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Tristeza Moderna e a Acídia Medieval. Parte 2: O Fundamento da Felicidade
Bruno Oliveira
Aproximação entre a tristeza, descrita na Filosofia moderna, e o vício da acídia, estudado pela Escolástica, que se opõem ambos à busca da felicidade. Este artigo é uma continuação de Tristeza Moderna e Acídia Medieval, parte 1: Caracterização do ProblemaTítulo do Artigo: “Tristeza Moderna e a Acídia Medieval”
Parte 2: O Fundamento da Felicidade
“Porque eu não faço o bem que quero, mas faço o mal que não quero” Rm 7, 19
“Nós agora vemos (a Deus) como por um espelho, em enigma; mas então (o veremos) face a face. Agora conheço-o em parte; mas hei de conhecê-lo como eu mesmo sou (dêle) conhecido” Cor 13, 12
Dedico este pequeno artigo ao meu grande amigo Frei Tiago de São José, que há pouco foi expulso injustamente da diocese de Bragança Paulista, por Dom Sérgio Aparecido Colombo, tendo a expulsão como causa a decisão do Frei Tiago de seguir a regra centenária dos Carmelitas Descalços. Espero que com esse pequeno gesto de consolo seu honroso sofrimento seja divido com mais um irmão em Cristo.
1. Sumário 2. Introdução 3. A Teologia como o “anão corcunda” escondido. 4. A Felicidade deve ser buscada 5. Situar-se na verdade de Deus.Introdução
Daremos prosseguimento aqui ao trabalho ‘Acídia Medieval e Tristeza Moderna’, sequência da Parte Um ‘Breve Caracterização do Problema’, no qual reunimos algumas citações chave como suporte para a compreensão da questão. Vimos que não se trata de um problema pertencente a uma determinada escola filosófica, ou a certo local, ou mesmo característico de um curto período e, sim, que perpassa alguns séculos e subjaz a várias escolas filosóficas, como já explicado. Não esperamos com isso ignorar as diferenças presentes nas diversas doutrinas filosóficas citadas e as discordâncias entre os autores referidos, porém as utilizamos apenas como instrumentos de investigação. Com raciocínios e citações do item ‘Hospedeiros do mal desconhecido’ esperamos ter evidenciado o cariz de um problema profundo que se esconde no espírito de nosso tempo, estudando os sintomas da presença desse espírito em suas maiores ‘vítimas’: poetas e filósofos (as expressões acima em destaque foram utilizadas e explicadas na primeira parte do trabalho).
Expressar esse problema com clareza é exatamente uma das dificuldades intrínsecas de nosso empreendimento. Isso porque o ‘esquecimento’ do devido vocabulário ou da linguagem que poderia torna-lo visível é parte central do problema. Poderíamos mesmo acrescentar que o processo de esquecimento de certos conceitos é parte visceral da ação inoculadora da referida tristeza moderna nos espíritos. Na maioria das vezes isso se dá de modo não consciente, ou seja, quem se torna hospedeiro do mal não tem ciência do fato, e, por não ter claro tal processo, torna-se hospedeiro perfeito para a disseminação do problema, pois alastra um ‘mal desconhecido’. Dessa dificuldade específica, nasce a necessidade de estruturar uma ‘chave interpretativa’ que permita identificar as características essenciais do problema. Essa chave teria seu fundamento em uma aproximação entre a tristeza moderna e o vício capital denominado acídia, que foi estudado pelos Santos Padres - inicialmente com Evrágio - e cujo desenvolvimento teológico-filosófico foi objeto da escolástica. O uso de conceitos da Teologia Medieval para solução de problemas filosóficos e psicológicos modernos não é uma abordagem original, afinal tanto a Fenomenologia quanto o próprio Existencialismo são frutos de tentativas de tal cunho. As ponderações, aproximações, e distinções necessárias para tal relação entre a tristeza moderna e a acídia são o objeto das próximas etapas desse trabalho.
Na presente parte, certamente a mais teológica de todo o trabalho, esperamos fornecer as ideias estruturantes para a compreensão do que é a felicidade. Também a terceira parte versará sobre tal tema, porém aqui tentaremos expor o que há de mais fundamental para o correto entendimento do que seja a real felicidade. Isso porque, após a breve caracterização do problema, um esclarecimento sobre o que é a felicidade faz-se imperativo. Do contrário, poderíamos incorrer no risco de simplesmente aprofundar o ‘esquecimento’ do qual nos fala Nietzsche, ou Habermas. Em última instância poderíamos esquecer o bem que o mal da tristeza moderna destrói – ou almeja destruir – pela tensão, ou pelo momento de uma ‘catástrofe’.
