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A Assunção de Maria Santíssima e a união das vidas ativa e contemplativa
Marcos Bonelli
“Maria escolheu a melhor parte”.
(São Lucas X, 42)
Introdução
Há muito tempo que os autores católicos se perguntam por que a missa da festa da Assunção de Nossa Senhora possui um evangelho tão alheio ao fato da Assunção, que nós festejamos cada ano no dia 15 de agosto.
Há um célebre sermão de Santo Anselmo (IX homilia) a respeito desta intrigante escolha.
Com efeito, este evangelho nos conta uma cena que se passou em Betânia, entre Nosso Senhor, Marta e sua irmã Maria.
Parece-nos que a explicação deva ser buscada no gosto muito grande e duradouro que a literatura ascética tem pelas adaptações metafóricas da Sagrada Escritura, ou seja, pelo uso do sentido acomodatício.
A irmã de Marta, em contemplação aos pés de Jesus, simboliza, de acordo com Santo Agostinho (Sermão 27, Sermão 179), a eterna visão da vida futura.
No dia 15 de agosto a Igreja comemora a entrada da Mãe de Deus na vida eterna, o dom desta vida em um grau eminente, recusado a outras criaturas.
Esta privilegiada se chama Maria.
O que mais é necessário para que esta cena ocorrida em Betânia seja aplicada à festa da Assunção? Ainda que não se fale de Nossa Senhora nesta passagem, quem não vê que ela é figurada aqui?
O texto deste Evangelho nos dá matéria para belas aplicações, que poderão ser feitas a partir de uma meditação a respeito dele. É o que tentaremos fazer neste artigo, considerando três aspectos:
1) Marta, ou a vida presente;
2) A irmã de Marta, ou a vida futura;
3) Maria, a Mãe de Jesus, ou a passagem de uma vida à outra e a união das duas vidas.
1) Marta, ou a vida presente
“Marta, Marta, afadigas-te e andas inquieta com muitas coisas” (São Lucas X, 41).
A vida presente é uma sequência de constantes e múltiplos embaraços. Isto é o que a caracteriza.
Tomemos como exemplo uma alma toda cheia de aspirações elevadas e puras, que deseja sinceramente, como Marta, servir a Deus. Coloquemos diante de nós, usando nossa imaginação, uma pessoa toda fervorosa, um católico generoso.
De quantas fraquezas ele não está cheio, de inconstâncias, e quantas vezes estas suas misérias já não afrontaram as virtudes que ele deseja alcançar, lhe causando derrotas na vida católica!
Muitos dos católicos fervorosos tiveram no passado uma vida carregada de faltas e este passado lhes traz, algumas vezes, lembranças carregadas de obscuridade, bem como o temor quanto à perseverança futura.
“Conseguirei vencer tal pecado, perseverar na prática de uma vida católica?”
Em torno destes mesmos católicos fervorosos encontramos, em casa ou em outros membros de sua família, ansiedades cruéis causadas pela má conduta, pela irreligião ou pelo perigo espiritual de um esposo ou de uma esposa, de um filho ou de uma filha, de um pai ou de uma mãe, de um parente próximo.
Finalmente, nas relações sociais que ela tem, na sociedade em geral, quantas preocupações lhe dão a busca pelos interesses de Deus! Que católico devoto nunca tremeu pelos seus inferiores, desejando que eles fossem bons e fervorosos? Ou então por aqueles que estão acima dele e aos quais ele deve responder, esperando que eles fossem mais zelosos, esforçados, tomados por um desinteresse perfeito?
Ele se preocupa pelos seus iguais, porque gostaria de vê-los tomados de aspirações nobres e elevadas. Mais ainda: quantos projetos luminosos, capazes de fazer tanto bem, mas que são frequentemente impedidos, frustrados!
No meio destas penas todas, certamente estas almas generosas ficam inflamadas por um desejo imenso e elevadas por uma grande esperança, mas são também rasgadas por amargas desilusões, ficam tristes e abatidas pela visão que têm de suas fraquezas.
Todas estas coisas se dão nas almas grandes. O que dizer, então, das almas que nutrem desejos de coisas medíocres, ligadas aos bens deste mundo, ao sucesso, ao dinheiro, às amizades humanas, etc?
Estes escravos encontram inúmeras preocupações a cada passo que dão.
O Padre Leonel Franca nos dá um exemplo instrutivo no seu livro “A Psicologia da Fé”, ao nos apresentar o fundo da alma de Marcellin Berthelot, amigo de Ernest Renan e um destes racionalistas do século XIX que diante do mundo aparentavam ponderação e bom senso:
“Vede Berthelot, que saudara na ciência a redentora do homem e proclamara o mundo sem mistérios; interrogai-o sobre a sua vida íntima e sobre a paz interior de sua alma. ‘Minha vida cheia de dúvidas e irreparáveis eventualidades deixou-me uma impressão de tristeza e inquietude que me acompanharam em todas as condições de minha existência... À medida que se me desenvolvia a consciência pessoal, cresciam as minhas incertezas. Eis porque procurei sempre um refúgio na ação: para lutar contra as minhas desesperanças’. Dúvidas, inquietudes, tristezas, desesperos irremediáveis, dilacerações íntimas indizíveis – eis o triste balanço de uma vida vazia de eternidade” (Padre Leonel Franca, A Psicologia da Fé, Editora Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 1937, 3ª. edição, pág. 206-207).
