Arte e Cultura
No tempo de Dante, a Ordem dos Frades Menores, fundada há pouco por São Francisco, estava mergulhada em uma crise profunda.
Logo após a morte de São Francisco, em 1226, produziu-se uma divisão entre os frades que queriam uma atenuação da regra, e os mais próximos discípulos do grande santo. Dessa divisão nasceu o grupo dos Espirituais franciscanos, que, por seus exageros e erros, foi condenado por vários Papas.
A cisão franciscana foi gangrenada pelas idéias de Joaquim de Fiore, que foram usadas pelos Espirituais, para confirmar suas teses apocalípticas, dando-lhes um tom claramente messiânico e milenarista.
Dos Espirituais, cujos principais líderes foram Salimbene, Ângelo Clareno, Ubertino di Casale, Gerardo di Borgo San Donino, João de Parma, destacou-se um outro grupo ainda mais radical que deu origem à seita dos Pseudo-Apóstolos ou Fraticcelli, cujos chefes foram Segarelli e Fra Dolcino, ambos executados por suas heresias e crimes.
Mais tarde, os erros dos Espirituais deram causa a mais uma seita no seio da Ordem Terceira franciscana: a seita dos chamados Beguinos ou Begardos, cujo principal inspirador foi o famoso Frei João Pedro Olivi, que coincidentemente lecionou em Florença, no convento de Santa Croce, entre 1287 e 1289, pouco antes da época em que Dante o frequentou.
Muito provavelmente, lá ele teve ocasião de ler não apenas as obras de Ubertino da Casale, como também as de Olivi, assim como as de Joaquim de Flora.
Os traços que essas leituras deixaram em Dante são fáceis de perceber pelo que ele diz na Divina Comédia. Basta lembrar - como já dissémos - que as heresias franciscanas sofreram a influência do pensamento de Joaquim de Fiore. Ora, Dante colocou o abade Gioacchino no paraíso, junto com os maiores padres da Igreja, apesar de ele ter sido condenado pelo IV Concílio de Latrão, em 1215. (Cfr. Denziger, 431). (Sobre os franciscanos e suas seitas, recomendamos a leitura da tese do Prof. Nachman Falbel "A luta dos espirituais e sua contribuição para a reformulação da teoria acerca do poder papal"-, USP, 1976. A respeito de Joaquim de Fiore é sumamente interessante a obra de Marjorie Reeves, The influence of prophretism in the latter Middle-Ages, Clarendon Prees, Oxford, 1960).
Também como os franciscanos sectários, Dante defendia a tese de que a Igreja devia ser totalmente pobre, e que ela não devia ter supremacia sobre o Estado. Do mesmo modo que esses hereges e coincidindo com o crer de muitas outras seitas, Dante julgava que a Igreja se corrompera, e que a causa dessa corrupção fora a doação de Constantino. Segundo Mineo, em Dante "(...) talvez atuasse um certo componente rigorístico-franciscano, pelo que ele estava persuadido da necessidade de uma Igreja espiritual"( N. Mineo, op. cit. p. 62).
Umberto Parrichi afirma que "Nas disputas entre os observantes da regra rígida e os conventuais, Dante indubitavelmente tomou posição a favor dos Espirituais" (U. Parrichi, Dante, De Luca Editore, Roma 1965, p. 134). Como é bem sabido, várias das teses dos Espirituais, favoráveis à regra rígida, foram condenadas pela Igreja como heréticas. E Dante, com os gibelinos, foi defensor de teses condenadas. Por isso, é de estranhar a afirmação feita pelo mesmo Parrichi de que: "No terreno doutrinário, Dante não demonstrou jamais nenhuma concessão para com as correntes heréticas ou heterodoxas, e foi fiel a respeito da grande lição dominicana". E acrescenta esse autor: "Se se pode falar de alguma relação com os sequazes do calabrês Gioacchino da Fiore (propugnador de uma vasta reforma da Igreja e autor de célebres profecias), ou mesmo com os sequazes do papa Celestino V, isto tem relação não com a doutrina teológica, mas sim com acentuadíssimo espírito profético (U. Parrichi, op. cit, p. 134). Ora, também Joaquim de Fiore foi condenado pelo IV Concílio de Latrão...( Cfr. Denziger, 431). E seu profetismo tem claro sabor de heresia milenarista.
Dante, frequentando o Convento franciscano de Santa Croce, entregou-se largo tempo ao estudo da Filosofia, que ele simbolizou, como ele mesmo explica, na "donna gentile"(Cfr. Dante, Convívio , II, XII).
Opinião oposta a de Parrichi é defendida por Pietro Cataldi:
"Deve-se recordar, de fato, que na origem da Commedia está o transvio de Dante, caracterizado também por um afastamento da ortodoxia religiosa" (P. Cataldi, Dante Alighieri - La Divina Commedia, scelta e commento di Pietro Cataldi e Romano Luperini, Le monnier, Firenze, 1989, p. 328; tradução nossa).
Em Santa Croce, Dante se imbuiu da mentalidade platônica e mística. De Platão, parece que ele conheceu diretamente apenas o Timeu Estudou São Boaventura, e outros filósofos franciscanos como Robert Grosseteste.
É muito provável que, dedicando-se à filosofia o jovem Dante frequentasse também o convento dominicano de Florença. É certo que estudou profundamento o tomismo. Estudou, do mesmo modo, as obras de Santo Alberto Magno. Sem dúvida conheceu as principais obras de Aristóteles e de Averroés, tanto como a interpretação aristotélica de Sigier de Brabante, inimigo de São Tomás, que Dante põe no paraíso e, pior, faz o Aquinate elogiar, como se eles não tivessem divergido em questão gravíssima.( Par, X, 135-138).
No campo exegético e místico, ele sofreu grande influência de Ricardo de São Victor e de São Bernardo, como também de Hugo de São Victor.
