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Igreja
Paz, justiça, natureza: a nova trindade laica
Vittorio Messori
(Tradução nossa do original italiano, publicado no site http://www.totustuus.biz/users/rassegnastampa/)
Fonte: "Corriere della sera", 19 - 11 - 2003
Respondendo a uma pergunta sobre abusos sexuais do clero, o cardeal Joseph Ratzinger atingiu mais uma vez o cerne da questão: “O enfraquecimento moral de tantos cristãos, e até a própria crise da Igreja têm uma causa. E esta causa, falando claramente, é o enfraquecimento da fé. É impossível viver a moral católica se não estamos convictos dela, e de forma profunda, que Jesus Cristo é o Filho de Deus e que o evangelho contém o projeto divino para o homem».
Sem esta certeza, salientou Ratzinger, celibato, virgindade, tornam-se pesos intoleráveis, até prescrições absurdas e desumanas; e aqueles que, imprudentemente, assumiram tais deveres procuram qualquer subterfúgio e qualquer hipocrisia para deles esquivar-se. Mas, muitos outros aspectos da Igreja de hoje parecem deformados pelo desaparecimento da fé, como proclamado no Credo. Muitos missionários tendem a se transformar em assistentes sociais, em funcionários de organizações humanitárias, talvez até apóstolos de revoluções políticas. Por isso, freqüentemente silenciam quanto ao anúncio do evangelho como esperança de vida eterna, nada falam sobre a necessidade do batismo para participar dessa promessa. Chegamos ao ponto de desencorajar as conversões ao cristianismo, invertendo paradoxalmente o papel do missionário. Mas isto não acontece por alguma trama luciferina ou por falta de boa vontade que, realmente, é grande: mas sim por uma crise de fé, que transforma a difícil crença em Deus num projeto mais compreensível de solidariedade humana.
No meio da velha cristandade, em muitas ordens outrora fervorosas e gloriosas, a vida parece apagar-se numa rotina triste e cansativa, que não tem mais condições de atrair jovens candidatos. Antigas e grandes instituições religiosas correm o risco de findar bocejando. A «loucura» de seguir Jesus como pobres, obedientes, castos, não tem mais significado se aquele Jesus não é mais o Cristo crucificado e ressuscitado, ainda vivo, não passando de um sábio, um moralista da escola hebraica. Seria preciso, talvez, daquela “renúncia de si mesmo”, que é a vida de um convento ou do sacerdócio, para seguir um ensinamento que, no fundo, não é outro senão o de uma ética politicamente correta, feita do diálogo, da tolerância, do empenho à paz, dos direitos humanos? Teme-se que esteja em jogo o mesmo entusiasmo que caracteriza os novos grupos e os novos movimentos surgidos na Igreja nestas últimas décadas. O fervor, talvez barulhento, destes jovens está, cedo ou tarde, infiltrado da dúvida com a qual todo o cristão deve confrontar-se hoje: «Mas, em suma, será mesmo verdade? Este Nosso Senhor é de fato o Salvador e o Redentor e está nele a Verdade suprema? A Igreja católica é realmente o seu Corpo, como diz S. Paulo, e só nela se encontra a salvação plena? Paraíso, purgatório, inferno, ressurreição final dos mortos, são símbolos ou realidades? Como acreditar que a eucaristia não seja só o alimento de uma refeição fraterna, mas seja verdadeiramente a carne e o sangue do próprio Deus? Como convencer-se de que o Criador de um universo imenso tenha se encarnado num obscuro Galileu, para a salvação — qual? — daquele grão de areia que é o planeta Terra?» E daí seguir questionando. O primeiro problema da Igreja, hoje, é a recuperação da «credibilidade em crer».
Há uma norma que rege a vida do cristão: à diminuição da fé sempre corresponde o aumento do interesse pela ideologia social e política, por ser de aspecto «ético». Quanto mais cresce a dúvida sobre a verdade do Evangelho, mais cresce o moralismo. Não é um bom sinal que muitos ambientes cristãos se caracterizam hoje não pela fé na Trindade, mas na fé de uma tríade repetitiva como mágica: «Paz, justiça, respeito pela natureza». Ótimas coisas, naturalmente, porque inseridas numa perspectiva para unir a Terra ao Céu. No sentimental «amor ao homem» perde-se de vista a perspectiva cristã: o homem é, em geral, execrável, indigno de ajuda, não é amável em si mas, no fundo, só por amor daquele Jesus, graças ao qual somos todos irmãos.
Quando a fé diminui no invisível, é normal que se projete no visível. O social toma o lugar do sobrenatural. O empenho — concreto, verificável, gratificante — para melhorar a vida terrena, substitui o desejo de anunciar que esta vida terrena não é senão o lugar da prova e da preparação para a vida eterna. Não é por acaso que tantos cristãos de boa vontade abracem a fé secularizada — ontem o marxismo, hoje a ecologia ou o pacifismo — que substituam, ou parecem poder deixar de lado, a antiga fé, aquela fundamentada no «escândalo e loucura» do Evangelho. Deus, quem sabe se existe; em todo o caso, como termos certeza? O homem, pelo contrário, existe, e dele podemos constatar a existência e as necessidades: portanto, sigamos o seguro e atuemos no concreto, voltemos a ele a nossa necessidade de amar, de servir, de construir. Mas, neste desejo, embora generoso, se escurece a convicção de que a primeira, a mais elevada, a mais salvífica das caridades não é a do pão, mas a da verdade. Que não é uma teoria. É uma Pessoa.
Se a Igreja se transforma numa espécie de «Agência Universal para o Bem e para a Paz», ela se esqueceu ou eliminou o desafio inevitável em que se fundamenta — «Deus existe e em Cristo se fez homem» — surgem necessariamente os desdobramentos aludidos por Ratzinger na sua última alocução e que o próprio Papa já denunciou muitas vezes. Na prática, a moral cristã se torna impossível de ser seguida caso não resulte de uma fé explícita e sadia. A cruz que enfeita o católico voltado a um ativismo social, que esquece do anúncio explícito do Credo, não é mais a cruz da Igreja de Roma, mas a da Cruz Vermelha de Genebra: respeitável e louvável, mas que nada tem a ver com uma história que começa no tempo para desembocar no eterno.
Para citar este texto:
"Paz, justiça, natureza: a nova trindade laica"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/igreja/trindade_laica/
Online, 21/11/2024 às 08:41:30h