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A pastoralidade e a infalibilidade do Concílio Vaticano II
Orlando Fedeli
Muito se tem discutido, especialmente no Brasil, e apaixonadamente, sobre o Vaticano II. Alguns afirmaram, sem qualquer base na sã doutrina e na realidade, que o Vaticano II foi infalível. A Montfort sempre defendeu a tese de que o Vaticano II, tendo sido convocado com fins pastorais por João XXIII, caráter confirmado por Paulo VI em sua reconvocação do Concílio, assim como em seu discurso de encerramento, não foi, nem poderia ser infalível.
Por isso, várias pessoas, muito precipitada e arbitrariamente, apodaram-nos de hereges.
E, para elas, não têm adiantado nem mesmo as contínuas afirmações do Cardeal Ratzinger e, agora, de Bento XVI, que atestam com muita clareza e com autoridade que o Vaicano II não foi infalível.
Agora, a publicação da obra de Monsenhor Brunero Gherardini - Vaticano II, un Discorso da Fare — veio colocar esse problema nos eixos.
Monsenhor Brunero, teólogo de renome e muito respeitado por Bento XVI, tratou largamente desse problema em seu livro, acima citado.
Quem introduziu o termo pastoral no Vaticano II foi o Papa João XXIII que, em seu discurso de abertura, estabeleceu os limites da autoridade do Concílio que convocara, dizendo:
“VI - 4. A finalidade principal deste Concílio não é, portanto, a discussão de um ou outro tema da doutrina fundamental da Igreja, repetindo e proclamando o ensino dos Padres e dos Teólogos antigos e modernos, que se supõe sempre bem presente e familiar ao nosso espírito.
“5. Para isto, não havia necessidade de um Concílio. Mas da renovada, serena e tranqüila adesão a todo o ensino da Igreja, na sua integridade e exatidão, como ainda brilha nas Atas Conciliares desde Trento até ao Vaticano I, o espírito cristão, católico e apostólico do mundo inteiro espera um progresso na penetração doutrinal e na formação das consciências; é necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e exposta de forma a responder às exigências do nosso tempo. Uma coisa é a substância do «depositum fidei», isto é, as verdades contidas na nossa doutrina, e outra é a formulação com que são enunciadas, conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance. Será preciso atribuir muita importância a esta forma e, se necessário, insistir com paciência, na sua elaboração; e dever-se-á usar a maneira de apresentar as coisas que mais corresponda ao magistério, cujo caráter é prevalentemente pastoral” (João XXIII, Discurso de Abertura do Vaticano II, VI- 4 e 5. Os destaques são nossos).
O Papa quis, então, que o Vaticano II fosse “prevalentemente pastoral”. De certo modo, ele colocou o caráter pastoral em linha diferente da doutrinária, que sempre foi a usada nos XX Concílios anteriores. O que fez do Vaticano II um Concílio sui generis, diferente de todos os demais.
Também Paulo VI, num discurso feito em janeiro de 1966, perguntou qual era a autoridade do Vaticano II, que grau de autoridade ele utilizara, e, respondendo a essa questão, disse:
“Há quem se pergunte que autoridade, que qualificação teológica o Concílio quis atribuir aos seus ensinamentos, pois bem, sabe-se que ele evitou dar solenes definições dogmáticas envolventes da infalibilidade do Magistério Eclesiástico. A resposta é conhecida, se nos lembrarmos da Declaração Conciliar de 6 de Março de 1964, confirmada a 16 de Novembro dese mesmo ano: dado o caráter pastoral do Concílio, evitou este proclamar em forma extraordinária dogmas dotados da nota de infalibilidade. Todavia conferiu a seus ensinamentos a autoridade do Supremo Magistério ordinário” (Paulo VI, Discurso na audiência de 12 de Janeiro de 1966. Os destaques sáo nossos).
Nada mais claro: o Vaticano II não proclamou dogmas infalíveis.
E Paulo VI deixa entrever que fazia oposição entre os qualificativos pastoral e dogmático: sendo pastoral, o Vaticano II não seria dogmático. Essa oposição posta pelo próprio Paulo VI não pode ser esquecida.
Entretanto, no pós Concílio essa explicação foi cuidadosamente “esquecida” e se passou a afirmar, sem qualquer base, que o Vaticano II foi infalível e que quem não o aceitasse estava em heresia ou cisma. E a Montfort foi, por isso, taxada de herética e de cismática por inimigos... e até por amigos.
Para transformar o Concílio Vaticano II, patentemente falível, em Concílio infalível, se usou do caráter indefinido e vago do termo pastoral, assim como se abusou da ignorância religiosa dos fiéis, para enganá-los. A propaganda orquestrada e maciça fez o resto.
Dissemos que o indefinido termo “pastoral” é vago, que ele não é claro. Nesse termo cabe tudo. Menos o dogma.