Concluindo no que tange às influências filosóficas, e ao contrário do que muitos presumem, não se pode dizer que Dante foi um tomista puro. Por exemplo, ao contrário de São Tomás, Dante não subordina a Filosofia à Teologia, e por isso também não admite que o Imperador seja subordinado ao poder espiritual do Papa. Por isso, Étienne Gilson afirma :
"Assim, a separação da Igreja do Império pressupõe necessariamente a separação da teologia e da filosofia, e é a razão pela qual, do mesmo modo que Dante havia rompido em dois pedaços a unidade da Cristandade medieval, ele rompe pelo meio também a unidade da sabedoria cristã, princípio unificador e laço da Cristandade. Em ambos estes pontos vitais, Dante, este pretenso tomista, feriu de morte a doutrina de São Tomás de Aquino". (E. Gilson, Dante et la Philosophie , Vrin, Paris, 1972, p. 210).
E não só de averroísmo, Dante foi acusado. Há quem aponte influências do místico sufi Ibn Arabi, a tal ponto que diga a Divina Comédia deve ser considerada uma obra espanhola, o que, evidentemente, é um imenso exagero (Cfr. M. Asin Palácios, La escatologia musulmana y la Divina Comédia,Instituto Hispanoárabe de Cultura, Imprenta y Editorial Mestre, Madrid, 1961).
Depois disto, pode-se perguntar qual foi a verdadeira posição filosófica de Dante?
Parece-nos claro que há uma grande simplificação em considerá-lo, tout court, um tomista. Já vimos que Étienne Gilson, um especialista no assunto, não o julga assim, pela separação que ele faz entre Teologia e Filosofia, fé e razão, e, por isso, entre Igreja e Estado. E daí a tese dantesca da independência do Império com relação ao Papado.
Também Mineo é desta opinião: segundo ele, os estudos mais recentes atestam que é errado considerar Dante simplesmente como tomista. "Ele [Dante] acolheu certamente não poucas orientações e teses da filosofia do Aquinate, mas também não hesitou em escolher, em temas de grande relevo, posições notavelmente diversas se não antitéticas. Na realidade, ele foi aberto à doutrina de pensadores de formação e orientação dispares, desde um Alberto Magno a Boaventura, de Averróis e dos averroístas latinos [Sigier de Brabante] assim como a de Joaquim de Fiore e dos franciscanos joaquimitas. Ele não deixou de ir às próprias fontes do pensamento de seu tempo, foi ao Aristóteles e também ao Platão das traduções e dos comentários medievais. Não lhe foram estranhos certos desenvolvimentos do neo-platonismo, do misticismo pseudo-dionisiano, do agostinianismo, típicos da tardição escolástica oxfordiana"(N. Mineo, op cit. p. 152).
Dante tomou águas de tantas fontes, e tão diversas, que se pode afirmar que ele pode ser tido, sem dúvida, como um pensador "eclético". Tal é, na verdade, a opinião de Mineo (op.cit. p. 153), que não nos parece enganada.
Uma segunda questão que se põe com freqüência é se Dante foi um místico ou um racionalista ? E essa questão é prenhe de graves conseqüências.
Pode-se constatar, na vida de Dante, algumas fases distintas:
1) Uma fase nitidamente mística, correspondendo ao tempo do amor a Beatriz. É o tempo descrito no Vita Nuova, e da participação de Dante no pensamento dos Fedeli d'Amore, tal como é expresso nas poesias do Dolce Stil Nuovo;
2) Uma fase racionalista, quando Dante se dedica ao amor da "Donna gentile", isto é, da Filosofia, esquecendo-se de seu amor por Beatriz. É a época em que o poeta se dedica aos esstudos de Filosofia, desde a tomista até a averroísta, na qual ele parece ter aceito até mesmo a doutrina das duas verdades do averroísmo;
3) Uma última fase de "equilíbrio", como a denomina Mineo (op. cit. p. 160), na qual Dante harmoniza seu amor místico por Beatriz com a razão. Nesta fase "o racionalismo [ de Dante] se coordena e subordina a um ressurgimento de místico "intuicionismo"(N. Mineo, op. cit. p. 160)
Falando do pensamento de Dante, fica impossível não fazer nenhum comentário, ainda que sucinto, sobre seu misticismo.
Este problema histórico tem sucitado muita controvérsia. Já no século passado, o carbonário Gabriel Rossetti escreveu sobre o esoterismo de Dante, fazendo dele um Rosa-cruz, e da Divina Comédia uma obra que escondia uma doutrina esotérica "sott'il velame delli versi strani"(Inf. IX, 63).
Giovanni Pascoli seguiu os passos de Rossetti.
Tese semelhante, mas de um ponto de vista católico, foi escrita por E. Aroux autor do "Dante, hérétique, revolutionnaire et socialiste, Paris, 1853).
Já em nosso século, um autor de coloração fascista, Luigi Valli defendeu a tese do esoterismo de Dante em sua obra Il linguaggio segreto di Dante e dei "Fedeli d'Amore", que apresenta o autor da Divina Comédia como membro de uma seita secreta formada pelos poetas do Dolce Stil Nuovo.
O esotérico René Guénon veio lançar sua última pá de ridículo na tumba do esoterismo de Dante.
De todas essas interpretações esotéricas tratou a obra "L'Idea deforme" de Maria Pia Pozzato e outros autores, todos orientados por Umberto Eco, que escreveu a introdução da obra na qual ele trata da "Semiótica Ermetica e il paradigma del velame".
Esta obra, feita sob os auspícios de Eco, procura demonstrar o ridículo de certas interpretações esotéricas, especialmente as de Guénon, provando sua gratuidade e falta de lógica. Ela chega à conclusão que por trás do véu não há nada escondido. O que torna o véu inútil e, portanto, inexplicável. Entretanto, embora os autores de L'Idea Deforme" recusem a tese da conspiração esotérica, alguns deles, pelo menos, confessaram ter ficado impressionados pela teoria do "velame" que estavam criticando.
