O Papa

Faltou caridade no debate contra os sedevacantistas?
Francis Mauro Rocha
 

Diante do embate atual que travamos contra a seita dos sedevacantistas, representados sobretudo pelas figuras do terraplanista Frei Tiago e do Controverso Caótico, muitos nos acusam de faltar com a caridade por conta do uso de invectivas contra os nossos adversários.

Na realidade, não vemos aí falta de caridade. As invectivas pessoais não são, como querem aqueles que nos criticam, necessariamente contra a caridade, pois a mesma caridade, muitas vezes exige, por causa do zelo pela verdade, que se usem tais invectivas. Que a invectiva seja católica, o Evangelho é prova disso. Nosso Senhor Jesus Cristo continuamente polemizou com os fariseus, escribas e doutores da lei, usando contra eles de invectivas santas, ao chamá-los de malditos, raça de víboras, hipócritas e filhos do diabo! “A caridade transcende tanto a invectiva como a doçura das palavras, ela "impera" tanto sobre uma como sobre a outra” (Trecho do artigo Polémique et Charité do padre Padre Victor-Alain Berto, na revista la Pensée Catholique n°45-46, de junho de 1956).

É importante ressaltar a contradição daqueles que nos criticam nesse ponto, pois são poucos, e mesmo quase nenhum, os que protestam contra a grande quantidade de impropérios que os sedevacantistas destilam contra a pessoa do Sumo Pontífice. Assim, pode ser expresso o pensamento desses sectários da seguinte forma: são válidos todos os impropérios desde que não sejam contra nossos idolatrados gurus!

Em nossa defesa, contra as acusações injustas dos sectários, traduzimos um texto bem esclarecedor de um dos maiores estudiosos atuais de São Tomás, o dominicano Jean-Pierre Torrell, que nos parece transmitir com bastante fidelidade a verve polemista do Anjo da Escola. Fica manifesto em seus escritos que o inigualável Doutor não era tão delicado e contido no trato com a pessoa dos seus adversários como se supõe.

Para introduzir o texto traduzido do francês sobre a verve polemista do Aquinate, revisitamos, como introdução, um trecho de um artigo muito importante para o nosso fundador, Professor Orlando Fedeli que também era acusado da suposta falta de caridade. O texto é de um conhecido polemista católico francês, o Padre Victor-Alain Berto, que foi conselheiro espiritual de Monsenhor Lefebvre:

“O senhor se escandaliza por encontrar invectivas numa publicação que se intitula católica. Isso acontece simplesmente, porque a invectiva é católica, prova disso está no Evangelho, provas disso são, não só os onze volumes de São Jerônimo na coleção do Migne, mas cem outros tomos da Patrologia. Portanto, a agressão não é, de si mesma, e em todos os casos, contrária à caridade. A caridade transcende tanto a invectiva como a doçura das palavras, ela "impera" tanto sobre uma como sobre a outra, conforme as circunstâncias. Será verdade que "o Evangelho só fala de caridade"? Que maravilha! eu me declaro de acordo com isso! Entretanto, ele contém expressões agressivas, o que nos leva a concluir que as invectivas, de si, não são contrárias à caridade do Evangelho. E quanto a uma caridade que não seja a do Evangelho, eu pouco me importo em não observá-la.

     Sustento, pois, absolutamente, meu direito de fazer invectivas; repilo absolutamente a reprimenda de faltar com a caridade, fundada apenas sobre o simples uso da invectiva; afirmo que essa crítica procede de um erro sobre a própria natureza da caridade. Certamente, pode-se faltar contra a caridade ao fazer uma invectiva e posso ter incorrido nessa desgraça. Mas pode-se também faltar com a caridade também na doçura e, condenar a invectiva em nome da caridade, não é conforme com a caridade tal como o Evangelho do muito doce e do muito terrível Senhor Jesus nos dá noção e nos mostra na prática” (para visitar o texto completo, procure em:

 https://www.montfort.org.br/bra/veritas/religiao/polemica-caridade/ )

 

A seguir o texto do dominicano Jean-Pierre Torrell

 

São Tomás, o polemista.

Em seus escritos polêmicos em favor da vida religiosa, Tomás se engaja e se mostra pessoalmente de maneira mais aparente do que em muitas outras obras; sentimos que ele foi atingido naquilo que lhe é mais caro: a vocação pela qual lutou em sua juventude. É por isso que essas obras estão entre aqueles em que melhor captamos o caráter passional de seu temperamento e nos permitem acrescentar alguns traços significativos ao seu retrato espiritual. Se temíamos que ele fosse muito tímido na conturbada situação da universidade, esses escritos não carecem nem de vigor, nem de firmeza e nem mesmo, como sublinha M.-M. Dufeil (1), de uma "ironia sarcástica (que) irrompe de vez em quando" no Contra impugnantes. Assim, à objeção de que não se pode pertencer a dois colégios ao mesmo tempo (o corpo dos mestres e o de uma família religiosa), Tomás responde que os cânones de modo algum proíbem essa dupla filiação, mas sim a filiação simultânea: não se pode ser, ao mesmo tempo, cônego de duas igrejas diferentes (2).

