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Uma parábola sobre a misericórdia de Deus: a ovelha desgarrada (parte 2)
Este artigo é uma continuação de Uma parábola sobre a misericórdia de Deus: a ovelha desgarrada (Parte 1).Mário Silva Martins
Uma ovelha que deixa o redil
“E lhes propôs esta parábola, dizendo: Qual de vós tendo cem ovelhas, se perde uma delas, não deixa as noventa e nove no deserto, e vai procurar a que se tinha perdido, até que a encontre?” (S. Lucas 15, 4).
Jesus responde à odiosa acusação que saia dos lábios de seus adversários e, para justificar sua conduta de receber os pecadores, expõe sucessivamente três parábolas, das quais estamos vendo a primeira hoje.
São Mateus também (18, 12-14) conservou esta parábola, mas o lugar que ele lhe dá e os diversos traços secundários de fundo e de forma não coincidem com o relato de São Lucas.
Um modernista clamaria: incoerência, contradição, tradições catequéticas primitivas alteradas posteriormente!
Nós preferimos uma explicação mais sensata, segundo a qual Nosso Senhor expôs ao menos duas vezes esta parábola, em circunstâncias diferentes, com detalhes diferentes.
“Qual de vós tendo cem ovelhas, se perde uma delas (...)”.
Cristo coloca seus auditores em cena, para chamar-lhes a atenção: “Qual de vós (...)”.
“(...) tendo cem ovelhas, se perde uma delas (...)”.
A perda não é de modo algum imputável ao proprietário, que não é ninguém mais do que o Bom Pastor por excelência, mas a ovelha se afastou por culpa própria.
Vejamos o que nos diz Orígenes a respeito:
“Lemos no evangelho que alguém que tinha cem ovelhas perdeu uma delas e, então, deixando as noventa e nove nos montes, desceu para buscar a que havia perecido e, depois de encontra-la, a levou sobre seus ombros e voltou a coloca-la junto com as noventa e nove que não tinham perecido. Tal é o número cem de toda a criação racional” (Homilia sobre o Gênesis, hom. 2, 5) [negrito nosso].
Orígenes não é um Padre da Igreja em sentido estrito. Ele não é santo, nem está isento, em alguns lugares de suas obras, de afirmações que são inaceitáveis doutrinariamente. Assim, quando o citamos, nós o fazemos na medida em que seus comentários contenham coisas pertinentes. Isto não quer dizer, de modo algum, que aprovamos o conjunto de suas obras sem distinção alguma.
Poder-se-ia dizer que foi Orígenes que iniciou a exegese simbólica, a qual teve aceitação geral entre os Santos Padres posteriores. Esta exegese amplia a interpretação da parábola, vendo-a sob o conjunto da história da salvação.
A tendência comum, ao explicar as parábolas, é geralmente restritiva, limitando sua aplicação às pessoas individuais, ao seu comportamento pessoal. Assim, na parábola que analisamos agora, os pregadores facilmente se limitam a falar da confiança que devemos ter na misericórdia de Deus, já que o Senhor, quando um fiel se separa do rebanho da Igreja, não o esquece, mas o busca com solicitude.
Isto é certamente verdade, e constitui uma aplicação válida da parábola, mas somente de um modo secundário ou derivado.
Na interpretação patrística, ao contrário, a visão é primeiramente panorâmica, global. As cem ovelhas simbolizam o conjunto das criaturas dotadas de inteligência, “toda a criação racional”, como diz Orígenes.
A ovelha solitária que corre para a aventura da emancipação é o gênero humano na sua totalidade, que se degrada descendo para a planície do pecado, em contraste com as outras criaturas racionais, os anjos, que perseveram nos montes, ou seja, nas alturas.
O Bom Pastor é o Verbo que desce das alturas divinas até a planície humana, deixando as noventa e nove ovelhas fiéis em suas regiões elevadas para trazer de volta a ovelha errante até o redil original.
A simbologia do número cem
Concentremo-nos na simbologia do número cem entre os Santos Padres, e na perda da ovelha que representa o gênero humano.
São Cirilo de Alexandria, seguindo a interpretação inicial de Orígenes, também afirma que as cem ovelhas designam toda a multidão das criaturas racionais, e dá uma razão: o número cem, composto de dez dezenas, é o número perfeito. Assim:
“Diz que as ovelhas são cem, referindo-se ao número pleno e perfeitíssimo das criaturas racionais sujeitas a Deus. Porque o número cem, formado por dez dezenas, é sempre perfeito. Já a Sagrada Escritura nos ensina que são milhares de milhares os ministros que servem a Deus, e miríades de miríades os que rodeiam o seu trono sublime (Daniel 7, 10). Estas são, evidentemente, as cem ovelhas, de cujo rebanho uma se apartou, isto é, o gênero humano, em cuja busco foi o sumo Pastor de todos, deixando no deserto, isto é, no lugar excelso e plenamente sereno do céu, às restantes noventa e nove” (Comentário ao Evangelho de São Lucas, c. 15, 4).
Esta tradição de interpretação, nascida nos primeiros tempos da Igreja, perduraria ao longo dos séculos.