Eis o que confessa Maria Pia Pozzato: "Depois, se alguma de nós, agora, olha com olhar diferente a obra de Dante e subterraneamente simpatiza com Rossetti ou Pascoli, trata-se de uma página de história pessoal da qual o grupo de trabalho enquanto tal não tomou conhecimento" (Maria Pia Pozzato eoutros, L'Idea Deforme, Interpretazioni esoteriche di Dante, Bompiani, Milano,1989,p. 41).
Ora, estas afirmações confessam que nem os autores da obra ficaram totalmente concordes com a negativa absoluta de que havia doutrinas ocultas nos textos de Dante. Evidentemente, recusando os delírios esotéricos, é difícil negar, de modo radical, a existência de um pensamento oculto em Dante.
A acusação de que em Dante havia uma doutrina secreta se funda, em primeiro lugar, no famoso terceto do Inferno:
"O voi ch'avete li 'ntelletti sani
mirate la dottrina ch'è nascosta
sotto 'l velame de li versi strani".
[Oh vós que tendes intelectos sadios,
olhai a doutrina que está escondida
sob o véu dos versos estranhos].
E, na Divina Comédia e nas demais obras de Dante o que não faltam são versos estranhos....
Por exemplo, o que Dante afirma no Convívio : "E con ciò sia cosa che la vera intenzione mia fosse altra che quella che di fuori mostrano le canzoni predette, per allegorica esposizione quelle intendo mostrare, ...( Dante,Convivio ,I,1)
[E com isto seja coisa clara que a verdadeira intenção minha fosse outra do que aquela que externamente mostram as citadas canções ...]
E mais adiante diz: "Intendo mostrare la vera sentenza di quelle, che per alcuno vedere non si può s'io non la conto, perchè è nascosa sotto figura d'allegoria"(Dante,Convivio , I, Ii).
[Pretendo mostrar também a verdadeira sentença daquelas (canções), que, se alguém quiser entender, não pode, se eu não a conto, porque está escondida sob a figura de alegoria].
Mas, se ele revela, não acabou o segredo ?
Sim, se ele revelasse tudo... O problema é que ele afirma que não conta tudo e que conta algo em linguagem que só alguns, que estavam no mesmo grau de Fedeli d 'Amore , poderiam entender...
"E questo dubbio è impossibile a solvere a chi non fosse in simile grado fedele d'Amore; e a coloro che vi sono è manifesto ciò solverebbe le dubiose parole"(Dante,Vita Nuova , XIV).
["E esta dúvida é impossível de ser resolvida para quem não fosse fiel de Amor em grau semelhante; e para aqueles que estão nesse grau é manifesto já o que explicaria as palavras duvidosas"].
E o que Dante e os Fiéis de Amor de seu grau quereriam ocultar ?
Talvez o que ele faz entrever, em certa passagem do Convivio, ao explanar o que quer dizer "mente" na famosa canção: "Amor che nella mente mi ragiona":
"Onde si puote omai vedere che è mente: che è quella fine e preziosissima parte de l'anima che è deitade. E questo è il luogo dove dico che Amore mi ragiona de la mia donna".(Dante, Convivio, III, II).
["De onde se pode agora ver o que é a mente: ela é aquela fina e preciosíssima parte da alma que é a divindade. E este é o lugar onde eu digo que o Amor me fala da minha senhora"].
Surpreendente! O Dante, tido por católico tomista, defendendo a tese herética de Mestre Eckhart de que a fina ponta da alma - a Fünkenlein - é a Divindade. O que é claramente a tese da Gnose.
"E più non ti dico e più non ti rispondo" (Inf. VI, 90). Pelo menos por enquanto.
Foi esse misticismo que uniu Dante aos poetas do "Dolce stil nuovo" dos chamados "Fedeli d'Amore", autores de poesias tão enigmáticas quanto estranho era o amor que eles cantavam. É para seus amigos desse grupo que Dante explica o significado verdadeiro de suas poesias, recusando porém a dar delas uma elucidação clara para quem não fosse fiel de amor no mesmo grau que ele...
Florença, no tempo de Dante, era uma das cidades mais ricas da Itália e, mesmo, da Europa. No início do século XIV, exatamente no apogeu político de Dante, ela estava no auge de sua grandeza.
A cidade tinha, no ano de 1330, cerca de 90.000 habitantes. Sua riqueza e poder eram atestadas pela tríplice muralha de pedra que a defendia. Havia lá, então, 110 igrejas e 30 hospitais. 200 oficinas de tecelagem rendiam cerca de 1.200.000 florins de ouro por ano. E o florim era a moeda de melhor curso na Europa daquele tempo. Funcionavam na cidade 80 bancos. 30.000 tecelões constituiam sua força de trabalho mais importante. A taxação alcançava a soma de 25.000.000 de libras (Cfr. I. Montanelli, op. cit. p.269).
A população de idade escolar girava em torno de 10.000 crianças, todas alfabetizadas, o que, diga-se de passagem, desmonta a lenda do analfabetismo medieval. Aliás, como poderia uma época analfabeta ter produzido um Dante e uma Divina Comédia? (Cfr.N.Mineo, op. cit. p. 65).
O processo de desenvolvimento urbano, retardado em toda Europa feudal, se deu em primeiro lugar na Itália, graças à relativa proteção contra as invasões bárbaras do século X proporcionada pelos Alpes, como também devido à existência de uma autoridade inconteste - a do Papa - que impediu a desagregação política quase total, ocorrida no resto do continente.
Ao mesmo tempo, a inexistência de um soberano temporal poderoso e ambicioso permitiu a formação de inúmeros pequenos Estados e de cidades autônomas ou livres.
A paz relativa existente na península italiana, assim como sua situação geográfica intermédia com relação ao Oriente, facilitaram o desenvolvimento do comércio nas cidades italianas, que, em geral, se tornaram pequenas repúblicas.
Ora, é próprio dos governos republicanos a formação de partidos. Se os partidos trazem necessariamente divisões, nas apaixonadas repúblicas italianas do século XIII e XIV, a política partidária causou profundos ódios e sangrentos antagonismos.
