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Uma parábola sobre o correto juízo de si mesmo: o fariseu e o publicano
Mario da Silva Martins
Sumário
←Introdução
A humildade é uma das virtudes mais importantes da vida cristã. Ela é tão importante que os autores espirituais costumam consagrar páginas abundantes a tratar dela.
A humildade não é, certamente, a maior de todas as virtudes. Várias virtudes estão acima dela, dentre as quais a fé, a esperança e a caridade. Mas, em certo sentido, ela é a virtude fundamental de todo o edifício espiritual, um fundamento negativo, removendo os obstáculos para receber o influxo da graça, que seria impossível sem ela.
Neste sentido, a humildade e a fé são as duas virtudes fundamentais de todo o edifício sobrenatural. Este edifício apoia-se sobre a humildade como sobre um fundamento negativo (removendo os obstáculos) e sobre a fé como sobre um fundamento positivo, estabelecendo um primeiro contato com Deus.
Davi louva grandemente a humildade no Salmo 118:
“Foi bom para mim ser humilhado, para que eu aprenda vossos preceitos” (Salmo CXVIII, 71).
Muitas pessoas que eram puras e simples de coração, sem falsidade, terminaram com a alma estragada depois de acolherem o orgulho, que é um vício bem sorrateiro.
Observemos que não são as humilhações que santificam, mas a humildade. Por isso São Tiago escreve que “Deus resiste aos soberbos e dá a sua graça aos humildes” (S. Tiago IV, 6).
Os maus endurecem nas provações, mas os bons se corrigem.
Alguns padecem humilhações com rancor, outros com generosidade. A estes últimos, Deus concede graças abundantes.
Foi para mostrar o quanto a humildade é agradável aos olhos de Deus que Nosso Senhor contou a parábola do fariseu e do publicano. Esta parábola é um exemplo do qual cada um deve tirar proveito, seja ele fariseu, seja ele publicano.
Estamos no começo do mês de março do ano 30, algum tempo depois de Nosso Senhor ter contado a parábola do ecônomo infiel e antes da ressurreição de Lázaro, a aproximadamente um mês da sua crucificação e morte. Estando antes na Galileia, Nosso Senhor percorre agora a fronteira entre a Galileia e a Samaria, descendo até o vale do rio Jordão.
←O fariseu e o publicano
“E ele disse também esta parábola a alguns que confiavam em si mesmos como justos e desprezavam os outros” (S. Lucas XVIII, 9)
Aqui também, como na parábola do ecônomo infiel, a finalidade é anunciada antes. Os ouvintes aos quais Jesus dirigia esta parábola eram ou fariseus ou discípulos imbuídos do espírito farisaico, e que manifestavam os dois grandes sintomas de uma das mais graves doenças morais: o orgulho. Jesus queria curá-los.
Aos seus próprios olhos eles eram justos, tendo atingido a santidade perfeita, e “desprezavam os outros”. São Lucas, na versão original de seu evangelho, em grego, usa aqui um termo muito expressivo e que não é usado por nenhum outro evangelista. Este termo, traduzido comumente por “desprezar”, significa propriamente “aniquilar, tratar como nada”.
O conceito de excelência própria e o desprezo dos outros andam juntos, como a humildade e a caridade. Jesus mostrará a estes orgulhosos, do modo mais dramático, o horror com que Deus os vê.
“Dois homens subiram ao templo para orar: um fariseu e outro publicano” (S. Lucas XVIII, 10).
Estes dois personagens são modelos bem conhecidos, diametralmente opostos na sociedade judaica da época de Nosso Senhor. O primeiro, o fariseu, representa a perfeição dos costumes, a ortodoxia completa da fé. O outro, o publicano, a desmoralização e a indiferença religiosa. Na medida em que o primeiro era estimado, venerado, o segundo era sumamente desprezado.
O termo “fariseu” vem do adjetivo aramaico “perishaiia”, que significa “separados, distintos”. Provavelmente o termo foi cunhado pelos seus adversários, porque os fariseus se chamavam a si mesmos de “companheiros” e de “santos” (Mons. Francesco Spadafora, Diccionario Bíblico, vocábulo Fariseos, p. 211, 1959, Editorial Litúrgica Española, Barcelona).
O templo era, como as nossas igrejas, “uma casa de oração” (S. Lucas XIX, 46) e os israelitas devotos gostavam de frequentá-lo para invocar o nome de Deus, sobretudo durante certas horas, como na oferta do incenso. Esta oferta era feita duas vezes ao dia, antes do sacrifício da manhã e depois do sacrifício da noite, sendo o ponto culminante dos ritos realizados ao longo do dia.
O termo “subir” é bem exato, porque o templo havia sido construído sobre o monte Moriá.
“O fariseu, de pé, orava em seu interior desta maneira: Ó Deus, vos dou graças porque não sou como os demais homens, ladrões, injustos, adúlteros, nem mesmo como este publicano” (S. Lucas XVIII, 11).
Nosso Senhor nos apresenta os retratos dos dois personagens, fariseu e publicano, ambos rezando. Os detalhes são poucos, mas foram escolhidos com grande fineza psicológica.
Ambos estão de pé, conforme o uso que prevalecia entre os judeus:
“Salomão colocou-se de pé diante do altar do Senhor em presença de toda a assembleia de Israel e extendeu as mãos” (II Crônicas VI, 12).