A Teologia como o “anão corcunda” escondido
[caption id="attachment_15259" align="aligncenter" width="420"] Esquema do autômato com o esconderijo do anão descoberto[/caption]Como forma de destacar a importância da Teologia para a compressão da modernidade, gostaríamos de citar a primeira e certamente a mais enigmática tese de Walter Benjamin, extraída do livro “Teses Sobre o Conceito de História” de 1940. Nela ele nos coloca, ou sussurra..., as seguintes palavras:
“Como se sabe, deve ter havido um autômato, construído da tal maneira que, a cada jogada de um enxadrista, ele respondia com uma contrajogada que lhe assegurava a vitória da partida. Diante do tabuleiro, que repousava sobre uma ampla mesa, sentava-se um boneco em trajes turcos, com um narguilé à boca. Um sistema de espelhos despertava a ilusão de que essa mesa de todos os lados era transparente. Na verdade, um anão corcunda, mestre no jogo de xadrez, estava sentado dentro dela e conduzia, por fios, a mão do boneco. Pode-se imaginar na filosofia uma contrapartida dessa aparelhagem. O boneco chamado “materialismo histórico” deve ganhar sempre. Ele pode medir-se, sem mais, com qualquer adversário, desde que tome a seu serviço a teologia, que hoje, sabidamente, é pequena e feia e que, de toda maneira, não deve se deixar ver”[1].
Ora, se a Teologia é sabidamente escondida, por que não retirá-la do ostracismo que lhe foi imposto?
A Felicidade deve ser buscada
Contemplar a Verdade, possuir o Bem, eis a conquista da felicidade. A vida que existe em nós a isso nos impele, o espírito que existe em nós foi para isso constituído. Somos soldados da Luz no mundo encoberto pelas trevas da suspeita e da dúvida, somos filhos do Ser - Yahweh [2]- no tempo do culto do Nada e do Vazio. Façamos como Cristo, beijemos a Cruz, aceitemos o sacrifício e mostremos ao Mundo que a Vitória a Deus já foi dada pelos cravos e pela coroa de espinhos: eis a raiz de nossa felicidade!
A felicidade é um tema cada vez menos estudado pelos filósofos, principalmente depois de Kant, por razões que fogem ao objetivo do presente estudo. O que constatamos é que o tema é estudo mais enquanto arqueologia da história das ideias do que como algo de fato possível de ser conquistado. Desconsiderando os livros de “autoajuda” de baixíssimo valor intelectual - incluindo nessa lista livros dos padres animadores de plateia - a felicidade é um assunto restrito ao passado. Essa é uma constatação intrigante. Afinal o que o homem busca é ser feliz. Por mais diferentes que sejamos uns dos outros, a busca pela felicidade é algo que convive com cada homem integralmente. E é exatamente por essa busca que justificamos, de modo mais ou menos profundo, todos os nossos esforços e sacrifícios: “[...] toda investigação, bem como toda ação e toda escolha, visam a um bem qualquer; e por isso foi dito, não sem razão, que o bem é aquilo a que as coisas tendem” [3].
Um raciocínio – intrigante e simples – que poderíamos fazer, subtraído de todo tecnicismo filosófico, seria o seguinte: todos os homens movem-se em busca da felicidade, e se a buscam não a possuem, pelo menos não completamente. Portanto, buscam aquilo que entendem ser a felicidade, e consequentemente perseguem uma ideia, uma ideia de felicidade. Ora, como chegaram a tal conceito de felicidade? Certamente por alguém que transmitiu tal ideia. Dificilmente as pessoas pensam sobre como lhes foi transmitida ou comunicada a ideia de felicidade que já guardam e aceitam na inteligência ... Sendo assim, quem domina a ideia de felicidade domina os homens. Poderíamos potencializar tal conclusão com a seguinte enunciação: se alguém – um ser que deveria utilizar a inteligência - faz algo sem pensar, é porque outro alguém pensou por ele.