No século XIII, Florença foi uma república dilacerada por ferozes lutas partidárias. Disputavam o poder na cidade do Arno os Guelfos e os Gibelinos.
Os nomes desses partidos tiveram origem em nomes ligados a duas grandes famílias que disputaram o Império alemão. Quando Conrrado III da Suévia restaurou o Império, iniciando a dinastia dos Hoenstaufen, ele sofreu a oposição do Duque da Baviera, que teve o apoio de seu tio Welff. Nas batalhas que se deram, os gritos de guerra eram "Hi Welff" e "Hi Weibling" (Viva Welff e Viva Weibling), de onde vieram os termos Guelfo e Gibelino (Cfr. Indro Montanelli, Dante e il suo secolo, Rizzoli, Milano, 1972, p. 48).
Na Cronica escrita por Giovanni Villani, se lê que "se bem que fossem essas citadas partes existentes entre os nobres de Florença que freqüentemente se guerreavam por inimizades particulares, e viviam como seitas separadas pelos citados partidos, e se mantinham unidas neles, e aqueles que se chamavam guelfos amavam o estado do Papa e da Santa Igreja, e aqueles que se chamavam gibelinos amavam e favoreciam o Imperador e seus sequazes" G. Villani, Cronica, apud Nicola Zingarelli, La vita, i tempi e le opere di Dante, Vallardi, Milano, 1942, p. 7. A tradução é nossa).
A discórdia entre esses dois partidos, que existiram não só em Florença, mas também em quase todas as cidades italianas daquele tempo, provinha do antagonismo entre o Império e o Papado, entre o Estado e a Igreja Católica.
Quando do problema das Investiduras, a Igreja acabou vencendo, pois a excomunhão lançada por São Gregório VII contra o Imperador Henrique IV, quebrou a resistência imperial. Tal vitória porém, não foi definitiva. Os Imperadores e seus partidários continuaram a tentar dominar o poder espiritual.
O partido Gibelino, em Florença e em toda a Itália, queria o predomínio do poder imperial, isto é, do Estado sobre a Igreja. Os gibelinos não aceitavam que o Papa fosse soberano em Roma e no centro da Itália. Argumentavam que Cristo recusara ser Rei neste mundo e que sempre pregara a pobreza. Uma Igreja com território soberano e rica era, para eles, uma violação do espírito do Cristianismo. Até hoje, não falta quem pense como eles. Os unificadores da Itália pensaram assim, acabando com o poder terreno do Papa, e a Teologia da Libertação não julga de outro modo.
Diziam os gibelinos que a Igreja nascera pobre, e que ela se corrompera ao aceitar a chamada "Doação de Constantino" pela qual os Papas teriam se tornado soberanos e ricos. Muitas seitas heréticas da Idade Média repetiam com os gibelinos que Cristo não tivera propriedade alguma. Essa tese foi condenada como herética por João XXII, porque ela contraria o texto do Evangelho, que afirma claramente que os Reis, além de incenso e mirra, deram ouro a Cristo, e que Cristo tinha uma bolsa que foi bem mal cuidada por Judas. Repercussões desses erros e dessas heresias se estenderam até hoje. Não se viu, ainda há pouco, no Concílio Vaticano II se exprobar a "Igreja Constantiniana" como rica e triunfalista e exaltar um "retorno à Igreja Primitiva" pobre e catacumbal ?
Há historiadores de peso que vêem uma influência cátara no posicionamento político e religioso dos gibelinos.
"Em Florença, foi tão difundida a heresia dos cátaros, na segunda metade do século XII, que na opinião de um historiador (Gioacchino Volpe. Movimenti religiosi e sette ereticali nella società medioevale italiana, Vallechi, Firenze,1922, p. 90; e Felice Tocco, Quel che non cè nella Divina Commedia, o Dante e l'eresia, Bologna 1899) a sua hegemonia [de Florença] afirmou-se no campo da heresia quando ainda estava longe de afirmar-se economicamente; e chamavam-se Patareni, ou melhor, vulgarmente Paterini com o nome que tiveram em Milão os plebeus rebeldes ao clero rico, simoníaco e corrupto, pois que a a sua ação social e política veio a confundir-se com a dos hereges, os quais, cátaros ou valdenses juntos, ou Pobres de Lyon, professavam a pobreza apostólica, e remontavam à antiga doutrina dos maniqueus. Em Florença, a comunidade dos patarinos estava sob o governo de um bispo, e continuou a existir durante longo tempo, mesmo depois das repressões e da cruzada de Inocêncio III contra os albigenses, e da própria ação de Frederico II que, subindo ao trono, empenhou-se precisamente em perseguir os hereges. Pelo contrário, depois, as hostilidades cedo rompidas entre o Imperador e o Papa causaram prosélitos para a heresia cátara entre as famílias do partido gibelino, por várias razões, isto é, pelos excessos das pretensões papais, pelo mundanismo dos prelados esquecidos da doutrina de Jesus Cristo, pela manumissão do patrimônio eclesiástico que devia servir aos pobres, a vida simples e exemplar dos "consolados" [cátaros que haviam recebido o "consolamentum"], a sua constrigente dialética, e pela adaptação, tornada habitual, aos interditos papais, alguns dos quais duraram por muitos anos"(N. Zingarelli, op cit. p. 22).
"Un documento de finales del siglo XII indica que Florencia ya ha sido afectada por la herejia en esa época. No sabemos gran cosa de los progressos immediatos de este movimiento; no obstante podemos precisar que, en la mayoria de los casos, se trata de cátaros. "(...) Por los documentos publicados, especialmente por Tocco (F. Tocco, Dante e l'eresia, o quel che non c' è nella Divina Commedia" Florença, 1895) sabemos que la herejia cátara había afectado a varias famílis importantes de Florencia y que el município había assumido publicamente la defensa de los cátaros contra el inquisidor"( R. Manselli, Los herejes en la sociedad italiana del siglo XIII, in Jacques Le Goff, Herejias y sociedades en la Europa preindustrial, Ed. Siglo XXI, Madrid, 1987, pp. 151-152).
