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Anotações "esquecidas" VI: Guiton dá diretrizes a João XXIII para o Concílio Vaticano II
Marcelo Fedeli
No início de setembro de 1961, um ano antes da abertura do Concílio Vaticano II, Jean Guitton, após encontrar-se com o arcebispo Montini, em Milão, envia um texto a João XXIII, intitulado: "Da apresentação da verdade nas declarações do futuro Concílio" como orientação geral de que, e como, o Vaticano II deveria tratar da verdade católica, ou seja, do depósito da fé ("Journal de ma vie", Ed. Desclée de Brouwer, Bar-le-Duc, 1976, p. 449 a 452).
1 - Inicialmente, Guitton explica a João XXIII que «Um Concílio é uma tomada de consciência da Igreja daquilo que ela é, uma recapitulação dela mesma, uma nova proclamação do conteúdo da fé em Jesus Cristo, adaptada à nossa época» (op. cit. p. 450).
Duas considerações referentes à citação acima:
1.1 – "Um Concílio é uma tomada de consciência da Igreja daquilo que ela é...".
Tal afirmação, implicitamente, pressupõe a tese modernista, não católica, de que a Igreja, em certas fases da História, está sujeita a perder a noção da sua identidade, como se ela fosse uma instituição igual às demais instituições civis, criadas pelos homens, não considerando seu essencial caráter divino, de ter sido fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, guiada pelo Espírito Santo, e com a expressa promessa de Nosso Senhor de estar com ela, todos os dias, até a consumação dos séculos.
Teria sido necessária a intervenção providencial de um filósofo francês, Jean Guitton, dois mil anos após Cristo, para fazer ver a um Papa que, de quando em quando, a promessa de Cristo pode não se cumprir, e que o Espírito Santo, talvez preocupado com outros compromissos, deixasse de, momentaneamente, assisti-la? Teria sido necessário o sacolejo de Guitton para acordar a Igreja do seu torpor, que, sonolenta, e bocejando no seu lento despertar, rouca, murmurasse: "que sou eu?...".
1.2 - «(...) uma nova proclamação do conteúdo da fé em Jesus Cristo, adaptada à nossa época».
O que significa exatamente tal afirmação? Como seria, concretamente, essa "nova proclamação do conteúdo da fé em Jesus Cristo, adaptada à nossa época", se "o conteúdo da fé" é verdade absoluta e eterna, valendo, portanto, plena e totalmente a qualquer época?
[Como seria, por exemplo, uma nova "proclamação do conteúdo" do teorema de Pitágoras (que é até anterior a Cristo), "adaptado à nossa época?"].
Mas, o que se esconde sob essa afirmação de Guitton, é outro conceito modernista, de que o "conteúdo da fé", cuja proteção e defesa é o primeiro dever dos pontífices, não é verdade absoluta, podendo, portanto, mudar no decorrer do tempo, ou melhor, evoluir. Isto justifica sua afirmação anterior, ou seja, como a verdade evolui, a Igreja precisa tomar consciência dessa evolução, e proceder secundum quid.
Esse desejo de "adaptar o conteúdo da fé à nossa época" já havia sido condenado pelo Papa S. Pio X, na encíclica "Pascendi dominici gregis" (1907), e pelo Decreto "Lamentabili" (art. 63 e 64), bem como pelo Papa Pio XII, na encíclica "Humani Generis", em 1950. Mas, para Guitton, 1907,... 1950...é passado longínquo!... Bem outra é, para ele, a realidade evoluída do conteúdo da fé em 1961, quando ele, providencialmente, despertou a Igreja do seu sono Tridentino, prolongado pelo Vaticano I, e embalado pelo pontificado de S. Pio X.
[Aliás, sobre S. Pio X, Guitton diz que dele formou "suas primeiras impressões, dentre aqueles que sofreram sob seu cetro" (Guitton se refere aos modernistas, condenados por S. Pio X em 1907), e que ele (S. Pio X) "me sugere uma imagem dupla, como um pássaro de dois bicos, um que eu aprovo, outro que me incomoda. (...) O que é paradoxal, é que a competência não parece mais entrar na definição do poder; que depois de Leão XIII, um tão grande Papa, seja Pio X o Papa, apesar de ser um Papa santo do tempo presente" (op. cit. Pg. 192)].
