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Carta aberta da Associação Cultural Montfort aos digníssimos senadores da República Federativa do Brasil
Orlando Fedeli
CARTA ABERTA DA ASSOCIAÇÃO CULTURAL MONTFORT AOS DIGNÍSSIMOS SENADORES DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASILSão Paulo, 4 de setembro de 2.004.
Exmos. Senhores Senadores da República,
saudações cordiais!
A Associação Cultural Montfort vem respeitosamente à presença dos Ilustres Senadores da República, a fim de tratar de um tema imensamente grave, que é o da possível aprovação de utilização de embriões humanos, para fins terapêuticos.
Os Senhores Bispos do Brasil dirigiram, recentemente, a Vossas Excelências uma carta, datada de 26 de Junho p.p., versando sobre o substitutivo de projeto de lei que permitiria o uso de células-tronco provenientes de embriões não utilizados em fertilização in-vitro. Nessa carta, suas Excelências, os Ilustres membros do Episcopado brasileiro, solicitavam ao Senado da República, um estudo mais longo e aprofundado, antes da aprovação desse projeto.
Infelizmente, em agosto de 2.004, a Comissão de Educação aprovou um substitutivo desse projeto, com solicitação de urgência, o que dispensa o estudo em outras comissões regulamentares, e leva esse substitutivo diretamente à votação dos ilustres componentes do Senado Nacional.
Há, pois, o risco de o projeto substitutivo de matéria tão grave e polêmica ser aprovado, antes de se terem estudado mais convenientemente os profundos problemas éticos que esse tema envolve. E isso é tanto pior pelo fato de que problemas gravíssimos de bioética humana virem nele misturadas com a questão dos transgênicos. O que dificulta a compreensão do substitutivo, por confundir matérias políticas heterogêneas.
Preocupados, com as conseqüências terríveis que a aprovação desse substitutivo envolve, os Senhores Bispos do Brasil, em obediência a seu múnus pastoral de zelar pela ordem natural e pela lei de Deus, envolvidas nessa questão bioética, foram respeitosamente à presença dos Senhores Senadores da República, fazendo considerações muito pertinentes a matéria tão grave.
A Associação Cultural Montfort, constituída por cidadãos brasileiros e católicos, se sente no dever de vir a público, para dar seu total apoio ao que disse a Presidência da CNBB, nessa matéria moral sumamente importante.
Reconhecendo, evidentemente, a autoridade legislativa do Ilustre Senado e do Congresso Nacional, queremos lembrar que a Igreja sempre se manteve fiel ao mandato divino de zelar para que a lei natural, consubstanciada nos dez mandamentos da lei de Deus, constitua a base de toda lei positiva legítima. Assim, por exemplo, durante o regime criminoso de Hitler, os Bispos da Alemanha, no cumprimento de seu dever apostólico, e com risco de suas vidas, se manifestaram contra as leis de eugenia racial e de eutanásia postas em vigor pelo execrando regime nazista, e condenaram, pela palavra de Von Gallen, Exmo. Arcebispo de Müsnter, o morticínio de doentes mentais, promovido pelo tirano nacional-socialista.
Nessas questões de bioética todo cuidado deve ser levado em conta, para evitar que, aprovado um princípio mal redigido, dele se tirem conseqüências nefastas. Porque, cedendo num princípio moral, necessariamente dele decorrerão efeitos que, inicialmente, não se quereriam aprovar. Num dique, onde passa uma gota de água, passará depois, com o tempo, um filete, e, finalmente, o oceano. Nosso boiadeiro caipira, em sua sabedoria natural e viva, formulou esse mesmo princípio, ao dizer, pitorescamente, que, “onde passa um boi, passará uma boiada”.