Encontramos também no Antigo Testamento o exemplo de Ana, curada de sua esterilidade por sua oração, e que deu à luz Samuel. Quando ela vai ao Templo oferecer a Deus a criança de sua promessa, ela lembra ao sumo sacerdote Heli: “Eu sou a mulher que se encontrava de pé, diante de ti, orando a Deus aqui” (1 Samuel I, 26).
“E quando vós estiverdes de pé para orar, se vós tendes alguma coisa contra alguém, perdoai, a fim de que vosso Pai que está nos céus vos perdoe vossas ofensas”. (S. Marcos XI, 25).
Mas Nosso Senhor utiliza dois termos diferentes, conforme o texto grego, para descrever esta atitude, o que nos permite ver uma intenção particular no uso de cada um deles.
Para o fariseu, Nosso Senhor utiliza um termo que carrega muita ênfase, parecendo indicar uma postura forçada, afetada. É o mesmo termo que Jesus emprega no sermão da montanha ao dizer:
“E quando orardes, não sejais como os hipócritas que amam orar de pé nas sinagogas e nas esquinas das praças para serem vistos pelos homens; em verdade vos digo, eles já receberam seu prêmio” (São Mateus, VI, 5).
Diversos comentadores, analisando a construção do texto grego, tiram das palavras de Nosso Senhor uma interpretação que permite construir uma cena um pouco mais rica, na qual o soberbo fariseu isola-se voluntariamente da multidão das pessoas que rezam para evitar o contato com elas para, assim, não ficar impuro. São Jerônimo, porém, ao traduzir esta passagem, escolheu uma interpretação mais natural e perfeitamente possível do texto grego. Assim, o fariseu estaria de pé orando interiormente.
Seja como for, as duas cenas possíveis de construir a partir das palavras de Cristo, ainda que ligeiramente diferentes, são perfeitamente compatíveis e de modo algum opostas.
O fariseu inicia a sua oração com as palavras “Ó Deus, vos dou graças”. Este começo é irrepreensível, pois a ação de graças é uma parte essencial da oração. Infelizmente, sob o pretexto de exprimir a Deus o seu reconhecimento, o fariseu faz o seu elogio pessoal nos termos mais audaciosos:
“Buscai nas palavras dele o que ele quis pedir a Deus; não quis orar, mas louvar-se” (Santo Agostinho, Sermão 115).
O fariseu continua: “…não sou como os demais homens…”.
Ele divide a humanidade inteira em duas categorias. Sozinho, ele forma a primeira delas – perfeita, evidentemente –, amontoando “os demais homens” na segunda.
Mas quem são, para ele, os outros homens? Ele os caracteriza com o auxílio de três palavras que designam três dos vícios mais vergonhosos: ladrões, injustos, adúlteros.
Depois, fixando seus olhos no publicano que orava à distância, o inclui na sua suposta oração, usando-o como um fundo obscuro sobre o qual as cores brilhantes de suas próprias virtudes brilhariam com maior esplendor. Santo Agostinho chega a considerar este ato como um “insulto” (Santo Agostinho, Comentário aos Salmos, 1º. Comentário ao Salmo 70, 2).
“Jejuo duas vezes por semana, dou o dízimo de tudo o que possuo” (S. Lucas XVIII, 12).
O fariseu passa, agora, do elogio de sua pessoa para o elogio de suas obras. Antes mostrou o que não faz e agora mostra o que faz. É o lado positivo de sua santidade, depois de examinar o lado negativo dela.
Ele menciona com agrado duas obras que excedem os deveres obrigatórios de um judeu. A primeira é a de jejuar duas vezes por semana. Jejuns de devoção eram freqüentes entre os judeus, e quem queria aparecer como piedoso jejuava duas vezes por semana, de preferência nas segundas e quintas.
No Evangelho de São Mateus Nosso Senhor descreve a afetação com que os fariseus praticavam o jejum: “E, quando jejuais, não o façais com um aspecto triste, como os hipócritas, que desfiguram o rosto para que os homens vejam que jejuam; em verdade vos digo, que já receberam sua recompensa” (S. Mateus VI, 16).
A segunda obra do fariseu é dar o dízimo. O termo usado por São Lucas e que comumente é traduzido por “tudo o que possuo” significa mais precisamente aquilo que se ganhava ao longo de um ano, e não a propriedade total de alguém. Assim, aqui o fariseu não se refere ao dízimo restrito aos produtos que vinham do campo e do gado e que era imposto pelo legislador: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, e descuidais do mais importante da lei, a justiça, a misericórdia e a fé!” (São Mateus XXIII, 23).
A oração do fariseu mais parece o discurso de um credor que deseja relembrar seus direitos a quem lhe deve. Entretanto, tais disposições não eram raras no mundo farisaico. A oração que o rabi Nechunia ben Hakana costumava fazer ao sair de suas aulas nos mostra bem este espírito:
“Eu vos dou graças, Senhor meu Deus, porque a minha parte me foi destinada entre aqueles que visitam a casa do conhecimento, e não entre aqueles que trabalham nos cantos das ruas; pois me levanto cedo e eles se levantam cedo: desde a aurora eu me dedico às palavras da lei, mas eles se aplicam a coisas vãs; eu trabalho e eles trabalham: eu trabalho e recebo uma recompensa, eles trabalham e não recebem nada; eu corro e eles correm: eu corro para a vida eterna, mas eles correm em direção ao abismo” (Berachoth, f. 28, 2).
“E o publicano, estando de pé à distancia, não ousava sequer levantar os olhos ao céu, mas batia no peito dizendo: Ó Deus, tem piedade de mim pecador!” (S. Lucas XVIII, 13).
