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Anotações "esquecidas" II: A importância do latim na Liturgia
Marcelo Fedeli
Não!... Não foi na minha "velha" gaveta em que, desta vez, "descobri" os textos abaixo. Eles me foram enviados por um velho sacerdote e amigo que, nestes tempos pós conciliares – imaginem – recita ainda, e diariamente, o breviário!... E em latim!...
Encontrei o amigo sacerdote casualmente no metrô, após vinte e tantos anos por ele passados em Roma, onde fora lecionar latim num determinado seminário. A conversa, naturalmente, voltou-se àquela língua que, antes do Concílio Vaticano II, mantinha a unidade, a elevação, a sacralidade e a solenidade da liturgia do rito romano, e possibilitava a qualquer fiel acompanhar a liturgia em qualquer país em que se encontrasse. Era a língua universal da Igreja, e o fiel, mesmo não tão letrado, sabia o que significam as palavras pronunciadas pelo sacerdote e pelo povo na liturgia de então. O que não acontece hoje com a utilização do vernáculo, comentou ele, que muitos fiéis não entendem nem mesmo o real significado das palavras em sua própria língua, com o agravante esfacelamento da unidade anterior.
Curiosamente, acrescentou, o documento "Sacrossantum Concilium", lançando as bases da futura liturgia, para o progresso continuo da "vida cristã dos fiéis", adaptando "a liturgia às necessidades da nossa época"..e pretendendo contribuir para "a união de todos os que creem em Cristo", como consta do Preâmbulo daquele documento, estabeleceu em seu artigo 36 – "A Língua litúrgica": "O uso da língua latina, salvo direito particular, será conservado nos ritos latinos".
Porém, prosseguiu o venerando sacerdote, aquele "salvo", serviu de brecha para a implantação do vernáculo na liturgia universal, anulando, praticamente, o disposto no mesmo artigo e quebrando a antiga unidade em nome da própria união. Ou seja, na prática, a exceção tornou-se regra, e esta foi completamente anulada, em nome de um melhor entendimento para o progressivo desenvolvimento do espírito cristão.
Acaso, nesta nossa época, só porque, por exemplo, os fiéis aqui no Brasil, ao antigo "Dominus vobiscum", hoje respondem com o mal traduzido "Ele está no meio de nós", entendem eles o real significado dessa resposta ?... Faça um teste: pergunte a eles?... desafiou-me. E proseguiu: acaso, assim respondendo, verificou-se algum progresso da "vida cristã dos fiéis"?
Diante de tais comentários, e constatando, por exemplo, a queda vertiginosa nas vocações sacerdotais e o crescente e contínuo proliferamento de "seitas-negócio", na sua maioria de caráter pentecostal, não só em S. Paulo, mas em todo o Brasil e mundo afora, bem como a ignorância generalisada da doutrina da Igreja entre os próprios católicos, infelizmente tive que concordar com ele.
Ao despedir-se, prometeu-me enviar alguns comentários sobre a importância do latim na liturgia, comparando-o ao vernáculo, pedindo-me, ainda, para não mencionar seu nome, "para evitar certos constrangimentos com meus colegas do clero, pois, como o senhor deve saber, a hierarquia eclesiástica dos nossos tempos, em nome do pluralismo religioso, admite e acata tudo... que não católico!... Mas, defender o latim na liturgia..." E desapareceu na estação do metrô.
Após alguns dias, eis o que dele recebi, com suas observações (em negrito):
« 1 - De S. Francisco de Sales, final do século XVI, contra os ensinamentos dos reformadores protestantes que, ainda dentro da Igreja Católica, defendiam a utilização do vernáculo na liturgia:
"Examinemos seriamente porque pretendem ter o Servíço divino em língua vulgar. Seria para ensinar a doutrina?" (...) "Para isto há a pregação, na qual a palavra de Deus, além de lida, é explicada pelo sacerdote... De modo algum nós devemos simplificar nossos ofícios sagrados em linguajar particular, pois, como nossa Igreja é universal no tempo e no espaço, ela deve também celebrar os ofícios públicos em língua também universal no tempo e no espaço." (Controverses, 2ème partie, discours 25).