Se os escritos posteriores evitam esse tom, não são menos severos nem menos ásperos; a moderação do jovem mestre tem seus limites e, embora ele faça o possível para se conter nesse "diálogo sério e tenso" (H.-F. Dondaine), às vezes se deixa levar a ponto de julgar seus adversários: "Eles mentem completamente" (plane mentiuntur) (3). Todos se lembram também do conhecido final de De perfectione:

“Se alguém quiser escrever contra este trabalho, será muito agradável para mim (acceptissimum); de fato, a verdade nunca se manifesta melhor do que resistindo àqueles que a contradizem e refutando seu erro; como diz o livro de Provérbios: "O ferro é afiado pelo ferro, o homem é refinado pelo contato com o próximo" (4).

O final dos Contra retrahentes não é menos firme:

“Se alguém quiser contradizer este livro, não fique balbuciando na frente das crianças, mas escreva um livro e publique-o para que pessoas competentes possam julgar o que é verdadeiro e refutar o que é falso pela autoridade da verdade (5). »

Non coram pueris garriat (não fique balbuciando na frente das crianças): sem dúvida há aqui uma alusão aos alunos da faculdade de Artes, obviamente mais jovens que os estudantes de teologia, aos quais se tentava dissuadir de entrar nos frades dominicanos. Vale a pena insistir neste final: é o terceiro texto deste mesmo ano de 1271 que formula este convite à discussão em forma de desafio pessoal (6). Em um artigo já relatado, Edward Synan observou a abundância de metáforas emprestadas da cavalaria nos contextos mais inesperados. Acrescentam-se à documentação que recolheu estes desafios lançados ao adversário que fazem pensar, de fato, naqueles que os cavaleiros dirigiam entre si no momento de se engajar nos seus torneios.

Mas não basta dizer que Tomás pode lançar um desafio; ele é capaz de mostrar seu espanto, sua impaciência e até sua indignação quando os argumentos de seus adversários são muito inconsistentes ou não verificáveis. Isso não vale apenas para o jovem Tomás, aquele do Contra Impugnantes, mas para o homem que permaneceu até o fim de sua vida: em 1270-1271 já tinha mais de 45 anos. Basta reler algumas passagens para se convencer disso e ver um tipo de homem bem diferente do obeso plácido e majestoso popularizado pela iconografia atual.

Em resposta ao superior geral da Ordem, Jean de Verceil, que o questionou sobre as posições de Pierre de Tarentaise, que lhe haviam sido denunciadas como suspeitas, Tomás formula seu julgamento. Reconhece os pontos fracos do colega, mas também não tem medo de defendê-lo em termos mais claros: “O opositor faz uma calúnia, não entende o que está em questão". E um pouco mais adiante: "O que o opositor diz é calunioso e totalmente frívolo (7)».

Em relação a uma posição radical sobre o intelecto separado, ele se surpreende, por outro lado, que alguém possa se extraviar "tão imprudentemente" (8), e ele não tem medo de falar de "delírio" (insania) para qualificar a posição oposta (9). É especialmente no De imitate intellectus que a coleção desses traços de impaciência se torna mais abundante; o que é em parte explicado pelo calor da discussão e pelo caráter crucial do assunto, mas é justamente dado como um exemplo do que um "mestre polemista" é capaz (10).

É neste livro que Averróis é descrito como um depravator e até mesmo um perversor do pensamento de Aristóteles (11), mas pelo menos não se suspeita de sua inteligência. Por outro lado, Tomás duvida fortemente de seus adversários parisienses, a quem ele apostrofa duramente: “Aqueles que defendem essa posição devem confessar que não entendem nada de nada (confiteantur se nihil intelligere) e que nem são dignos de discutir com aqueles que atacam (12)”. Podemos passar por cima de outras amenidades deste tipo e voltar aqui para o final, que também é justamente célebre:

"Se alguém, gloriando-se de uma falsa ciência, pretende argumentar contra o que acabo de escrever, que não fique conversando nos cantos ou na frente de crianças (in angulis uel coram pueris) incapazes de julgar um assunto tão difícil, mas escreva contra esta obra - se  se atrever. Ele terá então que lidar não apenas comigo, que sou apenas o menor deles, mas com uma multidão de outros amantes da verdade, que serão capazes de resistir ao seu erro e vir em auxílio de sua ignorância (13)”.