Contraste admirável! Temos aqui o desenho de uma humildade perfeita manifestada por muitas coisas. Primeiramente, na escolha do lugar: “estando de pé à distancia”. Ele está longe do santuário, perto do qual, ao contrário, encontra-se o fariseu. Depois, na atitude: “não ousava sequer levantar os olhos ao céu”. Seu sentimento de miséria era tão vivo que ele não fazia nem mesmo um ato tão natural àqueles que oram: elevar os olhos aos céus. Além disso, “batia no peito”, como um verdadeiro penitente. Mas é, sobretudo, nas suas palavras que vemos a diferença em relação ao fariseu. Sua oração é profunda e sai de um coração contrito e humilhado: “Ó Deus, tende piedade de mim pecador!”.
Nosso Senhor, conforme a versão grega original, coloca na boca do publicano palavras mais fortes do que aquelas que chegaram até nós por nossas traduções: “Eu, o pecador por excelência!”.
É dizer muito com poucas palavras. De fato, fala muito diante de Deus quem se reconhece como pecador.
“Eu vos digo: este desceu para sua casa justificado, e o outro não; pois quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado” (S. Lucas XVIII, 14).
Nosso Senhor afirma cheio de majestade: “Eu vos digo”, isto é, afirmo isto porque eu o sei. São palavras cheias de peso na boca de quem é Deus e conhece perfeitamente o mais profundo das almas.
O publicano voltará para sua casa puro de todo pecado, tendo sido justificado, completamente justificado, conforme a expressão usada por Nosso Senhor. Sua oração humilde ultrapassou as nuvens, sua contrição foi um sacrifício de agradável odor a Deus, que lhe concedeu perdão.
O fariseu também deixou o templo, sem dúvida acreditando ter dado muita honra a Deus e tendo ganhado maiores méritos. Mas como as palavras de Nosso Senhor, que é Deus, são terríveis em relação a ele: “o outro não”!
Santo Agostinho escreveu belas páginas a respeito desta parábola:
“O publicano não ousava levantar os olhos aos céus. Por que ele não olhava o céu? Porque ele se olhava a si mesmo. E eis que, examinando-se a si mesmo, começou a ter desgosto e é assim que ele agradou a Deus.
Tu, ao contrário, tu te elevas, tu elevas a cabeça. Ora, o Senhor diz ao orgulhoso: Tu não queres olhar tua miséria? Pois bem, eu a olharei! Tu queres que eu desvie meus olhos dela? Então, não desvie os teus.
O publicano não ousa levantar os olhos aos céus: ele se examina, ele se condena. Ele faz de si mesmo seu próprio juiz, e Deus defende sua causa. Ele se pune, e Deus lhe faz misericórdia. Ele se acusa, e Deus o defende. Deus o defende tão bem que seu juízo foi: O publicano desceu para sua casa justificado, e o outro não; pois quem quer que se exalte será humilhado e quem quer que se humilhe será exaltado. Ele examinou sua consciência, diz o Senhor, e Eu, Eu não quis examiná-la. Eu o ouvi clamar em minha direção: Desviai os olhos de meus pecados! (Salmo L, 11). Mas quem pode pronunciar tais palavras, a não ser aquele que diz também: Minha falta, eu a conheço (Salmo L, 5)?
Quanto ao fariseu, ele também, meus irmãos, era um pecador. Ele podia dizer: Eu não sou como o resto dos homens, desonestos, ladrões, adúlteros; ele podia jejuar duas vezes por semana e dar o dízimo de seus lucros, mas ele não deixava de ser um pecador. E mesmo quando ele não tivesse um só pecado na sua consciência, seu orgulho teria bastado para acusá-lo. E, entretanto, ele ousava falar deste modo!…
Mas então, quem é sem pecado? Quem poderá se gloriar de ter um coração puro, ou de ser inocente de toda falta (Provérbios XX, 9)? Este não o era, é verdade; mas, no seu erro, ele não sabia o que tinha ido fazer no templo. Ele se encontrava na casa do médico, como que para se curar e, dissimulando suas chagas, ele apresentava os membros que estavam sadios…
Deixa, então, o Senhor cobrir as tuas chagas: não o faça tu mesmo. Pois, se tu tens vergonha de mostrá-las, o médico não as curará. Que Ele as cubra com um bom remédio e as cure. A chaga que o médico cobre será curada. Mas se o doente quer cobri-las por si mesmo, a única coisa que conseguirá fazer é escondê-la. E de quem ele a esconde? Daquele que tudo conhece” (Santo Agostinho, Comentário aos Salmos, 2º. Comentário ao Salmo XXXI) .
“Pois quem quer que se exalte será humilhado e quem quer que se humilhe será exaltado”.
Jesus conclui a parábola com esse grande princípio moral, o qual aparece também em outras ocasiões: quando Nosso Senhor observara que alguns convidados escolhiam os primeiros lugares (São Lucas XIV, 11) e ao repreender os escribas e fariseus (São Mateus XXIII, 12).
Esta insistência quanto à humildade é outro sinal de quanto ela é importante aos olhos de Deus. Pois quando Deus, na Sagrada Escritura, insiste muito a respeito de algo, é porque é coisa de grande importância. É o caso da esmola, da penitência e também da humildade.
