1916, tornou-se Professor catedrático em Friburgo, onde se manterá até seu afastamento das cátedras universitárias. Desde 1916, Edith Stein esteve ligada com Husserl, com que estudara, e tornou-se sua assistente até 1922.
Husserl começou a ter fama internacional, dando conferências em Londres, Amsterdam e Paris. Aposentou-se em 1928, mas, em 1929, editou a obra Formale und transzendentale Logik: Versuch einer Kritik der logischen Vernunft -- Lógica formal e transcendental.
Em 1931, editou em francês suas Méditations Cartesiennes.
A ascenção de Hitler ao poder, na Alemanha, deu inicio ao afastamento de Husserl das cátedras, por causa de sua origem judaica.
Em 1935, pronunciou em Viena sua famosa palestra sobre a Crise da filosofia: Die Philosophie in der Krisis der europäischen Menschheit ("A filosofia na crise da humanidade européia), conhecida comumente como Krisis. Dessa palestra, nasceu sua obra derradeira: “Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie: Eine Einleitung in die phänomenologische Philosophie ("A crise da ciência européia e a fenomenologia transcendental: uma abordagem da filosofia fenomenológica"), editada em 1936.
B -- A Fenomenologia
1 - Origens da Fenomenologia
Das doutrinas anti-intelectuais de Kant vão provir vários sistemas filosóficos, um mais delirante que o outro. Todos anti metafísicos. Queremos destacar, em primeiro lugar, a Fenomenologia de Husserl e de Max Scheller, que tiveram dsicípulos como Edith Stein, Heidegger, e Karol Wojtyla, o Papa João Paulo II.
Embora a Fenomenologia de Edmund Husserl pretenda se apresentar como filosofia totalmente original, ela é diretamente ligada à Gnose pietista, quer de Kant, quer dos filósofos do Romantismo, através de Schleiermächer, Benjamin Constant, de Dilthey e de Nietzsche.
Benjamin Constant considerava que o sentimento religioso – expressão que vai ser repetida depois pelo Modernismo – era inefável. A Fenomenologia dirá a mesma coisa da experiência religiosa. Esse sentimento, dizia Constant, era a resposta do grito da alma em direção ao infinito.
Repare-se: do grito, e não da palavra. Porque toda a Gnose é contra o Logos. Contra o Verbo. Contra a palavra, quer a interior, quer a falada.
“Definição “obscura e vaga”, Constant o reconhece, mas “ todos os nossos sentimentos íntimos parecem pouco se importar com as efeitos da linguagem, a palavra é rebelde, só pelo fato de que ela generaliza o que exprime, serve para designar, para distinguir mais do que para definir. Instrumento do espírito, a palavra só reproduz bem as noções do espírito. Ela fracassa em tudo o que tem ligação, de um lado, com os sentidos, de outro com a alma (Benjamin Constant, Da Religião Considerada em sua Fonte, suas Formas e seu Desenvolvimento, Livro I, p.51. Apud G. Gusdorf, op. cit. , I Vol. Pp. 785 -786).
Por sua vez Georges Gusdorf, especialista em Romantismo, diz: “A epistemologia intelectualista não é aplicável a uma realidade essencialmente irredutível ao discurso. Será preciso aguardar a invenção da abordagem (do “approach”) fenomenológica do sentido do sagrado, tornado possível pela iniciativa de Husserl, e posta em prática por Scheler e Rudolf Otto” (G. Gusdorf, Le Romantisme, I Vol., Pp. 785 -786).
Gusdorf mostra como Nietzsche e Dilthey vão ser os elos de ligação entre o Romantismo e a Fenomenologia de Husserl:
“Nietzsche será um dos mantenedores do sentido romântico da vida. Dilthey manteve relações com Husserl, cuja tentativa ele considerava com simpatia; Heidegger interessou-se da obra de Dilthey. O movimento fenomenológico, em sua perspectiva da consciência, fora de todo idealismo redutor, coloca em ação certos pressupostos da inteligibilidade romântica. O pensador que desenvolve uma filosofia de vida conforme a inspiração de Schelling, de Frederic Schlegel e de Dilthey, embora mantendo uma completa independência de espírito, é Max Scheler (1874- 1928).(Georges Gusdorf, Le Romantisme, II Volume, Payot, Paris, 1993, p. 356).
Não há dúvida, pois, que a Fenomenologia tem relação direta com a Gnose romântica.
E devemos dar especial ênfase a essa filosofia, ligada ao Modernismo, pois ela foi a adotada pelos teólogos progressistas para eliminar a escolástica tomista, e permitir a introdução dos erros modernistas na Igreja Católica, através dos documentos do Vaticano II..
2- Conceituação de Fenomenologia
Antes de tudo, porém, convém saber qual era o conceito que Husserl fazia de Filosofia.
Filosofia, para Husserl, seria “o movimento histórico da revelação da razão universal, inata como tal, na humanidade” (Husserl, Krisis, 6,apud Nicola Abbagnano, Storia della Filosofia, TEA, Milano,1995, Vol. VI, p.440).
Que estranho conceito esse que identifica Filosofia com uma revelação.
E revelação de que?
Revelação da razão universal da humanidade.
E essa “razão universal da humanidade” tem todo o jeito de ser a Divindade oculta, o Deus absconditus, de tantos sistemas gnósticos.
Se a Filosofia é tida como uma revelação, não é de estranhar que, para Husserl, a Fenomenologia, como filosofia, se identifique com a Teologia. Pois diz Husserl: “ [Filosofia] como idéia que jaz no infinito, é “teologia”. Assim a Fenomenologia científica é “caminho a-religioso à religião ”seu “caminho a-teu para Deus” (Monsenhor Urbano Zilles, Introdução à obra de Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, EDUPUCRS, Porto Alegre, 1996, p.53).
E Husserl manifestava – “modestamente” -- que considerava a sua Filosofia, a Fenomenologia, a única verdadeira filosofia, que exigia o abandono de todo o pensamento anterior a ela. Era preciso colocar entre parênteses, fazer a epoché –esquecer – tudo o que a Filosofia já ensinara no decorrer dos séculos. Seria preciso esquecer toda filosofia e tudo o que ela elaborara sobre o ser. Colocar entre parênteses, fazer uma epoché de algo, dizia Husserl, não significava nem negar nem afirmar a realidade desse algo, mesmo que esse algo fosse o ser, mas apenas deixar esse problema de lado. Só com esse método a nova Filosofia de Husserl conseguiria alcançar o verdadeiro conhecimento.
“Mas não é possível estender-me sobre este ponto aqui, pois nenhuma conferência poderia exauri-lo. Contudo, espero ter mostrado que aqui não se trata de restaurar o antigo racionalismo, que era um naturalismo absurdo e incapaz de compreender, em suma, os problemas do espírito, que nos tocam mais de perto. A ratio de que agora se trata não é senão a compreensão realmente universal e realmente radical de si, do espírito, na forma de uma ciência universal responsável, na qual se instaura um modo completamente novo de cientificidade, na qual tem seu lugar todas as questões do ser, as questões da norma, assim como as questões do que se designa como existência. É minha convicção de que a fenomenologia intencional fez, pela primeira vez, o espírito como em campo de experiência e ciência sistemáticas, determinando assim a reorientação total da tarefa do conhecimento. A universalidade do espírito absoluto abrange todo o ser numa historicidade absoluta, dentro da qual se situa a natureza como obra do espírito. Só a fenomenologia intencional, e precisamente a transcendental, trouxe clareza graças a seu ponto de partida e a seus métodos. Só ela permite compreender, e pelas razões mais profundas, o que é o objetivismo naturalista, e, em particular, mostra que a psicologia, condenada devido a seu naturalismo, a carecer da atividade criadora do espírito, que é o problema radical e específico da vida espiritual” (Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, Ed. cit., p. 84. O negrito sublinhado é de nossa responsabilidade).
Como se vê, Husserl considerava a Fenomenologia como a Ciência perfeita, contrária quer ao empirismo objetivista e ao racionalismo, quer como oposta ao puro idealismo. Ele a tinha como uma nova ontologia centrada no eu, na subjetividade, fundamentada na experiência e não na abstração, e que, por isso mesmo recusava afirmar definições, fazendo apenas descrições.
Essa nova Filosofia superaria todas as anteriores, e ela seria a revelação da Razão universal. Ela teria como objeto último “A universalidade do espírito absoluto [que] abrange todo o ser numa historicidade absoluta, dentro da qual se situa a natureza como obra do espírito”.
Como diferenciar essa Gnose da de Hegel e da de Teillard de Chardin?
Também Max Scheler expõe um estranho conceito de Fenomenologia, pois diz:
"A fenomenologia não é o nome de uma nova ciência, nem uma palavra de substituição para filosofia, mas uma postura espiritual, como que se recebe algo para ver ou para viver, algo que sem ela permaneceria oculto, um dirigir-se para aqueles "fatos puros" que o homem e em geral, e mesmo o cientista, não sabe captar" (Max Scheler, Phänomenologie und ErkentntnistheorieAos cuidados de M.S. Frings -- München, 1957, p. 381, apud Anna Escher di Stefano, Max Scheler, a Dimensão Fenomenológica do Sagrado, in nella Filosofia del Sécolo XX, Ed. Queriniana, Brescia, 1993, organ. por Giorgio Penzo e Rosino Gibellini, trad, Ed Loyola, São Paulo, 1998, p. 161). , in Schriften aus dem Nachlass.
Fenomenologia, mais que ciência, seria uma “postura espiritual”, que permitiria ver ou viver, “algo que sem ela permaneceria oculto”...
Uma Filosofia que permite ver um mundo oculto...
Ver uma supra realidade oculta por trás do mundo visível.
A Fenomenologia era uma Gnose. Não é de surpreender que ela fosse ecumênica.
A Fenomenologia seria um caminho ecumênico para um Deus ecumênico, transcendentalmente fenomenológico. O ecumenismo do Vaticano II e os cristãos anônimos de Rahner vão nascer da Fenomenologia modernista de Husserl
A seu tempo, veremos como esse conceito de Filosofia como “revelação da razão universal da humanidade”, com um Deus fenomenológico por meta, tem paralelo com a conceituação de Igreja do Vaticano II, isto é, da Igreja segundo a Lumen gentium, que seria como que sacramento da unidade do gênero humano...
Pois a Lumen Gentium foi resultante da aplicação dos conceitos, do método, e da linguagem da Fenomenologia. Daí, seus conceitos abstrusos e ambíguos.
3- A Fenomenologia é anti metafísica
A Metafísica clássica tem o ser como objeto. A Fenomenologia tem como objeto não o ser, mas a manifestação dos fenômenos na mente humana, as vivências ou experiências da consciência.
Essa estranha postura filosófica, que recusa estudar o ser, obriga a colocar a questão: afinal, o ser objetivo que Husserl chama de “transcendente”, empírico, o fato exterior à mente, existe ou não?
Tiremos, por um instante, os parênteses com que Husserl embrulha o ser no papel camuflante da epoché... Embrulha e surrupia.
Para Husserl, o que vale não é o que há fora da mente, mas sim o eterno fluxo das vivências, na consciência. E essa consideração faz da Fenomenologia de Husserl uma espécie de heraclitismo, pois toma, de fato, o ser – e, em conseqüência, o próprio conhecimento --como fluxo, como puro devir.
É afirmação fundamental de Husserl: “O método fenomenológico considera o ser no devir” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno, Editora 34, São Paulo, 1998, p. 33).
De tal modo que André de Muralt escreve: “Voltamos, portanto, sempre a esta conclusão fundamental: nada é estranho ao devir, tudo é devir, na medida em que é” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno, Editora 34, São Paulo, 1998, p. 57).
André de Muralt cita a seguinte afirmação retirada da obra de Husserl Formale und transzendentale Logik, comprovando a qualificação heraclitana da Fenomenologia de Husserl:
“Da mesma forma que o um se dissolve no múltiplo, o ser identifica-se com o devir. O único ser um é, pois, a totalidade infinita do devir, ou seja, o próprio devir” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno, ed. 34, São Paulo, 1998, p. 39-40).
Por isso, o conhecimento seria também devir:
“O conhecimento é, assim, necessariamente devir, seu ser é devir” (E.Husserl Formale und Transzendentale Logik, p.285, apud André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno, Editora 34, São Paulo, 1998, pp. 37-38).
“A última conseqüênia da identificação da forma e do fim é a identificação do ser e do devir. Desse modo retornamos a um fluxo “heraclitano” infinito, e, idealizando-o, tentamos dele escapar. Tal é, com efeito, o resultado do método fenomenológico: ele parte do devir; procurando escapar-lhe, imagina encontrar um elemento estável idealizando-o na totalidade, e, desse modo, permanece necessariamente enclausurado nele. Ele define o mesmo pelo mesmo. Diferentemente concebido. Isso significa que, finalmente, ele não define, descreve. Assim como o devir tende para o seu telos e permanece devir no infinito em virtude da idealidade de seu telos, a descrição que tende para a definição permanece pura e simples (blossen), descrição em devir infinito: pois a definição é o telos ideal da descrição” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno, ed. 34, São Paulo, 1998, p. 38).
Estas outras citações comprovam que a Fenomenologia de Husserl, embora se diga anti idealista, é, na verdade, uma nova forma de idealismo.
“Husserl tende a sublinhar o caráter imanente da idéia: a idéia é absorvida no fato cuja totalidade nada mais é do que a propria idéia. O fato é a idéia realizada, e a idéia é o fato idealizado” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno, editora 34, São Paulo, 1998, p. 39).
“A Fenomenologia de Husserl é uma forma de idealismo, porque lida com objetos ideais, com as idéias das coisas em sua essência, tal como os idealistas Platão, Hegel e outros (Cobra, Rubem Queiróz. - Fenomenologia. Filotemas, Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2001, rev. 2005. www.geocities.com/cobra_pages" é "Mirror Site" de www.cobrapages.nom.br).
Não haveria ser objetivo que a mente possa conhecer e definir. Teríamos apenas vivências que tentamos descrever e não coisas definíveis.
Daí, as descrições intermináveis dos fenomenologistas que jamais definem o que descrevem. O fluxo não se fixa em definições. É fluido. O descrever fenomenologico é extenso e nada claro. É o que se constata também nos documentos do Vaticano II, como também nos livros de Karol Wojtyla e nas encíclicas de João Paulo II, das quais sempre se dicute o que quiseram realmente dizer, tão vagas são.
Os fenomelogistas parecem escrever com fumaça que se esvai...
Então, para a Fenomenologia, o ser não existe. Só existe o fluxo. Portanto também não existiria um conhecimento real, objetivo. O conhecimento também seria puro fluxo.
E como então pode haver uma conciliação da Fenomenologia – por essência fluida e em fluxo—com o catolicismo que é definido petreamente?
“Husserl buscou restabelecer a antiga relação entre Ser e Pensamento – relação que havia garantido ao homem um lar neste mundo – por intermédio de um desvio pela estrutura intencional da consciência. Dessa forma, a questão da realidade, completamente abstraída da essência das coisas, pode ser “suspensa”; tenho todo o Ser como aquilo de que estou consciente e como consciência sou, à maneira humana, o Ser do mundo. (A árvore vista, a árvore como objeto de minha consciência, não precisa ser a árvore “real”, ela é, em todo caso, o objeto real da minha consciência).” (Hannah Arendt, , A Dignidade da Política – Ensaios e Conferências -"O que é a filosofia da Existenz?",Editora: Relume-Dumará, 1993, Tradução: Helena Martins e outros, pág. 15).
Com a Fenomenologia de Husserl, o homem se tornaria o Criador do mundo, assumindo o lugar de Deus. Essa é a conclusão que Hanaah Arendt chega ao comentar a doutrina husserliana da susbstituição da abstraç~ ao pela intencionalidade que transpostaria a realidade para o interior da cosnciência humana:
“(A fenomenologia) Em sua descrição da consciência ela apreendeu com precisão essas coisas isoladas e arrancadas de seu contexto funcional como conteúdos de atos arbitrários da consciência e pareceu havê-las conectado novamente com o homem através do “fluxo da consciência”. De fato, Husserl afirmou que por meio deste desvio pel consciência e iniciando por uma apreensão completa de todos os conteúdos factuais da consciência (uma nova mathesis universalis) ele seria capaz de reconstruir o mundo que havia se despedaçado. Tal reconstrução do mundo a partir da consciência igualar-se-ia a uma segunda criação, já que nessa reconstrução seu caráter contingente, que é ao mesmo tempo seu caráter de realidade, seria removido, e o mundo não mais apareceria como algo dado ao homem, mas como criado por ele” (Hannah Arendt, , A Dignidade da Política – Ensaios e Conferências -"O que é a filosofia da Existenz?",Editora: Relume-Dumará, 1993, Tradução: Helena Martins e outros, pág. 17).
.
Para Heidegger, a Fenomenologia consistiria em “... fazer ver o que se manifesta tal qual isso se manifesta” (M. Heidegger, Sein und Zeit, p. 34, apud Tahis Curi Beaini, Heidegger: Arte como Cultivo do Inaparente, Editora da Universidadede São Paulo, Nova Stella, São Paulo, 1986, p. 82, nota 1).
Mais ainda. Para esse filósofo do existencialismo, para o qual o ser seria nada, a Fenomenologia seria uma investida contra a Metafísica tradicional aristotéilca e contra a escolástica tomista.
“Em sua obra fundamental Sein und Zeit, que data de 1927, o objetivo de Heidegger é buscar o Ser em sua originariedade, liberando-o em seu sentido—que ultrapassa a esfera do ôntico --, refletindo sobre ele. A destruição fenomenológica busca o Ser enquanto fenômeno, recuperando sua anterioridade em relação à verdade metafísica subjetivista e representativa, que reduz o compreender ao conhecer e ao teorizar. Engendra-se então sua investida contra a metafísica” (Tahis Curi Beaini, Heidegger: Arte como Cultivo do Inaparente, Editora da Universidadede São Paulo, Nova Stella, São Paulo, 1986, p. 67).
Beaini mostra que a Fenomenologia pretende realizar “a construção de uma nova ontologia”. (Tahis Curi Beaini, Heidegger: Arte como Cultivo do Inaparente, Editora da Universidadede São Paulo, Nova Stella, São Paulo, 1986, p. 67). Uma nova ontologia que nega o objeto próprio da ontologia: o ser.
E não menos estranha é esta outra definição da Fenomenologia.
A Fenomenologia é definida como “a análise da consciência em sua intencionalidade” (Nicola Abbagnano, Storia della Filosofia, TEA, Milano,1995, Vol. VI, p.424).
Entretanto, mesmo se essa definição for entendida no sentido comum das palavras, ela enganará.
Pois o que é “consciência”, para a Fenomenologia?
Não é o que se entende comumente por essa palavra.
Para os filósofos dessa corrente de pensamento, “consciência” também não é uma “realidade”, ao mesmo título das coisas deste mundo, e nem é também simplesmente fonte ou princípio das demais realidades, como pretendiam os idealistas alemães anteriores a Husserl.
Para Husserl “a consciência é “uma corrente de experiências vividas”, num rio heraclitano, que se colhe a si mesmo” (Monsenhor Urbano Zilles, Introdução à obra de Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, EDUPUCRS, Porto Alegre, 1996, pp.28-29).
O que se tem como realidade do mundo seria apenas um dos modos em que o objeto pode ser dado à consciência. Face ao mundo, consciência deveria assumir a atitude de um “espectador desinteressado”, a quem os objetos estão presentes como fenômenos, isto é, nos modos específicos em que eles mesmos se dão, sem o espectador se envolver praticamente em suas vicissitudes.
Entretanto, tais objetos careceriam de ser. Seriam apenas impressões dos fenômenos na consciência. E esses fenômenos também não seriam reais. Eles captariam o que Husserl chama de “essência” e que ele define como o “existente”.