Portanto, o catarismo era comum nas famílias gibelinas de Florença. O curioso é que Dante - tão gibelino em suas posições doutrinárias ou políticas - jamais disse uma palavra sobre o catarismo em Florença, e nem fez sequer menção aos cátaros no círculo que dedicou aos hereges em seu Inferno. Se Dante faz alguma referência a pessoas ligadas ao catarismo - por exemplo, aos poetas trovadores claramente ligados à heresia albigense - é para louvá-los ou colocá-los no céu, ou pelo menos no purgatório, à espera da bem-aventurança...dantesca.
Defendendo a supremacia do Estado sobre a Igreja, os gibelinos se colocavam como defensores do antigo estado Imperial romano pagão, e, desse modo, eles foram precursores do absolutismo renascentista e, sem dúvida, inimigos declarados do sistema feudal que limitava o poder do Estado. Os gibelinos foram pois os antecessores do Estado Moderno, laico, absolutista e tendente ao igualitarismo e ao totalitarismo.
É evidente que, com tais idéias, os gibelinos se aliaram com facilidade também às seitas heréticas de origem franciscana, e com os gnósticos seguidores das idéias de Mestre Eckhart, que pregava uma completa separação entre o espírito e a matéria, entre a Igreja e o Estado.
A ligação entre gibelinos e cátaros é hoje reconhecida pelos historiadores: "En nuestra opinión, los hechos que acabamos de describir muy brevemente nos permiten decir que hubo lazos muy estrechos entre la herejia cátara y el gran partido político de los gibelinos que apoyaban al emperador en su lucha contra el Papa"(R. Manselli, op. cit. p. 153).
Também C. Violante confirma que "(...) los cátaros participaran activamente en las luchas sociales y políticas que estallaron en las ciudades italianas a lo largo de ese siglo, aliándose y confundiéndose frecuentemente con los gibelinos (...) "( C. Violante, Herejias urbanas y herejias rurales en la Italia de los siglos XI al XIII, in J. Le Goff, op cit. p.138). E Manselli afirma que "las grandes ciudades fieles a Frederico II eran igualmente ciudades cátaras. Cremona, Verona, Piacenza fueran durante mucho tiempo centros acogedores para los cátaros"(R. Manselli, op cit. p. 153).
O partido Guelfo se opunha ao Gibelino, porque pretendia que o Papa fosse o suserano supremo na Itália. Era também contrário ao absolutismo de Estado, defendendo a ordem feudal tradicional.
A discórdia entre os guelfos e gibelinos era tão profunda, que chegava a determinar ínfimas particularidades da vida quotidiana.
Assim, os gibelinos costumavam colocar as plumas de seus gorros de um lado. Por isso, era questão de honra para os guelfos usar as plumas na direção oposta.
À mesa, os guelfos cortavam as frutas ao meio, horizontalmente, num plano perpendicular ao eixo da fruta. Os gibelinos, então, só cortavam as frutas na vertical. Conta o historiador Symonds que, em Bérgamo, alguns calabreses foram assassinados por seu hospedeiro, porque eles cortaram as frutas à maneira do partido inimigo. (Cfr. John Addington Symonds, El Renacimiento en Itália Fondo de Cultura Economica, México- Buenos Aires, 1957, vol I, p.51). Os guelfos bebiam em copos cinzelados, os gibelinos em copos lisos. Os guelfos usavam rosas vermelhas, os gibelinos só se enfeitavam com rosas cândidas. Até os crucifixos eram esculpidos com o rosto voltado para a direita ou para a esquerda, conforme o partido. Distinguia-se, pois, um lado gibelino e outro guelfo, em Cristo crucificado. E os milaneses, no século XV, queimaram o crucifixo da catedral de Crema, porque tinha o rosto voltado para o ombro guelfo.
Quando o ódio partidário chega a tais minúcias, pode-se calcular que vinganças tomavam os partidos ao chegarem ao poder.
Não é preciso dizer que, no país da "vendetta", as divergências políticas e ideológicas eram ainda mais exacerbadas pelos ódios e rivalidades familiares.
Dante participou ativamente da política de Florença e sofreu a vida inteira por esses ódios políticos.
Florença aproveitou-se das discórdias entre o Papado e o Império, para obter vantagens e maior independência. Desde o início de sua história, porém, ela revelou tendência maior para o partido Guelfo, isto é, para apoiar o Papado contra o Império.
Com o crescimento da cidade, surgiram desavenças entre a antiga nobreza citadina, senhora dos castelos fortes dos arredores da cidade, e a nova classe burguesa e comerciante que se formava. Dessas lutas resultou uma vitória parcial dos burgueses, quando obrigaram os nobres a viver na cidade, e não mais em seus castelos fortes. Foi em 1107, que a destruição do castelo dos Gangalandi, feudo da família Adimari, iniciou esse processo. A vitória burguesa, porém, teve seu lado negativo, porque trouxe as lutas para dentro das muralhas de Florença. A força militar e o prestígio dos nobres facilitaram-lhes a obtenção de vantagens políticas.
Desde 1172, a família dos Uberti conquistou o direito ao Consulado e se transformou numa pequena oligarquia florentina. Esta família era conhecida como cátara, o que explica sua oposição contínua e frontal ao Papado(Cfr.C. Violante, op. cit. p.137). Aliás, a heresia cátara estava muito difundida em Florença, especialmente entre as famílias nobres. Apenas cinco anos depois que os cátaros Uberti conseguiram o direito ao consulado, eclodiram tumultos contra o poder dos Uberti, e se teve que redigir uma nova constituição. A cidade foi dividida em quarteirões, e, explorando as divisões, os nobres continuaram a dominar.
O povo exigiu então uma nova organização da cidade em corporações ou "artes". No final do século XII, havia em Florença, sete "artes" ou corporações: a dos juízes, advogados e tabeliães; a dos trabalhadores de fazendas estrangeiras ou calímala; a dos trabalhadores de lã, os da seda; a dos banqueiros; a dos médicos, farmacêuticos e pintores; a dos trabalhadores de peles. Além destas sete artes maiores, havia quatorze artes menores, das profissões mais simples e pobres.
