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Ilha e Utopia
Orlando Fedeli
A História demonstra que é sobretudo nas épocas de crise espiritual e social que os homens criam utopias e sonham com o milênio. Os tempos de fé e os povos de grandes certezas desconhecem as utopias. Nem na Idade Média nem na Espanha, por exemplo, se encontram autores de obras utópicas. Bastou, porém, que a Idade Média vacilasse em suas certezas para que se multiplicassem as seitas que esperavam a realização de um Reino de Deus na terra. E quando a Idade Média ruiu e a Europa mergulhou nas dúvidas do racionalismo, Thomas Morus redigiu a "Utopia". Quando a Espanha perdeu a fé, surgiu nela o maior partido anarquista da história.
Por que a fé católica não admite nem a utopia nem o milenarismo?
É a Fé que permite ao homem suportar as cruzes da vida neste vale de lágrimas. É a fé que dá o verdadeiro sentido de nossa vida, impedindo que o homem se revolte por ter sido exilado do Paraíso. Em sentido oposto, são a falta de fé e a recusa em aceitar a cruz que levam o homem a se rebelar contra as misérias da vida do exílio.
Os racionalistas pretendem eliminar todo o sofrimento do mundo - isto é, banir a cruz - graças à ciência e à técnica. Julgam que o progresso científico permitirá criar um dia uma sociedade sem pobres, sem doenças, sem misérias - quiçá sem morte.
Outros põem sua esperança de retornar à vida paradisíaca em uma intervenção de Deus na História. Julgam, e esperam, que Cristo retornará para impor de modo mágico um reino de felicidade absoluta neste mundo, que duraria mil anos. Seria o milênio. Esquecem-se das palavras de Cristo: "Meu Reino não é deste mundo" (Jo 18,36).
Utópicos e milenaristas recusam-se a aceitar a realidade em que vivemos após a expulsão do Éden. Detestam o aqui e o agora, fugindo, através do sonho, para um mundo irreal.
Essa "fuga" é sempre uma reação contra a impossibilidade em mudar a sociedade real, que acabam identificando com o mal. Para eles, as mudanças possíveis são sempre insuficientes, pois desejam o impossível, como por exemplo, acabar com a morte, com a pobreza. Daí o rancor e o pessimismo que todo utópico e toda seita milenarista nutrem para com a sociedade na qual estão inseridos.
Isolar-se no sonho ou no deserto, fugir da sociedade maldita, são constantes nesses movimentos. Por isso é que existe uma relação entre o espírito utópico e milenarista e a ilha.
Todas as utopias - a de Morus é o exemplo clássico - sonharam com a ilha salvadora que impede a contaminação dos eleitos pelos malefícios da sociedade real.
Na ilha da Utopia de Morus, na Nova Atlântida de Francis Bacon, no Shangri-là de James Hilton, a sociedade sonhada é simetricamente oposta à odiada sociedade concreta.
Se esta é hierárquica, a utopia é igualitária. Se a sociedade viva é imoral, o milênio é de "eleitos" imaculados, seres angelizados. Contra a rigidez das leis, o milênio é libertário. Contra o trabalho árduo, a utopia e o milênio sonham com a fartura ociosa.
Numa época vazia de certezas como a nossa, é natural que surjam por toda a parte sonhos utópicos e esperanças delirantes de reinos milenaristas. A Nicarágua, por exemplo, é a nova embalagem da mofada, enrugada e invendável utopia marxista. A Teologia da Libertação é, na verdade, uma teologia milenarista, que espera levar o povo à "terra prometida" através - entre outras coisas - da Reforma Agrária socialista.
O sonho é tanto mais perigoso, quanto mais ele parece realizável. Utópicos e milenaristas tornam-se mais nocivos quando julgam que, organizados, podem impor a realização de seus delírios. Assim, o sonho milenarista de Hitler trouxe para o mundo a hecatombe da guerra e os horrores dos campos de concentração. E os sonhos utópicos de Marx criaram a tirania e a miséria, estendendo o Gulag soviético desde Havana até o Vietnã.
Porque, como bem observa Karl Popper em A sociedade aberta e seus inimigos: "A tentativa de trazer o céu para a terra, invariavelmente produz o inferno".
Publicado no Jornal Veritas no 8 - abril de 1986 - ano2
Para citar este texto:
"Ilha e Utopia"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/religiao/ilhautopia/
Online, 21/11/2024 às 09:06:25h