“Husserl distingue entre percepção e intuição. Alguém pode perceber e estar consciente de algo, porem sem intuir o seu significado.
“A intuição eidética é essencial para a redução eidética. Ela é o dar-se conta [por intuição, não por abstração] da essência, do significado do que foi percebido. O modo de apreender a essência é, no jargão dos fenomenólogos, o Wesensschau, a intuição das essências e das estruturas essenciais. De comum, o homem forma uma multiplicidade de variações do que é dado. Porém, enquanto mantendo a multiplicidade, o homem pode focalizar sua atenção naquilo que permanece imutável na multiplicidade, isto é, a essência, esse algo idêntico que continuamente se mantém durante o processo de variação, e que Husserl chamou "o Invariante". (Rubem Queiroz Cobra,Site original: www.cobra.pages.nom.br)
“A Fenomenologia pura não é uma ciência de fatos, mas de essências (é uma ciência eidética) e os fenômenos dos quais ela se ocupa não são reais, mas irreais (Ideen, I, p. 6). Para atingir o plano da Fenomenologia é, pois, indispensável uma mudança radical de atitude, uma mudança que consiste essencialmente no suspender a afirmação ou o reconhecimento da realidade, que é implícito em toda atitude natural, com todo o seu acompanhamento de interesses práticos, e no assumir a atitude de espectador, interessado apenas em colher a essência dos atos mediante os quais a consciência se reporta à realidade ou a significa. Essa mudança de atitude é a époché fenomenológica” (N. Abbagnano, op. cit., pp. 430. Os destaques em negrito são nossos).
E por suspender—na realidade por negar-- o reconhecimento da realidade, a Fenomenologoa é anti Metafísica.
Toda indagação racional permitiria aos objetos de consciência revelarem-se no seu “verdadeiro ser”, ou na sua “essência”. (Porém, não se perca de vista que, para a Fenomenologia, ser e essência têm sentido diferente, e até oposto, ao significado corrente desses termos). Haveria uma como que revelação do ser na consciência, embora esse “ser” propriamente nem exista. Husserl dizia que a Fenomenologia é ciência teorética, intuitiva, não objetiva, pois que prescinde de todo fato ou realidade; ciência da subjetividade, porque coloca o eu como pólo unificante de todas as intencionalidades; e ciência impessoal que não exige sabedoria. (Cfr. N. Abbagnano, op. cit., pp. 424-425).
Alguns se deixam enganar pela expressão equívoca de Husserl de pretender “ voltar às coisas em si”.
“A fenomenologia opunha-se às abstrações metafísicas e preconizava um regresso à reflexão sobre o concreto, traduzido na famosa sentença: “De volta às coisas em si”, algo que a filosofia kantiana dominante não tinha sido capaz de fazer, porque não incluía a pesquisa sobre a forma como é possível aceder ao conhecimento dos objetos exteriores à consciência” (Carlos Ceia, Crítica Fenomenológica, http://www.citadel.edu/faculty/leonard/ISER.html).
E muitos concluem, iludidamente, que ele queria voltar à realidade objetiva do ser.
Nada mais falso.
O “voltar às coisas em si” não significava voltar a considerar as coisas tais quais existem objetivamente no mundo real. Pelo contrário, para Husserl, “voltar às coisas em si” queria dizer voltar-se apenas para o fenômeno tal como ele aparece subjetivamente à consciência.
Muitos ilusoriamente julgam que Husserl queria um retorno à objetividade. Só que, para Husserl, a “volta às coisas mesmas”, a volta ao objeto, era a volta ao objeto na consciência, enquanto experiência intuitiva, nunca ao objeto fora da mente.
“Edmund Husserl considera inaceitável o postulado de que aquilo que aparece na experiência atual não é a verdadeira coisa. Deu novo significado à fenomenologia, encerrando o fenômeno no campo imanente da consciência. Husserl não nega a relação do fenômeno com o mundo exterior, mas prescinde dessa relação. Propõe a ”volta às coisas mesmas”, interessando-se pelo puro fenômeno tal como se torna presente e se mostra à consciência. Sob este aspecto deu um sentido mais subjetivo à palavra fenômeno, elaborando uma fenomenologia que faça, ela mesma, às vezes de ontologia. Segundo ele o sentido de ser e fenômeno são inseparáveis. A Fenomenologia husserliana pretende estudar, pois, não puramente o ser, nem puramente a representação ou aparência do ser, mas o ser tal como se apresenta no próprio fenômeno. E fenômeno é tudo é tudo aquilo de que podemos ter consciência, de qualquer modo que seja. Fenomenologia no sentido husserliano, será pois o estudo dos fenômenos puros, ou seja , uma fenomenologia pura” (Monsenhor Urbano Zilles, Introdução à obra de Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, EDUPUCRS, Porto Alegre, 1996, p. 17).
Hannah Arent considera que há algo de mágico nessa fórmula de Huserrl de “voltar às coisas mesmas”:
“O “de volta às próprias coisas” de Husserl é tanto uma fórmula mágica quanto as “pequenas coisas” de Hoffmansthal. Se ainda se pudesse obter algo por mágica – em uma época cuja única virtude foi ter varrido toda mágica -, então certamente ter-se-ia que começar com as coisas menores e aparentemente mais modestas, com as “pequenas coisas” domésticas, com as palavras domésticas.“
“Foi com essa domesticidade [homeliness] mágica que a análise da consciência empreendida por Husserl (que Jaspers achava sem importância para a filosofia, já que ele não tinha qualquer inclinação pela magia ou pelo classicismo) influenciou decididamente tanto o jovem Heidegger quanto o jovem Scheler, muito embora Husserl tenha contribuído pouco sem seu conteúdo concreto para a filosofia da Existenz.” (Hannah Arendt, A Dignidade da Política – Ensaios e Conferências -"O que é a filosofia da Existenz?",Editora: Relume-Dumará, 1993, Tradução: Helena Martins e outros, pág. 17).
Em vez de considerar os entes como objeto primeiro do conhecimento, a Fenomenologia procura focalizar o que o homem experimenta em seu interior. A Fenomenologia não busca a adequação do pensamento aos objetos, isto é, a verdade no sentido escolástico. Ela se preocupa só com a impressão interior, com a experiência vivencial originária produzida pelos objetos na mente humana, e não com esses mesmos objetos, ou com a verdade sobre eles. Por isso é que a Fenomenologia não define as coisas. Descreve-as.
A Fenomenologia de Husserl se opunha à consideração natural do homem face ao mundo objetivo real. Ela queria se substituir à Ontologia. Ela será uma proposta de substituição da Metafísica clássica.
Em vez de focalizar o ser como objeto do conhecimento, ela visava conhecer a experiência interior: a Erlebnis.
“Esta modalidade [filosófica] provém da filosofia da experiência [Erlebnis], fundada modernamente pelo alemão Edmund Husserl, num momento histórico em que a filosofia neokantiana ainda dominava as universidades alemãs. A preocupação fundamental da Fenomenologia não é estudar questões metafísicas, mas fenômenos ou, no sentido grego do termo, as aparências das coisas, a forma como as coisas se tornam presentes, um mundo governado pela consciência”. (Carlos Ceia, Crítica fenomenológica,
http://www.citadel.edu/faculty/leonard/ISER.html).
Além de recusar conhecer metafisicamente o ser, a Fenomenologia recusava a ciência.
“Husserl igualmente duvidava do conhecimento científico dos fatos e, para ele, o que devia ser procurado era o conhecimento científico das essências”.(Rubem Queiroz Cobra, Fenomenologia, www.cobra.pages.nom.br).
Ora, nesses textos é preciso considerar que o termo “essência” não tem o sentido filosófico normalmente entendido: aquilo que torna o ser o que ele é. Para a Fenomenologia, “essência” é o que existe, e não aquilo que é. Como veremos mais adiante, essência seria o existente.
Deve-se esclarecer ainda que a palavra “experiência” – Erlebnis - tem também um sentido fenomenológico muito particular, diverso do sentido comum dessa palavra.
“Uma Erlebnis, na Fenomenologia, não é um mero ato de introspecção, mas uma experiência auto-iluminativa da consciência. Propriamente falando, é um ato da consciência reflexiva explicitamente dirigida para o discernimento dos sentidos intencionais (essências) que os objetos (noemata), tais como são percebidos na consciência potencialmente podem ter” (Padre John Kobler, Vatican II, Theophany and Phenomenon of Man, Ed. cit., p. 162. O sublinhado é nosso).
“Erlebnis, no contexto fenomenológico, significa um estado mental concreto” (Padre John Kobler, Vatican II and Phenomenology, – Reflections on the Life-World of the Church, Martinus Nijhoff Publishers 1985, Dordrecht,, p. 187).
Experiência seria sinônimo de vivência, termo aquele adotado pela heresia modernista condenada na Pascendi de São Pio X .
Convém notar que, na Fenomenologia, objeto não inclui a noção de entidade real:
“Fenômenos são objetos de atos intencionais: “Objetos”, aqui, não devem ser tomados como entidades reais ou eventos; de todo modo eles estão presentes por meio dos atos de percepção” (John F. Kobler, Vatican II and Phenomenology, Ed.cit., p, 52, nota 23).
A Fenomenologia troca a objetividade dos seres pela “vivência” dos fenômenos, na consciência.
“A Fenomenologia é um movimento radicalmente oposto ao positivismo, porque se centra na experiência intuitiva capaz de apreender o mundo exterior, e porque abala a crença mantida pelo homem comum de que os objetos existiam, independentemente de nós mesmos, nesse suposto mundo que nos seria estranho” (Carlos Ceia, Crítica Fenomenológica,
http://www.citadel.edu/faculty/leonard/ISER.html).
Focalizemos ainda o que a Fenomenologia entende por “vivência”.
“Franz Brentano, mestre de Husserl, afirma: "Podemos assim definir os fenômenos psíquicos dizendo que eles são aqueles fenômenos os quais, precisamente por serem intencionais, contém neles próprios um objeto". Isto equivale a afirmar, como Husserl, que os objetos dos fenômenos psíquicos independem da existência de sua réplica exata no mundo real porque contêm o próprio objeto. A descrição de atos mentais, assim, envolve a descrição de seus objetos, mas somente como fenômenos e sem assumir ou afirmar sua existência no mundo empírico. O objeto não precisa de fato existir. Foi um uso novo do termo "intencionalidade" que antes se aplicava apenas ao direcionamento da vontade” (Cobra, Rubem Q. - Fenomenologia. Filotemas, Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2001, rev. 2005. "www.geocities.com/cobra_pages" é "Mirror Site" de www.cobrapages.nom.br)
A recusa das abstrações metafísicas coloca a Fenomenologia em oposição à Filosofia escolástica tomista, recomendada por São Pio X, e odiada pelos modernistas. Desse modo, a Fenomenologia se aliava ao Modernismo em sua cegueira anti metafísica, que levará os fenomenologistas a negarem a possibilidade de o homem aceder ao ser, e mesmo, a afirmarem que o ser é nada, e, conseqüentemente, negando a existência de uma verdade metafísica objetiva.
Husserl não se opunha apenas à Metafísica escolástica. Ele criticava também o empirismo moderno, acusando-o de ter uma presunçosa e falsa objetividade por não considerar a subjetividade. A pretensão da objetividade teria sido, para Husserl o pecado original da Crise “européia”.
Na palestra Krisis, Husserl procura demonstrar o fracasso da Modernidade como tendo origem na ingenuidade do conhecimento objetivo, que, por se pretender objetivo, necessariamente excluia o sujeito da esfera do conhecimento.
Ele elogia Dilthey que tentou harmonizar a relação entre espírito e natureza, mas sem conseguir atingir esse objetivo, e então diz:
“Mas a situação nunca melhorará enquanto não se colocar em evidência a ingenuidade do objetivismo surgido de uma atitude natural em relação ao mundo circundante e não se estiver convencido da absurdidade da concepção dualista do mundo, segundo a qual natureza e espírito devem ser considerdos como realidades de sentido homogêneo, embora uma edificada sobre a outra de maneira causal. Julgo, com toda a seriedade, que nunca existiu nem existirá uma ciência objetiva acerca do espírito, uma doutrina objetiva da alma, objetiva no sentido de atribuir às almas, às comunidades pessoais, uma inexistência, submetendo-as às formas espaciais-temporais.
“O espírito é só o espírito, é o que existe em si mesmo e para si mesmo, só o espírito é autônomo e pode ser tratado nesta autonomia, e só nesta, em forma verdadeiramente racional, de um modo verdadeiro e radicalmente científico. Quanto à natureza, considerada na verdade que lhe conferem as ciências naturais, ela só tem uma autonomia aparente, e só aparentemente oferece um conhecimento racional de si nas ciências da natureza. Pois a verdadeira natureza, no sentido das ciências da natureza, é obra do espírito que a explora e pressupõe, por isso, a ciência do espírito”.(Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, Ed. cit., p. 82-83).
Combatendo a “ingenuidade do objetivismo”, Husserl se opõe à concepção da Modernidade quanto à ciência, e quanto a superioridade do mundo visível sobre o espírito, e procura inverter essa situação, colocando o espírito em posição superior quanto à objetividade e realidade sobre a natureza da realidade concreta visível.
Prossegue Husserl reivindicando o verdadeiro caráter científico para o espírito, recusando-o para as chamadas ciências naturais objetivas:
“O espírito é, por essência, capaz de exercer o conhecimento de si mesmo, e como espírito científico é capaz de exercer o conhecimento de si, e isto reiteradamente. Só no puro conhecimento científico-espiritual o cientista escapa à objeção de que se encobre a si mesmo em seu saber. Por isto, é errôneo, da parte das ciências do espírito, lutarem com as ciências da natureza por uma igualdade de direitos [entre elas]. Logo que aquelas reconhecem às últimas uma objetividade que se basta a si mesmas, elas mesmas sucumbem no objetivismo” (Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, Ed. cit., p. 8. A nota entre colchtes é nossa).
E conclui Husserl afirmando: “Só quando o espírito deixar a ingênua orientação para o exterior e retornar a si mesmo e permancer consigo mesmo e puramente consigo mesmo, poderá bastar-se a si” (Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, Ed. cit., p. 82-83).
Uma defesa desse porte do espírito contra o objetivismo das ciências naturais só podia atrair espíritos anti materialistas, que se deixavam iludir por esse subjetivismo de fundo gnóstico que se opunha ao panteísmo racionalista, materialista da Modernidade. Para fugir do materialismo panteísta, muitos deixaram-se conduzir à Gnose espiritualista de Husserl, filha da Gnose do Romantismo.
Husserl mostra, então, como essa crise causada pela ingênua objetividade das ciências modernas conduziu à elaboração do método fenomenológico, à Fenomenologia:
“A eleboração de um método efetivo para comprender a essência fundamental do espírito em sua intencionalidade, e a partir daí, construir uma teoria analítica do espírito que se desenvolveu de modo coerente ao infinito, conduziu à fenomenologia transcendental. Esta supera o objetivismo naturalista e todo objetivismo em geral da única maneira possível: o sujeito filosofante parte do seu eu, mais precisamente, ele se considera apenas como o executor (Vollzieher)de todos os atos dotados de validade, tornado-se um espectador puramente teórico (Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, Ed. cit., p. 83).
Com essa nova ciência do espírito seria possível anular a separação entre sujeito e objeto, passando cada eu a ser no outro, fundindo, pois, sujeito e objeto, o eu e o tu, o eu e o mundo:
“Nessa atitude consegue-se construir uma ciência do espírito absolutamente autônoma, no modo de uma conseqüente compreensão de si mesmo e compreensão do mundo como obra do espírito. Aí o espírito não é espírito na natureza ou a seu lado. Mas a própria natureza entra na esfera do espírito. O eu então já não é mais uma coisa isolada ao lado das outras coisas similares dentro de um mundo dado de antemão; a exterioridade e a justaposição dos eus pessoais cede lugar a uma relação íntima entre os seres que são um no outro e um para o outro” (Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, Ed. cit., p. 84).
E isto coincide com a noção cabalista expressada por Martin Buber a respeito do EU-Tu como palavra princípio.
Veremos mais adiante essa questão e sua repercussão, especialmente na reforma litúrgica da Missa nova de Paulo VI- Bugnini.
De passagem também, notemos como essas palavras de Husserl fazem lembrar a definição de Igreja da Lúmen Gentium que fala da união íntima dos homens com Deus—com o Outro -- afim de que se faça “a unidade do gênero humano”... Ut unum sint, como dizia João Paulo II, que foi fenomenologista.
Como ser um no outro? Tem se a impressão de delirio ou de ler texto de delirantes. Ou textos de Gnose que pretendem ensinar como o eu de cada um pode se fundir com todos os eus, com o mundo e com Deus.
Ut unum sint ...
Não no sentido em que Cristo pediu para os Apóstolos, mas no sentido em que o Romantismo ou a Cabala desajvam fundir todos os eus no eu divino.
Tudo isso mostra como a Fenomenologia se enraiza na corrente da Gnose moderna que nega o conhecimento humano, e, portanto, nega a Metafísica. Husserl, embora pretenda ser original, tem suas idéias radicadas em Hegel, Kant, e Descartes.
A Fenomenologia é a Anti metafísica Moderna em linguagem subjetivista alemã.
Uma linguagem que quase se poderia dizer esotérica.
4- O Metodo Fenomenológico: a epoché.
Husserl propõe tapar os olhos para o mundo real com o véu da Sinagoga.
E ainda mais: depois de tapar os olhos, fecha também as pálpebras, para nada mais ver ou entrever, na busca de uma misteriosa intuição interior. A Fenomenologia é então como que um tapa-olhos, como aquele que se coloca em alimárias para que não vejam onde estão.
Para isso, Husserl “ressuscitou” a epoché dos gregos, isto é, ele proporá colocar “entre parênteses” o problema da existência, ou não, da realidade. Vai tratar do conhecimento como ele se dá na consciência humana, sem discutir, sem afirmar e nem negar, se as coisas exteriores à mente existem ou não.
Como já dissemos, ele dizia que propriamente não negava a existência do mundo objetivo real, mas que colocava essa existência “entre parênteses”, -- fazendo uma epoché, assim como a chamada “redução fenomenológica” --filosofando como se as coisas do mundo real não existissem. Também era colocada “entre parênteses” a existência do eu e de seus atos. Essa é a primeira epoché que Husserl propõe: ainda que o mundo exista, fazer de conta que o mundo não existe. Cobri-lo com o véu da epoché. Fazer da epoché uma venda para os olhos, como o véu que tapa os olhos da Sinagoga, na Catedral de Strasburgo.
“Para chegar à fenomenologia transcendental pura, Husserl introduz a redução e a epoqué. Assim como coloca entre parênteses a existência do mundo, não para duvidar de sua existência, mas para suspender apenas o juízo em relação à sua existência. A essa suspensão de juízo designou-a com o termo epoqué, já usado pelos céticos pirônicos gregos para significar a suspensão ou abstenção de qualquer assentimento, por não reconhecerem razões suficientes para eliminar a incerteza” (Monsenhor Urbano Zilles, Introdução à obra de Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, EDUPUCRS, Porto Alegre, 1996, p.32).
E não apenas o mundo real é posto “entre parênteses” por Husserl, mas também todo saber racional. Toda visão do real é colocada “entre parênteses”. A Fenomenologia é assim a filosofia da cegueira, do esquecimento e do estranhamento. Para ela ,só vale a intuição pessoal interior.
Os fenomenoóloos são aqueles que voluntariamente “hanno perduto Il ben dell’intelletto” (Dante, Divina Commedia, Inferno, III, 18 ).
A epoqué fenomenológica é filha da dúvida. Filha da incerteza metafísica dessa nova filosofia.