[Quanto a esse desrespeitoso comentário de Guitton sobre o Papa S. Pio X, deixo o julgamento ao critério dos leitores. Pergunto-me somente: qual seria a reação de Guitton, (ou de outros, que não admitem a mínima observação aos Papas conciliares, ainda que feita com todo o respeito), se alguém ousasse a se referir a Paulo VI, empregando as mesmas palavras de Guitton a S. Pio X, citando ainda, como exemplo de sofrimento, o vivido pelo Cardeal Mindsenty, por resistir em não dar trégua ao regime comunista da Hungria e da Rússia, conforme o forçava aquele Papa? ("Paul VI, le Pape écartelé", Yves Chiron, Ed. Perrin, Paris, 1993, pgs. 309 - 310)].
2 - Prosseguindo, Guitton afirma que os concílios anteriores, em geral, foram convocados para «enfrentar um perigo doutrinário. (...) Definia-se a fé negativamente, em relação a uma heresia ». Além disso, segundo ele, os concílios passados eram um acontecimento interno à vida da Igreja, o que deixava os não católicos numa grande indiferença, e que o "novo Concílio é também uma tomada de consciência, mas com dois aspectos originais":
«O primeiro é de não ter sido suscitado por uma heresia. Ele é afirmativo, e não negativo. Por isso, ele é, mais que nunca, uma tomada de consciência da Igreja inteira. Sendo positivo, e não negativo, ele não concluirá pela definição de um ponto de fé específico, mas por uma apresentação universal, pelo menos, muito ampla» (idem, p. 450).
Somente duas observações sobre essa citação:
2.1 - «O primeiro é de (o Concílio Vaticano II) não ter sido suscitado por uma heresia».
Embora o Concílio Vaticano II não tivesse sido convocado, de fato e formalmente, para combater nenhuma heresia, não quer dizer, de per si, que não havia heresia naquela época, ou naquele ano, para ser pontualmente aggiornato.
Em geral, as heresias não surgem repentinamente, de um dia para o outro, mas depois de longo processo de preparação, em que os seus paladinos, através de um linguajar dúbio, serpentino, por vezes até contraditório, visando inocular seu veneno no conteúdo da fé, camufladamente, procuram formar uma nova mentalidade contrária à católica, para, depois, atacá-la de frente. Exatamente como os seguidores do Modernismo, sem cessar, procederam desde a segunda metade do século XIX, prosseguindo subterraneamente após 1907 (ano da sua condenação pela "Pascendi"), e, depois, de forma cada vez mais audaciosa, atuaram, e atuam, até nossos dias. Que havia heresia naquela época, só os seus seguidores, claro, o negavam.
Nessas poucas linhas, um aspecto um tanto contraditório nas afirmações de Guitton: se o "Concílio é uma tomada de consciência da Igreja daquilo que ela é", como ela poderia ter tido, a priori, na sua convocação, a consciência de que, absolutamente, não havia heresia para suscitá-lo? Se ela nem sabia o que ela era, como saberia distinguir o que lhe era contrário?... Mas, Guitton — garante-se — foi um grande filósofo!...
Além disso, existia a heresia marxista, e, em 1962, o comunismo era uma ameaça bem real ao mundo e à Igreja. Como convocar um Concílio sem pretender condenar os dois maiores inimigos da Igreja em 2.000 anos de existência, o Modernismo e o Comunismo?
2.2 – «Ele (o Concílio Vaticano II) é afirmativo, e não negativo. Por isso, ele é, mais que nunca, uma tomada de consciência da Igreja inteira. Sendo positivo, e não negativo, ele não concluirá pela definição de um ponto de fé específico, mas por uma apresentação universal, pelo menos, muito ampla».
Após afirmar que o Concílio não fora convocado para condenar uma heresia, o filósofo francês nos brinda com uma brilhante conclusão: «Ele é afirmativo, e não negativo. (...) Sendo positivo, e não negativo (...) ».
O que Guitton pretendia dizer a João XXIII com essa afirmação?