A grosso modo, pois, podiam distinguir-se três classes na Florença desse tempo:
1) os nobres ou magnatas;
2)o "popolo grasso" ou dos ricos comerciantes e banqueiros;
3)e o "popolo minuto", o povo miúdo.
(Cfr. Indro Montanelli, Dante e il suo secolo Rizzoli, Milano, 1972, p. 162).
Em 1207, os antigos cônsules foram substituídos por um Podestà, que teria o poder executivo. Entretanto, uma particularidade constitucional indicava que profundo grau de divisão o ódio já cavara na cidade: o Podestá deveria ser sempre proveniente de outra cidade. Nenhum dos dois partidos aceitava que um membro do partido rival tivesse o poder. Isto significava a proximidade da ruína política. A divisão entre guelfos e gibelinos abriu as portas de Florença para a entrada de um poder estrangeiro na cidade
Foi por volta de 1240 que os nomes de guelfos e gibelinos começaram a surgir nas lutas políticas de Florença. Não foram, pois, esses partidos que causaram primeiramente a divisão da cidade. Eles já encontraram uma cidade dividida e acentuaram suas discórdias. Foram as lutas do Imperador Frederico II contra os Papas Honório III e Gregório IX que ocasionaram a introdução dos partidos guelfo e gibelino, na Itália.
Já em 1248, os gibelinos, liderados pelos Uberti, exilaram os guelfos pela primeira vez.
As corporações impuseram nova constituição, como se uma simples mudança da lei escrita fosse capaz de apagar o incêndio dos ódios. Foi a chamada Constituição do Primeiro ou Antigo Povo que instituiu um novo poder executivo, confiado a duas autoridades, que, por lei, deviam ser de origem não florentina:
1) o Podestà , cuidava do governo;
2) o Capitão do Povo, encarregado de organizar as milícias citadinas, para proteger a Constituição e defender a cidade de ataques externos.
Com a nova constituição, os burgueses ricos - o "popolo grasso" - passou a controlar o poder no lugar da antiga nobreza, em geral gibelina. As Artes fizeram então demolir, ou pelo menos reduzir, a altura das torres das grandes casas nobres existentes até então, e que faziam desses edifícios verdadeiras fortalezas ameaçadoras para a paz da cidade.
A morte do Imperador Frederico II, em 1250, enfraqueceu o partido Gibelino, e os guelfos exilados puderam retornar a Florença. Logo os guelfos se vingaram exilando os gibelinos, e especialmente os Uberti. Com o apoio de Manfredo, filho de Frederico II e seu sucessor no Reino das Duas Sicílias, Farinata degli Uberti reorganizou as forças gibelinas, destroçando o exército do partido Guelfo de várias cidades toscanas, na batalha de Montaperti, em 1260. Por seis anos, Florença foi governada por um Vigário do Imperador.
"(...) no hay más que un documento, fechado en 1282, que nos permite concluir que los cátaros de Florencia figuraron entre los enemigos del Papa durante la guerra entre el rey Manfredo y Urbano IV. Farinata degli Uberti, capitán florentino en la batalla de Montaperti, donde las tropas gibelinas aplastaron a la liga guelfa, era sin duda cátaro; y es interessante señalar que, tras la derrota de Manfredo, los cátaros, que habían combatido entre los gibelinos, fueron aplastados por la Inquisición. Por otra parte, subrayemos que esos cátaros gibelinos de Florencia mantenían relaciones muy estrechas con los cátaros gibelinos de Pisa. Desgraciadamente, ignoramos casi todo de cuanto ocurrió en Pisa"( R. Manselli, Los Herejes en la sociedad italiana del siglo XIII, in Jacques Le Goff, op. cit. p. 152).
É muito intrigante o fato que Dante - que conhecia muito bem as idéias de Farinatta - o tenha colocado no inferno como herege epicurista (?) e não como cátaro, palavra que não aparece na Divina Comédia . Por que?
Os guelfos só conseguiram recuperar-se com a vinda de Charles d'Anjou, irmão do Rei da França à Itália, atendendo ao apelo do Papa. Charles D'Anjou venceu Manfredo na batalha de Benevento, em 1266, apoderou-se do trono siciliano, e assim os guelfos puderam retornar a Florença e ao poder.
Os gibelinos ainda tentaram uma reviravolta quando Corradino da Suábia tentou recuperar os antigos domínios de sua família, na Itália. Sua derrota, diante das tropas de Charles d'Anjou na batalha de Tagliacozzo (1268), pôs fim às esperanças gibelinas.
Em 1280, deu-se a pacificação entre os guelfos, vencedores, e os derrotados gibelinos. Pelo acordo elaborado, as Artes maiores obtiveram maior paticipação no governo da república, limitando o poder dos magnatas.
Em conseqüência, os florentinos reformaram mais uma vez a constituição de sua cidade, em 1282. Desta vez o poder era confiado a Priores designados pelas Artes ou Corporações. Portanto, o regime tomava um tom ainda mais democrático que antes.
"Assembléias, parlamentos e conselhos se tinham multiplicado e superpostos, um controlando e paralisando o outro, até a criar uma impotência geral"( Indro Montanelli, op. cit. p.171).
Em 1289, os guelfos vingaram-se dos gibelinos desbaratando-os na batalha de Campaldino, na qual Dante combateu, no exécito da Liga Guelfa, contra as forças de Arezzo apoiadas por todos os gibelinos da Toscana.
Em dezembro de 1292, Giani della Bella, um rico comerciante de origem nobre, mas que aderira ao "Popolo", foi eleito para o priorado. Era um tribuno fascinante, e ele usou sua popularidade para eliminar os Grandes da cena política de Florença. Para isto, ele fez aprovar os "Ordinamenti di Giustizia" [Ordenações de Justiça], entregando todo o poder às Artes. Por estas Ordenações, todos os nobres, isto é, os 250 cavaleiros, e também qualquer família que tivesse tido, entre seus membros, um cavaleiro nos últimos 20 anos, estavam excluídos de qualquer participação no governo ou na política de Florença. Assim foram excluídos, como verdadeiros párias, políticos das grandes famílias nobres, tanto guelfas quanto gibelinas. Mas os guelfos ficavam com vantagem através do poder dado às Artes.