Importa, pois, resguardar firmemente os princípios éticos do direito natural, aliás lapidarmente reconhecidos em nossa Constituição, a qual, além de elencar o direito à vida como o primeiro dos direitos invioláveis (art. 5o., caput), afirma:
“Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida... além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Esse artigo 227 da Constituição Federal de 1988 foi complementado pelo ECA – (Estatutos da Criança e Adolescente – Lei 8.069 de 1990).
Ora, o inciso II do art. 225, da CF/88 foi Regulamentado pela LEI 8.974 , de 5 de janeiro de 1995. Nesta Lei, consta no seu art. 13 a determinação de que constituem crimes: - inc I – a manipulação genética de células germinais humanas, II – a intervenção em material genético humano “in vivo”, III – a produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servirem como material biológico disponível, IV – a intervenção “in vivo” em material genético de animais, V – a liberação ou o descarte no meio ambiente de OGM (organismo geneticamente modificado) em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, que é ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia).
Tudo isso não só não é levado em conta pelo substitutivo ora em pauta, mas se quer instituir o oposto.
Pela atual Constituição brasileira, os tratados internacionais que tratam de direitos humanos devem ser respeitados como se fossem parte do texto constitucional.
Como bem lembrou o conhecido jurista Yves Gandra Martins, em artigo recentemente publicado na Folha de São Paulo, nosso país assinou o chamado Pacto de São José da Costa Rica, tratado internacional sobre direitos humanos. E, nesse tratado, está expressamente dito que a vida principia na concepção. Portanto, o substitutivo em pauta não pode ser aprovado por ser inconstitucional.
Portanto, sendo a vida um direito natural da pessoa humana, garantido pela Lei Magna brasileira desde o instante da concepção, e considerando que o óvulo fecundado, o embrião humano, já é uma pessoa humana, dotada de forma racional, portanto dotada de alma, não existe o direito de se usar o material humano dessa pessoa, sem o seu consentimento. Fazer isso constitui grave atentado ao mais fundamental dos direitos humanos. Ainda mais que tal uso acarreta dano letal à vida, como ocorre no caso da retirada de células-tronco do embrião.
Foi o que manifestou o Santo Padre o Papa João Paulo II, gloriosamente reinante, ainda recentemente, em agosto de 2.004, ao condenar a lei britânica permitindo a clonagem de embriões humanos a fim de aproveitar células tronco, com fins terapêuticos.
O fim bom — curar certas doenças — não legitima um meio anti-ético e imoral: a utilização de células de outro ser humano, sem sua licença e, pior ainda, disso decorrendo a sua morte.
A Pontifícia Academia para a Vida examinou, nesse mesmo documento, três questões envolvendo problemas bioéticos, que julgamos pertinente reproduzir aqui:
O primeiro problema ético, que é fundamental, pode ser formulado assim: "É moralmente lícito produzir e/ou utilizar embriões humanos vivos para a preparação de ES” [células-tronco, Embryo Stem cells]"?
"A resposta é negativa", pelas seguintes razões:
1. Partindo duma completa análise biológica, o embrião humano vivo é, a partir da fusão dos gametas, um sujeito humano com uma identidade bem definida, que começa, a partir daquele instante, o seu próprio desenvolvimento coordenado, contínuo e gradual, de tal forma que, em nenhuma etapa posterior, se pode considerar como um simples aglomerado de células.
2. Conseqüentemente, como "indivíduo humano", tem direito à sua própria vida; e, por isso, toda a intervenção que não seja em benefício do próprio embrião, constitui um ato que viola este direito. A teologia moral sempre ensinou que, no caso do "jus certum tertii", o sistema do probabilismo não é aplicável.
3. Assim, a ablação da massa celular interna (ICM) do blastócito [técnica utilizada para obtenção de células-tronco embrionadas], que lesiona grave e irremediavelmente o embrião humano, interrompendo a sua evolução, é um ato gravemente imoral e, portanto, gravemente ilícito.