A Igreja, no decorrer da História, seguindo o conselho e exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo — "Seja o vosso falar, sim, sim; não, não..." (Mt. 5, 37) — sempre ao proclamar uma verdade, apresenta e condena o erro oposto. A esse método, Guitton chama de afirmativo... negativo, reprovando seu emprego pelo Concílio, para aquela época. Ele sugere ao Papa que o Concílio Vaticano II se pronuncie somente de modo positivo, por meio de "uma apresentação universal, pelo menos, mais ampla", para não dizer vaga.
Mas a pedagogia do sim/não é, e sempre foi, a forma mais natural utilizada por todos ao apresentar uma verdade, condenando imediatamente seu oposto, evitando-se, assim, qualquer equívoco.
Poderíamos citar uma infinidade de exemplos para comprovar a eficiência lógica de tal método. Mas não será preciso recorrer a tanto. Para isso, basta ler o texto do próprio Guitton, acima indicado.
Assim, para que ficasse bem claro a João XXIII o que ele queria explicar, e visando evitar qualquer equívoco ao Papa, ele, Guitton, utiliza o método (positivo/negativo) da Igreja do passado, e ainda por duas vezes e em duas linhas, na própria frase em que condena o seu emprego por parte do futuro Concílio. Pois se ele afirma que a Igreja só deveria apresentar um ensino positivo, para ficar clara a sua proposta, ele diz que a Igreja não deveria fazer condenações, dando um ensinamento através de negações, negativamente. Mas, ao afirmar isso, ele mesmo estava condenando, ainda, o que a Igreja sempre fez no passado: condenar erros, isto é, ele negava que fosse certo, ou útil, ou conveniente usar o método negativo de ensino.
Se ele, Guitton, se reserva o direito de utilizar a forma positiva/negativa, por duas vezes em duas linhas, para explicar uma simples afirmação a um Papa, o que não dizer de um Concílio ao se dirigir a todos os fiéis?
Incoerência do grande filósofo francês!
Na realidade, Guitton, e todos os modernistas de todas as épocas, não queriam que a Igreja condenasse nenhuma doutrina contrária à católica, e ainda conspiravam para injetá-la na mentalidade católica. Para eles, só a Igreja e seu passado deviam ser condenados. O Concílio, proposto por Guitton, não deveria condenar ninguém. Só deveria condenar o passado da Igreja, e por meio da adoção de um novo método de ensinar oposto ao do passado. Com efeito, depois do Vaticano II, só se condena o que a Igreja e os Papas fizeram no passado.
Essa idéia, aliás, não era nova. Já em março de 1949, Mons. Montini, então substituto na Secretaria de Estado do Vaticano, ao receber pela primeira vez os pastores protestantes Roger Schutz e Max Thurian, da comunidade protestante de Taizé (França), preparando-os para uma audiência com Pio XII, e lhes falando sobre a proibição de Pio XII aos católicos de participarem do Conselho Ecumênico das Igrejas, lhes disse: "Primeiramente, a Igreja deve reconhecer os erros dos seus membros na História e nos nossos dias" (Propos raportés par M. Thurian in « Paul VI et les observateurs du Concile Vatican II » apud « Paul VI – le Pape écartelé » Yves Chiron, Ed. Perrin, Paris, 1993, p. 134). Posteriormente, o mesmo Montini, quando Papa, em 29 de setembro de 1963, no discurso de abertura da segunda sessão daquele Concílio, declarou novamente que a Igreja devia pedir perdão pelas ofensas que ela cometeu no passado (idem p. 207).
Hoje, quarenta anos após aquele Concílio, podemos ver claramente os frutos da única condenação feita pelo Concílio Vaticano II: a da tradição católica, em todas as suas aplicações.
3 - Continua Guitton a João XXIII:
«Um outro aspecto é que o universo inteiro está atento a este Concílio. Não só o universo dos ortodoxos e dos protestantes, mas também todas as consciências não cristãs. Diante desses aspectos antigos e novos do Concílio eu queria lhe apresentar uma proposta que me parece importante: é de que este Concílio faça preceder suas definições, suas exposições, por uma declaração dirigida a todos os homens de boa vontade » (no original a palavra declaração está em itálico).