Ainda que concordemos que essa polêmica não nos dá o melhor de Tomás, devemos reconhecer que o homem que fala assim não tem nada a ver com um intelectual tímido; ele está ciente de seu valor e não tem medo de enfrentar seu adversário. No máximo, ele talvez se aborreça, no fundo do coração, por não ter encontrado um adversário à sua medida. Mas o que também supomos é uma sensibilidade vibrante, que ele é obrigado a conter para que não irrompa com muita frequência, em uma discussão em que a paixão não deve obscurecer a clareza do argumento. Essas descobertas já seriam suficientes para destruir a lenda de um autor discreto que não fala por si e nunca se revela. Tomás não escreveu nenhuma Confissão, é verdade, mas suas obras falam dele muito mais do que se poderia pensar. E o que percebemos ao ler seus escritos é indiscutivelmente confirmado pela análise de sua escrita.

Há muito sabemos o que o estudo das caligrafias traz para o campo da história do pensamento tomista, ao nos permitir ver por quais hesitações Tomás passou antes de chegar a sua redação final (14). Não é isso que vai nos fazer parar por aqui, mas sim um aspecto demasiado negligenciado que este estudo também nos permite descobrir: uma melhor compreensão de que tipo de homem  foi Tomás. A caligrafia de Tomás é lendariamente difícil, mas não se pode dizer que ele não sabia escrever. O padre Gils, um indiscutível especialista em caligrafias, há muito demonstrou a futilidade desses lugares-comuns (15). Tomás simplesmente tinha uma escrita personalizada ao mais alto grau, que revela com força irrefutável o temperamento de seu autor.

As expressões que mais aparecem no estudo austero e fascinante de Gils são tão surpreendentes que se percebe que ele sentiu a necessidade de repeti-las e sustentá-las com centenas de exemplos. Tomas está “tenso e com pressa”; ele “gostaria de ir mais rápido”; “essa paciência”, de que ele precisaria para escrever corretamente, “Tomas não tem”. É só porque ele percebeu que “suas próprias formas eram muitas vezes mal interpretadas por seus próprios assistentes” que ele se esforça para ser mais claro.

"Com pressa", "cansado", "distraído", deixou em seu texto "lapsos", "cacografias" e "equívocos". Em seu esforço para compor, quando o assunto ou a palavra escapa, e ele repete o mesmo parágrafo até três vezes, "ele escreve o contrário do que pensa, esquece as palavras, comete anacolutos" e... nem sempre se corrige. Como não podemos dizer tudo, retenhamos este resumo final: “São Tomás é, portanto, um homem que se apressa. Ele se depara com as exigências da escrita. Ele constantemente experimenta suas próprias distrações, que o forçam a parar e voltar. Ele luta com a ordenação de seu pensamento e com os meios de expressá-lo. Ele é meticuloso e indiferente às inconsistências que seu irresistível impulso para frente o leva a cometer” (16).

Deve-se reconhecer que este retrato não se encaixa bem com a ideia de pensador atemporal que costumamos ter do "Doutor Comum" ou do "Anjo da Escola". Dir-se-á que, ainda que corresponda à realidade, isso, em última análise, pouco tem a ver com o seu pensamento que, pelo menos, está permanentemente fixado? Raciocinar dessa maneira seria desconsiderar as raízes históricas dessa doutrina, que é, no entanto, tão esclarecedora para sua compreensão exata. Não é o próprio Tomás que repete depois de Aristóteles: "Considerando as coisas em sua gênese, obtém-se uma compreensão perfeita delas" (17)? Não é apenas pelo andamento das sucessivas redações que devemos nos interessar por esse estudo, mas sim pelo que ainda se buscava em seu pensamento no momento de sua morte, e que tantos pontos de suas obras atestam. Há mais a ganhar do que a perder neste tipo de pesquisa.

Sem aprofundar aqui a questão de sua evolução intelectual, dificilmente seria correto, naquele que é venerado como santo, negligenciar demais a pessoa que ele foi e o modelo de vida cristã que encarnava. Inquestionavelmente, há continuidade entre o homem que escreve assim e aquele que desafia com tanta irreverência seus adversários ou se irrita com a inconsistência deles. Se conseguiu se expressar com tanta veemência, devemos imaginar a quantidade de continência virtuosa que deve ter sido usada no nascimento de obras mais contidas, nas quais seus traços de humor praticamente nunca transparecem. Por outro lado, a impaciência revelada nessas discrepâncias de linguagem dizem com eloquência que a espontaneidade com moderação que todos reconhecem em seu gênio foi, de fato, fruto de uma conquista. Meditando sobre o que não passa de uma simples observação, o discípulo de Tomás pôde perceber que ele não é apenas um mestre em pensar, mas em viver.