Uma vez que Deus nos mostra o quanto a humildade lhe agrada, achamos necessário tratar um pouco mais dela. Depois de termos apresentado o comentário da parábola do fariseu e do publicano, vamos dar um exemplo de humildade na vida de uma grande santa, Santa Maria Madalena de Pazzi. Por fim, daremos ao leitor alguns instrumentos que permitam a obtenção desta virtude tão fundamental da vida cristã.
←Um exemplo de humildade: Santa Maria Madalena de Pazzi.
São Francisco de Sales dizia que “a vida dos santos está para os Evangelhos como a partitura tocada por um músico está para a partitura escrita”. De modo que, depois de termos apresentado para o leitor o Evangelho escrito, queremos mostrar agora o Evangelho vivido. Como o Evangelho brilha mais compreensível, mais palpável nas vidas dos santos!
Santa Maria Madalena de Pazzi teve por pai Camillo Geri de Pazzi, cuja família era aliada à família Médicis e, por mãe, Maria Laurência de Bondelmonte, cuja origem não era menos ilustre.
Ela nasceu no dia 2 de abril de 1566, em Florença, e recebeu o nome de Catarina no momento do batismo, em honra de Santa Catarina de Siena, por quem sempre teve terna devoção. À medida que crescia foi crescendo também em santidade, ficando sempre feliz quando podia ouvir a doutrina católica ou conversas piedosas.
Com sete anos, tendo encontrado num livro o Símbolo de Santo Atanásio, ela o leu com tanto gosto que foi correndo mostrá-lo à sua mãe, o que indica que Deus já lhe dava luzes sobre o mistério da Santíssima Trindade.
Aprendeu o Pai Nosso, a Ave Maria e o Credo com avidez, repetindo-os frequentemente e ensinando-os aos pobres. Quando seu pai a levava ao campo, ela agrupava as jovens à sua volta para ensiná-las a doutrina católica.
Cedo ela começou a se aplicar à oração, antes que tivesse idade para ser formada por diretores. Deus mesmo era seu mestre. Buscava os lugares mais solitários e tranquilos da casa para rezar e concebeu um desejo tão grande de agradar a Deus que não tinha mais nenhum gosto pelas doçuras que o mundo busca tão afoitamente. Seu fervor era tanto, que seu confessor viu-se obrigado a permitir que comungasse com 10 anos, o que na época era excepcional. Fez voto de castidade com 12 anos, sendo tão fiel a ele que durante toda a sua vida nunca cometeu algo que pudesse servir de reprovação nesta matéria.
Alguns anos mais tarde, quando seu pai buscará um marido que lhe seja conveniente, ela não dará seu consentimento e pedirá a permissão de abraçar o estado religioso, o que lhe será concedido.
Catarina escolhe então a Ordem do Carmelo, porque nele se comungava quase todos os dias. Ela ingressou na ordem na vigília da Assunção de Nossa Senhora, mas depois de aí passar quinze dias ela se vê obrigada a sair, por obediência ao seu pai. Ele lhe pedia isso com a intenção de prová-la na sua resolução.
Após uma provação de três meses ela obteve, enfim, a permissão de retornar, com a benção de seus pais. Na vigília do primeiro domingo do Advento, em 1582, com 16 anos, ela voltou ao Carmelo e, no sábado seguinte, dia da Imaculada Conceição de Nossa Senhora, foi unanimemente recebida como religiosa.
Após sua profissão perpétua ela tinha êxtases quase quotidianos, nos quais Deus lhe ditava coisas tão elevadas que seus superiores designaram duas irmãs que as transcrevessem.
Expulsou o demônio do corpo de uma jovem, mandando imperiosamente que saísse. Foi favorecida por Deus do dom de fazer milagres e também profetizava. Predisse ao cardinal Alexandre de Médicis, arcebispo de Florença, que fora visitá-la, que um dia ele seria Papa. Ela renovou sua predição quando este cardeal foi enviado pelo Papa Clemente VIII à França como legado junto ao rei Henrique, o Grande: “Este prelado possui atualmente uma grande honra, mas ele possuirá uma ainda maior. Ele será elevado ao sumo pontificado, mas não terá esta dignidade por muito tempo. Quando desejará abraçá-la, ela passará num instante”. De fato, Alexandre de Médicis, eleito papa com o nome de Leão XI, em 1605, viverá somente 26 dias após sua eleição.
O Padre Lourenço Brancácio, de origem toscana e carmelita observante, escreveu uma biografia desta santa admirável, onde nos relata um de seus exames de consciência:
“Na tarde de 6 de abril de 1592, ajoelhada em terra para se examinar do decurso daquele dia, foi arrebatada em êxtase, em que começou a rezar o Salmo Domine, quid multiplicati sunt (Salmo 3), etc. Depois do qual disse também o Salmo Qui habitat (Salmo 90). Este acabado, começou a falar com o amantíssimo Jesus, desta maneira:
Ó Jesus meu, qual foi hoje o primeiro pensamento que tive? Sinto muito, que não foi de vós. Temi que já fosse passada a hora de chamar as vossas esposas [chama assim as religiosas do convento] para vos louvarem: e não foi de apresentar-me à Vossa Majestade e glorificar-vos. Depois disso fui para o coro a fim de oferecer-me a vós: porém não o fiz resignando-me em tudo, e por tudo, à vossa vontade. Ó benigníssimo Deus, que misericórdia eu poderei receber de vós, pois me não entrego toda a vós? Tende de mim misericórdia, ainda que eu a não mereça, senão antes mil infernos.