3.1 – "Homens de boa vontade"
É curioso Guitton utilizar a expressão "homens de boa vontade", após ter-se referido aos crentes e não crentes. Acaso, fazem eles parte de alguma outra categoria especial, ou secreta, não incluída entre os crentes e não crentes? Porque, evidentemente, os crentes somados aos não crentes, englobam todos os homens! Quem seria, então, para Guitton, os tais "homens de boa vontade?...". Seriam eles os assim chamados homens de livre espírito?...Ou aqueles a quem Jules Romain, também do círculo de Guitton, faz referência em seus romances?... Infelizmente, Guitton não o diz!
Ainda quanto aos "homens de boa vontade", não deixa de ser curioso, também, que João XXIII foi o pioneiro a incluí-los no endereçamento das encíclicas, quando da publicação da "Pacem in terris", em 11 de abril de 1963. Até aquela data, todas as encíclicas, de todos os Papas, eram, em geral, assim endereçadas: "Aos Veneráveis irmãos patriarcas, primazes, arcebispos e bispos e outros ordinários do lugar em paz e comunhão com a Sé Apostólica e a todo o clero e fiéis do orbe católico", sem referência alguma àqueles misteriosos "homens de boa vontade". Sua inovação foi seguida, posteriormente, por Paulo VI, quando da publicação das encíclicas "Populorum progressio" e "Humanae Vitae", de 26 de março de 1967, e de 25 de julho de 1968, respectivamente.
4 – Como o Concílio deverá ser apresentado segundo Jean Guitton
Prosseguindo em suas diretrizes, Guitton recomenda que a apresentação dos temas conciliares seja feita visando diversos níveis, ou categorias de pessoas, "como uma pirâmide".
Primeiramente, apresentar os temas que interessam «a todos os homens, um apelo às verdades da consciência moral, da justiça (...) da existência de Deus conhecido pela razão...» (idem, p. 450).
Em seguida, viria um «apelo às verdades de fé comuns a todos os povos monoteístas, o Islã e Israel (...) e a todos os cristãos, e que todos nossos irmãos protestantes aceitam conosco: Jesus Cristo, filho de Deus Salvador, a Igreja corpo invisível, o batismo, a eucaristia» (ibidem, p. 450. O negrito é nosso).
«O terceiro nível seria o resumo do símbolo católico, mostrando o que a fé católica romana acrescenta à fé cristã: a Igreja é visível, o sucessor de Pedro tem uma autoridade soberana» (ibidem, p. 450 – 451. O negrito é nosso).
De passagem, convém salientar que Guitton afirma existir uma "Igreja corpo invisível" reunindo várias religiões, e depois fala de uma "Igreja visível", que seria a Igreja Católica. Ora, a afirmação de que existe uma "Igreja invisível" englobando pessoas de diferentes religiões e de diversas crenças, é típica da Gnose e do Modernismo. E Guitton deveria saber disso, ele que era um tão competente filósofo e pensador, que se dizia católico.
Guitton expõe, em seguida, a vantagem principal dessa forma de apresentação: «cada membro da família humana se acharia visado», porque, se a Igreja só fala aos católicos, muitos continuam indiferentes à sua mensagem, quer entre os sábios, quer entre os humildes, conforme ele mesmo, Guitton, diz ter constatado, completando, como exemplo:
«Entre os sábios, Bergson, meu mestre e amigo, um dos maiores filósofos deste tempo, dizia que ele não podia conscientemente aceitar o conjunto do Credo. E, mesmo desejando ser batizado na Igreja católica, ele postergava o batismo» (idem, p. 451).
Guitton não explica, porém, como, seguindo sua simples diretriz na forma de apresentar em camadas os temas conciliares, seu sábio amigo Bergson iria conscientemente aceitar o conjunto do Credo, e receber o batismo. Curioso método para a conversão de sábios!
Prossegue o filósofo francês:
«Quanto aos mais humildes, os operários e camponeses, por exemplo, educados distantes de qualquer crença, mas sem hostilidade, nota-se também (como o cardeal Suhard* e o cardeal Saliège notaram) a necessidade de um tempo de formação progressiva, de catecumenato...» (idem, p. 451).