É o que confirma, agora, corajosamente Mons. Brunero Gherardini:
“Pastoral é assim um adjetivo ao qual se pode fazer dizer um pouco de tudo, e mesmo o seu contrário” (Mons. Brunero Gherardini, Vaticano II, un Discorso da Fare, Casa Mariana Editrice Frigento, 2009, p. 51. O destaque é do original).
Pastoral se tornou uma palavra chave, uma espécie de “Abre-te sésamo” que serve para abrir qualquer porta, e para justificar tudo.
“Mas de que realmente se trata? Seria belo se fosse possível dizer. Mas nem mesmo os Padres conciliares saberiam dizê-lo” (Mons. Brunero Gherardini, Vaticano II, un Discorso da Fare, Casa Mariana Editrice Frigento, 2009, p. 63).
Durante o Concílio, os progressistas afirmavam que o termo pastoral pretendia dizer que se deveria exprimir a doutrina em termos operativos (Cfr. Mons Brunero Gherardini , op. cit. p.64).
Desse modo, o caráter pastoral do Concílio fazia passar o Magistério do campo doutrinário para o operativo, para o prático, opondo-se pastoral ao doutrinário, pastoral ao especulativo.
Curioso é que, depois do Concílio, se passou a defender que o pastoral deveria ser aceito como dogma a ponto de se pretender que o Vaticano II valesse mais do que todos os demais Concílios juntos!
Por isso, o Cardeal Joseph Ratzinger, hoje o Papa Bento XVI, gloriosamente reinante, afirmou clarissimamente que o Vaticano II não foi infalível, e que muitos - erradamente - o têm como super dogma:
“A verdade é que o próprio Concílio não definiu nenhum dogma e conscientemente quis expressar-se em um nível muito mais modesto, meramente como Concílio pastoral; entretanto, muitos o interpretam como se ele fosse o super dogma que tira a importância de todos os demais Concílios.” (Cardeal Joseph Ratzinger, Alocução aos Bispos do Chile, em 13 de Julho de 1988, in Comunhão e Libertação, Cl, año IV, Nº 24, 1988, p. 56).
No Vaticano II, a maior importância é dada sempre “à pastoral, a ponto que o Vaticano II emerge da história dos Concílios Ecumênicos não por sua incidência doutrinária - e muito menos dogmática –, mas pela novidade de atitude, de valorização, de movimento e de ação, introduzidos nos gânglios vitais da Igreja sem um evidente nexo com as suas verdades” (Mons. Brunero Gherardini, op.cit. p.65).
Para muitos dos progressistas entusiasmados pelo Vaticano II, “pastoral“ significou a superação da imponente estacada jurídico-dogmática dentro da qual, como num castelo forte, a Igreja tinha até então protegido as suas certezas e tornada operativa a sua tradição evangelizadora” (Mons. Brunero Gherardini, op.cit. p.58).
A pastoralidade permitiu fazer da Igreja de sempre - Igreja de verdades estáticas e imutáveis- uma nova Igreja operativa, agindo sempre de modos novos, uma igreja-movimento. Uma Igreja sem barreiras, e sem muralhas. Pronta para ser invadida.
Com o Vaticano II, a Igreja tornou-se evolutiva e dialogante...
A pastoralidade de uma igreja prática e não prevalentemente doutrinária fez nascer aquilo que os modernistas chamaram de Nova Igreja do Vaticano II.
Uma coisa é certa, diz Monsenhor Brunero: “Há uma só conclusão na qual não se erra: desejou-se um Concílio pastoral. E somente pastoral” (Mons. Brunero Gherardini, op.cit. p.65. Os destaques são do autor).
Monsenhor Brunero Gherardini ensina, no livro que estamos focalizando, que o Vaticano II só diz infalivelmente o que repete do que foi infalivelmente ensinado dogmaticamente por outros Concílios, mas no que ele diz de próprio nunca o diz de modo infalível:
“É portanto lícito reconhecer ao Vaticano II uma índole dogmática somente lá onde ele torna a propor como verdade de Fé dogmas definidos nos precedentes Concílios. Em vez disso, as doutrinas que são próprias do Concílio [Vaticano II] não poderão ser consideradas absolutamente como dogmáticas, em razão de que estão privadas da ineludível formalidade definitória, e pois, da relativa “voluntas definiendi” (Mons. Brunero Gherardini, Vaticano II, un Discorso da Fare, Casa Mariana Editrice Frigento, 2009, p. 51. O destaque é do original).
E o que se deve entender pelo termo definitório?
Todo Concílio infalível deve definir claramente aquilo que ensina de modo infalível: i) afirmativamente, propondo cânones nos quais se deve crer com fé divina e católica; e ii) negativamente, exprimindo anatematismos contra os que negam a verdade ensinada positivamente. Ora, no Vaticano II, não existem nem cânones nos quais se é obrigado a crer, nem anatematismos, condenando teses erradas. Logo, como reconheceu Paulo VI, o Vaticano II nada definiu e, por isso mesmo, não foi infalível.