2 - Do Papa Alexandre VII, em 1661, contra o Jansenismo, que substituíra o latim pelo francês na liturgia:
"Alguns filhos da perdição, ansiosos por novidades para a perda das almas, chegaram a este cúmulo de audácia, de traduzir o Missal romano para o francês, originalmente escrito em latim, seguindo o costume aprovado pela Igreja há tantos séculos... Assim fazendo, eles tentaram, com temerário esforço, degradar os mais sagrados ritos, rebaixando a magestade que a língua latina os reveste, e expondo de forma vulgar a dignidade dos mistérios divinos" (Yves Daoudal, La liturgie enseignement sacré - Itinéraires, n° 263, mai 82).
3 - De Joseph de Maistre (embora filósofo, maçon, martinista e favorável às idéias gnósticas de Jacob Böehme e ao milenarismo), em 1819:
"Não convém a uma religião imutável utilizar qualquer língua mutável. O movimento natural das coisas atinge constantemente as línguas vivas... Se a Igreja falasse na nossa língua, alguém com atrevido espírito poderia tornar o mais sagrado da liturgia, em ridículo ou indecente. Sob os mais imagináveis aspectos, a língua religiosa deve ser sempre colocada acima do domínio do homem" (Du Pape, livre l ch. XX, apud Yves Daoudal).
4 - Do Papa João XXIII, na sua constituição Veterum Sapientiae, de 22 de fevereiro de1962:
4.1 - "... Não sem a disposição da Divina Providência, aconteceu que a língua ( latina), que por muitos séculos unira tantos povos sob o Império Romano, se tornasse a própria língua da Sé Apostólica e, preservada para a posteridade, reuniu num estreito vínculo, uns com os outros, os povos cristãos da Europa"
4.2 - "De fato, pela sua própria natureza, a língua latina está apta a promover junto a qualquer povo toda a forma de cultura; pois que ela não suscita invejas, apresenta-se imparcial a todos os povos, não se constitui em privilégio de ninguém, em fim é totalmente aceita e amiga."
4.3 -"Não podemos esquecer que a lígua latina tem nobreza de estrutura lexica, visto que oferece a possibilidade de « um estilo conciso, rico, armonioso, cheio de magestade e de dignidade» ( Pio XI, Epist. Ap. Officiorum omnium, 01/08/1922: A.A .S. 14), que de modo especial consegue clareza e gravidade".
4.4 - "Por estes motivos a Santa Sé tem cuidadosamente zelado na conservação e progresso da língua latina e a considera digna de ser utilizada como « magnífica vestimenta da doutrina celeste e das santíssimas leis» (Pio XI, Motu Proprio Litterarum Latinarum, 20/10/1924), no execício do seu magistério, e quer ainda que seus ministros a utilizem".
4.5 - «O pleno conhecimento e uso dessa língua, tão ligada à vida da Igreja, não interessa tanto à cultura e às letras quanto à Religião» (Pio XI, Epist. Ap. Officiorum omnium, 01/08/1922), "como disse nosso Predecessor...; o qual, ocupando-se cientificamente do assunto, reuniu três dons desta língua, de modo admirável conforme a própria natureza da Igreja: «De fato, a Igreja, como mantém unidos na sua amplitude todos os povos e durará até a consumação dos séculos... requer, pela sua natureza, uma língua universal, imutável, não vulgar» (Ibidem).
4.6- "É necessário que a Igreja utilize uma língua não só universal, mas também imutável. Se, de fato, a verdade da Igreja Católica fosse confiada a algumas ou a muitas das línguas modernas, sujeitas a uma contínua mudança, as quais nenhuma tem maior autoridade e prestígio sobre as outras, resultaria sem dúvida que, devido à sua variedade, não ficaria manifesto para muitos com suficiente precisão e clareza o sentido de tais verdades, nem, por outro lado, se disporia de alguma língua comum e estável, para confrontar o sentido das outras".
4.7- "... Em fim, visto que a Igreja Católica, por ter sido fundada por Cristo Nosso Senhor, excede sem medida em dignidade sobre todas as sociedades humanas, é sumamente conveniente que ela use uma língua não popular, mas rica de magestade e de nobreza".