Jean-Pierre Torrell O.P.

Université de Fribourg (Suisse)

 

Texto traduzido do artigo: TORRELL, Jean-Pierre. “Séculiers et mendiants ou Thomas d'Aquin au naturel”. Revue des sciences religieuses, v. 67, n. 2, p. 19-40, 1993.

 

 

 

(1) M. -M. Dufeil, Evolution ou fixité, p. 471.

(2) Contra impugnantes 3, lignes 341-372, p. A 67.

(3) Ibid. 24, linha 238, p. A 162; gramaticalmente, seria sem dúvida possível traduzir: "Estão enganados", o que deixaria aos seus adversários o benefício da boa-fé, mas o contexto, que lembra a malevolência com que se procede em relação aos religiosos, dificilmente deixa dúvidas sobre a indignação de Tomás.

(4) De perf., cap. 30, pág. B 111, com citação de Prov. 27, 17.

(5) Contra retrahentes, cap. 17, pág. C74.

(6) Cf. o final de De unitate intellects, cap. 5, Leão., T. 43, pág. 314, linhas 434-441; Quodl. IV q.12 a.l [23], início da Responsio, onde Tomás utiliza um texto de Agostinho para lançar esse desafio.

(7) Resp. de 108 art., 16 et 74, Léon., t. 42, p. 282 et 290.

(8) Super III De anima, cap. 1, lin. 372-73 (Léon., t. 45/1, p. 207) : « Mirum autem est quomodo tam leuiter errauerunt. »

(9) De substantiis separatis 13, lignes 26-28 (Léon., t. 40, p. D 64) : « Adhuc in maiorem insaniam procedentes aestimant Deum nihil nisi se ipsum intellectu cognoscere. »

(10) Este é o título de um artigo de P. Glorieux, “Un maître polemiste: Thomas d'Aquin”, MSR 5 (1948) 153-174, ao qual nos remetemos com prazer para algumas informações adicionais sobre este ponto; Veja também Léon., Super lob, Introdução, t. 26, pág. 18*.

(11) De unitate intel. 2, linha 155; 5, linha 392: Leon. 43, pág. 302 e 314; isso é algo bem diferente de uma simples mudança de humor, Tomas há muito compreendeu até que ponto a interpretação de Averróis se opõe à sua e ele não pode "pensar nela sem raiva", cf. R.-A. Gauthier, Leon., T. 45/1, pág. 224*-225*, que compilou um arquivo impressionante sobre este assunto.

  (12) Ibid. 3, linhas 315-17, p. 306; Veja 5, linha. 397-400, pág. 314 onde Tomás confessa seu espanto ou melhor sua indignação por um filósofo cristão (não identificado de outra forma) ousar falar tam irreverenter da fé cristã.

(13) Ibid. 5, lignes 434-441, p. 314.

 

(14) Basta referirmo-nos a dois estudos magistrais: P.-M. Gils, “Textos não publicados de S. Thomas: As primeiras redações do Scriptum super Tertio Sententiarum”, RSPT 46 (1962) 445-462 e 609-628; LIBRA. Geiger, "Os escritos sucessivos de Contra Gentiles 1,53 do autógrafo", em São Tomás de Aquino hoje, "Research in Philosophy 6", Paris, 1963, p. 221-240.

(15) Não podemos recomendar seu estudo geral em que P.-M. Gils resume o que aprendeu com sua assídua frequência de mais de 40 anos da caligrafia de Tomás: “S. Thomas auteur”, Léon., t. 50, pág. 175-209.

(16) P.-M. Gils, Léon., t. 50, p. 176, 179, 195, 208-209.

(17) Cf. Aristóteles, Política I ii, l, ed. J. Aubonnet, Paris, 1960, p. 13; Vejo S. THOMAS, Sententia libri Politicorum, Leon., t. 48, pág. A 73, linhas 135-137: “In omnibus enim ita uidemus quod si quis inspiciat res secundum quod oriuntur ex suo principio, optime poterit in eis contemplari ueritatem. Selecionamos a tradução, por M.-D. Chenu, Theology as a science in the 19th century, Paris, 31957, p. 9.
 

    Para citar este texto:
"Faltou caridade no debate contra os sedevacantistas?"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/papa/caridadesedevac/
Online, 22/11/2024 às 06:40:30h