[*Cardeal Emmanuel Suhard (1874 –1949) nomeado Arcebispo de Paris em 1940, foi um dos fundadores dos "Padres operários", movimento condenado, posteriormente, pelo Papa Pio XII, e aprovado por Paulo VI em 1964. No final da II Guerra Mundial, o Cardeal Suhard foi acusado, pelo governo De Gaulle, de ter colaborado com o governo nazista na França, durante a ocupação alemã ("Giovanni XXIII – Il Papa Del Concilio", P. Hebblethwaite, Ed. Rusconi, Milano, 1989, p. 290, 307). Aliás, o próprio Jean Guitton foi condenado como colaboracionista do governo nazista na França, logo após a II Guerra, em agosto de 1946 (Journal de ma Vie – op.cit. p.728)].
Nas recomendações vistas até este ponto, Guitton lança as bases para atingir seu objetivo fundamental para o Concílio Vaticano II: a promoção do "cristianismo ecumênico", nova religião, cujos fundamentos ele explica a João XXIII.
5 – "Cristianismo Ecumênico"
Do ponto de vista ecumênico, e não somente humano, para Guitton, o Concílio poderia apresentar, no seu segundo estágio, "um parágrafo específico que definisse a fé comum a todos os cristãos". Para ele, isto «ajudaria aos cristãos não-católicos a erguer-se a esta fé comum e colocar mais claramente em evidência as verdades partilhadas por todos os cristãos; a divindade de Cristo, que é fundamento de tudo». Além disso, «não se deixaria de realçar a harmonia dos fundamentos deste "cristianismo ecumênico" com os fundamentos do catolicismo, o que facilitaria a reaproximação; isto mostraria aos não-católicos que a conversão (como a do cardeal Newmann) não consiste tanto em renegar aquilo que é falso na confissão de que partem, como de levar à sua plenitude a verdade já possuída (...)» (idem, p. 451).
Isto é, fazer a união de crenças diversas sem a necessidade de conversão alguma ao catolicismo.
Finalizando o texto, Guitton volta a ressaltar as vantagens da apresentação das verdades em etapas, que corresponde ao «método do próprio Deus, que é de formar a consciência sem lhe propor a totalidade da verdade, mas somente o que o espírito é capaz de compreender e de assimilar » E, falando a todas as consciências, conclui Guitton, «o Papa aparecerá como o pai da grande família humana (...)» (idem, p. 452).
5.1 – Na realidade, e resumindo o texto acima, Guitton diz a João XXIII:
a – todas as religiões são expressões da mesma divindade que se manifesta de forma diferenciada ("verdades partilhadas") através delas, incluindo a católica, que a manifesta mais plenamente;
b – por isso, o Concílio deverá esquecer, implicitamente, o antigo dogma "Fora da Igreja, não há salvação", propondo a união de todas as religiões, renunciando ao proselitismo e à conversão. Daí Guitton acentuar que não é preciso nem "renegar aquilo que é falso na confissão de que partem (...)".
c – com isso, haverá o surgimento de nova religião universal, a do "cristianismo ecumênico", englobando todas, inclusive a católica, da qual só teria, e "em harmonia", os "fundamentos!".
Eis os fundamentos do ecumenismo do Concílio Vaticano II, levado adiante até os nossos dias. No fundo trata-se da concepção gnóstica da religião: a divindade se manifesta de forma diferente, e até contraditória, para os homens, no decorrer do tempo. Sendo as religiões expressões da mesma e única divindade, todas contêm verdades e enganos, mas todas levam de volta à mesma divindade. Para essa mentalidade ecumênica, o catolicismo, é uma manifestação religiosa como as outras, com realce ao amor! ...
Seria como afirmar: como todos os rios têm o mesmo fundamento – H2O - todos são potáveis, inclusive o nosso caudaloso Tamanduateí, ou o Tietê...E lá vai o Ecumenismo conciliar e pós-conciliar, não "sicut cervus ad fontes", mas "sicut servus ad mortem...", saciar sua sede em águas contaminadas pelas heresias e pelos cismas, que levam à morte eterna, embora, para Guitton, tendo o mesmo "fundamento"!