Fenomenologia é assim uma espécie de retorno ao pironismo.
Ela busca uma nova forma de conhecimento. Uma nova forma de cegueira que é velhíssima.
Uma Gnose.
Como a Gnose, ela pretende ter um misterioso conhecimento pessoal interior.
“Para alcançar seu objeto próprio, o eidos, a fenomenologia deve praticar não a dúvida cartesiana, mas a denominada epoché. Quer isto dizer que a fenomenologia “coloca entre parênteses” certos elementos do dado e se desinteressa deles. Importa distinguir várias espécies destas reduções. Em primeiro lugar, a epoché prescinde de todas as doutrinas filosóficas; ao fenomenólogo não interessam as opiniões alheias; ele investe contra as próprias coisas. Após esta eliminação preparatória, temos a redução eidética, mediante a qual a existência individual do objeto estudado “é colocada entre parênteses” e eliminada, porque à fenomenologia não interessa senão a essência. Eliminando a individualidade e a existência, eliminam-se igualmente todas as ciências da natureza e do espírito, suas observações de fatos não menos que suas generalizações. O próprio Deus, enquanto fundamento do ser, deve ser eliminado. Também a lógica e as demais ciências eidéticas ficam submetidas à mesma condição: a fenomenologia considera a essência pura e põe de lado todas as outras fontes de informação”.(J. M. Bochenski,Edmund Husserl, tradução de Antônio Pinto de Carvalho in A filosofia contemporânea ocidental, Herder, 1968).
A Fenomenologia, para fazer o que ela chama de redução transcendental, exige então colocar “entre parênteses” toda a realidade exterior, toda filosofia e ciência, toda religião. E, como lembrou Bochenski, até mesmo Deus.
Só que, como bem lembrou Bento XVI, a Fé não cabe entre parênteses. Deus não cabe entre parênteses. É impossível colocar o Infinito “entre parênteses” (Cfr. Bento XVI, Apresentação-prefácio ao livro de Marcelo Pêra, Perché dobbiamo dirci Cristiani, Mondadori, Milano , 2008).
A epoqué fenomenológica é assim filha da dúvida e mãe da cegueira voluntária. É uma nova filha da incerteza metafísica da filosofia moderna.
Colocando “entre parênteses” todos os conhecimentos recebidos pelas filosofias anteriores, pelas ciências, tradições, educação, etc, fazendo tábula raza de todo conhecimento anterior, Husserl visava atingir a coisa como ela apareceria puramente na consciência.
Claro que Husserl recusava a doutrina tomista do conhecimento. Ele negava a abstração, preferindo examinar—dizia ele – a experiência que a consciência tem das coisas (existentes, ou não, pouco importa). A experiência individidual, pessoal, interior seria também única e inefável.
Uma revelação da razão universal na mente de cada um.
Uma revelação de um conhecimento intuitivo experimental.
A revelação de uma Gnose.
5 – Doutrina fenomenológica do conhecimento intuitivo
A Fenomenologia é principalmente uma teoria do conhecimento humano, -- seria mais preciso dizer do não-conhecimento – visto que ela nega o conhecimento racional.
Como tantos outros filósofos da Modernidade, para chegar ao saber, Husserl propunha substituir a abstração pela intuição.
A Fenomenologia nega a possibilidade de se alcançar o conhecimento objetivo da realidade concreta. Recusa a abstração. Recusa, portanto, o conceito de verdade do tomismo como sendo a adequação da idéia do sujeito conhecedor ao objeto conhecido.
“Husserl afirma que, ao nível da consciência, podemos ter a certeza sobre a forma como apreendemos os fenômenos em si mesmos, ilusórios ou reais, mesmo que não exista evidência sobre a existência independente das coisas. Toda a consciência é consciência de alguma coisa, isto é, não há consciência sem um objeto de referência, porque um pensamento está sempre “voltado para” algum objeto. O mundo exterior fica assim reduzido àquilo que se forma na nossa consciência, às realidades que constituem os puros fenômenos, num processo a que Husserl chama a redução fenomenológica. Se não pode existir um ato de pensamento consciente sem um objeto de referência, também não pode existir um objeto sem existir também um sujeito capaz de o interpretar e apreender”
(Carlos Ceia, Crítica Fenomenológica, http://www.citadel.edu/faculty/leonard/ISER.html)..
O que fica de fora desta correlação fundamental deve ser excluído, porque não está “imanente” à consciência e porque não é real — “os fenômenos são reais, enquanto parte do mundo que a nossa consciência concebe. Isto significa que os fenômenos só existem porque os compreendemos, na exata medida em que lhes conseguimos atribuir um significado. Esta perspectiva coloca o objeto da filosofia na "experiência vivida" do sujeito, em vez de concepções metafísicas que escapariam ao trabalho da consciência e às quais não seria possível atribuir uma intencionalidade”. (Carlos Ceia, Crítica Fenomenológica, http://www.citadel.edu/faculty/leonard/ISER.html. O destaque nosso).
Para a Fenomenologia, pois, a verdade não seria objetivamente apreensível pelo homem. Da verdade dos objetos teríamos uma percepção fenomenológica puramente aproximativa. Ninguém poderia então afirmar que tem a verdade.
“O conhecimento transcende incessantemente em direção da realidade independente que constitui o seu objeto. Mas isto significa também que o conhecimento não realiza jamais a posse completa de seu objeto. Além daquilo que ela apreende dele, resta sempre um resíduo incognoscível (transobjetivo), enquanto está além daquilo que da própria realidade foi objetivado. O limite da cognoscibilidade pode ser deslocado indefinidamente, mas sempre permanece um limite” (Nicola Abbagnano, op. cit., Vol. VI, p. 445. O destaque é nosso).
O conhecimento seria como um horiznte do qual nos aproximamos, mas a cada passo que damos em direção a ele, ele se afasta outro tanto. O conhecimento é um horizonte sempre buscado e jamais alcançado.
“O mundo da vida-- Lebenswelt--, que é aquele no qual vivemos intuitivamente com as suas realidades, tais como elas se dão, mais ou menos válidas, ou mesmo aparentes, é “uma espécie de rio heraclitano meramente subjetivo e aparentemente inapreensível” (Husserl, Die Krisis der europäischen Wissenshaften, 44, apud N. Abbagnano, op. cit., Vol. VI, p. 436).
Na Fenomenologia o conjunto das experiências recebidas por alguém constitui a sua vida do mundo—a sua Lebenswelt—a sua cosmovisão experimental. Ela seria “um acúmulo de experiências prévias”, as experiências pessoais originárias imediatas, assim como todas as experiências transmitidas a cada um por seus pais, amigos, professores, nação, etc. Seria o conjunto das experiências de alguém, que daria a sua explicação pessoal do mundo. (Cfr. Padre John F. Kobler, Vatican II and Phenomenology, ed. cit., p. 132).
Com essa afirmação, se compreende como a Fenomenologia, filosofia subjetivista, se enquadra na Gnose, pois que a negação do ser de Heráclito é tipicamente gnóstica.
Assim como há um ego pessoal, cada um com sua Lebenswelt pessoal única e inefável, haveria também um ego transcendental, do qual os “eus” particulares seriam subsistências concretas. E esse ego transubjetivo ou transcendental teria, ele também, a sua Lebenswelt transcendental. A cada “nós”, ou ego transcendental superior, corresponderia uma Lebenswelt transcendental correspondente (Cfr. Padre John F. Kobler, Vatican II and Phenomenology, ed. cit., p. 133).
O Ego transcendental nâo deve, porém, ser concebido como algo substancial
O “conhecimento” fenomenológico seria produto de um experiência interior intuitiva: a Erlebnis
Para a Fenomenologia, a experiência – a Erlebnis-- propiciaria uma forma de conhecimento superior ao conhecimento racional, abstrato e discursivo. Particularmente em matéria religiosa, a experiência daria um conhecimento superior ao racional, pois seria um conhecimento obtido através de algo vivido. (Cfr. Padre John F. Kobler, Vatican II, Theophany and the Phenomenon of Man, ed. Peter Lang,New York, San Francisco,Bern, Frankfurt,, Paris , London 1991, p. 46).
A experiência (Erlebnis ) seria uma auto iluminação da consciência:
“Uma Erlebnis na Fenomenologia não é um mero ato de introspecção, mas uma experiência auto iluminante da consciência. Falando mais propriamente: ela é um ato da consciência reflexiva explicitamente apontada para o discernimento dos sentidos intencionais (essências) que os objetos (os noemata) podem ter potencialmente quando são percebidos na consciência” (Padre John F. Kobler, Vatican II, Theophany and the Phenomenon of Man, ed. Peter Lang,New York, San Francisco,Bern, Frankfurt, Paris, London 1991, p. 162).
A Fenomenologia tem uma teoria do conhecimento abstrusa.
Veja-se como o insuspeito Monsenhor Urbano Zilles explica a doutrina do conhecimento humano, segundo Husserl:
“Nosso olhar, suponhamos, volta-se com um sentimento de prazer para uma macieira em flor num jardim....(Husserl, Ideen, I, § 88). Na atitude comum ou natural, tal percepção consiste em colocar primeiro a existência da macieira no jardim, depois em relação a essa macieira real a macieira representada na consciência correspondente à real. Como conseqüência haveria duas macieiras: uma no jardim e outra na consciência. Para Husserl, as coisas não acontecem assim. Recorrendo à análise intencional, não partimos da macieira em si, porque dela nada sabemos, nem da macieira representada, porque também dela nada sabemos. É preciso partir das coisas mesmas, isto é, da “macieira-enquanto-percebida”, ou seja, do ato da percepção da macierira no jardim, pois essa é a vivência originária. Através da epoqué só atendemos à percepção como vivência, prescindindo de suas relações reais. A única “coisa” que permanece é a percepção e o percebido, o visto desde um ponto de vista eidético na “ pura imanência” da consciência de minhas vivências. A vivência de percepção, fenomenologicamente reduzida, também é percepção da ”macieira em flor”, vivência que nela conserva todos os matizes com que aparecia realmente. Assim, a “macieira em flor”, como objeto de minha vivência de percepção, é o correlato intencional da vivência, seu conteúdo noemático, resultante da noese, do ato da consciência, pelo qual se reduz à unidade de sentido a muliplicidade de dados da sensação (hylé). Enquanto a noese e a hylé são elementos da própria vivência, o noema é seu conteúdo intencional ou componente intencional” (Monsenhor Urbano Zilles, Introdução à obra de Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, EDUPUCRS, Porto Alegre, 1996, p.27. Os negritos são nosos. Os sublinhados são do autor).
E, para auxiliar o nosso paciente leitor a entender essa doutrina abstrusa, adiantamos que por noesis se deveria entender o ato de percepção, e por noema aquilo que é percebido como experiência (Erlebnis).
“Na redução fenomenológica, a Noesis é o ato de perceber. Aquilo que é percebido, o objeto da percepção, é o noema. A coisa como fenômeno de consciência (noema) é a coisa que importa, e refere-se a ela a conclamação "às coisas em si mesmas" que fizera Husserl. (Cfr. Rubem Queiroz Cobra, Site original: www.cobra.pages.nom.br)
“De acordo com a teoria fenomenológica a consciência envolve dois elementos correlatos: o noema (isto é, o objeto, eidos, essência), e a noesis, (isto é, o ato, a experiência intencional referente ao objeto) (Padre John F. Kobler, Vatican II and Phenomenology – Reflections on the Life-World of the Church, Martinus Nijhoff Publishers 1985, Dordrecht,, p. 93, nota 26).
A noesis seria então o ato de apreensão dos fenômenos, enquanto o noema seria o apreendido, a impressão que o fenômeno produz na consciência.
Com essa distinção, Husserl queria superar o antigo problema da oposição entre ser e fluxo, que vinha desde Heráclito e Parmênides, assim como a distinção entre sujeito e objeto, que angustiara os românticos e idealistas.
Como isso contrasta com a simplicidade claríssima da epistemologia escolástica!
Como isso faz lembrar o comentário de São Paulo, quando disse: “Virá um tempo em que os homens não suportarão a sã doutrina, mas multiplicarão para si mestres conformes a seus desejos, pelo prurido de ouvir. Afastarão os ouvidos da verdade, e os aplicarão às fábulas” ( II TIM. Iv, 4).
Exatamente o que fizeram os Bispos modernistas do Vaticano II: acataram as fábulas de Husserl. Fecharam a sabedoria católica “entre parênteses” para dar ouvidos à sereia fenomenológica.
Disso saiu o Vaticano II, como fiho da epoché que pôs a fé, e até Deus, entre parênteses.
Como conseqüência, a Fé ficou obnubilada e a crise conciliar auto-demoliu a Igreja, permitindo que a fumaça de Satanàs, sob forma fenomenológica entenebrecesse a Luz da Verdade.
Como Husserl é tido como um grande gênio, um “filósofo”, ---e alemão por cima – engolem-se suas fábulas, que, na verdade, são um xarabiá para fraudar presunçosos e fazer triunfar a Gnose modernista. Pois como se pode aceitar que se explique sua doutrina, afirmando: “não partimos da macieira em si, porque dela nada sabemos, nem da macieira representada, porque também dela nada sabemos”, e, depois, que se afirme gratuitamente que “É preciso partir das coisas mesmas, isto é, da “macieira-enquanto-percebida”, e todo o blá-blá-blá posterior dessa citação de Monsenhor Urbano Zilles?
Assim como se nega a existência da macieira se negou a existência de Cristo.
O mundo, tendo perdido a Sabedoria, tem medo de recusar um palavreado enganador, pseudo filosófico. E alemão. Falando de Erlebnis e de epoché.
Pois, como já vimos, em lugar de estudar as coisas, a Fenomenologia pretendia estudar o que a consciência humana apreende por intuição.
A Fenomenologia afirma que o órgão da razão como meio de conhecimento, seria a intuição (Cfr. N. Abbagnano, op. cit., Vol. VI, p. 439) e que o conhecimento humano não é perfeito. Na Fenomenologia, há uma negação de que se possa chegar à verdade sobre o real.
Da realidade teríamos uma impressão pessoal, uma experiência inefável impossível de ser comunicada intelectualmente. Exatamente como diziam os modernistas. Exatamente como foi condenado por São Pio X na Pascendi.
A Fenomenologia em vez de estudar os seres—ela os coloca entre parênteses-- dizia que se deveriam estudar apenas os fenômenos da conciência:
“Fenomenologia (do grego phainesthai, aquilo que se apresenta ou que se mostra, e logos, explicação, estudo) afirma a importância dos fenômenos da consciência os quais devem ser estudados em si mesmos – tudo que podemos saber do mundo resume-se a esses fenômenos, a esses objetos ideais que existem na mente, cada um designado por uma palavra que representa a sua essência, sua "significação". Os objetos da Fenomenologia são dados absolutos apreendidos em intuição pura, com o propósito de descobrir estruturas essenciais dos atos (noesis) e as entidades objetivas que correspondem a elas (noema) (Cfr. por Rubem Queiroz Cobra, Site original: www.cobra.pages.nom.br).
Husserl designa como “fenômeno tudo o que está presente intencionalmente à consciência, sendo para esta uma significação” (Monsenhor Urbano Zilles, Introdução à obra de Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, EDUPUCRS, Porto Alegre, 1996, p. 7).
E “mundo”, para Husserl, seria o conjunto dessas significações para a consciência.
Note-se que os termos “intencionalmente”, “significação”, “Mundo” são usados num sentido particular que não é logo definido, deixando o leitor envolto em brumas terminológicas que vão tendo significados vagos e equívocos, fora do sentido normal, próprio. É isso que gera confusão. É isso que faz da Fenomenologia uma filosofia esotérica.
Tais fenômenos experimentados na conciência como experiências pessoais vividas, seriam as vivências, intuições inefáveis, que Husserl denominava com o termo alemão “Erlebnis”.
A Erlebnis é que nos daria o verdadeiro conhecimento, e não a abstração.
O termo “experiência” (Erlebnis) fará carreira notável na terminologia modernista, e será condenado por São Pio X na encíclica Pascendi. O que não impediu que ele fosse introduzido na Nova Teologia do Vaticano II. Hoje, esse é termo corriqueiro no linguajar dos teólogos avançados e dos católicos engajados nos cabrestos e arreios fenomenológicos – iniciados – na terminologia esotérica da Nova Igreja nascida do Vaticano II.
Como fará carreira também no Modernismo aplicado à arte.
Toda a Arte Moderna desprezava a razão e, por isso mesmo, buscava reviver na pintura as experiências infantis anteriores ao uso da razão. Como também se agradava com a arte dos loucos –que não usam a razão –e com a arte dos selvagens, que, como as crianças, a usam pouco, ou imperfeitamente. A escola naïve é um exemplo claro disso. Ela buscava exprimir uma experiência originária, infantil, em que a racionalidade ou é banida, ou pouco aparece.
Husserl distinguia duas atitudes face às coisas extra mentais:
- Uma atitude “natural”—empírica – diante das coisas, como faz o comum das pessoas, acreditando na existência do mundo exterior;
- Uma atitude transcendental – filosófica – na qual evidente seria só o mundo enquanto consciente, no homem.
E repare-se que, na Fenomenologia, transcendente seria a coisa concreta (existente ou não, não se discutia isso); e transcendental seria a intuição, o noema da coisa, na consciência. E esse é outro exemplo de arbitrária atribuição de significados a termos usados em sentido fora do normal, e que confunde o leitor não iniciado.
Dessas arbitrariedades terminológicas veio a ilusão de muitos que julgaram que a Fenomenologia seria objetivista e anti idealista, pois que Husserl iludia exigindo uma “volta às coisas mesmas”. Voltar às coisas como apareceram na mente infantil, nas “impressões primeiras”
“A tarefa da Fenomenologia é, pois, estudar a significação das vivências da consciência” (Monsenhor Urbano Zilles, Introdução à obra de Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, EDUPUCRS, Porto Alegre, 1996, p. 18).
Veja-se, na seguinte explicação de Monsenhor Urbano Zilles, como a Fenomenologia de Husserl não é realista e nem puramente idealista:
“Como filósofos, segundo Husserl, devemos orientar-nos para o mundo interior, que [ele] chama de transcendental enquanto chama o mundo exterior de transcendente. Deste modo, o ser transcendente é o ser real ou empírico, enquanto o transcendental é o irreal ou ideal, mas não fictício. Propõe-se explorar as riquezas da consciência transcendental, pois, segundo ele, o filósofo não precisa recorrer ao mundo transcendente [real]. Cabe-lhe buscar a evidência apodítica indubitável na subjetividade transcendental [ideal] através da descrição dos fenômenos puros. Só na volta “às coisas mesmas” o filósofo encontrará a realidade plena. Portanto, a fenomenologia não se propõe estudar puramente o ser, nem puramente a representação do ser, mas o ser tal como e enquanto se apresenta à consciência como “fenômeno” (Monsenhor Urbano Zilles, Introdução à obra de Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, EDUPUCRS, Porto Alegre, 1996, p. 18).
Portanto, nem empirismo objetivista, nem idealismo subjetivista, mas só as “Erlebnis”. A Fenomenologia pretende se colocar num ponto de encontro dialético do empirismo ingenuamente objetivista como um novo idealismo subjetivista das Erlebnis.
Vejamos como a Fenomenologia procurava unir objetivismo e subjetivismo, empirismo e novo idealismo, Parmênides e Heráclito.
Husserl distingue três elementos no processo fenomenológico da apreensão experimencial dialética entre os dados da sensação e as vivências deles:
- os dados de sensação que esboçam o objeto;
- o sentido do objeto realizado pela experiência doadora de sentido através da análise intencional;
- o próprio objeto como finalidade (telos) de toda Leistung subjetiva.