Com esse quadro pintado onde deveríamos localizar a verdadeira liberdade? A liberdade - escolha entre bens - é algo necessário para atingirmos a felicidade. Refletir sobre esse quadro deveria nos preocupar, ao ponto de nos recolhermos em meditação e pensarmos sobre o que é a verdadeira felicidade e sobre os meios de alcançá-la.
Recolhidos em nosso interior, após constatar tal problemática, podemos meditar com Santo Agostinho: “Que eu te conheça, ó conhecedor de mim, que eu te conheça, tal como sou conhecido por ti. Ó virtude da minha alma, entra nela e molda-a a ti, para que a tenhas e possuas sem mancha nem ruga. Esta é a minha esperança; por isso falo e nesta esperança me alegro, quando experimento uma sã alegria. (...) Mas tu amaste a verdade, porque aquele que a põe em prática alcança a luz. Também a quero pôr em prática no meu coração: diante de ti, na minha confissão, diante de muitas testemunhas, nos meus escritos” [4].
O roteiro para felicidade está resumido no trecho acima. Na sequência iremos tentar destrinchá-lo.
Procurar ser melhor é conformar-se com o Bem. Isso significa ser mais virtuoso, pois só a virtude auxilia o ser em sua permanência no tempo: “nenhuma ação humana é dotada de tanta permanência como as atividades virtuosas, que são consideradas até mais duradouras que o próprio conhecimento das ciências.” [5]. No vício não há bem, portanto nem ser, só há - por acidente - aparência de ser e de bem. Logo, é somente com a virtude que o ser permanece verdadeiramente idêntico a si mesmo.
Essa verdadeira identidade, conquistada pela prática da virtude, possui suas raízes no Eterno. Afinal, tudo aquilo que realmente existe, ex [6]porque a Existência necessariamente permanece sempre a mesma: identidade fundamental. Por participação e efusivamente é Ela doadora de Si ao modo de Bondade; d’Ela tudo recebe o ser e o bem: eis a causa da identidade e da multiplicidade dos entes. É por meio dos seres que Deus torna-se fértil ao e no homem[7]. É a vida que Deus quer comunicar ao homem, vida em abundância.
Porém como é possível tal comunicação? A Identidade de Deus não é a encontrada no homem. Deus existe na eternidade e nós no tempo. Deus é a Verdade, e nós seres finitos e mortais que compreendemos a verdade. Constatamos aqui um degrau ontológico profundo, que nos impede a comunicação necessária para termos a esperança na alegria sobre a qual nos ensina Santo Agostinho.
A analogia de ser é a chave para atingirmos resposta da pergunta acima colocada. Porém essa analogia não pode ser somente compreendida, ela deve ser vivida. Não adianta compreendermos e mantermos tal compreensão em nós friamente. Devemos procurar aquecê-la com o amor, pois a verdade compreendida deve ter seu rebento natural: o amor verdadeiro. Assim, essa analogia de ser será verdadeira em nós, e nós seremos portadores férteis de algo que proporcionará a verdadeira felicidade. Vejamos como isso é possível.
A prática das virtudes acima mencionada é algo que se faz no tempo, quando o homem decide procurar o bem e se afastar do mal. A decisão do homem é a eleição de uma possibilidade dentre muitas e, a cada decisão, constata-se – adiante – uma imensidão de possibilidades tão grande que alguns poderiam enxerga-la como um labirinto tenebroso – é a solução gnóstica - e tão fechado que não pode ser contemplado com a visão da inteligência. Sem nos atermos ao que acima foi mencionado como tenebroso, não podemos negar: de fato o grande número de possibilidades de nossa vida constitui um labirinto.
Nas igrejas góticas há um labirinto, próximo à entrada. Tal adorno representa a história de vida de todos que nele entram, independentemente do tempo ou da origem de cada homem. Suas vidas, ainda que respeitadas as particularidades, são labirintos. Com esse símbolo, a igreja nos coloca a questão fundamental de nossas vidas: sendo a vida um labirinto, como sair dele? O labirinto desenhado nas igrejas é do tipo gótico, ou seja, possui uma única entrada e uma única saída, e é somente com base nessa unicidade que podemos constatar um caminho. Na vida há um caminho a ser seguido, e é a Igreja que nos ensina seu início e seu fim.