5.2 - «(...) não se deixaria de realçar a harmonia dos fundamentos deste "cristianismo ecumênico" com os fundamentos do catolicismo, o que facilitaria a reaproximação».
Notem que, na realidade, e concretamente, Guitton propõe ao Papa João XXIII uma nova religião: o "cristianismo ecumênico", que do catolicismo só tem (ainda segundo ele, e vagamente) os "fundamentos", evidentemente já adaptados "à nossa época".
Portanto, para Guitton, o catolicismo deverá ser substituído pela nova religião, batizada por ele "cristianismo ecumênico", manifestação da "Igreja invisível", e por ele apresentada ao Papa João XXIII, para ser implantada pelo futuro Concílio Vaticano II, em benefício da humanidade.
5.3 – Apresentar as verdades em etapas, «método do próprio Deus, que é de formar a consciência sem lhe propor a totalidade da verdade, mas somente o que o espírito é capaz de compreender e de assimilar ».
Certamente, neste ponto, Guitton confundiu o método de Deus e da Igreja com o de algumas sociedades secretas, cuja "verdades" são apresentadas aos irmãos em etapas, segundo os respectivos graus de iniciação em que se encontram.
Pelo contrário, a Igreja sempre propôs, e propõe, a totalidade da verdade revelada de Deus, íntegra e plena, a todas as pessoas, sem nada esconder, porque Cristo disse que não se acende uma luz, para colocá-la sob o alqueire. O Credo encerra todas as verdades, e não somente o que o "espírito (espírito?...seria alma?) é capaz de compreender e assimilar", pois, como muitas verdades são mistérios de fé, nunca o tal "espírito", nem o do seu mestre e filósofo Bergson, seria "capaz de compreender e de assimilar". De onde Guitton deduziu essa pedagogia de Deus?
5.4 - «o Papa aparecerá como o pai da grande família humana (...)».
Afirmação lógica e perfeita de Guitton sobre o Papa, na ótica modernista do "cristianismo ecumênico": o Papa, de representante de Cristo na terra, conforme Cristo estabeleceu e a Igreja sempre ensinou, passaria a ser, segundo Guitton, o "pai da grande família humana!...". Que título!... E que honra!...
Com isto Guitton atinge o cerne do "cristianismo ecumênico", da nova religião que propõe: o Homem. No fundo, essa nova religião é a religião do Homem, cujos postulados foram preparados pelos modernistas no decorrer do século XX, apresentados no texto de Guitton ao Papa João XXIII, e proclamados pelo Concílio Vaticano II, conforme afirmou o próprio Papa Paulo VI, no discurso de encerramento daquele mesmo Concílio, no dia 7 de dezembro de 1965: "Nós também, Nós mais que todos, nós temos o culto do homem" ("Paul VI, le Pape écartelé", Y. Chiron, Ed. Perrin, 1993, Paris, p. 249). Daí o novo e digníssimo título dado por Guitton ao Papa: "Pai da Humanidade!".
Certamente, no futuro evangelho da nova religião —"cristianismo ecumênico"— ler-se-á: "Naquele tempo, disse Guitton a João XXIII: se seguires minhas palavras, deixarás de ser o representante de Cristo na terra, e aparecerás como o pai da grande humanidade".
E o Papa Roncalli, que fez?
Basta ler o discurso de João XXIII na abertura do Concílio Vaticano II, para notar o quanto de Guitton lá está!... Embora esse discurso não faça parte formal dos textos oficiais do Concílio, ele serviu de indicador, aos padres conciliares, do rumo a ser seguido.
E o Concílio Vaticano II também o atendeu!... Basta ler sua história para se notar o quanto da mentalidade ecumênica modernista de Guitton, ele absorveu, e de tal forma que foi chamado de "Concílio do Padre Rahner!..." (Le Rhin se jette dans le Tibre – Le Concile Inconnu, Pe. Ralph M. Wiltgen, s. v. d., Ed. Du Cedre, Paris, 1976, p. 79), do modernista Rahner, insuflador dos princípios da nova teologia aos ouvidos dos padres conciliares, que a inseriram em documentos do Vaticano II.
Quanto ao resultado do Concílio, com as diretrizes de Guitton, ninguém melhor que ele próprio, Guitton, como dos seus amigos Pe. Soulages e Paulo VI, para opinar.