O que Husserl considera ser o sentido do objeto seria a sua essência.
Na escolástica, essência é o que torna o ser o que ele é.
Na Fenomenologia, essência é o existente concreto.
Vejamos como.
“A intuição da essência (...) é a visão do sentido ideal que atribuimos ao fato”, nos diz Monsenhor Urbano Zilles, expondo a doutrina de Husserl (Mons. Urbano Zilles, A Fenomenologia Husserliana como Método Radical, in Introdução à obra de Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, EDUPUCRS, Porto Alegre, 1996, p. 21).
E haveria tantas essências quantas significações nossa consciênca pode dar aos fatos ou é capaz de produzir (Cfr Mons. Urbano Zilles, ob cit, p. 22).
Na concepção escolástica a essência é algo abstrato. Para Husserl, a essência é concreta.
Para a escolástica, o conhecimento sensível é diferente do conhecimento por abstração.
Para a Fenomenologia de Husserl a diferença entre o conhecimento sensível e o intelectual é somente de grau e não de natureza.
Para a Fenomenologia, se a essência é o individual concreto, o existente, entâo “as coisas só podem ser individuais, o conhecimento perfeito, absoluto, só pode ser o conheciemnto do individual e coincidência com este. A essência nada mais é do que um meio para atingir o individual, um intermediário que Husserl definiria de bom grado como um intermediário dialético, ou seja, um momneto destinado a ser ultrapassado por uma visâo pura” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno, editora 34, São Paulo, 1998, p. 74).
Para Husserl a essência—o sentido dado ao objeto—faz a consciência possuir o próprio objeto ao intui-lo na sua experiência interior. Desse modo a essência do objeto é o objeto existente. E isso coloca a Fenomenologia como um nominalismo existencial muito semelhante ao de Guilherme de Ockham. Por isso escreveu Muralt:
“A idéia de intencionalidade é o próprio existir concreto. A essência identifica-se ao individual, a filosofia das essências à descrição existencial. O idealismo fenomenológico é um empirismo nominalista” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno, editora 34, São Paulo, 1998, p. 83).
Cada existente seria único. Seria o único indivíduo de sua espécie. Cada indivíduo concreto seria o universal de sua espécie. Por isso, Husserl falava de universal-concreto.
Consideramos bem útil esclarecer o que Husserl entende por essência, porque também no uso desse termo ele pratica uma anfibologia terminológica que ilude a muitos.
De um lado, Husserl pretendia ter descoberto um novo empirismo.
Para isso, ele criou o método fenomenológico, no qual admitia “um “concreto-universal” - o noema -- servindo como meio de ligação entre a necessidade de sentido no homem, e a experiência esmagadora de que os fenômenos estão em estado de fluxo. A historicidade era, então, para Husserl, uma dessas conceitualizações de via média que só obtém melhor sentido no fitar da contemplação fenomenológica. Embora os noemata (e sua constituição) sejam derivados da temporalidade, envolvidos com a polaridade, e mesmo progressivos com a temporalidade (duração, fluxo), entretanto eles são repositórios de sentidos, e, por conseguinte, implicam num “sentido” estrutural no fluxo da experiência” (Padre John F. Kobler, Vatican II and Phenomenology – Reflections on the Life-World of the Church, Martinus Nijhoff Publishers 1985, Dordrecht,, p. 128. Os destaques são do autor).
“A redução eidética. Reconhecido o objeto ideal, o noema, o objeto da percepção, o passo seguinte é sua “redução eidética”, redução à idéia (do grego eidos, que significa idéia ou essência). Consiste na sua análise para encontrar o seu verdadeiro significado. Isto porque não podemos nos livrar da subjetividade e ver as coisas "como são" – o que é o real, uma vez que em toda experiência de consciência está envolvido o que é informado pelos sentidos e também o modo como a mente enfoca, trata, aquilo que é informado. Portanto, dar-se conta dos objetos ideais, uma realidade criada na consciência, não é suficiente - ao contrário: os varios atos da consciência precisam ser conhecidos nas suas essências, aquelas essências que a experiência de consciência de um indivíduo deverá ter em comum com experiências semelhantes nos outros” (Cobra, Rubem Queiroz, Fenomenologia. Filotemas, Site www.cobra.pages.nom.br, Internet, Brasília, 2001, rev. 2005 - www.geocities.com/cobra_pages" é "Mirror Site" de www.cobrapages.nom.br).
Como vimos, Husserl suspende o juízo sobre a existência ou não do mundo exterior [trancendente] por meio da epoché. Diz que não duvida de sua existência. Mas também não a afirma. Coloca o mundo exterior “entre parênteses”. Desinteressa-se dele. Não quer saber se existe ou não existe esse mundo exterior. Husserl o reduz a fenômeno da consciência por meio da redução fenomenológica que faz o transcendente tornar-se transcendental, interior, vivência. A epoché permite reduzir o transcendente à esfera transcendental.
A Fenomenologia é pois análise descritiva das vivências interiores.
Daí que, para a Fenomenologia, assim como o objeto do conhecimento é algo em fluxo, assim também o conhecimento é também um devir que jamais alcança seu objeto. Jamais se teria a verdade, mas teríamos apenas uma aproximação dela. Ninguém teria o conhecimento da verdade. Ela seria um devir inalcançável.
Esse problema nos é esclarecido melhor pelo que escreveu André de Muralt, quando nos diz que, segundo a Fenomenologia de Husserl, “ o quid essencial da coisa não está na própria coisa, mas fora dela” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno, ed. cit., p. 33).
Entre a idéia e o real haveria uma identidade dialética em perpétuo fluxo:
“Isso porque a dialética da idéia e do real nos ensinou que o fato se define extrinsecamente pela idéia: o fato não possui em si mesmo sua essência, mas tende a realizá-la mais ou menos adequadamente. O que significa dizer que a transcendência da idéia incita uma operação de realização da qual ela mesma é o termo. E Husserl afirma muitas vezes que a idéia é um fim, uma idéia –fim (Zweckidee, Zielidee). Ora a idéia nada mais é que a essência do fato ( das reine Wesen) e, ao mesmo tempo, o telos de sua realização essencial; a essência é ao mesmo tempo forma e fim do fato) (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno, ed. cit., p. 34).
Para Husserl, há uma reciprocidade dialética entre idéia e fato:
“É desse modo que podemos compreender a ambiguidade própria da idéia, ao mesmo tempo, imanência intencional e transcendência irreal. A idéia é essênca, forma do fato, o fato participa, portanto, da idéia, ou seja, possui intrinsecamente uma participação da idéia. Ora, precisamente o fato não é sua essência, ele apenas a possui, dela participa. O em si, a forma essencial do fato, é, portanto exterior ao próprio fato, a idéia é portanto transcendente e, por isso, medida e forma a priori do fato” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno, ed. cit., p. 35).
“Idéia e fato são, com efeito, simultâneos e implicados constitutivamente um no outro. As duas dimensões da intencionalidade não devem nos conduzir a uma escolha arbitrária entre o fato e a idéia: ambos são recíprocos, participam da mesma unidade dialética e, portanto, da mesma identidade “real” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno, ed. cit., p. 49).
“Eis porque o exemplarismo de Husserliano é recíproco: o fato constitui a idéia, e a idéia constitui o fato” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno, ed. cit., p. 50, nota 16).
Para Husserl, somente a idéia seria evidente e racional, e o fato concreto, por isso mesmo, seria dialeticamente não evidente e irracional ( Cfr. A.de Muralt, op. cit ., p. 45).
Esse mesmo autor -- André de Muralt—vai afirmar que “O princípio fenomenológico da primazia absoluta da subjetividade é salvaguardado sob um modo puramente prático” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno, editora 34, São Paulo, 1998, p. 59).
A Fenomenologia é, pois, uma tentativa de síntese dialética entre o fixismo de Parmênides e o fuxo de Heráclito, por meio dos noemata, isto é, da concepção de um “universal-concreto” que uniria objetividade e subjetividade, platonismo e nominalismo, na consciência, mas sempre recusando entidade aos fenômenos.
Pode-se pois afirmar que, para a Fenomenologia, a essência é o existente concreto. O que conduz ao nominalismo e ao existencialismo.
É o que nos explica André de Muralt:
“’Não há essência independente da existência. Ao contrário, a essência do homem é existir, razão pela qual nenhuma essência está aí a priori (não precede) a fim de orientar esse exercício de ser. A existência será essencialmente liberdade. Portanto, o homem existe antes de ser este ou aquele, mas quem determina o que ele quer ser senão ele mesmo, isto é, sua liberdade? É pois a existência quem determina a essência do homem, a existência precede a essência, o que já é uma afirmação autenticamente husserliana, na medida em que a fenomenologia reduz a dualidade das dimensôes da intencionalidade tão somente à dimensão descritiva, ou, mais exatamente, identifica uma e outra dimensão. A existência prescreve a essência, assim como o devir prescreve a idéia. Sendo o devir dessa existência a eclosão da liberdade, o homem torna-se aquilo que ele quer ser. Ele se cria livremente, é para si mesmo sua própria medida, assim como a fenomenologia é para si mesma sua própria lógica, como a subjetividade transcendental é a medida de toda objetividade constittuída. O homem é “seu artista” e seu agir moral adquire, assim, um modo estético e exemplar” ( André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno,editora 34, Sâo Paulo, 1998, p. 59).
Da Fenomenologia, claramente nominalista, tinha que derivar o Existencialismo
A Fenomenologia, assim como toda a Filosofia moderna é governada por uma teoria do conhecimento ou gnóstica irracionalista e intuitiva, como a de Mestre Eckhart, ou pela teoria do conhecimento racionalista e nominalista nascida de Ockham.
6 – A doutrina da Gestalt ou a Ilusão do Conhecimento
As teorias modernas da Gestalt nasceram no século XIX, quer na Psicologia, quer na Filosofia, e tiveram papel importante na Fenomenologia, na Teologia, e na Arte Moderna, particularmente no Surrealismo de Salvador Dali.
Não pretendemos estender-nos aqui na exposição dessa teoria, e dos problemas surgidos entre a Psicologia gestáltica e a Fenomenologia de Husserl. Diremos dela apenas o mínimo necessário para se compreender em que sentido ela teve relação com a doutrina do conhecimento da Fenomenologia e, depois, veremos a aplicação que ela teve na Teologia do Vaticano II.
“A Gestalt é a dinâmica “figura e fundo” que opera no interior dos processos de auto-regulação organísmica junto ao meio” (Marcos José Muller-Granzotto e Rosane Lorena Granzotto, Gênese Fenomenológica da Noção de Gestalt na revista do X Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica, Número 10, 2004).
Os autores desse artigo acima citado reconhecem que foi “a partir da investigação fenomenológica do conhecimento que a noção de Gestalt adquiriu status teórico e, na teoria de Perls, o nome de self”.
Foi Franz Brentano, o mestre de Husserl, quem primeiro procurou distinguir entre o objeto físico e objeto psíquico, isto é, como se dava a percepção dos objetos como imagem nas consciências. Brentano admitia que os objetos eram, em certo sentido, “construções da subjetividade”.
Os fenômenos físicos seriam relacionados com a experiência material, enquanto que os fenômenos psíquicos eram produto de uma experiência totalizante interior. Os fenômenos psíquicos seriam produto de um “modo intencional de nossa existência”.
Para Husserl, assim como os objetos matemáticos eram constituídos por intuições, e não a partir de fenômenos físicos, assim também se daria com os fenômenos psicológicos. É o que se nos explica no artigo citado de Marcos José Muller-Granzotto e Rosane Lorena Granzotto.
Para Husserl, assim como para Brentano, nossas intuições não são ocorrências às quais podemos atribuir características positivas. Elas são vivências de cada um de nós e desde as quais nossos atos podem constituir objetos.
A psicologia descritiva de Husserl visava descrever intuições que fossem, em verdade, fenômenos psíquicos intersubjetivos.
Em 1923, Wertheimer apresentou os princípios da organização da percepção. Esses princípios e suas respectivas definições são os seguintes:
“ 1) proximidade: os elementos próximos no tempo ou no espaço tendem a ser percebidos juntos;
2) similaridade: sendo as outras condições iguais, os elementos semelhantes tendem a ser vistos como pertencentes à mesma estrutura;
3) direção: tendemos a ver as figuras de maneira tal que a direção continue de um modo fluido;
4) disposição objetiva: quando vemos um certo tipo de organização, continuamos a vê-lo, mesmo quando os fatores de estímulo que levaram à percepção original se tornam agora ausentes;
5) destino comum: os elementos deslocados, de maneira semelhante de um grupo maior, tendem eles próprios, por sua vez, a serem agrupados;
6) pregnância: as figuras são vistas de um modo tão “bom” quanto possível, sob as condições de estímulo, de onde se segue que a boa figura é uma figura estável, que não pode se tornar mais simples ou mais ordenada por um deslocamento perceptual” (Marcos José Muller-Granzotto e Rosane Lorena Granzotto, Gênese Fenomenológica da Noção de Gestalt na revista do X Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica, Número 10, 2004).
Husserl procurou separar a doutrina da Fenomenologia sobre a percepção dos objetos, do que dizia a teoria da Psicologia Gestáltica.
Edgar Rubin - um discípulo de Husserl -- manteve-se fiel ao projeto de uma psicologia eidética – com relação ao binômio “figura-fundo”. O interesse de Rubin era compreender nossas vivências de percepção espacial. Ou, por outras palavras, Rubin queria entender as essências implicadas no processo de construção de representações objetivas do espaço.
Rubin introduziu “as expressões “figura” – para designar o correlato objetivo do ato de visar, em um dado material, uma unidade de sentido – e “fundo” – para indicar a ocorrência intuitiva de um campo de presença formado por perfis que, como tais, não são experimentados materialmente. No experimento do vaso, Rubin mostra como a representação de uma certa figura (por exemplo, o vaso), depende do que eu ofereça, para um certo dado material (a parte branca do desenho), um certo horizonte (fundo) de perfis, em detrimento dos outros dados matériais presentes ao lado do dado visado (e que assim se tornam quase imperceptíveis, como é o caso das partes pretas, no experimento de Rubin). Ademais, em favor de sua teoria, Rubin mostra que posso tranqüilamente visar, na mesma base material, uma outra figura, desde que eu escolha outro dado material, fazendo desaparecer o dado de antes em proveito de outros perfis retidos. E eis que posso, na mesma configuração material em que percebi um vaso, reconhecer duas faces desenhadas de perfil” (Marcos José Muller-Granzotto e Rosane Lorena Granzotto, Gênese Fenomenológica da Noção de Gestalt na revista do X Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica, Número 10, 2004).( Ver a figura desse vaso, pouco mais adiante).
.
Köhler usou as experiências de Rubin e procurou mostrar “que em toda configuração material, há elementos que são figura e outros que são fundo, podendo ser intercalados, em alguns casos. Ao fazer essa interpretação, Köhler desprezou a importância do elemento intencional (que é a configuração subjetiva de um campo de perfis temporais), como se ele não fosse necessário para a caracterização de uma figura ou de um fundo. Mais do que isso, Köhler afirmou ser o arranjo figura x fundo algo característico tanto das gestalten, quanto de nossas representações” (Marcos José Muller-Granzotto e Rosane Lorena Granzotto, Gênese Fenomenológica da Noção de Gestalt na revista do X Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica, Número 10, 2004).
Contra a posição da Psicologia gestáltica, Husserl recusava partir do que se tem como coisa, ente, substância. Queria partir apenas das vivências, por meio do ponto de vista transcendental e não empírico. Devia-se partir da visão transcendental e não dos objetos
“Husserl propôs uma “redução” do domínio da fenomenologia, o que significou limitá-la à descrição estritamente dinâmica dos processos de constituição de objetos a partir de intuições (redução eidética) e à descrição estritamente dinâmica da vivência (subjetiva e intersubjetiva) dessas intuições (redução transcendental). De onde se depreendeu uma fenomenologia das essências, agora entendidas não como vividos “dos sujeitos psicofísicos, mas como vividos constituidores da subjetividade empírica. Trata-se, em verdade, de processos transcendentais, que Husserl reuniu sob o título de “ego transcendental”, querendo com isso designar não a minha individualidade, mas a minha implicação no todo” (Marcos José Muller-Granzotto e Rosane Lorena Granzotto, Gênese Fenomenológica da Noção de Gestalt na revista do X Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica, Número 10, 2004).
Tudo isso visava negar que o homem fosse capaz de captar o real. Assim como os sentidos materiais não conseguem alcançar a realidade fenômenica—existisse ela, ou não—assim também a consciência não teria possibilidade de conhecimento objetivo.
Daí, os “sofismas” fenomenológicos levaram à elaboração de inúmeras figuras que, empregando ilusões óticas,—especialmente na obra de Salvador Dali – visavam provar que os sentidos enganam o homem.
Vejamos algumas das imagens elaboradas, para comprovar que o que vemos é ilusão.
Na imagem abaixo reproduzida, o que se vê imediatamente é um cálice de Missa.
Mas, apagando-se a figura do cálice o que aparece é o fundo, que é formado por dois rostos simétricos, postos em perfil. (Quando tratarmos do Vaticano II, na terceira parte deste trabalho, voltaremos a examinar o que significa esse jogo de ilusâo ótica).
Esse jogo de ilusões e enganos fez sucesso, tanto os homens amam a mentira. Multiplicaram-se as figuras enganosas.
Nesta outra figura abaixo, um rosto feminino de uma jovem, vista de a três quartos, ao mesmo tempo, apresenta disfarçadamente o rosto de uma velha edionda. Por isso, o autor denominou esse desenho ilusório de: “Minha esposa e minha sogra”.
Quando se vê o rosto da moça, nâo se vê o rosto da sogra, e vice versa.
Na figura representando setas, as setas brancas -- (a figura) – apontam para fora, enquanto o fundo negro é formado por setas que apontam para dentro. O jogo ótico pretende dar idéia da contradição dialética. Mas ele seria mais apropriado, se as mesmas setas brancas, de alguma forma, apontassem, ao mesmo temo, para fora e para dentro.
A nova figura abaixo apresenta a imagem um sapo.
Mas fazendo rodar a figura 900 no sentido anti horário, ver-se-á a figura de um cavalo.
Esse joguinho diverte papalvos e crianças, mas jamais será uma prova filosófica de que Deus nos fez com sentidos físicos e inteligência que nos enganam e que, portanto, o homem é incapaz de conhecer a relaidade e de possuir a verdade.
Na figura abaixo, se vêem balaustres de uma sacada. Mas, o vazio entre eles apresenta duas figuas – a de um moço e a de uma moça—conversando. O objetivo dessa figura seria significar que aquilo que se vê não existe. O que nâo se vê, existe. Noutras palavras, o ser não existe, mas o não-ser existe.
Acima está uma fotografia de alguns selvagens africanos sentados junto a uma casa de teto em cúpula. Dessa foto foi feito um selo.
Um pintor pintou em volta e em cima da casa algumas árvores. O resultado foi uma figura ao estilo de Picasso.
Nesta outra imagem, à primeira vista, se vê um velho calvo com mão sobre o peito. Mas, atendendo bem para a figura se vêem uma jovem e um velho passando por arco de uma rua com calçamento de pedra, com um cão deitado no pavimento da rua.
Nessa figura, se vê imediatamente uma jovem enfeitando-se, diante de um espelho,. Entretanto, essa imagem de vaidade oculta a morte: uma caveira aparece quando se olha a totalidade da figura.