4. Nenhum fim considerado bom, como seja o uso das células estaminais [ou seja, de células-tronco] obtidas a partir deles para a preparação de outras células diferenciadas em ordem a procedimentos terapêuticos há muito esperados, pode justificar tal intervenção. Um fim bom não faz boa uma ação que, em si mesma, é má.
5. Para um católico, tal posição está confirmada pelo Magistério explícito da Igreja que, na encíclica Evangelium vitae - referindo-se já à Instrução Donum vitae da Congregação para a Doutrina da Fé -, afirma: "A Igreja sempre ensinou - e ensina - que tem de ser garantido ao fruto da geração humana, desde o primeiro instante da sua existência, o respeito incondicional que é moralmente devido ao ser humano na sua totalidade e unidade corporal e espiritual: "O ser humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa desde a sua concepção e, por isso, desde esse mesmo momento, devem-lhe ser reconhecidos os direitos da pessoa, entre os quais, e primeiro de todos, o direito inviolável de cada ser humano inocente à vida" (n. 60)[i][xvi Negrito e sublinhado é nosso).
O segundo problema ético pode ser formulado assim: "É moralmente lícito efetuar a chamada "clonação terapêutica" através da produção de embriões humanos clonados e a sua posterior destruição para a produção de ES [células-tronco]"?
"A resposta é negativa", pela razão seguinte:
Todo o tipo de clonação terapêutica, que implique a produção de embriões humanos e a posterior destruição dos mesmos com o fim de obter as suas células estaminais, é ilícita; cai-se no mesmo problema ético anteriormente exposto, que não pode ter senão uma resposta negativa[ii][xvii].
O terceiro problema ético pode-se formular assim: "É moralmente lícito utilizar as ES [células-tronco], e as células diferenciadas delas obtidas, que sejam eventualmente fornecidas por outros pesquisadores ou encontradas à venda"?
"A resposta é negativa", porque, para além de compartilhar, formalmente ou não, a intenção moralmente ilícita do agente principal, no caso em exame dá-se a cooperação material próxima na produção e manipulação de embriões humanos por parte do produtor ou fornecedor.
Em conclusão, resultam evidentes a seriedade e a gravidade do problema ético levantado pela vontade de estender ao campo de pesquisa humana a produção e/ou o uso de embriões humanos, mesmo por motivos humanitários”
Como se vê, a Pontifícia Academia para a Vida condena como contrário à moral utilizar embriões humanos; efetuar a chamada clonação terapêutica, e mesmo utilizar células troncos obtidas de embriões.
Ainda no domingo, dia 15 de agosto de 2.004, em seu sermão em Lourdes, o Papa João Paulo II fez um apelo aos católicos para que ajam « pela vida, toda a vida, que ela seja respeitada desde a concepção até seu termo natural », reiterando com essas palavras a oposição da Igreja ao aborto, à eutanásia, a toda forma de manipulação do embrião.
E é o que estamos fazendo, por meio desta carta e do manifesto que lançaremos contra o massacre de embriões humanos que esse substitutivo, — misturando transgênicos e embriões — quer aprovar.
Ademais, usar células-tronco provenientes de embriões é tanto menos necessário, quanto se sabe que é possível obter células tronco de seres humanos adultos, e sem ser preciso tirar-lhes a vida.
Ora, esse mesmo documento da Pontifícia Academia para a Vida, citado mais acima, mostra que a limitação de células-tronco provenientes de adultos seria dependente apenas da informação genética, e essa limitação vale também para as células tronco provenientes de embriões.
É claro que o atual substitutivo que vai ser submetido à votação dos Exmos. Senadores de nossa República faz várias restrições e proibições de cunho ético. Porém, ele embora preveja sanções penais contra outros possíveis abusos em matéria bioética, e até proíba a clonagem para fins reprodutivos, permite a clonagem para fins terapêuticos, coisa que o Papa acaba de condenar. Ora, a própria preocupação do legislador que redigiu o substitutivo que será proposto ao Senado, demonstra que ele mesmo previu que a aprovação de seu projeto de lei trará, necessária e logicamente, conseqüências outras que ele quer evitar, ainda que as vede e as penalize. Essas proibições prévias e antecipadas demonstram que evidentemente esse substitutivo é apenas um primeiro passo para aprovar posteriormente as coisas que agora se proíbem. São proibições temporárias, para obter votos, para fazer o furo no dique, e para que se permita abrir a brecha na cerca.