Depois, quando comecei a vos louvar, me deixei levar mais da pena de ver algumas que faltavam nas cerimônias e com as inclinações devidas, que do cuidado de vos honrar e oferecer os meus louvores, em união com os louvores que vos dão os Espíritos bem-aventurados [os anjos]. Bem tenho de quê vos pedir misericórdia, ó grande Deus, pois no que tão imediatamente toca a vós, que são vossos louvores, cometo tantas imperfeições.
Depois, quando cheguei a receber vosso precioso Corpo e Sangue (que devia ser com todo o afeto que me era possível), me pesa de que não tive intenção de recebê-lo em memória de vossa Paixão sagrada, como vós dissestes, nem tampouco tratei de unir a minha alma convosco, mas somente de como faria aquietar o meu coração.
Bem cedo ouvi a palavra divina; porém, mais considerei se era verdade que nos fossemos, como vós fazíeis dizer ao vosso Cristo [chama os pregadores e confessores de “Cristos do Senhor”], do que no amor que me mostráveis. Mas, Senhor meu, eu não sei outra coisa mais que vos pedir misericórdia.
Quando fui receber os frutos de vosso Sangue no Sacramento da Penitência, mais considerei o que havia de dizer ao vosso Cristo, para sossegar o meu coração, do que o benefício que me fazeis em lavar a minha alma no vosso Sangue, e não me confiei de vós, que me daríeis graça com que o meu coração se aquietasse.
O Senhor meu! E quais foram as minhas palavras, que hoje proferi? Foram de repreensão: e o modo pouco pacífico de dizê-las, e suave, foi causa de se inquietar o coração daquela [acusa-se de ter repreendido uma noviça]. E o que pior foi, faltei à caridade, pois vendo o seu coração inquieto, não procurei sossegá-lo, para poder se unir convosco. Eis aqui, Senhor, o que tiro de tanta união e luz que me dais, que se a désseis a qualquer outra criatura, ela vos seria muito mais agradecida. E eu pobre e miserável, nenhum fruto tiro, pois falto à caridade para com vossas esposas. Perdoai-me por amor de vossa Paixão sagrada.
Depois, quando fui falar àquela criatura, acuso-me de que fiz uma grande hipocrisia, fazendo-me ser reputada pelo que não sou. E suposto que fiz aceno às vossas criaturas, não mereci que elas me entendessem. E assim signifiquei ter a minha alma unida convosco [diz isto porque estando no locutório com uma de suas tias, foi alí arrebatada em êxtase; tinha acertado com outras freiras que, quando fizesse certo aceno, levassem-na embora da grade, porque pressentia o êxtase]; e bem sabeis quantas vezes anda distraída fora de vós. Mostrei ser religiosa: e bem sabeis vós o que sou. Clamo a vós misericórdia, e perdão desta grande hipocrisia, e vos ofereço o vosso Sangue, por meu remédio derramado com tanto amor. Se me mandais para o inferno, ó Senhor, como o mereço! O meu devido e próprio lugar será aos pés de Judas, pois tanto vos tenho ofendido.
Fui depois dar o sustento necessário ao meu corpo. Porém, que intenção tive eu de vos agradar e honrar nesta ação? Não me lembrei de apresentar-vos tantos pobrezinhos, que porventura andam muito tempo batendo pelas portas em busca de um bocado de pão, e talvez que não acham quem lhes o desse. E eu miserável e indigna, sem algum trabalho meu (e o que é pior, sem merecimento), me provê a religião [a Ordem Carmelita] de tudo o necessário. E não só cometi contra vós esta ofensa, senão de mais a mais outra, que fui ocasião daquela vossa esposa falar tantas palavras em lugar onde eu sabia não ser lícito falar. Eis aqui, Senhor, como em todas as minhas obras não acho mais que ofensas vossas. Como, pois, poderei aparecer em vossa presença e pedir-vos mercês e graças, e a encomendar-vos vossas criaturas, sendo tantas as minhas culpas que não mereço useis comigo de misericórdia? Porém, Senhor, aquele amor que vos moveu a baixar à terra, e derramar vosso Sangue, ele vos mova a ter misericórdia com a minha alma.
Depois, quando não fui louvar-vos em companhia das outras vossas esposas, foi só por minha culpa. Porque tanto que aquela criatura me disse, que não fosse, logo me acomodei a ficar. Ah Jesus meu! Se ela me pedira outra qualquer obra de caridade, não me acharia tão pronta. Ó Deus meu, como quero eu ter confiança de chegar onde para sempre vos louve em companhia dos Anjos, se tão facilmente falto em vos louvar em companhia de vossas esposas? Eu vos ofereço o vosso Sangue, para que mediante seu valor infinito, me concedais misericórdia.
E nas obras que fiz, que intenção tive, Deus meu, de vos honrar e glorificar; pois vejo que mais me pesa do tempo que vós com vosso favores me levais, do que do tempo em que falo em vos oferecer a minha alma? É verdade que fiz sinal àquelas vossas virgenzinhas de que era hora de silencio, mas não considerei quanto mais obrigada era eu a estar em silêncio unida convosco.
Depois, quando houve de invocar o Espírito Santo, estava com a mente tão desviada de vós, que me não lembrava o como se havia de fazer: de sorte que as outras que não têm tanto tempo de religião, tiveram mais prudência que eu. Eis aqui, meu Jesus, como em todas as obras tenho faltas. Como poderei, pois, aparecer em vossa presença, tendo-vos tão ofendido? Torno a oferecer-vos o vosso Sangue, que só mediante o seu valor, espero perdão.