Contrariamente a essa solução temos as trevas: podemos ser convencidos de que o labirinto é tenebroso, do tipo rizoma, o qual difere do labirinto gótico por possuir muitas saídas possíveis, o que nos impede de ver o caminho. As saídas para esse labirinto são misteriosas e secretas: a solução de Dédalo - o estranho voo místico - ou a solução de Teseu são as saídas fornecidas pela velha gnose[8] .
Portanto a questão a ser respondida ou a primeira decisão a ser tomada é a seguinte: de que tipo é o labirinto do mundo? Sem caminho, verdade e luz, o labirinto do mundo tem aparência de trevas e por isso é imperscrutável e nos amedronta. Do outro lado contamos com a luz, que nos permite ver, contamos com a altura que nos possibilita a elevação necessária para vermos o labirinto do alto. Deste posto, vemos a entrada e a saída únicas. Com a verdade temos a certeza e a paz necessárias para percorrer o labirinto com virtude. Resta-nos então decidir entre a luz e as trevas, e para isso temos certo tempo de vida.
A cada decisão há a concretização de uma possibilidade, há a atualização da potência - há um nascimento - há algo em nós que é chamado da essência para a existência: ato de nossas vidas. Nossas decisões cristalizam nosso ser no passado. Se forem decisões virtuosas, elas criam em nós uma ‘analogia de ser’ capaz de nos elevar ao Eterno. O instante de cada decisão é um ponto que percorre o tempo, percorre-o determinando o indeterminado. O instante que acolhe uma decisão demarca a divisão entre a essência possível e a existência concreta. Ora, o que o instante marca é uma atualização de nós mesmos, somos nós que ‘somos’ a cada instante, somos mais a cada decisão, é a nossa existência que é alimentada a cada possibilidade realizada. Sem negar a natureza acidental da decisão e nossa natureza substancial, a cada instante construímos o que somos com base em nossas escolhas.
No lado oposto a essa construção é possível existir uma destruição: para alguns românticos, e atualmente para os existencialistas, não há um plano universal ou um ‘dever ser’ - referência para o homem virtuoso - que precisa ser buscado ou concretizado na vida de cada indivíduo. Afinal cada homem constrói a si mesmo de maneira autônoma e quanto mais autônomo o processo de construção mais efetiva será a sua autenticidade. Para eles não pode existir substância, uma vez que não podem existir regras ontológicas a serem seguidas. Para eles, quanto menos existir o que regula e disciplina o homem, mais livre o homem será. É com base nas ruínas da substância que eles - românticos e existencialistas - constroem a autenticidade.
A recusa de que algo “deve ser”, de uma maneira determinada, cria um individualismo que destrói a vida do indivíduo e a vida em sociedade. Afinal, como é possível alimentar aqueles que recusam alimentos, e tomam como digno de ojeriza os alimentos necessários à vida? A regra da alimentação serve tanto para o corpo quanto para a alma. Entretanto se há uma recusa às regras... Como a vida do corpo e da alma pode subsistir? É importante notar que os alimentos permanecem os mesmos, mas são esses homens que possuem uma ideia na inteligência que os impedem de se alimentarem.
Extrapolando esse princípio para a sociedade: como é possível defender a vida familiar se não podem existir regras a serem seguidas? Como justificar qualquer sacrifício ou heroísmo com tamanho egoísmo?[9] Sem sacrifício não é possível compreender e amar os valores que devem necessariamente ser perpetuados e, portanto, não há terreno fértil para a cultura de uma civilização.