Muito tempo depois São Beda, o Venerável, mantem intocada a antiquíssima interpretação:
“Dado que o número cem é perfeito, se diz que ele tinha cem ovelhas quando criou a substância dos anjos e dos homens. Mas então uma ovelha pereceu, quando ao pecar o homem deixou os pastos de vida” (S. Beda, Exposição ao Evangelho de São Lucas, l. IV, c. 15).
A ovelha perdida é, assim, o gênero humano que se separa do redil celestial.
Mas nós podemos avançar mais.
O gênero humano não é concebido pelos Santos Padres como uma ideia abstrata, mas eles o vêem como compendiado em uma pessoa concreta, o primeiro homem, nosso pai Adão.
Os Santos Padres viram nesta única ovelha desgarrada a figura de Adão, mas como quem concentra em si a totalidade do gênero humano.
São Pedro Crisólogo, por exemplo, diz:
“O homem que tem cem ovelhas é Cristo. Pastor bom, pastor justo, em uma ovelha, isto é, em Adão, havia posto toda a grei do gênero humano, colocando-a em lugares agradáveis do paraíso, na região dos pastos de vida; mas aquela ovelha esqueceu a voz do pastor (...)” (Sermão 168).
Como se vê, o simbolismo do número cem é fundamental para a compreensão da parábola.
São Gregório de Nissa se referiu a ele em diversos livros, complementando de maneira admirável a doutrina que estamos expondo. Antes de tudo é necessário saber, nos diz ele, que quando se diz no Gênesis que “Deus criou o homem”, o autor sagrado não se refere tanto à singularidade de uma pessoa determinada, mas à natureza universal do homem, ao gênero humano no seu conjunto, uma vez que o desejo confessado pelo Criador de fazer da nova criatura uma imagem sua só pareceria encontrar sua realização plenária na totalidade da raça humana.
Com efeito, o texto original diz: “Façamos ao ser humano”, e logo após o verbo seguinte virá no plural: “(...) e mandem sobre os peixes do mar (...)”.
“Quando se diz que Deus criou ao homem, pela conotação indefinida do vocábulo homem, se compreende a natureza humana universal (...) O poder de Deus incluiu naquela primeira criação toda a natureza humana (...) pôs em um corpo toda a natureza humana (...). Entre o homem criado no começo e aquele que nascerá por último, quando já todas as coisas serão consumadas, não há interrupção” (São Gregório de Nissa, De hominis opificio, c. 16).
Isto é um dado fundamental para entender o que se passou depois. Ao moldar Adão, Deus tinha em mente a totalidade de nossa natureza.
Este “homem” concretizado em Adão e que incluía em germe o conjunto da natureza humana, estava no começo da criação em uma agradável união com o mundo dos anjos:
“Houve um tempo em que a criatura racional constituía um só coro, dirigido por um só regente do coro, que lhe dava harmonia e consonância. (...) A intervenção do pecado fechou a boca dos que foram vencidos pela malícia e fez cessar a voz da exultação: a criatura humana deixou de participar da festa angélica” (São Gregório de Nissa, Discurso no dia natal de Cristo).
A desobediência de nossos pais será uma nota cacofônica no concerto celestial que existia no começo da criação.
A rebelião original rompeu a unidade do redil comum formado pelos anjos e pelo homem. Desde então este redil ficou incompleto. A harmoniosa orquestra dos anjos e dos homens, dirigida pela varinha divina, fora prejudicada pelo pecado, o grande divorciador.
O pecado teve como consequência não somente um divórcio entre Deus e os homens, mas também entre os anjos e os homens.
Deus, porém, não nos deixou abandonados para sempre, mas determinou a Redenção dos homens, e isto fez com que os anjos não se desinteressassem totalmente de nós.
Assim, já no Antigo Testamento, vemos que eles participam ativamente na história da salvação, aparecendo aos patriarcas, a Abraão, a Moisés e a outros personagens da Antiga Aliança.
Mais que isso. Nós os vemos acompanhar o Pastor que desceu para buscar a ovelha perdida. Os anjos estão presentes no Novo Testamento desde a Anunciação até a Ascensão.
Eles continuarão agindo ao longo da história da Igreja, protegendo cada um dos fiéis (são os anjos da guarda) e cada um dos povos (os anjos das nações).
Eles se associam a nós na sagrada liturgia, onde “em união com os anjos”, “cum angelis et archangelis”, podemos dar glória a Deus dizendo com uma só voz, “una voce dicentes”: Santo, Santo, Santo: “Sanctus, Sanctus, Sanctus”.
O coro foi restaurado.
Adiantamo-nos um pouco, para mostrar como a Providência não nos deixou abandonados. Mas agora voltaremos a considerar nossa parábola no momento em que o Pastor deixa as noventa e nove ovelhas, para buscar o gênero humano desgarrado, coisa que faremos na próxima continuação deste nosso artigo.
Para citar este texto:
"Uma parábola sobre a misericórdia de Deus: a ovelha desgarrada (parte 2)"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/religiao/uma-parabola-sobre-a-misericordia-de-deus-a-ovelha-desgarrada-parte-2/
Online, 21/11/2024 às 15:48:19h