E que grande falta foi aquela outra, quando houve de fazer aquela obra? Por poupar-me a um pouco de trabalho em dar alguns passos, faltei ao que era obrigada a fazer, e vali-me de outra que me fizesse caridade, e eu não fiz caridade com a minha alma. Mais interesse tive em não me cansar um pouco, do que em que vós não vos afastásseis de mim. Em todas as minhas obras acho defeitos. Porém vós, não olhando para vossas ofensas, senão para vossa bondade, de novo me atraístes a vós, onde me destes tanta luz, que se a désseis a outra qualquer alma, faria mais fruto, do que em mim miserável.
Depois fui dar refeição ao meu corpo, e não me lembrei de tantos pobrezinhos que não têm de que sustentar-se, e a mim, Senhor, me dais provisão com tanta largueza. De novo vos apresento vosso Sangue por tantas ofensas, que contra vós cometo.
Ai de mim, Jesus meu, que estamos no fim do dia, e não fiz coisa alguma sem ofensa vossa! Pois agora, que farei? Ó meu Deus, se tanto vos tenho ofendido neste dia, não quero eu acrescentar mais outra ofensa, qual seria não confiar em vossa misericórdia. E suposto, Senhor, que a não mereço, todavia o vosso Sangue, que por mim derramastes, me fará confiar em vós, que me haveis de perdoar”.
E o seu biógrafo, no relato de sua vida, continua:
“Feito este exame, ainda sem sair do êxtase, se retirou a um lugar oculto do Convento, onde tomou uma aspérrima disciplina [isto é, flagelou-se], em castigo destes levíssimos defeitos. Deste modo examinava esta alma a sua consciência cândida, e assim a sacudia do mínimo pozinho que a pudesse manchar”.
←O reconhecimento de nossa miséria
Depois de vermos este exame de consciência de uma santa, como aparecerão diante de Deus as distrações voluntárias que temos durante nossas orações e nossos terços, recitados com a pronúncia toda atropelada, com os olhos curiosos de ver o que se passa a nossa volta, com falta de modéstia do corpo e cheios de impaciência no espírito, interrompendo-o pelo menor motivo?
Como aparecerão as missas que assistimos sem preparação, tendo a memória ocupada com muitas coisas que não têm importância na hora da missa? E os padres que rezam missa com tanta negligência na observação dos ritos, com pressa e inquietação?
Como aparecerá o modo com que tratamos nossos próximos, quando estimamos maliciosamente suas ações ou, o que é pior, suas intenções? Como aparecerá nosso interesse por seus defeitos naturais e morais, nossas desculpas para não ajudá-los nas suas necessidades, o fato de criarmos atrito com eles por um motivo leve e mesmo por nenhum motivo ou por amor próprio ferido?
E nossas palavras de queixas, mentirosas, inúteis, de orgulho, de elogio próprio, murmurações? Como aparecerão nossos pensamentos tidos longe da presença de Deus, nossas obras feitas com intenções menos retas?
E se não encontramos tantas faltas assim em nosso exame, é porque nos falta diligência em fazê-lo e humildade. Se uma grande santa como Santa Maria Madalena de Pazzi, que tinha todas as suas ações bem cercadas pela santa regra do Carmelo, encontrava no fim do dia tantas coisas para se penitenciar, o que será de nós, que vivemos no mundo? Assim como não há rio que não recolha lodo, galhos e folhas nas suas margens, assim também não há homem que não cometa faltas nas suas relações com os outros homens ao longo de um dia.
E, se neste exame de consciência, Santa Maria Madalena de Pazzi pede perdão a Deus até de coisas que não são pecados e que não são coisas a serem acusadas em confissão, mas de coisas que podiam ter sido feitas com maior perfeição, o que será de nossa negligência em fazer penitência pelas faltas grandes que cometemos?
Não há dúvida de que nenhum de nós tenha qualquer motivo para se orgulhar e para se crer virtuoso. Ao contrário, depois de examinarmos nossas consciências – e nelas encontraremos misérias em maior número e gravidade do que as que Santa Maria Madalena de Pazzi via em si mesma e das quais fazia grandes penitências –, devemos nos humilhar diante de Deus e nos inclinar à compaixão das misérias e desgraças do próximo, considerando-as de certo modo como próprias, enquanto prejudicam nosso irmão e enquanto podemos nos encontrar em situação semelhante ou pior: “Por que tu olhas a palha que está no olho de teu irmão, e tu não vês a trave que está no teu olho?” (S. Mateus VII, 3).
Que grande exemplo de humildade nos dá Santa Maria Madalena de Pazzi. Ela compreendeu bem a parábola do fariseu e do publicano.
Deus mesmo manifesta em máximo grau a sua onipotência compadecendo-se misericordiosamente de nossos males e remediando nossas necessidades.
A humildade e a caridade andam juntas. Tendo maior luz de nossas misérias, compadeçamo-nos também das de nossos próximos e busquemos ajudá-los, sobretudo pelo exemplo. Quantos de nós, para não dizer todos, fomos levados ao amor de Deus e a uma vida melhor depois de conhecermos alguém exemplar, que mostrava na sua vida a luz e a beleza que existem em servir a Deus, e que suportou nossas misérias com paciência e misericórdia para nos conduzir até um lugar mais alto?