Pelas Ordenações de Justiça, os Grandes tornaram-se oficialmente suspeitos, ficando sujeitos a uma estricta vigilância. Qualquer indivíduo do povo podia denunciá-los, e, nesse caso, eram eles lançados ao cárcere. Se um Grande matasse um popular, era réu de morte, e seus bens podiam ser entregues à pilhagem e sua casa demolida. As sentenças contra os Grandes não tinham direito de apelação. As demolições das casas nobres, por sentença judicial, tornaram-se festas comuns em Florença.
Era tanto o medo de ser tido como nobre na democracia florentina após a revolução de Giani della Bella, em 1292, que "enquanto até então todos faziam questão de ser chamados de Cavaleiro ou de Messer, depois disso, nos documentos oficiais, prevaleceu o costume de acrescentar à assinatura a qualificação de "pobre", "misero", "débil" ou até mesmo de "imbecil" ou "impotente"( I. Montanelli, op. cit. p. 275). Sorte tiveram os nobres florentinos, que ainda não tivesse sido inventada a guilhotina...
A vitória guelfa não foi definitiva, pois que esse partido se dividiu em dois outros: os Brancos e os Negros. Tal divisão teve origem pouco clara. Diz-se que esses novos partidos tiveram como causa desavenças familiares iniciadas em Pistoia, e que, depois, passaram para Florença.
Em Florença, a divisão entre Brancos e Negros recebeu novo vigor pela rivalidade entre as famílias Cerchi e Donatti. Os Cerchi apoiaram os Brancos de Pistoia, o que determinou que os Donatti tomassem o partido dos Negros. O ódio entre essas duas novas facções se acavalou às antigas divisões entre guelfos e gibelinos.
O líder dos Negros era Corso Donatti, cunhado de Dante que se casara com a irmã dele Gema Donatti, e irmão também de Forese Donatti, que fora mais do que amigo de Dante, ao que se diz...
Corso era um valente e garboso soldado a quem se atribuía, em boa parte, a vitória de Campaldino. De porte majestoso, quando passava pelas ruas à cavalo, ele era aclamado pelo povinho com o grito de "Viva o Barão"! Era porém assassino e desprovido de qualquer escrúpulo.
Seu inimigo principal, o líder dos Bianchi, era Vieri dei Cerchi, comerciante riquíssimo e político torcicoloso, como só um italiano e florentino era capaz de o ser. Como muitos outros de sua facção, era de origem popular, e por isso Dante, que o apoiou, chamou este grupo de "selvagem".
Entre os sequazes dos Donatti e dos Cerchi, as lutas eram quase que diárias, e normalmente com derramamento de sangue.
Os Brancos de Florença, embora dizendo-se guelfos, se opuseram frontalmente à política de Bonifácio VIII. Na raiz dessa oposição não havia somente as rixas familiares, e sim doutrinas políticas, que faziam destes Brancos cripto gibelinos.
Dante, que se alinhou com os Brancos, embora sendo parente dos Donatti - como vimos, sua mulher era irmã de Corso Donatti - não o fez por razões familiares, mas por defender a separação entre Igreja e Estado, e por recusa da doutrina que Bonifácio VIII defendia, e que ele definiu, na bula Unam Sanctam.
Considerando-se apenas a sua doutrina política, dever-se-ia classificar Dante muito mais como gibelino do que como guelfo. E então poder-se-ia perguntar se, na realidade, a divisão dos guelfos entre Brancos e Negros não foi uma manobra gibelina, que se aproveitou de discórdias familiares secundárias, para dividir o partido rival.
Os Brancos contavam em suas fileiras algumas famílias nobres mais antigas, aliadas a famílias de origem popular de tendência gibelina .
Os Negros eram menos heterogêneos. Seu grupo era constituído dos nobres mais importantes de Florença aliados a banqueiros poderosos e tinham o apoio do "popolo minuto", o povinho mais simples. O grupo dos Negros se apoiava no Papado e na França, tendo de modo geral uma postura de tipo guelfo.(Cfr. N. Mineo, op. cit. p. 60-61).
Os Guelfos Negros eram defensores da supremacia Papal na Itália, contra o Imperador e contra o aumento do poder do Estado. Defendiam os Negros os direitos da antiga aristocracia florentina contra os novos nobres, enriquecidos com o comércio, e contra a burguesia ascendente.
Os Guelfos Brancos sendo, no fundo, gibelinos disfarçados, queriam a supremacia do Império sobre a Igreja, o aumento do poder do Estado, a laicização do Estado, o predomínio da burguesia e do comércio. Mostravam-se eles favoráveis aos hereges franciscanos em sua defesa de uma Igreja pobre e sem poder político, assim como às teses dos místicos heterodoxos, e à filosofia anti-tomista, quer averroísta, quer epicurea. Manifestavam também simpatias pela cultura do Languedoc cátaro. E Dante foi Guelfo Branco.
Em 1295, mais uma vez se mudou a Constituição florentina, desta feita para permitir, por meio de um subterfúgio, que os Grandes, de novo, pudessem assumir funções governamentais. Para isto, eles precisariam inscrever-se em alguma das Artes ou Corporações. Foi o que fez Dante, que estranhamente se inscreveu na corporação dos médicos, farmacêuticos e pintores, quando teria sido mais natural que ele se filiasse à corporação dos juízes, advogados e tabeliães, mais intelectual. Deste modo, ele pode se tornar membro do Conselho, entre novembro de 1295 e abril de 1296. Explica-se o tempo tão curto do mandato: para evitar a tomada de poder por um tirano, ou a ditadura de um partido, estabeleceu-se que os 16 membros da Signoria seriam obrigados a viver juntos, no mesmo edifício do governo, durante o seu mandato, e que cada um exerceria a presidência por dois meses apenas. Em maio de 1300, Dante foi enviado como embaixador de Florença a San Gimigniano. Em junho, ele foi eleito ao cargo de Prior de Florença, para o bimestre junho-agosto.