Esse jogos de ilusão ótica serviram ao Surrealismo, movimento gnóstico que condenava o mundo criado e que buscava outrra realidade supoerior àquela feita por Deus. E, para que nâo se julgue que exageramos, confira-se a declaração de André Breton, líder do Surrealismo, que, num manifesto datado de 1953, confessou que para se entender essa nova escola de arte, dever-se-ia seguir o fio condutor da Gnose:
“(...) o grande recurso de que dispõe é a intuição poética. Ela, enfim, libertada no Surrealismo, apresenta-se não só como assimiladora de todas as formas conhecidas, mas ousadamente criadora de novas formas – ou seja, em posição de abranger todas as estruturas do mundo, manifestado ou não. Só ela nos provê o fio que remete ao caminho da Gnose, enquanto conhecimento da realidade supra-sensível, “invisivelmente visível num eterno mistério” (André Breton, Do Surrealismo em suas Obras Vivas, in Manifestos do Surrealimo, Editora Brasiliense, Sâo Paulo, sem data, p.231).
Talvez o maior pintor surrealista, Salvador Dali, tenha sido o mais hábil em fazer esses jogos de ilusâo ótica.
Vejamos algumas obras dele nas quias ele empregou essa técnica de ilusões:
A pintura no alto foi feita por Dali em 1940. Ela tem por título Mercado de Escravos com a aparição do Busto Invisível de Voltaire.
Vista de longe, percebe-se claramente uma pessoa, olhando um busto de Voltaite. Vista de perto, o rosto de Voltaire é, de fato, formado por duas mulheres, saindo de um prédio com arcos.
A figura seguinte mostra uma pintura de dois dedos, segurando uma espécie de ovo, e outros dois dedos, simétricos, segurando uma noz. Na realidade, é Narciso se espelhando numa fonte.
A figura de baixo parece, ao primeiro olhar, uma paisagem marinha. Na realidade, é uma mesa com um pano e um prato.
Esta última píntura de Dali chama-se Espanha, e nela estão pintadas várias cenas da vida na Espanha. Entretanto, dois cavaleiros em suas montaduras formam os olhos de uma mulher, à primeira vista, invisível: a Espanha.
7 - A Intencionalidade e a adequação fenomenológicas
A Fenomenologia usou vários termos da filosofia escolástica, mas em sentido completamente diferente. Assim, na teoria do conhecimento e dos juízos, ela usou termos como intencionalidade e adequação, mas dando-lhes uma conceituação completamente diferente da tomista.
A Fenomenologia tem como doutrina central a idéia de intencionalidade. Husserl herdou tal idéia de Franz Brentano.
O termo intencionalidade provém da escolástica, que o usava no estudo dos atos da vontade, mas que será usado por Husserl em outro sentido.
Para São Tomás, no ato da vontade, se dá uma tendência da vontade para com o objeto desejado como coisa real que o sujeito quer possuir. “A intenção quer ter a coisa desejada; ela não a possui, ainda não a desfruta realmente, in re, mas a possui em sua tendência mesma, incoativamente” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno, Editora 34, São Paulo, 1998, p. 63. Edição original francesa Vrin, Paris, 1985).
Já na Idade Média, passou-se esta noção de intencionalidade para o ato intelectivo, mas com adaptações, pois se no ato volitivo se dá um impulso da vontade para o bem desejado, e a vontade só repousa quando possui o bem desejado in re, no ato da intelecção, não se dá a posse do que é conhecido in re, mas apenas formalmente, como idéia concebida por um processo abstrativo. O intelecto possui o objeto entendido como conceito, e não em si mesmo.
Enquanto a intencionalidade volitiva é uma tendência para um objeto real que a vontade quer e pode alcançar imediata e realmente, a intencionalidade no intelecto é uma tendência a apreender o objeto como conhecido apenas, enquanto idéia correspondente à forma substancial do objeto conhecido. Há, pois, na escolástica, uma diferença muito grande entre a intencionalidade volitiva e a intelectiva.
Para Husserl, “a intencionalidade é a tendência constitutiva da consciência para o objeto” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno, editora 34, São Paulo, 1998, p. 13).
Para entender isto, esse autor – Muralt – dá o exemplo de um cubo tal como ele é visto por nós. Do cubo, à primeira vista, podemos ver apenas duas, ou no máximo três faces. Como então fazemos idéia de que ele é um objeto de seis faces iguais? Porque o que vemos jamais é o cubo inteiro. Nossa percepção do cubo não é total. Não é completa. Jamais vemos o cubo de modo completo, porque, de cada ponto de vista que o examinarmos, veremos somente partes dele, jamais o cubo completo, de uma só vez.
Para a Fenomenologia, ou temos um conhecimento absoluto, como o de Deus, ou nada conhecemos. Ou tudo, ou nada. Como na Gnose, para a qual ou o conhecimento é divino, ou é totalmente falso. Todo conhecimento humano seria falso por se basear nos sentidos materiais e na razão. No exemplo da percepção de um cubo ver-se –ia o fracasso dos sentidos e da razão, incapaz de compreender o objeto. Ela nos daria apenas elementos esparsos, e jamais o total do objeto.
“A intencionalidade husserliana, no presente caso, [do cubo] visa, através de um ajuntamento de dados de sensação confusos e sem ordem, um objeto transcendente do qual ela mesma constitui o sentido de maneira imanente. Pois é realmente a consciência que elabora o dado de sensações, que dá sentido aos “apareceres” sucessivos do objeto, ao unificá-los numa unidade intencional: é ela, portanto, que constitui o sentido do objeto” (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno, editora 34, São Paulo, 1998, p. 70).
Seria, pois, a intencionalidade que constitui o objeto como experiência da consciência.
A intencionalidade husserliana tem como ponto de partida a subjetividade transcendental (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno, editora 34, São Paulo, 1998, p. 13).
De passagem, percebe-se nesse delírio a origem da corrente cubista da Arte Moderna, como tambem é a teoria da Gestalt que vai inspirar o Surrealismo. Assim como a heresia do Modernismo teológico se fundamentou no kantismo e na Fenomenologia, o mesmo se deu com o Modernismo na Arte. Não é à tôa que os hereges modernistas gostam do Modernismo artístico. Na Filosofia, na Teologia e na Estética, o Modernismo é o mesmo.
Para a Fenomenologia, só temos a visão completa do cubo pela intencionalidade.
Salienta Muralt que, “a partir dessa definição, foi possível acreditar num realismo husserliano, realismo da consciência ordenada ao ser, realismo do ser corrrelativo à consciência. De fato a noção de intencionalidade, numa certa dimensão, não tem como defender-se de tal interpretação, e esperamos mostrar quanto e porque ela é errônea, na medida em que conduz a uma descrição realista de uma lógica idealista que apresenta, como iremos ver, indubitáveis ressonâncias platônicas”. (André de Muralt, A Metafísica do Fenômeno, editora 34, São Paulo, 1998, p. 13).
“A fenomenologia começa por descrever o objeto fáctico dado na experiência natural reduzida. Apenas este objeto é dado intencionalmente, e a consciência, que é, no entanto, a origem intencional do objeto, é apenas o pré –suposto fundamental”
“O que se deve entender aqui por objeto? De maneira geral,é o objeto überhaupt, toda a objetividade, tanto o objeto da percepção, O Ding, quanto o objeto categorial que é o juízo, quanto enfim, a própria ciênia enquanto objetividade ideal. Este objeto se dá na experiência imediata, neste puro espetáculo que o fenomenólogo se reserva instalado na epoché” (Apud André de Muralt, A Metafísicado Fenômeno, editora 34, São Paulo, 1998, p. 16).
8 - As Borboletas de Minha Tia.
No deserto da Fenomenologia, um pequeno oásis em forma de crônica.
Não é costume misturar filosofia e crônicas. Fenomenologia abstrusa, borboletas esvoaçantes, e tias muito gordamente concretas, normalmente, não se misturam.
Porém, causa-nos pena pensar como têm sofrido nossos pacientes leitores, agüentando o insuportável xarabiá fenomenológico da Filosofia de Husserl. Esse sacrifício nos é imposto para decifrar o xarabiá intrincável e furta-cor do Vaticano II, que estudaremos na terceira fase deste livro. Então, para dar um certo descanso a nossos pacientes leitores, queremos lhes oferecer, nete momento, um ligeiro oásis no deserto hieroglífico da esotérica filosofia husserliana. Daí, escrevermos uma pequena crônica sobre uma irracional “experiência” infantil que tivemos. Experiência infantil que, se tivesse acontecido na Alemanha fenomenológica, se diria uma “erlebniss”.
É só a pena do leitor que nos leva a contar-lhes uma nossa “experiência” com as magníficas borboletas desenhadas por uma gorda tia que alegrou nossa infância.
Quem não estiver fenomenologicamente cansado com a insuportável Fenomenologia de Husserl, que salte essas poucas páginas, ou costeie o surpreendente oásis de borboletas azuis uma gorda tia, oásis que, agora, oferecemos como repouso em meio ao deserto inumano da Fenomenologia.
***
Todo mundo tem uma tia gorda. É uma felicidade ter tido uma tia gorda acompanhando nossa infância. Eu tive duas tias gordas. E uma delas era uma desenhista insuperável. Ninguém na história do mundo soube desenhar e colorir borboletas como ela. E em um simples papel de embrulho de pão, como se usava nas padarias pouco higiênicas adqueles tempos,-- isso foi em 1935--, anos de antanho nos quais se faziam pães muito mais saborosos do que hoje.
Teria mudado o pão, ou mudei eu?...
Se mudaram os natais...
Tinha eu, então, dois anos.
Foi quando, em certa tarde, minha tia gorda, com alguns lápis que me serviam para rabiscar tudo que suportasse rabisco, desenhou para mim umas borboletas azuis inesquecíveis. Eram uma maravilha. Incomparáveis borboletas azues as de minha tia. Elas apareciam à minha mente infantil como únicas. Belíssimas.
Jamais Leonardo e Rafael, que ainda eu não conhecia, teriam sido capazes de pintar iguais. Minha tia os superava de longe. Mesmo sem conhecê-los.
As borboletas de minha tia tinham beleza inefável.
Não consigo descrevê-las condignamente. Só eu as vi com os olhos deslumbrados de minha infância.
Elas me deram uma experiência única e irrepetível. Nunca mais as vi na natureza, azulmente “farfaleando” pelo espaço azul de minha imaginação.
....................................................................................
....................................................................................
....................................................................................
Ah as borboletas azues de minha tia!...
Como eram belas!
Inigualáveis!
....................................................................................
....................................................................................
Minha tia viajou...
Viagem longa.
Tão longa, que nela perdi os papéis em que estavam desenhadas as magifícas borboletas.
Passaram-se os anos.
As borboletas não voltaram. Não sabia por onde esvoaçavam. Partiram sem que eu percebesse sua partida. Mas eu não as esquecera.
Quando cheguei aos sete anos, minha tia gorda voltou de sua bem longa viagem de cinco anos. Ela voltara. E com ela reviveu nítida a lembrança das maravilhosas borboletas azues que ela desenhara. Procurei de novo, com mais cuidado, o papel de embrulhar pão em que elas haviam sido desenhadas.
Qual nada! Esperança vã.
Nada de borboleteante encontrei nos recantos de meus patentes e bagunçados esconderijos infantis. A não ser minhas lembranças revividas de umas borboletas inigualáveis. O papel em que haviam sido desenhadas definitivamente se perdera.
Estava-se em 1940, e em guerra. A farinha estava racionada. À porta das padarias, noturnamente se faziam longas filas para comprar um pão bem escuro, nas padarias pouco iluminadas em madrugadas escuras.
As borboletas de minha tia haviam ido embora. Vai ver que a guerra as assustar. E lá se foram elas
“farfaleando” pelos dias e anos que haviam transcorrido, num esvoaçar gracioso e leve,delicadamente azul.
“Farfaleando”?...
A lembrança profunda me fez usar duas vezes já um termo derivado de “farfala” que é o nome italiano das borboletas. A linguagem familiarmente italiana, usada então em minha casa, com a lembrança das borboletas, me fez vir a mente o termo farfaleante em vez de borboleteante.
Confusões de imagens e de palavras. Porque em minha primeira infância as borboletas eram italianamente “farfale”.
Onde estariam elas esvoaçando, agora?
Sem dúvida, eu as guardava como um tesouro em minha memória, fixadas numa impressão nitidamente azul, numa experiência de beleza incomparável.
Edênica.
Só no paraíso terrestre poderiam ter existido as borboletas de minha tia.
Aos sete anos, pois, retornou minha tia de sua longa viagem. Era a ocasião de recuperar as borboletas edênicas que ela desenhava.
Peguei umas folhas de caderno bem brancas, juntei meus lápis de escola, todos meio gastos e de pontas quebradas, e pedi a minha tia gorda—ainda mais gorda depois de tão longa viagem -- que me desenhasse de novo as incomparáveis borboletas de minha primeira infância.
.......................................,
Ansiosa, esperançosa expectativa.
..........................................................
Decepção imensa!
Minha tia desenhara uns garranchos informes e mal coloridos.
Espantosas borboletas.
.............................
Protestei.
Não! Não eram aquelas as borboletas que eu vira aos dois anos de idade. Eram outras.
Expliqui-lhe como eram
Pedi a ela que desenhasse outras melhores.
..............................................
Nova ansiedade...
Nova cecepção.!
Qual Nada!
Minha tia não sabia mais desenhar borboletas.
***
Na realidade, era eu que havia crescido.
Aos sete anos, já tinha uso da razão que me mostrava claramente o que a imaginação infantil não conseguia ver. As maravilhosas borboletas azuis de minha primeira infância não existiam. Nunca existiram. Eu apenas relacionava os garranchos de minha tia com as imagens das borboletas reais que vira na natureza. Mas a criança que eu era, não usava ainda a razão. Não tinha espírito critico. Só via a imagem de borboleta na lembrança, arquivo de imagens materiais.
Aos sete anos, porém, já era eu capaz de comparar a realidade, plena de ordem natural compreensível, com os desenhos desproporcionados feitos por minha tia.
Comprendi que as primeiras imagens que guardamos, muito pouco racionalizadas, sem crítica, sem observação racional plena, são ilusórias, por não serem plenamente racionalizadas.
E quando, bem mais tarde, em idade já madura, conheci a estética tomista, e vi como a beleza é o esplendor do bem claramente conhecido pelo intelecto, só então compreendi a beleza. Só aí, fui capaz de dar graças a Deus que tudo fez com Sabedoria. Só aí, compreendi como se devem combater as ilusões da infância. Conheci uma criança que, tendo aprendido que passarinho era “piu-piu”, ao ver uma mosca, chamou-a de “piu-piu”. Como conheci um intelectual que julgava que a experiência infantil era superior a toda razão e que a lenda supera os fatos... Há pseudo intelectuais que se mantém infantis , pois que recusam largar a saia de mamãe e seus sonhos primevos...
Agora, estudando Fenomenologia, compreendi o que é a famosa “Erlebnis”—a experiência inefável, intuitiva, irracional, pessoal, inefável, interior -- de Husserl e dos modernistas, condenada por São Pio X, na Pascendi. Uma ilusão anti sapiencial, e, portanto, inumana.
Bendito seja Deus que nos fez à sua imagem e semelhança, ao nos dar inteligência e vontade.
Bendito seja o Verbo de Deus encarnado, Jesus de Nazaré, Cristo Redentor que nos disse: “A verdade vos libertará”.
Bendita seja a Sabedoria da Igreja que nos ensina a Verdade católica, que nos liberta de toda ilusão, de toda miragem irracional da realidade criada por Deus, realidade que é boa e verdadeira. Sem ilusões inefáveis. Sem o falso maravilhoso do vidro que pretende passar por brilhante.
Que Deus nos livre das lendas, dos mitos e das miragens. Infantis ou históricas
Só Deus basta.
Só Deus, que tudo fez sapiencialmente é bom.
Só Deus não decepciona.
Só Deus basta!
***
Voltemos agora a transitar penosamente pelo deserto arenoso e seco da mentira fenomenológica de Husserl, de Edith Stein, de Scheler, de Heidegger, e do Vaticano II.
9 -- Ego fenômenico e Ego transcendental
Assim como Kant distinguia entre noumeno incognoscível e fenômeno perceptível, assim também a Fenomenologia de Husserl distinguia o eu transcendental --noumênico -- do eu fenomênico empiricamente perceptível.
“Husserl diferenciava três níveis de consciência: isto é, a consciência transcendental (sobre humana), a consciência psicológica transcendental, e consciência empírica no sentido moderno do termo” (Padre John F. Kobler, Vatican II, Theophany and Phaenomenon of Man, Peter Lang, New York, San Francisco, Bern, Frankfurt, Paris London, 1991 , p. 131).
A cada nível de consciência corresponderia um eu. O eu empírico, era o da pessoa concreta, fenomênica. Este seria o eu transcendente (no sentido fenomenológico de transcendente); o eu transcendental psicológico seria a idéia de eu que cada um faz de si mesmo. Finalmente o eu transcendental sobre humano seria um Eu superior, coletivo, que subsistiria em cada eu psicológico transcendental. Cada eu pessoal psicológio, e, depois, cada eu empírico seria apenas a manifestação fenomenológica do Eu transcendental sobre humano.
Assim como se faria uma redução transcendental de cada objeto empiricamente percebido para sua essência, na mente, assim também far-se-ia uma redução do eu empirico transcendente para o Eu transcendental. A redução transcendental “seria a redução fenomenológica aplicada ao próprio sujeito, que então se vê não como um ser real, empírico, mas como consciência pura, transcendental, geradora de todo significado” (Rubem Queiroz Cobra: www.cobra.pages.nom.br).
A fusão dos eus empíricos num eu transcendental não seria a conclusão do processo, mas essa primeira fusão de eus tenderia posteriormente para a redução a um EU absoluto, cósmico:
“A comunidade humana não é fechada, mas está aberta à comunidade universal cósmica” (Urbano Zilles, Introdução à obra de Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, EDUPUCRS, Porto Alegre, 1996, p.35).
Daí, se ter como pejorativo, e quase como uma falha moral grave, o ser “fechado”. Ser fechado seria querer manter-se no eu empírico. Entrou na moda do bem pensar que o homem deve ser “aberto”. Ser “aberto” seria estar pronto a renunciar ao próprio eu, abrindo-se à intersubjetividade, porta para uma segunda abertura, para o EU cósmico.
Entretanto, convém relembrar que, segundo Monsenhor Zilles, para Husserl “a consciência é “uma corrente de experiências vividas”, num rio heraclitano, que se colhe a si mesmo” (Monsenhor Urbano Zilles, Introdução à obra de Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, EDUPUCRS, Porto Alegre, 1996, pp.28-29). Portanto, também a consciência, também o eu, seria fluxo e não ser.
Já na Filosofia de Fichte se distinguira o eu pessoal de um Eu superior do qual os eus pessoais seriam emanações contingentes, fenomênicas. Na verdade, haveria um único Eu superior do qual os eus pessoais individuais seriam meras emanações aparentes. Daí, ser possível uma intersubjetividade monosubstancial.
Foi exatamente essa redução do eu empírico ao Eu transcendental que atraiu os seguidores do chamado personalismo cristão para a Fenomenologia, pois adaptavam a noção do Eu transcendental para seu novo conceito de pessoa. (Cfr Padre John f. Kobler, Vatican II and Phaenomenology, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, Boston, Lancaster, 1985, p. 14, nota 21).
Com efeito, para o Personalismo de Mounier, como pessoa não seria objeto, pessoa não seria propriamente definível. Ele seria, em cada homem, aquilo que não pode ser tratado como objeto.
A filosofia personalista de Mounier, partindo do universo dos objetos, verifica que o mundo material, pré humano, por meio da evolução convergiria para um acabamento do universo que é a personalização.