Na parte seguinte do artigo, busca-se compreender como o homem pode ‘fazer a verdade diante de Deus’, o que significa em última instância ‘se situar na verdade de Deus’, e expressar alguns dos elementos constituintes da felicidade entendida como sua raiz grega eudaimonia, ou seja, ter ou possuir um poder divino (daimon) bem disposto (eu).[10]
A relação entre o divino e a verdadeira felicidade existe de modo claro em Aristóteles: “Mas se a felicidade consiste na atividade conforme a virtude, será razoável que ela seja também uma atividade em consonância com a mais alta virtude, e essa será a virtude do que existe de melhor em nós. E isso que existe de melhor em nós – quer seja a razão, quer seja alguma outra coisa esse elemento que pensamos ser o nosso guia natural e que nos dirige, tomando a seu cargo as coisas nobres e divinas, e quer seja ele próprio divino, ou somente o elemento mais divino existente em nós – sua atividade conforme a virtude que lhe é própria, então será a perfeita felicidade.[11]
O tom de passividade encontrado no texto de Aristóteles é profundamente conforme a atividade que mais nos proporciona a felicidade: a contemplação. O que é impressionante é a clara proximidade entre a disposição de espírito aqui expressa e a recomendação das Sagradas Escrituras para atingirmos a felicidade. Tanto em uma quanto em outra, o homem aparece como sujeito responsável por eliminar empecilhos que possam dificultar a ação do guia, responsável por coroá-lo com o cume da felicidade. Ou seja, somos responsáveis por iniciar uma atividade que efetivamente será terminada por outro, pelo Espírito Agudíssimo que penetra fundo somente onde há águas cristalinas. “Disse-vos estas coisas, para que a minha alegria fique em vós, e para que a vossa alegria seja completa”[12]
Situar-se na verdade de Deus
[caption id="attachment_15261" align="aligncenter" width="350"] “Anjo do Sorriso” da Catedral de Reims, França.Para meditarmos sobre a verdadeira felicidade não há imagem melhor, é o sobrenatural que nos convida...[/caption]
O homem verte-se sobre si mesmo quanto reflete: converte-se. Dobramo-nos sobre nós mesmos quando pensamos. Entramos em nossa alma em um movimento em direção ao nosso interior, para descobrirmos e nos instalarmos na nossa ‘cela interior’, cela de autoconhecimento, cela silenciosa na qual buscaremos a unidade de ser que nos proporcionará a verdadeira paz.
Quando tomamos a nossa própria inteligência como objeto de nosso pensamento, nos tornamos, com efeito, pensamento de pensamento. Esse ato só nos é possível por termos um espírito que nos permite refletir sobre nós mesmos, e sobre o que somos.
Quanto melhor a imagem que temos do que somos, mais esse ‘espelho espiritual’ nos serve para nos transformarmos na imagem e semelhança de Deus, nos capacitando a ser mais profundamente análogos a Deus: Puro Espírito. “Volvendo-se sobre si, em resposta ao apelo do Verbo divino, de modo a tornar-se alma viva, à semelhança de Deus, que a criou” [13].
A unidade de ser é nossa ‘identidade’; afinal, ser idêntico a si mesmo é o fundamento da paz interior. Nossa luta é unir em nós aquilo que é dividido: “Porque eu não faço o bem que quero, mas faço o mal que não quero” [14]. Reunir vontade e desejo em um único foco, esse é o centro da beatitude.
Se existimos no tempo, como podemos nos assemelhar a Deus - Ser em Si mesmo – que existe fora do tempo, na eternidade?
A identidade de Deus não é quebrada por nada, seu Ser permanece o mesmo, constituindo uma identidade impenetrável à inteligência humana. Essa identidade de Deus é tal que não podemos compreender sem sermos arrebatados pelo Mistério. Deus é, e por isso é fundamento de tudo o que existe. É Princípio Idêntico a Si Mesmo: Ato Puro. Uníssimo, Agudíssimo e por isso ‘Puro em si’ e Fundamento de todo ente. Espirito Simples - Onipresentíssimo[15]. “Porque a sabedoria é mais ativa do que as coisas ágeis, e atinge tudo por causa da sua pureza. Ela é uma exalação do poder de Deus, e uma como pura emanação da claridade de Deus onipotente, e por isso não se pode encontrar nela a menor impureza, porque ela é o clarão da luz eterna, e o espelho sem mácula da majestade de Deus, e a imagem da sua Bondade. E, sendo uma só, pode tudo; e permanecendo em si mesma, renova todas as coisas [...][16]“.
Fica claro, portanto, que o “Ser em Paz” que Santo Agostinho atribui a Deus é profundamente conexo ao “Ser em Si mesmo”.
Ora, o homem não pode alcançar essa condição ou estatuto, pois vive no tempo, estando sempre submetido às mutações deste em função da matéria, da mutabilidade dos acidentes, e da capacidade de sempre poder ser melhor ou pior. São dois planos ontológicos distintos, mas que devem ter algo em comum, afinal temos ‘ciência’ da diferença existente. “E Deus é ainda superior à alma porque é nela a vida da sua vida. Por isso, só pela alma [ipsam animam: ou seja, pela identidade da alma] poderá o homem ascender a Deus[17]”. Portanto, o caminho para Deus está na identidade da alma.