Como Prior de Florença, Dante se demonstrou radicalmente contrário aos Negros. Afirma-se que ele teve grande responsabilidade no massacre de 300 líderes Negros de Pistoia, dando vantagem aos gibelinos dessa cidade.
Nisto ele não contrariava seu líder, Vieri dei Cerchi que, às escocndidas, fechara uma aliança com os gibelinos exilados.
No final do mandato de Dante, houve a determinação de afastar da cidade vários líderes, quer dos Brancos, quer dos Negros. Entre os penalizados, estava até o amigo de Dante e líder dos Fedeli D'Amore, Guido Cavalcanti.
Bonifácio VIII, para combater o partido Gibelino e a crescente influência imperial na península italiana, resolveu apelar, de novo, para a intervenção de tropas francesas, que desceram à Itália sob o comando do Príncipe Charles de Valois. Dante se opôs a essa intervenção dos franceses, tanto quanto à política papal de Bonifácio VIII.
De abril a setembro de 1301, Dante voltou a fazer parte do governo florentino.
Em outubro de 1301, Charles de Valois, vindo da França, aproximou-se de Florença. O governo florentino, preocupado, enviou uma embaixada a Roma, para anular as manobras dos Negros. Dante fez parte dessa embaixada. Hesitou em aceitar, porque - dizia - "Se vou, quem fica? Se fico, quem vai?" O que demonstra não só sua falta de confiança em seus companheiros de partido, como também um altíssimo apreço de seu próprio papel, naquele momento.
Partiu. E assim, em Roma, pode conhecer pessoalmente a Corte pontifícia e o grande Papa, autor da Bula Unam Sanctam , tão contrária ao partido Gibelino e aos Guelfos Brancos.
Nesses dias, um grande cometa foi visto sobre Florença - era o cometa que mais tarde recebeu o nome de Haley - causando enorme impressão no povo, e também em Dante que acreditava firmemente na influência dos astros.
Contando com o apoio do Papa e das tropas francesas, Corso Donatti fez seus homens entrarem em Florença, aos poucos. Entre os Brancos, a ameaça da derrota iminente levou a muitos de seus elementos a se bandearem para o partido rival. Dante manteve sua posição radical.
No dia 3 de novembro, teve início o golpe dos Negros, quando os Médici - que com este fato entraram na História - agrediram e quase mataram um chefe dos Brancos , Orlanduccio Orlandi.
No dia 5, Corso Donatti entrou à noite e à escondidas, na cidade. Pelas ruas, irrompia-se a gritar "Viva il Barone". Os Brancos começaram a fugir ou a se esconder. Logo principiaram os combates, e as casas dos Brancos foram assaltadas, pilhadas e incendiadas ou demolidas. Os Negros tomaram o poder, sob os olhares indiferentes de Charles de Valois.
Nos dias posteriores, houve prisões, mortes, depurações, extorsões. Não é preciso dizer que muitos Brancos se tornaram Negros, sem ter passado pelo vermelho da vergonha, mas certamente pelo palor do medo.
Dante, conhecido por suas propostas radicalmente gibelinas, fugiu de Florença com alguns de seus partidários. Começava seu longo exílio que ia durar até a morte.
Em janeiro de 1302, o grande poeta foi pela primeira vez condenado por peculato, perturbador da paz e inimigo de Bonifácio VIII e de Charles de Valois. Sua pena foi a de exílio de Florença por dois anos, proibição de exercer qualquer cargo de governo pelo resto da vida, e multa de 50.000 florins. Como Dante não se apresentou para receber e cumprir a sentença, ele foi condenado, em março desse mesmo ano, a ser queimado vivo, caso voltasse a Florença.
Desde, então, até sua morte em 1321, Dante viveu exilado em várias cidades italianas como Forlì, Verona, junto aos Scalígeros, e em várias outras cidades, aprendendo "o quanto era duro subir pelas escadas de outros, e quão desagradável era o sabor de sal do pão alheio", para terminar morrendo em Ravena, em 1321.
No princípio de seu exílio, Dante procurou recuperar sua posição política junto com os demais exilados do partido Branco. Depois, desaveiu-se com eles, e procurou fazer que esquecessem sua ligação com eles, mas sem jamais renunciar às idéias gibelinas.
Dante depositou todas as suas esperanças na invasão da Itália pelo Imperador Henrique VII, que ele parece ter considerado um Messias laico e gibelino. Ele seria o Rex pacificador, que faria toda justiça ao mundo. De 1310 a 1313, Dante viveu entre a esperança do triunfo, a prelibação da vingança partidária, e a agonia do fracasso. Ele acorreu à côrte do Imperador, quando ele entrou na Itália, e apoiou sua luta contra Florença. Por isso, o governo florentino tirou o nome de Dante da lista dos anistiados, em setembro de 1311. A morte de Henrique VII pôs fim a toda esperança milenarista que o poeta havia posto no "alto Arrigo". Não perdeu porém sua admiração por ele: imaginou para esse Imperador, fracassado na terra, um trono de glória em seu Paradiso.
Em 1315, tendo recusado aceitar uma anistia sob certas condições, Dante foi condenado à morte, e, desta vez seus filhos foram incluídos na sentença.
Foi nos anos amargos de seu exílio, que Dante escreveu o seu grande poema, a Comédia, - nome curiosamente genérico - à qual a fama acrescentou o nome de Divina, poema que contém toda a sua dor, toda a sua sede de vingança, sua cosmovisão, todo o seu imenso saber, e tudo exposto com arte inigualável.
![]() Anterior |
Para citar este texto:
""
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/cadernos/arte/dante1/
Online, 24/04/2025 às 04:53:24h