←A prática da humildade
O reconhecimento teórico de nosso nada diante de Deus e de que, por causa de nossos inúmeros pecados, não temos direito nenhum de presumir de nós mesmos em nosso interior ou diante de nossos semelhantes, é coisa fácil e simples.
Mas o reconhecimento prático destas verdades e as consequências que saem delas e que atingem nossa conduta diante de Deus, de nós mesmos e de nossos próximos é uma das coisas mais árduas e difíceis da vida cristã, onde naufragam inúmeras almas.
Assim, para dar ao leitor alguns instrumentos que permitam a obtenção desta virtude tão fundamental da vida cristã e sua prática, apresentaremos, na próxima parte (e última) deste artigo, os principais meios para chegar à verdadeira humildade de coração.
(Parte 03)
O reconhecimento teórico de nosso nada diante de Deus e de que, por causa de nossos inúmeros pecados, não temos direito nenhum de presumir de nós mesmos em nosso interior ou diante de nossos semelhantes, é coisa fácil e simples.
Mas o reconhecimento prático destas verdades e as consequências que saem delas e que atingem nossa conduta diante de Deus, de nós mesmos e de nossos próximos é uma das coisas mais árduas e difíceis da vida cristã, na qual naufragam inúmeras almas. Com frequência, se dá o fato curioso de que uma alma, que acaba de tomar a determinação de ser “humilde de coração” ou de “aceitar com alegria qualquer espécie de humilhações”, pouco depois queixa-se imensamente se alguém cometeu a imprudência de lhe causar um pequeno incômodo ou uma humilhação involuntária e insignificante.
Para ajudar a prática da humildade, recomendamos a leitura do Filotéia, ou Introdução à vida devota, de São Francisco de Sales, que trata dela na terceira parte de sua obra.
Os autores espirituais nos oferecem três meios principais para chegar à verdadeira e autêntica humildade de coração:
←a) Pedi-la incessantemente a Deus
“Todo dom perfeito vem do alto e desce do Pai das luzes” (S. Tiago I, 17).
A humildade perfeita é um grande dom de Deus, que Ele costuma conceder aos que o pedem com oração incessante e fervorosa. É um dos pedidos que deveriam ser feitos com maior frequência em nossas orações.
"Dom Columba Marmion recitava a Ladainha da Humildade"
Dom Columba Marmion costumava, com frequência, recitar uma “ladainha da humildade”. Ainda que a eficácia da oração não esteja ligada a uma fórmula determinada, muitas almas tiram grande proveito de uma oração já estruturada. Por isso copiamos imediatamente abaixo o texto usado por Dom Columba Marmion:
“Senhor, tende piedade de nós; Jesus Cristo, tende piedade de nós; Senhor, tende piedade de nós.
Jesus, manso e humilde de coração, ouvi-nos.
Jesus, manso e humilde de coração, atendei-nos.
Do desejo de ser estimado, livrai-me, Senhor!
Do desejo de ser amado, livrai-me, Senhor!
Do desejo de ser buscado, livrai-me, Senhor!
Do desejo de ser louvado, livrai-me, Senhor!
Do desejo de ser honrado, livrai-me, Senhor!
Do desejo de ser preferido, livrai-me, Senhor!
Do desejo de ser consultado, livrai-me, Senhor!
Do desejo de ser aprovado, livrai-me, Senhor!
Do desejo de ser elogiado, livrai-me, Senhor!
Do temor de ser humilhado, livrai-me, Senhor!
Do temor de ser desprezado, livrai-me, Senhor!
Do temor de ser rechaçado, livrai-me, Senhor!
Do temor de ser caluniado, livrai-me, Senhor!
Do temor de ser esquecido, livrai-me, Senhor!
Do temor de ser ridicularizado, livrai-me, Senhor!
Do temor de ser debochado, livrai-me, Senhor!
Do temor de ser injuriado, livrai-me, Senhor!
Ó Maria, Mãe dos humildes, rogai por mim!
São José, protetor das almas humildes, rogai por mim!
São Miguel, que fostes o primeiro a combater o orgulho, rogai por mim!
Todos os santos justificados pela humildade, roguem por mim!
Oração. Ó Jesus, cujo primeiro ensinamento foi este: ‘Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração’, ensinai-me a ser humilde de coração como Vós”.
←b) Colocar os olhos em Jesus Cristo, modelo de humildade
Jesus Cristo nos deixou exemplos sublimes de humildade, eficacíssimos para nos mover a praticar esta grande virtude, apesar de todas as resistências de nosso amor próprio desordenado. Nosso Senhor mesmo pede que tenhamos os olhos nele: “Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração” (S. Mateus XI, 29).
A vida de Nosso Senhor pode ser dividida em quatro etapas e, em todas elas, a humildade brilha com caracteres impressionantes:
←1) Na sua vida oculta:
a) Antes de nascer: se aniquilou no ventre de Maria; se submeteu a um decreto caprichoso de César; à pobreza; à ingratidão dos homens (“e os seus não o receberam”)...
b) Em seu nascimento: pobre, desconhecido, de noite, num presépio, com pastores e animais...
c) Em Nazaré: vida escondida, trabalhando manualmente, pobre aldeão, sem estudos em universidades, sem deixar brilhar um só raio de sua divindade, obedecendo São José e Nosso Senhora, talvez até mesmo a um patrão depois da morte de São José...
Motivos abundantes para fazer com que morramos de vergonha por nosso orgulho.