“Dir-se-á que a realidade central do universo é um movimento de personalização, as realidades impessoais, ou mais ou menos largamente despersonalizadas (a matéria, as espécies vivas, as idéias) não sendo senão perdas de velocidade ou langores da natureza no caminho da personalização” (Emmanuel Mounier, Le Personalisme, Que Sais-Je, PUF, Paris, 1967, n0 395, p. 9).
Percebe-se bem nessa formulação de Mounier a grande influência das Gnoses de Bergson e de Teilhard de Chardin sobre ele.
Veja-se a confirmação disso nestas citações:
“Vê-se desde agora o paradoxo central da existência pessoal. Ela é o modo propriamente humano da existência. E, entretanto, ela deve ser incessantemente conquistada; a consciência só se separa lentamente do mineral, da planta e do animal que pesam em nós” (Emmanuel Mounier, Le Personalisme, Que Sais-Je, PUF, Paris, 1967, n0 395, pp. 9-10).
O Personalismo, como a Gnose, considera que a materialidade é hostil à consciência:
“Por mais abundante e sutil que seja a luz que o espírito humano pode fazer verter até às articulações mais finas do universo, a materialidade existe sob uma forma de existência irredutível, autônoma, hostil à consciência” (Emmanuel Mounier, Le Personalisme, Que Sais-Je, PUF, Paris, 1967, n0 395, pp. 27-28).
Para Mounier, pessoa “é o lugar da liberdade. Ela é mais uma presença do que um ser (um ser estadeado),uma presença ativa e sem fundo” (Emmanuel Mounier, Le Personalisme, Que Sais-Je, PUF, Paris, 1967, n0 395, p. 53). Pessoa “é uma atividade vivida de auto criação, de comunicação e de adesão, que se toma si mesma e se conhece em seu ato, como movimento de personalização” (Emmanuel Mounier, Le Personalisme, Que Sais-Je, PUF, Paris, 1967, n0 395, p. 8).
De tudo isso se conclui que consciêcia, eu, pessoa, não são seres, mas fluxo sem substância, sem fundo. Por isso diz Mounier que pessoa “não tem fundo”, é um movimento e não ser substancial, pessoa, como a divindade de Jacob Boehme, seria um “ungrund”.
Mais ainda. Para a Fenomenologia, o eu empírico seria ilusório, pois seria apenas uma subsistência aparente de um eu transcendental único, superior. Uma “presença”—uma manifestação da Scheckinah, como dirá o cabalista judeu Martin Buber. Como o repetirá Monsenhor Giussani.
Assim como num arquipélago, cada ilha, se pensasse, ver-se-ia como ser isolado, individualizada pelo mar, assim cada pessoa empiricamente se percebe como um ser individualizado, como sujeito isolado. Na realidade, se se retirasse o mar, as ilhas do arquipélago ver-se-iam reduzidas a um só continente. Do mesmo modo, abstraindo-se o “mar” da razão e da matéria, que nos enganam, nosso eu empírico passa a ser visto fenomenologicamente como um único Eu transcendental. Como um só Eu coletivo, monadológico. Daí ter se definido a Fenomenologia como a revelação da “razão universal da humanidade”, como disse Monsenhor Zilles.
Do mesmo modo, na Igreja, cada eu empírico transcendente, seria uma subsistência de um único Eu superior transcendental que seria o próprio Cristo. Desse modo, cada eu empírico poderia dizer-se o Cristo.
“Nessa abordagem [fenomenológica] da realidade, na qual todos os níveis da existência são harmoniosamente relacionados, Cristo é a mais exaltada expressão dessa ordem. Quando cada homem feito à imagem de Deus, é confrontado com a autêntica beleza moral de Cristo, sua resposta natural deve ser, “Esse homem é você”, isto é, ele expressa meu verdadeiro eu mesmo [self] como eu tenho experiência dele no mais profundo de minha intimidade” (Padre John f. Kobler, Vatican II and Phaenomenology, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, Boston, Lancaster, 1985, p. 22).
Desse modo, cada um tem uma experiência com Cristo, Eu transcendental de cada um, que revela a cada homem o mistério do homem que ele é.
E o Vaticano II faz a revelação consistir na revelação do homem a si mesmo, isto é, que cada homem toma consciência que seu eu empírico, na realidade, é apenas uma subsistência de um EU transcendental superior—o EU de Cristo—e isso revela que todo homem é Deus, por ser o eu dele apenas uma emergência do Eu de Cristo Glorioso. É aquilo que o Vaticano II e João Paulo II chamam de “o mistério do homem”:
“O Concílio Vaticano II, na sua penetrante análise do “mundo contemporâneo” chegava àquele ponto que é o mais importante do mundo visível, o homem, descendo—como Cristo – até o mais profundo das consciências humanas, tocando mesmo o mistério interior do homem, que na linguagem bíblica (e também nâo bíblica) se exprime com a palavra “coração”. Cristo, Redentor do mundo, é aquele que penetrou de maneira singular e que não se pode repetir, no mistério do homem e entrou em seu “coração”. Justamente, portanto, o mesmo Concílio Vaticano II ensina: “Na realidade, só no mistério do Verbo Encarnado se esclarece verdadeiramente o mistério do homem. Adão, de fato, o primeiro homem, era figura do futuro (Rom. V, 14,) isto é, de Cristo Senhor. Cristo, que é o novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu Amor, revela também plenamente o homem ao mesmo homem e descobre-lhe a sua vocação sublime” (João Paulo II, Redentor Hominis, 8).
Haveria algo na própria natureza humana que lhe possibilitaria a salvação. Esse algo seria o que o Vaticano I e João Paulo II afirmam ser o mistério do homem, mistério esse que Cristo teria vindo revelar ao homem.
Por isso, todo homem, simplesmente pelo fato de ser concebido no seio de sua mãe, participaria do mistério de Cristo, como afirma João Paulo II na encíclica Redentor Hominis:
“O homem tal como foi “querido” por Deus, como por Ele foi eternamente “escolhido”, chamado e destinado à graça e à glória, este homem assim é exatamente “todo e qualquer” homem, o homem “o mais concreto”, “o mais real”; este homem, depois, é o homem em toda a plenitude do mistério de que se tornou participante em Jesus Cristo, mistério de que tornou participante cada um dos quatro bilhões de homens que vivem sobre nosso planeta, desde o momento em que é concebido sob o coração da própria mãe” (João Paulo II, Redentor Hominis, 13).
Portanto, para participar do mistério de Cristo, para ser chamado e destinado à glória, bastaria ser concebido, sem precisar ser batizado, sem ter fé, sem precisar praticar os mandamentos, sem praticar boas obras. Por sua própria natureza o homem estaria já unido a Cristo. Portanto, por ser homem, por ter natureza humana, o homem participaria do mistério de Cristo Redentor, e, por isso mesmo, já estaria salvo. E isto anula a distinção entre ordem natural e ordem sobrenatural, como defendia o neo modernista De Lubac. Daí, dizer o Vaticano II que qualquer homem pode alcançar a eterna salvação, qualqur que seja a sua religião.
É a salvação universal que é insinuada nessas frases.
O mais íntimo do homem—o “coração”, local em que reside o mistério do homem, a consciência do homem, o seu Ego – estaria naturalmente unido a Cristo o que lhe asseguraria a salvação.
E é isso que explica o ecumenismo que afirma que em qualquer religião pode se alcançar a eterna salvação.
Diz Padre Kobler:
“É bem conhecido que a doutrina de Husserl sobre um Ego transcendental parece envolver um certo tipo de monadologia. Esse tópico é discutido por Ludwig Landegreb em sua obra Phaenomenology as Transcendental Theory of History in Elliston and MacCormick [ 1971], esp. Pp. 104-105, 109- 110. O tipo a-histórico de refexão fenomenológica encontrada na Lumen Gentium apresenta a Igreja como um Ego transcendental (corporificado) em sua auto presença contemplando a si mesma como um sujeito encarnado em um corpo. A intersubjetividade envolvida aí é totalmente interna para a própria Igreja. Essa expressão de monadologia corporificada significa que a Igreja é focalizada em em sua própria “essência eidética” para exclusão de toda outra religião. A “reviravolta transcendental” envolvida na Dei Verbum, o documento sobre a revelação, tem a utilidade de traçar a Igreja para fora dessa centralização em si mesma, colocando-a diretamente antes de Deus e de sua mensagem para a humanidade” (Padre John f. Kobler, Vatican II and Phaenomenology, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, Boston, Lancaster, 1985, p. 108, nota 26).
Que Eu transcendental é esse?
“O “ego transcendental” não é uma substância – no interior da qual poderíamos encontrar o universo inteiro -, mas uma dinâmica, um processo que não existe independentemente das partes envolvidas (subjetividades empíricas, objetos transcendentes), muito embora não se resuma a essas partes, consistindo antes na relação que as faz existir. O “ego transcendental”, nesse sentido, é o “a priori da correlação”, o “a priori do campo” (Marcos José Muller-Granzotto e Rosane Lorena Granzotto, Gênese Fenomenológica da Noção de Gestalt na revista do X Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica, Número 10, 2004).
E como tudo isso cheira a Gnose.
Um Eu transcendental só pode significar que nosso eu pessoal é simplesmente algo relacionado e dependente de um EU superior, na ordem do ser, o qual subisitiria em cada eu particular. E essa mesma doutrina, de caráter claramente gnóstico, fora já defendida pelos filósofos do idealismo e pelos românticos, e, depois, foi ela esposada por Jung.
“Do mesmo modo que o centro é centro em função da periferia, e que a periferia é o que ele até em função do centro, assim o Eu e o Não-Eu somente são por sua reciprocidade” (Frederick Schlegel, Philosophische Vorlesungen aus den Jahren 1804 bis 1806, in Georges Gusdorf, Le Romantisme, Payot, Paris 1984-1985, vol. I, p. 59).
“A teoria do conhecimento coloca em ação o desenvolvimento de uma experiência vivida, na qual o eu faz corpo com esse saber do qual ele mesmo é o que está em jogo. Eu e Não-Eu, espírito e universo não são objetos, na impessoalidade da terceira pessoa, mas seres encarnados, em relação de consubstancialidade vivida sem distância. O Mundo não é o cadáver da realidade, mas seu próprio corpo, seu corpo vivido, a carne de sua carne do espírito. Habituados a um pensamento que procede por disjunção e oposição, temos dificuldade em conceber o pensamento unitivo próprio dos românticos, expressão imediata de relação com o Mundo. Uma fórmula do primeiro esboço dos Monólogos de Schleiermächer, citada por Dilthey, afirma: “Intuição de si e intuição do universo são conceitos inter mutáveis.(Selbstanschaung und Anschaung dês Universums sind Welchselbegriffe): Dilthey comenta: “É somente da intuição de si mesmo que procede uma plena e autêntica intuição do Universo; e é somente a partir do ponto de vista do universo que o Eu (das Selbst) pode ser abraçado em seu verdadeiro valor como um pensamento eterno (Willhelm Dilthey, Leben Schleiermächer, 2a edição, Berlin-Leipzig, 1922, pp. 349- 350, in Georges Gusdorff, Le Romantisme, II Vol. P. 59).
Também entre os poetas românticos alemães se havia falado de uma fusão de eus.
Novalis, no Heinrich Ofterdingen, faz o Eu de seu herói coincidir cosubstancialmente com o eu de sua noiva, Rosa, oculta sob o véu de Isis. Heinrich é Rosa. Rosa é Isis. Heinrich se torna Isis em Rosa. O eu, o Mundo e Deus seriam coincidentes, e uma só coisa.
Haveria uma identificação do sujeito com qualquer objeto, seja sob a forma de um outro eu, seja sob a forma de universo. Esse era o princípio romântico da identidade da Natureza e do Espírito.
“Imaginação criadora, idealismo mágico, não surgem mais como produções arbitrárias, mas como escleroses do eu utilitário e social, do eu superficial, como dizia Bergson” (Georges Gusdorf, Le Romantisme, IPayot , Paris 1993, I Vol. P. 349).
“Friedrich Burdach (1776- 1847) sustenta a tese que há um espaço mental trans pessoal reunindo, apesar da distância, indivíduos separados” (Georges Gusdorf, Le Romantisme, IPayot , Paris 1993, II Vol., . p. 242).
Jung também falava de eu coletivo. Todos os homens, todos os eus, como já dissemos, seriam como as ilhas de um arquipélago, formadas pelo mar da materialidade e da razão. Eliminando-se – ou fazendo uma epoché do mar da matéria e da razão---, as ilhas do arquipélago deixariam de ser ilhas ficando a lume o continente do qual elas eram partes emersas. Daí, ter se tornado famoso o slogan de que nenhum homem é uma ilha. Subterraneamente seríamos um só continente. Um só eu.
Para os fenomenologistas cristãos, esse Eu único transcendental coletivo seria o que eles chamavam de Communio.
A Communio—a consciência que a Igreja teria de si mesma – seria um Eu coletivo transcendental idenficado com Cristo glorioso ressurrecto. Daí, hoje, se excluir das igrejas o crucificado, substituindo-o pela imagem de Jesus ressurrecto, Eu transcendental, eu da Communio. Daí, muitos sacerdotes crerem que Jesus está realmente presente na comunidade e não nas espécies consagradas, que seriam apenas um veículo para criar o espírito coletivo da comunidade. O Eu transhumano monadológico e transcendental do Eu coletivo dos fiéis reunidos em assembléia. Daí, quando o sacerdote exprime o desejo de que Deus esteja com os fiéis, estes responderem : “Ele está no meio de nós”. A presença real de Cristo eucarístico estaria na comunidade e não na hóstia consagrada.
O corpo eclesial, a consciência coletiva da comunidade, seria um Ego coletivo numa nova identidade própria, algo totalmente novo. A Communio –a comunidade eclesial -- seria o Povo de Deus formado pela fusão dos eus dos fiéis num único Ego transcendental que seria o Eu de Cristo (Cfr Padre John f. Kobler, Vatican II and Phaenomenology, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, Boston, Lancaster, 1985, p. 133).
Foi com o Vaticano II que se desenvolveu a idéia de que a “communio” seria “uma “co-presença” com o Cristo vivo, com o seu povo, e entre seus membros. Essa unidade vital de mentes e de vidas podia ser chamada uma intersubjetividade “realizada”. Nessa fundamentação, seguir-se-á uma posterior ultrapassagem para outros cristãos e para a humanidade como um todo” (Padre John f. Kobler, Vatican II and Phaenomenology, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, Boston, Lancaster, 1985, p. 48).
Dessas idéias nasceria a noção de Igreja de Cristo subistente nas várias religiões cristãs, e, depois, a noção de Igreja Universal como união de todas as religiões. Por isso, a Igreja –ego cósmico—como diz a Lúmen Gentium, teria a missão de reunir todo o gênero humano num só Eu cósmico.
Primeiro se falou de uma religião pan cristã. Depois, de uma religião ainda mais transcendental dos grupos monoteístas (Cristianismo, Judaísmo e Maometismo. E não se compreende porque se excluiu desse todo monoteísta o satanismo, que ele também crê num único deus: Satã).
Finalmente, buscou-se a religião absolutamente transcendente, unindo num supremo Ego transcendental todas as crenças e também os não crentes, todos o homens de boa vontade, isto é, os maçons, e toda a humanidade unida num só Ego intersubjetivo numa só Communio.
(E por que se excluiriam os homens de má vontade? Por preconceito? Pois também os homens de má vontade, sendo homens, fariam parte eles também do EU universalíssimo, da razão Universal).
E este tema do Ego transcendental único leva ao tema da Intersubjetividade fenomenológica.
Intersubjetividade é “termo decorrente da filosofia de Kant, mais concretamente da impossibilidade da experiência do objeto tal como é, em si próprio, pelo sujeito. Tal fato originou uma outra dimensão entre os sujeitos, ou seja, a intersubjectividade” (Sofia Paixão, Intersubjetividade).
A Fenomenologia afirma que da realidade só temos uma percepção imperfeita, incompleta, presuntiva. Como teríamos também certa percepção imperfeita da existência do eu pessoal, que seria apenas uma subsistência de um Eu transcendental. Eu absolutamente isolado, como mônada no sentido de Leibnitz, que é o sentido do éon gnóstico. O eu de um “outro” seria apenas uma modificação do meu eu. Tese que coloca a Fenomenologia como uma ramificação do Romantismo.
Portanto, eu transcendental, intersubjetividade, empatia, e comunhão são termos correlatos na Fenomenologia.
Já em Kant, como nos idealistas alemães e no Romantismo, se pode encontrar a preocupação de unir sujeito e objeto. Ora, o outro é para mim um objeto de conhecimento. Quando os românticos procuram unir sujeito e objeto, neles nasceu, do mesmo modo, a preocupação de unir os eus, de tratar de uma intersubejetividade, tema que vai se desenvolver mais amplamente na Fenomenologia de Husserl.
Husserl apontou para a idéia de “intencionalidade” e de consciência como um encontro entre sujeito e objeto. Também ele, como haviam feito os românticos, pretendeu fundir os vários eus não os tratando como seres isolados. O eu do outro está na consciência do eu que o contempla, e assim se daria uma fusão dos dois eus.
Vimos que para a Fenomenologia, toda consciência, todo eu empírico, é puro fluxo. Desse modo, na relação entre dois eus, entre dois sujeitos, um deve considerar o outro não propriamente como objeto, e sim como uma subsistência de um eu transcendental, no qual ambos se fundem através de uma relação intersubjetiva.
Também com relação ao eu pessoal empírico haveria que fazer uma redução fenomenológica, uma epoché. A impressão de que o eu pessoal seria um ser não passaria de ilusão. Cada eu seria apenas a subsistência de um Eu transcendental superior.
Para Husserl, “qualquer homem leva dentro de si um Eu transcendental” (Husserl, Krisis, 54 b, apud N. Abbagnano, op. cit., p. 438).
Desse modo, a filosofia contemporânea afirma que o homem possui a capacidade de inter-relacionamento quer com seu semelhante, ou seja, a intersubjetividade humana, quer com os objetos. Intersubjetividade é a relação entre sujeito e sujeito, ou entre sujeito e objeto.
Intersubjetividade seria a relação entre dois sujeitos, ou mesmo entre um sujeito e Deus, ou, finalmente, entre um sujeito e um objeto. O cabalista Martin Buber foi o pensador que mais claramente enunciou o que na Fenomenologia era insinuado. Para Buber, os relacionamentos que ocorrem entre um Eu e um Tu, envolvem sempre um diálogo no qual o princípio é o Eu-Tu. O relacionamento entre um Eu e um objeto são denominados por Buber como um Eu-Isso.
Em suas publicações filosóficas, Buber deu ênfase à sua opinião de que não há existência sem comunicação e diálogo, e que mesmo os puros objetos não existem sem a interação mútua. As palavras-princípio, Eu-Tu (relação intersubjetiva), Eu-Isso (experiência), demonstram as duas dimensões da filosofia do diálogo.
Diz Husserl que todo eu é para si mesmo, e que todo outro eu é também para mim.
Todo eu seria como uma mônada em autopercepção. Entretanto seria possível o eu estar aberto a outras mônadas, a outros eus, entrando em síntese transcendental com eles, formando então um Eu transcendental, um Eu intersubjetivo, e mesmo, depois, um Eu cósmico pela união intersubjetiva do eu com todo Isso.
“A síntese da coexistência monadológica de todos os eu em recíproca auto percepção é, por sua vez, uma síntese que constitui a natureza (o mundo) comum para todos. Eu, como mônada modalmente originária, tenho como válido meu horizonte de auto estranhamento, de outras mônadas, constituído eu nele como mônada singular de um “nós”, como universo de equivalentes mônadas existentes, que se implicam em recíproca validade e segundo um total sentido ontológico. Este “nós” é a intersubjetividade transcendental na qual se constitui o mundo com validade “objetiva” para todos. Existe, assim, com fundamento na experiência transcendental, uma pluralidade de seres que são ”em si e para si” e que para mim só se dão no modo de ‘Outro”, como alteridade” (Monsenhor Urbano Zilles, Introdução à obra de Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, EDUPUCRS, Porto Alegre, 1996, p. 34).
