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Anotações "esquecidas" I: Preparação para o Concílio Vaticano II
Marcelo Fedeli
Remexendo "velha" gaveta, uma daquelas em que dorme no sono do esquecimento imensa papelada que um dia, cientes da importância de guardar notícias de jornais, anotações e comentários de livros, começamos a recheá-la, deparei com curiosas notícias do longínquo 1959/60, e anotações posteriores, a respeito da preparação do Concílio Vaticano II.
Um desbotado recorte de jornal, por exemplo, trazia como título: "Bispos do mundo inteiro são consultados para os temas do futuro Concílio". E continuava: "João XXIII ordenou ao cardeal Tardini, Secretário de Estado e Presidente da Comissão Preparatória do Concílio Vaticano II, a realizar uma vasta consulta ao episcopado do mundo inteiro, para indicar os temas a serem discutidos. Tardini enviará 2593 cartas a todos os prelados para que, numa atmosfera de discussão democrática, franca e aberta, como quer o Papa, indiquem suas proposições".
Reforçando aquela notícia, havia algumas anotações extraídas do livro A Utopia do Papa João, de Giancarlo Zizola, mostrando a intenção do Papa naquele episódio: "garantir ampla representatividade do episcopado mundial, e eliminar a influência direta da Cúria Romana."
Hoje dir-se-ia que o Papa pretendia prestigiar a tão badalada Colegialidade, para que, democraticamente, todos manifestassem suas preocupações e anseios, e assim partilhassem do governo da Igreja.
O curioso foi que os textos apresentados pelos bispos ao cardeal Tardini, segundo Zizola, eram:
"Uma composição internacional e eclética. Mas o resultado a que chegaram – totalmente assíncrono, comparado com o andamento indicado por João – constituiu a primeira prova evidente de que uma representatividade assaz universal geograficamente, não era critério suficiente para a renovação a que o Concílio houvera devido tender. Os textos resultantes permitiam ajuizar que o Concílio seria uma reafirmação do todo o dogma e de toda a moral..." (cf. A Utopia do Papa João, G. Zizola, Ed. Loyola, S. Paulo, 1983, pg. 307).
Prossegue Zizola, citando Antoine Wenger (à época do Concílio, diretor do jornal La Croix, e o único jornalista admito na basílica de S. Pedro. Autor do livro "Vatican II, Chronique de la première session", Centurion, Paris 1963):
"O Concílio, nos moldes que o Papa deixara entrever, era coisa bem diversa daquilo que os trabalhos preparatórios deixavam prever. Todos os que tinham conhecimento deste trabalho ficavam impressionados pelo caráter dogmático, acanhado, escolástico dos textos. Muito ao invés de representarem um progresso, algumas formulações referentes à Revelação, à ordem moral, aos problemas do matrimônio, acabavam sendo um retrocesso, quando comparadas à teologia formulada pelo Magistério, e especialmente pelo Papa Pio XII." (op. cit. pg. 308).
Porém, continua Zizola, "Se é verdade que, de fato, por baixo da casca do organismo eclesiástico, uma surda germinação evocava um Concílio renovador, e secretamente lhe preparava o terreno, por outro lado também é verdade que o anúncio do Concílio apanhara o mundo católico despreparado. Poucos eram os espíritos que tinham consciência da vastidão da crise religiosa em curso; correntes* reformadoras pulsavam no corpo do catolicismo, mas de forma erradia, clandestina, farejadas por rastreamentos intelectuais mais ou menos declarados: o anúncio do Concílio foi a primeira oportunidade para essas correntes* encontrarem um centro de condensação e manifestação, de reabilitação e expressão pública a serviço oficial de toda a Igreja" (op. cit. pg. 309).
A contra gosto, interrompi a remexida na "velha" gaveta. Precisei atender à porta, onde um risonho grupo de luteranos distribuía convites "aos homens de boa vontade", para um culto ecumênico, programado para o próximo sábado, em seu templo, com a presença de representantes de diversas confissões religiosas. "Será uma manifestação fraterna e um exemplo da pluralidade religiosa da comunidade do nosso bairro, para os homens do nosso tempo; o cerimonial litúrgico será presidio pelo pastor Jonas, pelo padre Toninho, pelo rabino Probell e pelo Pai-de-Santo Tião", disseram. "Venha compartilhar da nossa pastoral comunitária", estava escrito.
Retornei à minha sala e, enquanto fechava a "velha" gaveta, passou-me pela cabeça: afinal, os temas tratados no Concílio Vaticano II, de fato, foram aqueles que o Colegiado episcopal democraticamente apresentou, ou foram os que as correntes reformadoras, secreta e clandestinamente, prepararam?
Quem triunfou: a ala que queria a Colegialidade, tão decantada em nossos dias, ou ala que trabalhou clandestina e secretamente. Ou será que a ala que trabalhou clandestina e secretamente também queria a Colegialidade?
[* Sobre tais correntes clandestinas, ver: Le Rhin se jette dans le Tibre, do Pe. Ralph M. Wiltgen, s.v.d., Éditions du Cèdre - Paris, 1976].
Marcelo Fedeli
25 de Junho de 2001
Para citar este texto:
"Anotações "esquecidas" I: Preparação para o Concílio Vaticano II"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/igreja/preparacao/
Online, 21/11/2024 às 08:50:17h