←2) Em sua vida pública:
a) Escolhe seus discípulos entre os mais simples: pescadores e um publicano!
b) Busca e procura converter não só ricos como Lázaro e José de Arimatéia, mas também os pobres, pecadores, afligidos, as crianças, os pouco favorecidos.
c) Vive pobremente, prega com simplicidade, usa figuras e comparações humildes ao alcance do povo, não busca chamar a atenção...
d) Faz milagres para provar sua missão divina, mas sem qualquer ostentação, exige silêncio, foge quando querem fazê-lo rei...
e) Inculca continuamente a humildade: a parábola do fariseu e do publicano, a simplicidade da pomba, a pureza das crianças, “Não busco minha própria glória”, “Não vim ser servido, mas servir”.
"Ecce Homo de Juan De Juni (1560)"
←3) Na sua paixão:
a) Um triunfo tão simples no domingo de Ramos, com um pobre burrinho, com ramos de oliveira, mantos que se estendem a seus passos, povo humilde que o aclama, os fariseus que protestam...
b) Lava os pés dos discípulos, inclusive os de Judas! É traído no Getsemani: “Amigo, a que viestes?”, amarrado como um malfeitor perigoso, abandonado por seus discípulos...
c) Esbofeteado, ridicularizado, insultado, escarrado, açoitado, coroado de espinhos, vestido de branco como um louco, Barrabás lhe é preferido...
d) Na cruz: blasfêmias, risadas: “Pois não era o Filho de Deus?”. Podia ter feito a terra engoli-los, mas aceita o espantoso fracasso humano...
←4) Na Eucaristia:
a) À mercê da vontade de seus ministros, exposto, contido no sacrário, visitado, esquecido...
b) Completamente escondido: na cruz ainda se deixava ver na sua humanidade...
c) Falta de respeito, afrontas, sacrilégios, profanações horríveis, sacerdotes que não tomam cuidado com as partículas que se desprendem das hóstias e mesmo com hóstias inteiras, fiéis que vêem a hóstia como um pão qualquer...
Sem dúvida, a consideração frequente destes sublimes exemplos de humildade que nosso divino Mestre nos deu tem enorme eficácia para conduzir-nos até a prática heroica desta virtude fundamental.
Os santos não ousavam sonhar com grandezas e triunfos humanos vendo seu Deus tão humilhado. Uma alma que deseja verdadeiramente santificar-se deve ver, definitivamente, o seu nada e começar a praticar a verdadeira humildade de coração, seguindo Nosso Senhor: “Quem quiser vir depois de mim, renegue-se a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e me siga” (S. Lucas IX, 23).
←c) Imitar Nossa Senhora, Rainha dos humildes
Depois de Jesus, Nossa Senhora é o modelo mais sublime de humildade. Sempre viveu na atitude de uma pobre escrava do Senhor. Raramente fala, não chama a atenção em nada, se dedica às tarefas próprias de uma mulher na pobre casa de Nazaré, aparece no Calvário como mãe do grande fracassado, vive escondida e desconhecida sob os cuidados de São João depois da ascensão de Nosso Senhor, não faz qualquer milagre, não se sabe exatamente onde morreu...
Sob seu olhar maternal devemos praticar a humildade de coração para com Deus, para com nosso próximo e para conosco.
Para com Deus, submetendo-nos a Ele e adorando-o sempre, agradecendo-o por tudo o que temos, trazendo sem cessar em nosso espírito que viemos do nada, do limo da terra, que sozinhos não podemos nada e dependemos absolutamente de Deus.
Por isso, nossa origem mais ou menos nobre ou importante neste mundo não tem valor algum, vindo do limo da terra. Pesar nossas qualidades é uma perda de tempo: tudo o que somos e temos vem de Deus e podemos perder tudo do dia para a noite. O orgulho é uma grande mentira e Santa Teresa de Ávila dizia que a humildade é andar na verdade (Moradas sextas 10, 7).
Para com o próximo, admirando nele, sem inveja ou ciúmes, os dons naturais e sobrenaturais que Deus lhe deu, não observando intencionalmente seus defeitos, desculpando suas faltas com caridade, salvando ao menos a boa intenção e considerando-nos inferiores a todos. As incontáveis vezes nas quais não aproveitamos as graças que Deus nos deu são motivos mais que suficientes para que cada um de nós se tome verdadeiramente como o último dos pecadores, “o pecador por excelência”, como dizia o publicano em sua oração. Qualquer outra pessoa teria sido mais fiel com as graças que temos recebido.
Finalmente, para conosco, amando nossa miséria, nunca esquecendo que, se cometemos um só pecado mortal, fomos resgatados do inferno, éramos prisioneiros do demônio. Nunca nos humilharemos o suficiente. Aceitemos as ingratidões, o esquecimento, o desprezo da parte dos outros. Nunca falemos de nós mesmos, nem bem, nem mal. Se falarmos mal existe o perigo de hipocrisia. Somente os santos sabem fazê-lo bem. Se falarmos bem, existe o perigo da vaidade e soa mal diante de quem nos ouve. A melhor coisa a fazer é calar, como se não existíssemos no mundo.
E assim, quanto mais uma alma subirá até Deus pela prática das boas obras e pela oração, tão mais estável estará pelo profundo fundamento da humildade, referindo a Deus tudo o que é, tem e recebe.
A humildade é andar na verdade, e a verdade nos libertará.
Para citar este texto:
"Uma parábola sobre o correto juízo de si mesmo: o fariseu e o publicano"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/religiao/juizodesimesmo/
Online, 21/12/2024 às 13:04:05h