Julgamos, pois que a aprovação do substitutivo, que prevê e permite a utilização de células-tronco retiradas de óvulos humanos fecundados, isto é, de embriões, é inteiramente contra a lei de Deus, contra o direito natural, e contra a própria letra de nossa Carta Magna, que assegura a toda pessoa humana o direito à vida.
Permitam-nos ainda refutar um argumento que tem aparecido na mídia: que o Papa, sucessor de Pedro, e os Bispos da Igreja Católica, sucessores dos Apóstolos, teriam o direito de orientar e ordenar moralmente apenas os membros da Igreja Católica Apostólica Romana.
Esse argumento não procede. Se fosse assim, os Bispos só poderiam ordenar aos católicos alemães que se opusessem às leis nazistas. Isso não tem cabimento, porque as leis de eugenia e as leis racistas de Hitler violavam os direitos humanos, que não são coisa atinente apenas aos católicos, e sim a todos os homens, qualquer que seja a religião que professem, e que afetam mesmo os ateus. Todo homem tem o dever de se opor às leis que violem o direito natural.
Aliás, nessa questão, católicos e demais cristãos, e mesmo pessoas de religiões orientais, não cristãs, também consideram uma violação da lei natural o aborto, o uso de embriões e óvulos humanos fecundados. Todas essas pessoas, independentemente de suas crenças, certamente darão seu apoio às seguintes palavras da Pontifícia Academia pró Vida:
“Infelizmente, não faltam iniciativas científicas e legislativas com o objetivo da produção, mediante as ART, de embriões humanos a serem "usados" exclusivamente para fins de pesquisa e que coincide com a sua destruição transformando-os assim em objetos de laboratório, vítimas sacrificais predestinadas a serem imoladas no altar de um progresso científico que deve ser perseguido "custe o que custar" (COMUNICADO FINAL DA X ASSEMBLÉIA GERAL DA PONTIFÍCIA ACADEMIA PARA A VIDA" A dignidade da procriação humana e as tecnologias reprodutivas. Aspectos antropológicos e éticos" -- 16 de Março de 2004).
Finalmente queremos destacar que está se discutindo um princípio: o de que a vida humana é inviolável, e que ela deve ser respeitada desde o primeiro instante de sua concepção.
Mudando-se este princípio, todas as proibições erigidas pelo substitutivo em pauta poderão ser anuladas por uma votação simples. Portanto, o substitutivo não garante, de modo algum, que no futuro não se adotem novas medidas ainda mais ousadas contra a vida humana, coisa que é inadmissível quer pela lei de Deus, quer pela atual Constituição, quer pelos compromissos pétreos assumidos pelo Brasil em acordos internacionais.
Certos de contar com a atenção e a compreensão destas considerações, e desejando evitar que seja aprovada uma lei violadora da lei natural e dos direitos humanos fundamentais, solicitamos a Vossas Excelências que neguem aprovação a esse substitutivo, assim como a qualquer outro projeto que viole a lei de Deus e a ordem natural, particularmente em Bio-Genética.
Muito atenciosamente e rogando a Deus que abençoe a Vossas Excelências e a seus trabalhos parlamentares para a glória de Deus e bem do Brasil, nos subscrevemos.
In Corde Jesu , semper,
Orlando Fedeli.
Presidente da Associação Cultural Montfort
Para citar este texto:
"Carta aberta da Associação Cultural Montfort aos digníssimos senadores da República Federativa do Brasil"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/politica/carta_aos_senadores/
Online, 21/11/2024 às 10:17:51h