Um exame mais atento ao que é nosso espírito – inteligência e vontade – nos permite entender o que é o ato de entender[18]. Para entendermos o mundo, nos utilizamos dos sentidos, e esses são informados, ou atualizados, pelos objetos exteriores a nós. Para que possam cumprir essa função, nossos sentidos devem estar submetidos à mesma mutabilidade dos objetos do mundo; do contrário, não poderíamos ser informados do que os objetos são em sua particularidade. Deve existir algo de comum – entre os sentidos e os objetos – para existir uma comunicação - informação da forma - e os nossos sentidos devem possuir certa mutabilidade em conformidade com os objetos do mundo. Nossos sentidos acompanham os objetos do mundo e nos informam segundo sua natureza: a visão vê, o olfato cheira, o paladar degusta etc. “O semelhante é conhecido pelo semelhante” [19].
Entretanto, nosso conhecimento do mundo não é o conhecimento somente do “homem exterior” - conhecimento do particular puro e simples. Essa é somente parte da apreensão[20]. O processo de conhecimento termina no “homem interior” com a abstração do universal através da iluminação do particular; é o intelecto agente que ilumina a imagem particular (do objeto exterior) que existe em nosso intelecto passivo, com essa ação há a concepção do verbo interior, há a concepção do ‘conceito’.
No processo exposto acima há uma ‘presentificação’ do passado. Para que possamos abstrair é necessária uma imagem particular, chamada fantasma pelos medievais, que nada mais é senão ‘todo’ o processo de apreensão sensível unificado, ou reunido, em um único ‘ente’. Ou seja, os dados que vamos obtendo, etapa a etapa no tempo, são apresentados à inteligência (intelecto agente) de uma única vez e então são iluminados. Portanto, para ser iluminado é necessário tornar presente em um instante todo o passado, informado detalhe a detalhe aos sentidos.
Identificamos aqui um primeiro processo de distanciamento do tempo, entendido como mutabilidade. Todas as mudanças do tempo são reconhecidas de uma única vez em nós, todos os acontecimentos são cristalizados em uma única memória que pode tornar-se presente quando a vontade assim o ordenar. Uma unificação temporal é feita em direção à imutabilidade, tendo como horizonte a eternidade. Dessa forma, a inteligência é capaz de nos deslocar da imensidão dos acontecimentos sucessivos para um plano mais estável dos conceitos e, apesar de estarmos submetidos ao tempo, podemos conceber em nós princípios que são imutáveis. Com a inteligência, o homem concebe algo superior a ele mesmo: a verdade. Ascendemos à Verdade pela contemplação.
Com a verdade podemos como que olhar o mundo através dos olhos do eterno. Afinal, a luz da verdade é a luz eterna que tudo ilumina e mantém. Somos o resumo de tudo o que existe, temos os pés sobre a terra, e a inteligência na eternidade.
O homem conciliado com a memória é capaz de compreender princípios eternos da Verdade, conquistando assim uma condição necessária para a paz. Volta-se para o futuro e não o reconhece como absolutamente desconhecido. Isso porque uma alma que tem ciência do eterno não é assombrada pelo futuro. É o eterno que, por ser independente do tempo, permite ao homem voltar-se para o futuro com esperança. É a conciliação com o futuro que torna fértil o terreno para o cultivo da esperança.
À luz dos princípios eternos, os ciclos do tempo tornam-se cada vez mais claros e o futuro cada vez mais ‘conhecido’. Sendo os ciclos a imagem do eterno no tempo, o homem, que reconhece os ciclos, torna-se outra imagem do eterno, para quem o novo é cada vez mais raro, na medida da previsibilidade cíclica.
O conhecimento da verdade é o resultado da conciliação com a memória, e a esperança é o resultado da conciliação com o futuro. Eis a unificação necessária para a Paz, em que as capacidades do homem estão saciadas em uma conformidade profunda e serena. A alma enquanto memória possui o passado, enquanto inteligência compreende o presente, enquanto vontade espera o futuro. O maravilhoso aqui é que só é possível essa união pacífica e serena porque há um domínio do tempo - passado, presente e futuro - através de certa hegemonia do presente sobre o passado e o futuro. Afinal para nos conciliarmos com o passado temos que torná-lo presente com a memória, e, para nos conciliarmos com o futuro, temos que torná-lo presente com a vontade.