A intersubetividade seria então comunidade de mônadas.
“A ideia da inexistência de sujeitos e objetos puros cria a necessidade de uma relação entre os vários sujeitos-objetos, relação essa que se baseia na confirmação e no confronto do seu modo de ser no mundo. É através da linguagem que se produz essa relação múltipla assente na subjectividade dos vários intervenientes num processo de partilha de expectativas. Assim, em última instância, essa outra dimensão entre os sujeitos a que se dá o nome de intersubjetividade contribui para abalar a concepção de uma verdade objetiva, fazendo da relatividade um processo de conhecimento, cuja utilidade provém da constante reformulação das convicções subjetivas” (Sofia Paixão- Intersubjetividade. Os destaques são nossos).
Essa fusão dos eus num só eu transcendental intersubjetivo da Fenomenologia é que gerou a novo conceito de comunidade ou “communio” dos teólogos do Vaticano II e que teve uma imensa aplicação nos tempos pós concilaires.
Foi então dessa filosofia abstrusa que nasceu a atual mania de se usar, a torto e a direito, a palavra comunidade.
Busca-se uma integração continua na comunidade paroquial, cultural, regional, nacional, internacional, e até mesmo no cosmo.
A doutrina fenomenológica da intersubjetividade tem repercussões na doutrina do conhecimento.
Cada sujeito apreenderia os fenômenos sob um certo ponto de vista pessoal.
Cada observador teria uma apreensão parcial.
Tratando dese tema da intencionalidade escreveu Sofia Paixão:
“A teoria da “intencionalidade” defende que a percepção procede por “aspectos”, sendo esta sempre inerentemente incompleta, porque qualquer objeto é sempre apreendido a partir de um ponto de vista determinado e bem definido. Assim, aquilo que é observado revela—se através do ato de percepção por meio dos aspectos dependentes da atitude e da determinação do ponto de vista do observador. Há uma correlação entre esses aspectos observados e o ponto de vista do observador. Este papel dos “aspectos” na percepção implica um conhecimento temporal, caracterizado por “horizontes”, sendo que a percepção se processa a partir de hipóteses subentendidas acerca daquilo que está para além dos horizontes”(Sofia Paixão, Intersubjetividade).
E diz mais essa autora:
“a consideração dos “horizontes” da percepção implica a assunção de que os aspectos apreendidos por um observador se relacionam com aqueles percepcionados por outros observadores a partir de outros pontos de vista. As divergências entre ambos mostram que a percepção é intersubjetiva, porque revelam a dependência entre os vários observadores, bem como o isolamento de cada um face aos outros (solipsismo). A intersubjetividade reside no fato de o mundo ser partilhado por vários observadores e, como tal, o conhecimento baseado nos limites dos horizontes e naquilo que se subentende para além desses horizontes necessita de confirmação intersubjetiva” (Sofia Paixão- Intersubjetividade).
Portanto, as várias percepções dos objetos que nos impressionam a consciência -- rio heraclitano constantemente em fluxo-- exigiriam que fossem completadas pelo diálogo que mutuamente faria crescer e aproximar do conhecimento do real, sem jamais atingir plenamente a verdade das coisas.
E a aplicação dessa filosofia não objetivista à religião vai impor o ecumenismo, pois que nenhuma religião poderia afirmar ter a verdade sobre Deus. Todas as religiões teriam algo da verdade, e apenas no diálogo inter religioso se daria uma aproximação mais completa—nunca perfeita—da Verdade. Todo o ecumenismo do Vaticano II provém dessa filosofia falsa. E foi o que fez o Vaticano II que foi uma tentativa fraudulenta de expor a doutrina católica através da Fenomenologia.
O diálogo seria o método necessário e conveniente para completar as apreensões fenomenológicas parciais de cada sujeito. Na complementação intersubjetiva, dar-se-ia uma aproximação maior da realidade, exista ela ou não. De todo modo, a intersubjetividade dá xeque-mate em qualquer pretensão a um conhecimento objetivo pessoal.
Até mesmo na interpretação de um texto se aplicariam esses mesmos princípios, porque o texto seria também ele um objeto de conhecimento, e como tal impossível de ser alcançado objetivamente. Ninguém, nem mesmo o autor de um texto, conheceria objetivamente o que ele escreveu, pois ele também é sujeito e só conhece subjetivamente.
“No campo da literatura, deixa de fazer sentido a defesa de uma única teoria baseada na objetivação absoluta do texto literário, pelo que a problematização e a discussão se apresentam como os caminhos mais viáveis para a apreensão da obra literária como um objeto eminentemente simbólico. (Sofia Paixão, Intersubjetividade)
Disto vai nascer a hermenêutica moderna de Gadamer, que veremos posteriormente. E isso terá consequências na interpretação fenomenológica do Vaticano II, que necessariamenete teria textos abertos a qualquer inerpretação, a qualquer leitura. Seria então válidas a hermenêutica da ruptura, a do “espírito do Concílio”, assim como a da letra. E por que então seria inválida a hermenêutica de Dom Lefebvre?
Analisaremos posteriormente esse problema das leituras e hermenêutica do Concílio Vaticano I.
11- A Relação EU-TU segundo o Cabalista Martin Buber
Intimamente entrelaçada à doutrina da intersubjetividade fenomenológica está a doutrina do Eu-Tu do cabalista judeu Martin Buber, que o Cardeal Joseph Ratzinger – o atual Papa Bentio XVI – afirma ter tido grande influência em seu caminho espiritual: “Um encontro com o personalismo, que depois vimos realizado, com força nova e convincente no grande pensador judeu Martin Buber, foi um evento que marcou profundamento meu caminho espiritual” (Cfr. Cardeal Joseph Ratzinger, Lembranças de Minha Vida, Paulinas, São Paulo, 2006,p.50).
A relação pessoal seria sempre um encontro entre dois sujeitos, ou o encontro de um sujeito com um objeto. Ao encontro relacional entre dois sujeitos, Buber chama de Eu-Tu. Ao encontro de um sujeito com um objeto ele chama de Eu-Isso. A essas duas fórmulas – Eu-Tu e EU-Isso – ele denomina como palavras-princípio.
“As palavras fundamentais da linguagem não são vocábulos isolados, mas pares de vocábulos”(...) As palavras primordiais não significam coisas, mas indicam relações. As palavras primordiais não expressam algo que poderia existir independentemente delas, mas uma vez ditas dão lugar à existência” (Martin Buber, Yo y Tu, Ediciones Nueva Visión, Buenos Aires, 1974, p.7).
“A palavra primordial Eu – Tu estabelece o mundo da relação” (Martin Buber, Yo y Tu, Ediciones Nueva Visión, Buenos Aires, 1974, p.10).
Evidentemente esse modo de pensar é cabalístico, porque, na Cabala, todo o processo das emanações da Divindade é feito aos pares, com princípios contrário e iguais, em oposição dialética.
Portanto, segundo Buber, não haveria um eu ou um tu substanciais. Eu – Tu seria apenas uma relação, e não coisas existentes substancialmente. Também o Eu-Tu e o Eu-isso seriam palavras primordiais pronunciadas apenas pelo Ser. E Buber ai escreve Ser com S maiúsculo, isto é, pronunciados pela Divindade que, ao pronunciar as palavars primordiais se instala nelas:
“Quem pronuncia uma das palavras primordiais penetra nessa palavra e se instala nela”
(Martin Buber, Yo y Tu, Ediciones Nueva Visión, Buenos Aires, 1974, p.8).
Como se vê, essa doutrina de Buber tem clara conotação mística e mágica. E quem fala de mística judaica—Buber era judeu e cabalista—fala de Cabala, isto é , de Gnose judaica.
O encontro intersubjetivo pode ser entre seres humanos, ou entre seres humanos e seres espirituais, e mesmo entre um Eu humano e o Eu divino.
Como na Fenomenologia se considera que o ser é puro fluxo, também a consciência seria fluxo. Para Buber, o eu existe como relação para outro eu ou para os objetos. O ser e o eu seriam puras relações dialógicas. É o que ressalta Tiago Luís Teixeira de Oliveira:
“A filosofia buberiana deve ser compreendida como uma filosofia do encontro, ou do diálogo. O fato antropológico primordial, para Buber, é a relação. Por isso escreve, parafraseando o prólogo do Evangelho de João: “No princípio é a relação” (BUBER, 2001, p. 20). E relação, como diversas vezes lembra o autor, é reciprocidade”(Tiago Luís Teixeira de Oliveira, A Intersubjetividade em Martin Buber, 2005, monografia paresentada ao Departamento de Filosofia da PUC de Minas Gerais).
Buber, como cabalista, considera que a linguagem é portadora de ser. Toda palavra pronuncida em diálogo gera no campo intermédio dos dialogantes uma “presença”, em hebraico a Schekhinah, a presença divina. A Schekhinah seria a última sefirah da emanação divina, aquela que caiu no mundo criado e que seria preciso libertar
Para Buber, “Não há EU em si, mas apenas o EU da palavra-princípio EU-TU e o EU da palavra-princípio EU-ISSO. Quando o homem diz EU, ele quer dizer um dos dois.” (BUBER, 2001, p.4).
Da mesma forma que surgia a Schekhinah entre os dois anjos esculpidos sobre a Arca da Aliança, um olhando para o outro e cantando Santo, Santo, Santo! --e então a Schekhinah aparecia como luz e dela saía a voz divina que se manifestava ao Sumo Sacerdote--, assim também, quando se diz a palavra princípio Eu-Tu, gera-se uma existência: a da Schekhinah, a Presença divina.
Seria a palavra quetraria “o homem à existência” (Newton Aquiles von Zuben, Diálogo e Existência no Pensamento de Martin Buber).
“A intenção de Buber é desvendar o sentido existencial da palavra que, pela intencionalidade que a anima, é o princípio ontológico do homem como ser dia-logal e dia-pessoal. (Newton Aquiles von Zuben, 2001, p. XLI).
Para Buber, a intuição –a Schauung -- precederia o conhecimento objetivo. A intuição captaria a “ presença” que se oferece na relação originária Eu –Tu. O conhecimento seria de dois tipos:
- Conhecimento objetivo que se dá do Eu ao conhecer o Isso como puro objeto;
- O conhecimento intersubjetivo que estabelece uma relação com outro Eu, não tido como objeto.
“A relação Eu-Tu seria uma relação ontológica e existencial que precederia o relacionamento cognoscitivo. Poderia mesmo afirmar que antes de conhecer a vivência o homem a vive e a relação objetivante é um empobrecimento da densidade vivencial originária. A contemplação no face a face não é uma intuição cognoscitiva, mas doação de um Tu a um Eu. Este se realiza na, relação a um Tu”(Newton Aquiles von Zuben, Diálogo e Existência no Pensamento de Martin Buber).
“Quando se diz tu, quem o diz não tem nenhuma coisa como seu objeto”(…) Quando se diz tu, para quem o diz, não há nenhuma coisa, nada tem. Porém está sim numa relação” (Martin Buber, Yo y Tu, Ediciones Nueva Visión, Buenos Aires, 1974, p.9).
Buber, como os fenomenologistas, distingue o conhecimento verdadeiro intuitivo do conhecimento das aparências:
“O homem explora a superfície das coisas e as experimenta. Extrai delas um saber relativo à sua constituição; adquire delas experiência. Experimenta o que pertence às coisas” (Martin Buber, Yo y Tu, Ediciones Nueva Visión, Buenos Aires, 1974, p.9).
Para Buber, haveria quatro aspectos essenciais na relação Eu-Tu:
- Reciprocidade;
- Presença;
- Imediatez;
- Responsabilidade.
Na reciprocidade, haveria uma dupla ação mútua entre os que estabelecem a relação.
E não se julgue que entre um Eu e um objeto não exista reciprocidade, pois Buber afirma que mesmo com um objeto pode haver reciprocidade, por exemplo, entre o Eu de alguém, e uma árvore:
"A árvore não é uma impressão, afirma Buber, um jogo de minha representação ou um valor emotivo, Ela se apresenta 'em pessoa' diante de mim e tem algo a ver comigo, e eu, se bem que de modo diferente, tenho algo a ver com ela. Que ninguém tente debilitar o sentido da relação: 'relação é reciprocidade." (Martin Buber, Yo y Tu, Ediciones Nueva Visión, Buenos Aires, 1974, p. 12).
Curioso que, vimos, o Padre John Kobler recorrer também ao mesmo exemplo de uma árvore para explicar como se dá o conhecimento fenomenológico.
Buber mostra que ao contemplar uma árvore, podemos vê-la como um pilar rígido sob a luz do sol; ou então vê-la como rede de vasos percorridos por seiva vital, sucção de raízes, respiração de folhas; podemos estudá-la e classificá-la cientificamente; podemos tê-la como expressáo de uma lei, ou tê-la como número
“Mas também pode acontecer que por um ato de vontade ou por inspiração da graça, ao considerar essa árvore, eu seja conduzido a entrar em relação com ela. Então a árvore deixa de ser um Isso. Captou-me a potência de sua exclusividade”. (Martin Buber, Yo y Tu, Ediciones Nueva Visión, Buenos Aires, 1974, p.12).
E Buber caminha e encaminha o leitor a admitir a possibilidade de haver algo mais que um isso na árvore:
“Terá a árvore uma consciência e uma consciência semelhante à nossa? De tal coisa não tenho experiência. Porém, porque aparentemente tendes êxito ao fazê-lo convosco mesmo, tornareis a testar a decomposição do indecomponível? Quem se torna presente a mim não é a alma nem a dríada da árvore, mas a própria árvore” (Martin Buber, Yo y Tu, Ediciones Nueva Visión, Buenos Aires, 1974, p.12).
Portanto, Buber admite a possibilidade de haver até nos objetos algo que se encaminha para um Tu e que pode entrar em relação com o Eu.
A reciprocidade é que tira o Eu de seu imanentismo. Ela é que faz com que o Eu e o Tu se tornem Presença:
“A relação Eu-Tu não se reduz à esfera humana, ou melhor, o Tu, como vimos, não é necessariamente um ser humano. Porém, é na esfera das relações humanas que a reciprocidade pode atingir seu grau mais elevado. Na relação dialógica a palavra da invocação recebe a resposta. A reciprocidade rompe então o imanentismo do Eu lançando-o no encontro face a face. É aí que o Eu e o Tu se presentificam. A presença é justamente o momento, o instante da reciprocidade. Esta presença recíproca é a garantia da alteridade preservada”. (Newton Aquiles von Zuben, Diálogo e Existência no Pensamento de Martin Buber).
Por Imediatez entre o Eu-Tu se entende que nada se interpõe entre o Eu e o Tu, nem conceito, nem imagem.
Finalmente, por responsabilidade se entende que no relacionamento Eu-Tu há possibilidade de resposta, numa existência em comum em nível ético.
Martin Buber considera que toda relação Eu-Tu, Eu-Isso, conduz, no final, a uma relação com o Tu eterno, que sempre se vislumbra em todo outro. A esfera antropológica estaria aberta para a esfera teológica.
Para Buber, o mundo não impede ao encontro do Eu-Tu com Deus, pelo contrário, como tudo conduz ao encontro com o Tu eterno, tudo, de certa forma está incluído em Deus, numa forma mais gnostica do que panteísta.
“Buber afirma a inclusão de tudo em Deus, a santificação do mundo, na medida em que diz que quem vai verdadeiramente ao encontro do mundo vai ao encontro do TU eterno” (Tiago Luís Teixeira de Oliveira, A Intersubjetividade em Martin Buber, 2005, Departamento de Filosofia da PUC de Minas Gerais).
Revelação para Buber é simplesmente o que ele chama de “ presença” e nunca um conjunto de verdades que Deus teria dito aos homens sobre o que Ele é:
“Tal é a revelação eterna, presente aqui e agora. Não conheço nenhuma revelação que não seja, em seu fenômeno originário, semelhante a esta. Eu não acredito em uma auto-denominação ou em uma auto-definição de Deus diante do homem. A palavra da revelação é esta: “eu sou presente como aquele que sou presente”. O que se revela é o que se revela. O ente está presente, nada mais. (BUBER, 2001, p.129).
Fé e culto transformariam a presença do Tu eterno em objeto. Impediriam a formação correta da relação do Eu humano com o Tu divino.
Por isso também, Buber se opõe à oração individual. Só a oração comunitária permitiria vencer o egotismo e formar o Eu transcendental da Communio:
“O culto também completa, originalmente, os atos de relação, na medida em que insere a oração viva, o dizer-TU imediato em um conjunto espacial de grande poder de imaginação e o entrelaça à vida de sentido. Ele se torna, também, aos poucos, o seu substituto na medida em que a prece pessoal não é mais sustentada pela prece comunitária mas é reprimida por ela e, então, uma vez que o ato essencial não se sujeita a nenhuma regra, cede lugar à devoção regulamentada”. (BUBER, Eu e Tu, 2001, p.131-132).
E agora, sem conhecer nada dessa abstrusa “filosofia” gnóstico-cabalista, qualquer padre repete que a devoção pessoal é egoísta. E briga com quem reza sozinho pra forçar que este s eintegre à comunidade.
Só na oração comunitária se formaria a Communio, isto é, a Presença do Eu eterno entre nós:
“ (...) ela [a teofania] se torna cada vez mais próxima, ela se aproxima sempre mais da esfera entre seres, se aproxima do reino que se oculta no meio de nós, no “entre”. A história é uma aproximação misteriosa. Cada espiral do caminho nos conduz igualmente a uma perdição mais profunda e a uma conversão mais originária. Porém o evento que do lado do homem se chama conversão, do lado de Deus, se chama redenção. (BUBER, Eu e Tu, 2001, p.138. O destaque é nosso).
Só na abertura para o outro, no viver na fórmula originaria Eu-Tu estaríamos abertos à presença de Deus, que está entre nós. “ Ele está no meio de nós”, como se diz- no Brasil- na Missa Nova de Paulo VI, ela também dependente da Fenomenologia e que só pode ser entendida por quem domina o jargão da Fenomenologia.
12 – Os cegos gnósticos do Zen Budismo e os cegos fenomenológicos do Vaticano II
Há um conto zen budista que narra como cinco cegos procuravam conhecer um elefante. Um deles se agarrou a uma das patas do elefante, e declarou que esse animal era um tronco de árvore. Outro, pegando nas presas do elefante, contestou o primeiro, dizendo que o elefante era, sim, um animal bis cornuto. Um terceiro cego, apalpando o dorso do elefante, afirmou convicto que o elefante era uma parede rugosa. O quarto cego, por sua vez, pegando o elefante pela tromba garantiu com firmeza que o elefante era uma grande gibóia. Finalmente, um quinto cego, tendo agarrado o rabicho do elefante, achou que ele era uma pequena serpente com pelos na cabeça.
Claro que eles podiam conhecer ainda o cheiro do elefante e mesmo lambê-lo, para saber que gosto ele tinha. Nenhum deles jamais conheceria a cor do elefante.
Essa lenda da Gnose oriental visa enganar o neófito, fazendo-o crer que o homem está diante da realidade como esses cegos diante do elefante. A realidade seria incognoscível para nós, que dela teríamos apenas aspectos parciais sem jamais alcançarmos o que ela de fato é. Por isso, um homem convicto de seus conhecimentos, um homem que tivesse certezas, seria ou um ignorante presunçoso, ou um fanático que desejaria impor sua visão parcial e deformadora da realidade como verdade objetiva e absoluta.