2) Maria, irmã de Marta, ou a vida futura
“Maria escolheu a melhor parte, que lhe não será tirada”.
Às atividades cheias de inquietações do presente sucederá a calma serenidade da vida futura.
Agora estamos no mar agitado. Depois estaremos no litoral firme.
Agora existe mobilidade, furacão e tempestade. No Céu teremos o doce sol eterno, a estabilidade perpétua.
Agora existe a rivalidade, a luta e o desacordo, mas no Paraíso haverá uma harmoniosa concordância entre todos.
Aqui temos os incômodos das criaturas, mas depois teremos a felicidade do Criador.
Teremos uma vida feliz aos pés de Nosso Senhor, de nosso Salvador. Ele é o autor de nossa salvação e é Ele que a consuma. A vista de nosso Divino Benfeitor causará em nós um reconhecimento que aumentará nossa felicidade.
Nos alegraremos de possuir a felicidade por Jesus Cristo e junto dele.
Eis aí o que Deus nos promete. Enquanto estamos no tempo que passa devemos elevar nosso olhar em direção da eternidade que não passa.
Vivamos, trabalhemos, soframos nos lembrando que teremos paz no Céu. Um dia soará a hora na qual possuiremos um patrimônio divino. Ela tocará mais cedo e mais certamente na medida em que tivermos em nós o fogo da caridade divina animando nossos sacrifícios:
“Jacó, pois, serviu sete anos por Raquel; e estes lhe pareceram poucos dias pela grandeza do amor (que lhe tinha)” (Gênesis XXIX, 20).
“Como Deus é bom por ter colocado nesta pequena vida de um instante as lutas e os trabalhos; e por ter reservado para a vida eterna as coroas e as recompensas dos méritos!” (São Beda, o Venerável, XVIII sermão sobre os santos).
Ajudemo-nos com o desejo ardente do Céu.
3. Maria, Mãe de Jesus, ou a passagem de uma vida à outra e a união das duas vidas
Marta terminará tendo suas preocupações retiradas. A contemplação de Maria permanece. Passaremos das inquietações de Marta para a deliciosa visão de Maria.
Mas que passagem, que trânsito pode ser comparado ao da Santíssima Virgem?
De uma vida que foi um martírio ela se vê elevada ao cume da glória celeste, tendo tudo abaixo de si, salvo Deus, salvo Jesus Cristo!
Quem será capaz de medir a distância que separa os sofrimentos mais profundos da maior felicidade do Céu?
Esta distância foi percorrida por Nossa Senhora num instante, e um oceano de felicidade entrou em sua alma!
Ao mesmo tempo, esta passagem para uma vida feliz no Céu foi o fim, a confirmação, a conclusão do que Ela já havia começado a ter nesta vida.
As preocupações que atravessaram a existência de Nossa Senhora não puderam abalar a serenidade de sua alma fixada em Deus. Sua fé, sua esperança e sua caridade lhe davam, mesmo no meio de provações incomparáveis, as alegrias mais puras.
Diante deste espetáculo nós devemos, como filhos devotos de tão luminosa Mãe, apresentar-lhe nossa admiração e felicidade por ela ter sido elevada tão alto no Céu para nosso bem.
Mas, depois de conhecê-la e de amá-la um pouco mais, devemos imitá-la.
Devemos levar, seguindo seus passos, uma vida sobrenatural que associa o mérito das provações com a felicidade antecipada da eternidade.
Peçamos à Santíssima Virgem a graça de aceitar corajosamente a luta que Deus nos concede agora, e de reservar em nosso coração um lugar onde as preocupações não tenham acesso, porque somente Deus reina alí, conhecido pela fé, esperado, amado.
Podemos ter inquietações nas nossas paixões, naquela parte sensitiva da alma na qual os demônios podem fazer uma confusão contínua, principalmente em tempos de desolação e de obscuridade. Mas a união de nossa inteligência e de nossa vontade àquelas coisas que Deus reserva para nós não deixará de nos dar aquela paz que somente Deus, e não o mundo, pode nos dar.
Sumens illud Ave,
Gabrielis ore,
Funda nos in pace
Mutans Evae nomen.
Ó tu que ouviste da boca
Do anjo a saudação;
Dá-nos a paz e quietação;
E o nome da Eva troca.
Para citar este texto:
"A Assunção de Maria Santíssima e a união das vidas ativa e contemplativa"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/religiao/a-assuncao-de-maria-santissima-e-a-uniao-das-vidas-ativa-e-contemplativa/
Online, 21/11/2024 às 09:01:24h