Essa disposição de alma é necessária: com a inteligência em conformidade com a verdade e a vontade amando o bem, a alma espera, com confiança serena, pois não é assombrada pelo mito de Kronos, o qual representa o medo que os homens têm de serem devorados pelo tempo que passa, e o medo do futuro absolutamente desconhecido.
A alma atinge uma certeza que só pode ser conquistada por aquelas almas que já viram o Bem – no eterno – com os olhos da verdade. De certa forma a vontade já possui o que deseja, pois antecipa os bens do futuro no presente. Desse contentamento nasce a esperança. Conciliados com o passado, somos conciliados com o que somos, para nos conhecer e reconhecer e, assim, aprofundamos nossa identidade.
Para isso precisamos da meditação do passado que nos revela o que somos. Presentificando o passado e o futuro, reunimos em nossa alma o que antes era separado, e consequentemente seremos ‘menos’ susceptíveis à mutabilidade do tempo e mais próximos do eterno.
A alma centrada no presente é mais propriamente idêntica a si mesma. Ela conquista uma identidade mais profunda consigo mesma, iluminada pela luz do Eterno. As águas da alma, sendo mais cristalinas e calmas, são mais receptivas aos raios de luz da verdade que assim podem atingi-las até o seu ser mais profundo e íntimo, tornando-as mais aptas a receber o eterno. A identidade da alma é mais semelhante ao “Ser em Si mesmo” e essa semelhança convida o convívio com o Divino e o Eterno. “Fixar-me-ei e consolidar-me-ei em ti, na minha forma, que é a tua verdade” [21].
Esperamos que essas explicações tornem mais clara a expressão ‘se situar na verdade de Deus’. A alma inteira centrada no presente eterno é, por assim dizer, sem mácula, é límpida. Nessa condição, quando a alma verter-se sobre si mesma, terá uma imagem de si mais próxima do que ela é de fato, o seu pensar refletirá seu ser de modo mais perfeito. Porque são as águas turvas e revoltas que impedem a reflexão do céu em si mesmas, enquanto que as águas limpas e tranquilas refletem o céu naturalmente, sem deixar de ser águas. Não deixando de ser águas, são – verdadeiramente – dignificadas com a imagem do céu.
Assim, o convite à identidade fundamental, àquela que existe entre o Pensamento -Sabedoria de Deus: o Verbo - e o Ser - Deus Pai em Sua Onipotência - será feito por uma oração profunda, humilde, e radicalmente fértil, que acaba por reforçar em nós uma ‘analogia de ser’ com Deus, pois estamos mais conformes ao que Ele é. Essa fertilidade retira sua força da analogia de ser ou conformidade, e, por isso, com efeito, arrancará mais de Deus aquilo que Ele tanto nos deseja dar: Ele mesmo.
Pois se em nós existe uma correspondência entre o que somos e o que pensamos que somos, em nós existe a verdade una. Tão una que reconheceremos em nós, pela graça, a mesma Verdade que morreu por nós na Cruz. E não poderia ser diferente, pois se em Deus Essência e Existência são um, fundamentalmente, quanto pensamos em Deus, necessariamente pensamos em sua Essência, ainda que de modo imperfeito. Ora, em decorrência da identidade de Deus, não é possível pensar na Essência de Deus sem ‘trazer’ ou ‘arrancar’ de Deus parte da sua Existência.
Um raciocínio pode nos esclarecer um pouco sobre o mistério da graça: “Porque onde se acham dois ou três congregados em meu nome, aí estou Eu no meio deles”[22]. Em Jesus Cristo Nosso Senhor. “Todos nós, pois, vendo de cara descoberta como num espelho a glória do Senhor, somos transformados na mesma imagem de claridade em claridade, como pelo Espírito do Senhor” [23].
[23] Epístola aos Coríntios 3,18
Para citar este texto:
"Tristeza Moderna e a Acídia Medieval. Parte 2: O Fundamento da Felicidade"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/religiao/tristeza-moderna-e-a-acidia-medieval-parte-2-o-fundamento-da-felicidade/
Online, 03/12/2024 às 17:08:00h