Por isso, escreveu Monsenhor Brunero Gherardini:
“Depois, quando um Concílio apresenta a si mesmo, o conteúdo e a razão de seus documentos sob a categoria da pastoralidade auto qualificando-se como pastoral, desse modo, ele exclui toda intenção definitória. Ele, por isso mesmo, não pode pretender a qualificação de dogmático, nem outros podem lha dar, conceder-lhe tal qualificação. Nem mesmo se em seu interior ecoe algum apelo a dogmas proclamados no passado, e mesmo que desenvolva um discurso teológico. Teológico não é sinônimo de dogmático”.
“Esta é a “ratio” que guiou, desde o início ao fim, o Vaticano II. Quem, citando esse Concílio, o equipara ao Concílio de Trento e ao próprio Vaticano I, creditando-lhe uma força normativa e vinculante, que, de per si, ele não possui, comete um ilícito e, em última análise, não respeita o Concílio” (Mons. Brunero Gherardini, Concilio Vaticano II: Un Discorso da Fare, Prólogo, Casa Mariana Editrice, Frigento, 2009, p. 23. Os destaques são do autor).
Monsenhor Gherardini vai além, pois diz:
“Se, depois disso, a exaltação tem por objeto uma reinterpretação redutiva de verdade pertencente ao patrimônio dogmático católico, e se elas passam no crivo das extrínsecas exigências à “analogia da Fé” (Rom. XII, 6), despojadas de seu estridente contraste com ela [com a fé], aguadas segundo expectativas e simpatias estranhas a ela — como por exemplo a do “diálogo” – então, a própria categoria da pastoralidade é adulterada e a definição de “dogmático” se torna um absurdo” (Mons. Brunero Gherardini, Concilio Vaticano II: Un Discorso da Fare, Prólogo, Casa Mariana Editrice, Frigento, 2009, pp. 23-24. Os destaques são do autor).
Para Mons. Brunero chamar o Vaticano II de dogmático é um absurdo.
Tese que a Montfort sempre defendeu.
Mais ainda, acrescenta Monsenhor Brunero:
“Isso confirma que o Vaticano II não pode definir-se como “dogmático” em sentido estricto e que as suas doutrinas, não reconduzíveis às precedentes definições, não são infalíveis e nem irreformáveis, e portanto elas não são nem mesmo vinculantes: quem as negasse nem por isso seria formalmente herege. Quem, depois, as quisesse impor como infalíveis e irreformáveis caminharia contra o próprio Concílio” (Mons. Brunero Gherardini, Concilio Vaticano II: Un Discorso da Fare, Prólogo, Casa Mariana Editrice, Frigento, 2009, p. 51).
Como estas palavras dão razão ao que a Montfort tem dito em todos estes anos!
E como elas condenam os que se arvoraram em condenadores da Montfort!
Por fim, com relação à pastoralidade do Vaticano II, é preciso dizer que Monsenhor Brunero termina seu livro com uma súplica em carta aberta ao Papa Bento XVI, na qual, entre outras coisas, pede que o Papa defina os seguintes pontos:
“1) Qual é a natureza do Vaticano II?
2) A sua pastoralidade – da qual dever-se-á precisar a noção com autoridade – em que relação está com o seu eventual caráter dogmático? Concilia-se com ele? Pressupõe esse caráter? O contradiz? Ignora-o?
“3) É realmente possível definir como dogmático o Vaticano II? E, portanto, é possível referrir-se a ele como dogmático? É possível basear nele novas assertivas teológicas? Em que sentido? Em que limites?
“4) Ele foi um “evento” no sentido que lhe dão os professores bolonheses, isto é, que rompe as ligações com o passado e instaura novas sob todos os aspectos? Ou então todo o passado revive nele ”eadem sensu eademque sententia”? (Mons. Brunero Gherardini, Concilio Vaticano II: Un Discorso da Fare, Prólogo, Casa Mariana Editrice, Frigento, 2009, p. 256).
Para quem leu o livro Vaticano II, um Discorso da fare, essa súplica deixa claro que Monsenhor Brunero pede ao Papa que condene solenemente as teses que fazem do Vaticano II um Concílio dogmático que fundou uma nova Igreja, como pretende a escola de Bolonha (Prof. Alberigo).
A Montfort adere “toto corde” a essa súplica.
Para pôr fim, definitivamente, às ambiguidades, abusos e mesmo erros que dele nasceram.
Domine, ut inimicos Sanctae Ecclesiae humiliari digneris, te rogamus , audi nos.
São Paulo, 4 de outubro de 2009,
Festa de São Francisco de Assis.
Orlando Fedeli
Para citar este texto:
"A pastoralidade e a infalibilidade do Concílio Vaticano II"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/igreja/pastoralidade-vaticano-II/
Online, 21/12/2024 às 17:48:36h