4.8 - "Além disso, a língua latina, que «justamente podemos chamar de católica» (ibidem), pois que é própria da Sede Apostólica, mãe e mestra de todas as Igrejas, e consagrada pelo uso perene, deve ser mantida como « tesouro de incomparável valor» (Pio XII, Alloc. Magis quam, 23/11/1951) e como porta pela qual se abre a todos o acesso às mesmas verdades cristãs, vindas dos tempos antigos, para interpretar o testemunho da doutrina da Igreja (Leão XIII, Epist. Encicl. Depuis le jour, 08/09/1899) e, finalmente, como vínculo mais que idôneo, mediante o qual a época atual da Igreja se mantem unida com os tempos passados e com os tempos futuros de modo admirável».
4.9 - "Em nossos dias, o uso do latim é objeto de controvérsia em muitos lugares e, conseqüentemente, muitos perguntam qual é o pensamento da Sé apostólica sobre este ponto. Por isso nós decidimos tomar medidas oportunas, enunciadas neste solene documento, para que o uso antigo e ininterrupto do latim seja plenamente mantido e restabelecido onde ele quase caiu em desuso."
OBSERVAÇÕES:
A - Haveria mais trechos desse "solene documento" que poderiam ser citados. Mas... estes são suficientes.
B - Note que o Papa João XXIII escreveu aquele documento em fevereiro de 1962, quando decidiu "tomar medidas oportunas... para que o uso antigo e ininterrupto do latim" fosse "plenamente mantido e restabelecido..." . Coitado!... um ano e dez meses depois, em dezembro de 1963, o Vaticano II, deixando de lado tudo o que julgava antiquado, interrompeu até – quem diria! – o desejo do próprio Papa João XXIII, pois visava os homens do seu tempo (1963), e, não os homens de outros tempos... do ano anterior. Note o sr. como os tempos mudam tão rapidamente...na pressa pós conciliar!
5 - Do Concílio Vaticano II: o documento "Sacratissimum Consilium" (sobre a reforma liturgica), de 4 de dezembro de 1963, no seu artigo 36, estabelece:
"Latim e línguas nacionais na liturgia:
1 - O uso da língua latina, salvo direito particular, deve ser conservado nos ritos latinos.
2 - Porém, visto que, quer na missa como na admistração dos sacramentos, quer em outras partes da liturgia, costumeiramente o uso da língua nacional pode tornar-se de grande utilidade para o povo, concede-se à língua nacional uma parte mais ampla, especialmente nas leituras e nos semões, em alguma orações e cânticos, conforme as normas fixadas para os casos específicos nos capítulos seguintes.
3 - Baseada nestas normas, cabe à competente autoridade eclesiástica territorial, ... decidir sobre a omissão e a extensão da língua nacional. Tais decisões devem ser aprovadas, ou seja, confirmadas pela Sé Apostólica.
4 - A tradução do texto latino na língua nacional a ser usada na liturgia deve ser aprovada pela competente autoridade eclesiástica acima aludida.
OBSERVAÇÕES:
A - A contradição entre a determinação do Concílio Vaticano II acima, com o solene documento Veterum Sapientiae, redigido pelo Papa João XXIII no ano anterior, é flagrante.
B - Aquele "salvo", inserido no parágrafo 1 do artigo 36 do Sacrossantum Consilium, como um pequeno furo na parade de uma represa, foi o suficiente para que a língua latina fosse posterior e totalmente eliminada do culto litúrgico e substituída pelo vernáculo; assim, a exceção tornou-se regra, como em outras exceções estabelecidas pelo Vaticano II.
Teria ainda outras citações a respeito, mas... fica para outra ocasião. Resta dizer apenas que, com a adoção do vernáculo, transformou-se a liturgia numa nova Torre de Babel, onde cada um fala uma língua, e ninguém mais se entende...E os que não se entendem, mais exaltam o... diálogo!...ao som do rock!...
AD Maiorem Dei Gloriam.
Pe. Amigo.
Marcelo Fedeli
Agosto 2001
Para citar este texto:
"Anotações "esquecidas" II: A importância do latim na Liturgia"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/igreja/latimnaliturgia/
Online, 21/12/2024 às 14:06:51h