Assim também estariam as religiões face à Divindade: elas teriam da Divindade uma visão parcial, conhecendo um ou outro aspecto dela, mas jamais teriam dela o conhecimento pleno ou verdadeiro. E o homem religioso, que quisesse convencer a outros de que sua religião seria a única verdadeira, seria ou um fanático, ou um ignorante, senâo a soma de ignorância e de fanatismo.
Foi o que declarou no Osservatore Romano, em 1968, três anos após a desgraça conciliar, Jean Sullivan, que no livro Matinales(Paris 1976) defendeu a incompatibilidade da Fé com a certeza, conforme contou Romano Amerio em seu excelente livro Jota Unum:
“Os crentes se imaginam que a Fé caminha com a certeza. Puseram-lhes isso na cabeça. É preciso desconfiar da certeza. As certezas, em geral, se fundamentam em quê? No não aprofundamento dos conhecimentos” (Apud Romano Amerio, Iota Unum, Riccardo Ricciardi Editore , Milano- Napoli, 1985, p. 300). E ainda: “O Cardeal Léger na LXXXIV Congregação (Osservatore Romano, 25-26 de Setembro de 1963) sustentou: “Muitos reputam que a Igreja exige uma unidade muito monolítica. Nos últimos séculos instaurou-se uma unidade exagerada no estudo das doutrinas” (Apud Romano Amerio, Iota Unum, Riccardo Ricciardi Editore , Milano- Napoli, 1985, p. 298).
Em vez da missão, fanática e ignorante, dever-se-ia estabelecer o diálogo inter religioso, no qual cada religião contribuiria com sua visão, e estaria aberta a todas as demais visões religiosas. Seria na complementação dos conhecimentos obtida pelo diálogo que os homens se aproximariam do conhecimento da Divindade, sem todavia jamais alcançar esse conhecimento que fugiria como um horizonte foge diante de um observador.
É de surpreender, então, que após o Vaticano II, as missões tenham perecido?
13-- Teoria dos Horizontes de Recepção
A Fenomenologia de Husserl, considerava-se uma filosofia das experiências e não de conceitos. Como vimos até aqui, ela era uma filosofia anti metafísica. Preocupava-se apenas de como as coisas se tornam presentes no mundo interior da consciência.Não lhe interessava—como tarefa impossível—saber o que são as coisas. E nem indagar se as coisas existiam.
Husserl pretendia combater, ao mesmo tempo, o positivismo empiricista e o idealismo platonizante. A Fenomenologia—como vimos – era a favor da intuição e contra a razão discursiva e conceitual.
Da realidade – existisse ela ou não—a Fenomenologia dizia considerar apenas os fenômenos, enquanto produziam uma experiência interior.
Segundo Heidegger, que a princípio foi discípulo de Husserl, “a investigação filosófica [seria como que ] uma “hermenêutica do Ser”, sendo que a palavra hermenêutica significa literalmente a ciência da interpretação”
(Carlos Ceia, Crítica Fenomenológica, http://www.citadel.edu/faculty/leonard/ISER.html).
Comenta esse mesmo autor:
“A filosofia fenomenológica iniciada por Husserl vai influenciar teóricos da literatura e da filosofia desde os formalistas russos até Derrida (embora a desconstrução seja uma das antíteses das abordagens fenomenólogicas). A crítica fenomenológica é um modo de análise totalmente acrítica, sem juízos de valor subjetivos. A crítica não é considerada uma construção, uma interpretação ativa da obra que envolverá inevitavelmente os próprios interesses e tendências do crítico: é uma simples recepção passiva do texto, uma transcrição pura das suas essências mentais, uma reconstituição essencialista e não uma desconstrução” (Carlos Ceia, Crítica Fenomenológica, http://www.citadel.edu/faculty/leonard/ISER.html).
Os princípios da Fenomenologia foram aplicados por Dufrenne, por Roman Ingardem e por Jauss aos textos literários, enquanto objetos de nossa consciência. Isto é, se não podemos ter senão uma experiência interior dos objetos extra mentais, do mesmo modo só poderíamos ter uma experiência absolutamente pessoal de um texto. Cada texto seria recebido como experiência individual única. Assim como toda essência seria um existente, e assim como teríamos apenas um conhecimento do ser individual existente, assim também o nominalismo cognoscitivo da fenomenologia, sendo aplicado a textos, permitiria dizer que todo texto seria lido de modo diverso por cada indivíduo, que teria dele uma erlabnis, uma expriência absolutamente única e pessoal.
Ademais, cada leitor receberia o texto condicionado a um ponto de vista pessoal que seria o seu “horizonte de percepção”, isto é, o modo como ele veria o significado do texto de seu ponto de vista.
Claro que leitores diversos, tendo educação, conhecimentos, culturas diversas, tendo tido leituras anteriores diversas, receberão o novo texto condicionados por todo o seu back ground cultural anterior à leitura, fariam leituras sob aspetos diferentes. Porém, não leituras absolutamente subjetivas. Mas, para a Fenomenologia, cada leitor teria uma leitura de tal modo pessoal que seria impossível haver uma leitura objetiva única.
Assim, quando um italiano e um japonês lêem a Divina Comédia, é claro que a receberão de modo completamente diverso. Sua cultura, sua educação seriam como lentes de colorido diverso que dariam tons diferentes às suas leituras de um mesmo texto.
Poderíamos comparar as pessoas a vasilhames de vidro com formatos diversos. Todos esses vasilhames têm a mesma natureza (a do vidro), mas, recebendo um mesmo vinho, este tomará, em cada vasilhame, o formato do recipiente que o receber. Mas, objetivamente, todos os vasilhames conterão o mesmo vinho.
Concluem então erroneamente os fenomenologistas que jamais poderia haver uma só forma de recepção de um mesmo texto. O que tornaria todos os textos sem nenhuma objetividade. Todas as leituras do texto seriam válidas. Nenhuma poderia ser tida como falsa. Nenhuma poderia se considerar como a única verdadeira e obejtiva.
Levando ao extremo essas idéias, se concluiria que nem mesmo o autor de um texto --que fez o texto através de sua experiência, ou leitura, do mundo—saberia qual o sentido verdadeiro de seu texto. Ele daria apenas uma interpretação pessoal do que escreveu . Mas ele não poderia dizer que objetivamente quis dar aquele único sentido a seu texto.Todo texto seria uma obra aberta a muitas leituras e a múltiplas interpretações. Todas válidas. Nenhuma falsa. Nenhuma objetivamente certa.
Diz Carlos Ceia no trabalho que dele citamos:
“A problemática da “obra aberta” interessou sobremaneira a teoria da literatura contemporânea. Essa problemática está introduzida na discussão do terceiro estrato da obra de arte literária no modelo de Ingarden, onde se coloca o problema daquelas zonas de indeterminação que fazem parte integrante do texto e que permitem leituras pessoais ou contextuais diferenciadas. O mesmo princípio de “abertura” da obra literária há-de ser defendido claramente por Umberto Eco em Opera aperta (1962), em vários livros de Barthes, na fase pós-estruturalista”.
(Carlos Ceia, Crítica Fenomenológica, http://www.citadel.edu/faculty/leonard/ISER.html).
Foi o polonês Roman Ingarden quem aplicou os princípios ds fenomenologia de Husserl à análise de obras literárias.
Perguntava ele:
“Qual o ser da obra de arte literária e (ou) das objetividades que nela se manifestam? Ingarden argumenta que “a concretização de uma obra literária (…) tem o seu fundamento ontológico na própria obra”. Como comenta Maria Manuela Saraiva na introdução à edição portuguesa, "No essencial, a solução de Ingarden consiste em recusar a alternativa entre ser real e ser ideal para introduzir uma terceira modalidade de ser : o puramente intencional, que caracteriza, entre outros, o ser da obra literária. Puramente intencional, porque ontologicamente o ser da obra de arte não é autônomo, mas dependente da consciência que o cria." (p. xvii). A obra de arte tem, portanto, origem nos atos de consciência do autor; a escrita literária é uma espécie de repositório desses atos que serão reativados e interpretados pela própria consciência do leitor” (Carlos Ceia, Crítica Fenomenológica, http://www.citadel.edu/faculty/leonard/ISER.html).
Mas foi em Gadamer que a teoria das múltiplas leituras ganhou força, dando origem à hermenêutica moderna:
“Mas é na hermenêutica contemporânea, sobretudo com Hans-Georg Gadamer em Wahrheit und Methode (Verdade e Método, 1ª ed. 1960, depois muito corrigida nas edições seguintes), que a Fenomenologia terá novos desenvolvimentos. Gadamer vai ampliar o debate fenomenológico sobre intencionalidade, argumentando contra o americano E. D. Hirsch (Validity in Interpretation, 1967) que o sentido de um texto não corresponde à intenção do autor, salientando que o sujeito (leitor) e o objeto (texto lido) são inseparáveis e que todas as afirmações de sentido são o resultado da consciência humana, e não da linguagem em si mesma, (na suposição de que existe fora do sujeito, inscrita no texto pela intenção do autor, por exemplo) (Carlos Ceia, Crítica Fenomenológica, http://www.citadel.edu/faculty/leonard/ISER.html).
O que nos leva a focalizar agora a Hermenêutica moderna.
14 -- A NOVA HERMENÊUTICA: HANS GEORG GADAMER
Da Fenomenologia de Husserl e do Existencialismo nihilista de Heidegger, nasceu a Pós Modernidade. Também ela, pelo menos, por alguns de seus pensadores, recusa que o homem possa conhecer o real e a verdade.
Por isso diz Tomás Melendo:
“Interessa insistir em que tudo isso se soma à crise de racionalidade que examinávamos antes entre os epistemólogos de nosso século. Por que? Porque também a pós modernidade débil implica sobretudo na anulação absoluta do sentido da verdade e de qualquer racionalidade possível. Como queria Nietzsche, tudo é falso: "simplesmente, já não existe razão alguma para imaginar um mundo verdadeiro" [Nota 206: M. HEIDEGGER, Nietzsche, ed. francesa cit., vol. II, p. 51. Apud T. Melendo, op. cit., p. 89).
A hermenêutica contemporânea de Hans-Georg Gadamer autor do livro Verdade e Método (Wahrheit und Methode) opõe-se a E. D. Hirsch (Validity in Interpretation) defendendo a tese de que o sentido de um texto objetivamente não corresponde à intenção de quem o redigiu, visto que cada leitor se une inseparavelmente ao texto que lê. Desse modo, todas as interpretações de um texto resultam da consicência pessoal do leitor e não simplesmente do texto tal qual ele aparece
Gadamer ainda admite que seja possível uma certa aproximação da verdade do ser, não se conseguindo, porém, jamais alcançar o real e sua verdade ontológica plenamente.
Que se nos perdoe a longa citação abaixo de Tomás Melendo, que colocamos aqui, pela clareza de sua exposição:
“Assim o explica Pegueroles, manifestando simultaneamente as luzes e as sombras, e a peculiaridade exclusiva, da Hermenêutica:
"1. A verdade hermenêutica é uma verdade sem critério. Não há critério de verdade na hermenêutica. A beleza da Nona Sinfonia de Beethoven nem se pode verificar, nem se pode demonstrar.
"2. Como distinguir então entre a beleza e a não beleza, entre uma grande filosofia e uma filosofia sem valor? Há dois caminhos. Primeiro, a experiência. Somente um homem de muita experiência artística, filosófica… (um homem formado) será capaz de julgar com acerto. Segundo, o diálogo. Dois homens entendidos (em arte, em filosofia) é possível que cheguem a se por de acordo na verdade.
"3. A verdade hermenêutica é uma verdade sem erro. Na hermenêutica, o contrário da verdade não é o erro, mas sim a não verdade. A verdade hermenêutica se dá em uma experiência (de beleza, de valor). Ora, pois, a experiência, ou se dá, ou não se dá. Ou há experiência, ou não há experiência. Não há experiências falsas. A experiência é sempre verdadeira.
"Aquilo que viu um grande filósofo é verdade, disse alguém magistralmente. Depois, o leitor de Platão verá ou não verá essa verdade que viu Platão. Não há um Platão falso. O pedaço de chumbo dourado que eu tomo por ouro, não é ouro falso, é não ouro (Heidegger).
"4. A verdade é histórica e, portanto, finita. Está condicionada pela história e especialmente pela linguagem do leitor do texto. A hermenêutica de Gadamer afirma ao mesmo tempo, a verdade e sua finitude. O homem não conhece a verdade absoluta (Hegel), mas apenas seu modo de se dar desde sua situação. Ora bem, essa finitude é uma riqueza. Os modos de dar-se de uma grande obra de arte são infinitos. Nunca chegaremos ao termo de nossa experiência da Nona Sinfonia ou do Dom Quixote.
"5. […] Lia há pouco que na hermenêutica primeiro se dá a compreensão e, depois, a valorização do compreendido. O autor não tinha entendido nada. Essa distinção entre compreensão e crítica ou, o que dá no mesmo, entre sentido e verdade, é própria da ciência, não da filosofia (ou da hermenêutica, que é seu outro nome).
"Se compreendo Platão, me entusiasmarei com ele. Se não me diz nada é que não o compreendi. A verdade hermenêutica somente é verdade, se é verdade para mim. A verdade científica é verdade, ainda que para mim não me afete (é verdade para todos). A verdade hermenêutica somente é verdade, se me aproprio dela, se a aplico a mim.
"A verdade hermenêutica é uma verdadeira revolução. A filosofia (e a arte) não são uma ciência (como pretendeu a modernidade). E sua verdade é outra verdade. Esta nova, revolucionaria verdade a descobrem, cada um por sua conta (sempre contra a modernidade), Kierkegaard (a verdade subjetiva) e Newman (Grammar of assent), no século passado. E, no nosso, Heidegger e com ele Gadamer e Pareyson (cada um a seu modo) e a nova retórica de Perelman" [Nota 211- J. PEGUEROLES, "La Verdad Hermenéutica en Cuatro Palavras", in Espíritu XLIV (1995), pp. 221-222. Apud T. Melendo, op. cit., p. 93].
Um dos discípulos importantes de Husserl e que aplicou a Fenomenologia ao estudo interpretativo de texros literários, foi o polonês Roman Ingarden, que em 1930 publicou A Obra de Arte Literária.
Ingarden se interessa em saber que é a obra literária, e o que de objetivo pode se manifestar nela. Como fenomenologista, Ingarden recusa o dilema posto na Filosofia Moderna entre objetividade e idealismo subjetivista. Como Husserl, ele escapa do dilema citado adotando a teoria da intencionalidade intelectiva da Fenomenologia de Husserl. Como explica Maria Manuela Saraiva na introdução da edição da obra citada de Ingarden em português, o ser de uma obra literária seria puramente intencional, pois que ele não seria algo autônomo, mas inteiramente da consciência que o cria por sua intencionalidade. A obra de arte literária, nascida da consciência pessoal de seu autor, é reativada e interpretada pela consciência de cada leitor dela. Portanto, toda obra de arte literária é reinterpretada por cada leitor segundo sua consciência. Desse modo, cada leitura teria uma interpretação válida. Nenhuma interpretação poderia ser excluída. Nenhuma poderia ser dita falsa. Nenhuma poderia ser dita absolutamente objetiva.
Dessas teorias vai nascer o conceito de obra aberta, tal como vai ser apresentado por Umberto Eco, em 1962.
Carlos Ceia pergunta: “Que caminho hermenêutico escolher: o sentido da obra em si mesma ou a variedade das concretizações que a obra permite? Se a opção for estritamente husserliana, a obra só se concretiza, só se torna obra escrita a partir do momento em que a lemos” (Carlos Ceia,http://www.citadel.edu/faculty/leonard/ISER.html).
Ceia mostra ainda que um texto é uma materilaização de uma visão que o autor tem do mundo. O texto de uma obra resulta dos fenômenos de consciência do autor. Portanto são fruto de sua experiência, de sua intencionalidade intelectiva que elaborará uma tomada de cosnciência inteiramente pessoal, não objetiva.
“O 'mundo' de uma obra literária não é uma realidade objetiva, mas aquilo que em alemão se denomina Lebenswelt, a realidade tal como é organizada e sentida por um indivíduo. A crítica fenomenológica focaliza a maneira pela qual o autor sente o tempo ou o espaço, ou a relação entre o eu e os outros, ou a sua percepção dos objetos materiais." (Teoria da Literatura: Uma Introdução, trad. de Waltensir Dutra, Martins Fontes, São Paulo, 1994, p. 64 apud Carlos Ceia,. http://www.citadel.edu/faculty/leonard/ISER.html).
Jauss (Hans Robert), seguindo Gadamer, julga que cada leitor, na leitura de uma obra, funde seus próprios “horizontes de percepção”—suas experiências , suas vivências--, com os do autor do texto. Haverá, segundo Jauss, uma “fusão de horizontes’. Para Jauss, que nesse ponto segue Gadamer, compreender um texto significa ter compreendido a que pergunta ele quer responder. Para Gadamer e Jauss, compreender um texto exige a fusão dos horizontes do autor com os horizontes de recepção do leitor.( Cfr. H.R. Jauss, Pour Une Esthétique de La Réception, Gallimard, Paris, 1978, pp. 65 -66).
Também Davi Bleich considera que cada leitor dá uma interpretação pessoal na leitura que faz de uma obra. Todas as leituras feitas seriam “verdadeiras”. O autor de um texto redige sua experiência de vida. O leitor registra sua experiência de leitura.
Paul Ricoeur pensa que as obras literárias e culturais são reflexos de visões do mundo. A diversidade de interpretações dessas obras provém das diversas intencionalidades e dos diferentes métodos adotados para compreendê-las.
Todas essas teorias e doutrinas recusam a objetividade do conhecimento, caindo-se então num relativismo completo. É o que lembra Sofia Paixã ao dizer: “Assim, em última instância, essa outra dimensão entre os sujeitos a que se dá o nome de intersubjetividade contribui para abalar a concepção de uma verdade objetiva, fazendo da relatividade um processo de conhecimento, cuja utilidade provém da constante reformulação das convicções subjetivas. No campo da literatura, deixa de fazer sentido a defesa de uma única teoria baseada na objetivação absoluta do texto literário, pelo que a problematização e a discussão se apresentam como os caminhos mais viáveis para a apreensão da obra literária como um objeto eminentemente simbólico”. (Sofia Paixão, ob cit).
A aplicação dessas teorias da Hermenêutica moderna vai criar a atual polêmica sobre o real significado do Vaticano II: têm os textos do Vaticano II continuidade com o magistério do passado, ou são eles uma ruptura com a tradição da Igreja?
Bento XVI condenou a hermenêutica de ruptura adotada pela leitura dos textos do Vaticano II na linha do chamado “espírito do Concílio”. O atual Papa defendeu um leitura segundo a “letra do Concílio,” numa hermenêutica de continuidade.
Desse modo, parece que o Papa Bento XVI aceita, pelo menos em parte, as doutrinas hermenêuticas modernas, para as quais todas as leituras seriam válidas. Mas, sendo assim, Bento XVI não poderia excluir como inválida a leitura do espírito do concílio. Nem poderia afirmar que a leitura conforme a letra dos textos do Concílio seria a verdadeira. Porque, para a hermenêutia moderna, não há uma leitura objetivamente verdadeira.
Logo, no exame dos textos do Vaticano II, deve-se abandonar a teoria fenomenológica da hermenêutica moderna. Como sempre se fez, dever-se-ia comparar os textos do Vaticano II com os textos do magistério tradicional, com a doutrina de sempre. Só assim se pode evitar o relativismo hermenêutico e o caos doutrinário que envolveu a Igreja depois da adoção da Fenomenologia, essa fumaça de Satanás que penetrou no templo de Deus, obnubilando o sol da verdade católica.