Assim, Guitton, em abril de 1964, ainda durante o período conciliar, inocentemente, lamentando-se:
"Parece que no Concílio, os valores religiosos e espirituais foram rebaixados. O fenômeno é geral: que se considere o valor do celibato, a presença da vida religiosa, o sagrado da liturgia, a primazia de Pedro, a autoridade dos bispos e da Igreja, o testemunho dos mártires, a transcendência da verdade, a imutabilidade da verdade religiosa etc. O problema do Concílio é de não perder estas verdades fundamentais, de colocá-las à luz de uma nova maneira. E, neste momento, isto ainda não foi feito. Eliminam-se os ritos acidentais. Mas, eliminando estes ritos acidentais, ameaçam os dons essenciais" (idem p.476). Ainda Guitton, em 1968:
«É uma tristeza depois do Concílio ver-se escurecer a eucaristia, a cruz, Maria, o papado. Porque tudo isto está presente no organismo de uma fé íntegra e total. Mas é preciso que eu compreenda bem que esta derradeira constatação é o anúncio de uma futura realidade, após uma purificação» (idem, p. 625).
[Após as diretrizes que ele apresentou a João XXIII, por que se surpreender diante dos resultados?]
Pe. Soulages, em conversa com Guitton, em 1968:
"Hoje vemos na Igreja alguns que pensam que a Igreja antes de João XXIII, a Igreja tridentina, deve ser substituída por uma Igreja nova. Eles quebram com a tradição anterior, a qual eles comparam a uma forma de judaísmo. (...) Se, durante 15 séculos a Igreja se enganou, então, quem nos garante que ela não se enganará ainda?".
"Nos dias de hoje, a essência do cristianismo, que é vertical, foi esquecida, ou rebaixada a um ponto de vista dialético, complexo, reduzida às chamadas ciências humanas: rebaixaram-na à dimensão horizontal". (idem, p.631 - 623).
E Paulo VI, recebendo em audiência uma centena de alunos do Seminário Lombardo, no dia 7 de dezembro de 1968, exatamente três anos após encerramento do Concílio, afirmou:
«A Igreja se encontra numa hora de inquietude, de autocrítica, dir-se-ia quase de auto demolição. É uma desordem interna, aguda e complexa, que ninguém esperava, após o Concílio» (Yves Chiron, Paul VI, le Pape écartelé, Ed. Perrin, Paris, 1993, p. 288).
Ainda Paulo VI, dia 29 de junho de1972:
«Por alguma brecha, a fumaça de Satanás penetrou no templo de Deus: a dúvida, a incerteza, o questionamento, a inquietude, a insatisfação, o afrontamento, surgiram [...]. Nós esperávamos que o porvir do Concílio fosse um dia ensolarado para a Igreja, mas encontramos novas tempestades. Nós acabamos cavando novos abismos ao invés de aplaná-los. Que aconteceu?...» (idem, p. 320).
Nesse sentido, ainda, e curiosamente, Guitton, no capítulo "João XXIII – Conversas do diabo", do seu "Jounal de ma vie", em 1964, apresenta a seguinte observação na boca do demônio sobre aquele Papa:
"É possível que ele tenha abalado o edifício no seu fundamento, dando a impressão que, ainda que Papa, ele tinha a fé simples de um vigário saboiano, e que isto era o seu segredo. Ele criou assim uma religião (é o diabo que fala) a-dogmática e simples na qual todo o mundo se reencontra e se entende. Uma religião da bondade".
"Eis, em resumo, a observação do diabo".
"Mas, pode-se responder ao diabo que, nos nossos dias, a fé não se apóia na lista dos dogmas; que, por meio dos dogmas, ela visa algo infinitamente mais simples. E é nisto que João XXIII é grande" (Journal de ma vie", p. 472).
Quanto à observação que Guitton coloca na boca do diabo sobre o Papa João XXIII, nada a comentar. Porém, quanto à resposta que daria ao diabo, Guitton reconhece, como exigia o Modernismo, que o dogma não é mais importante para a fé, concluindo ter sido aceitar isto a grandeza de João XXIII. A Igreja Católica não teria mais dogma: seria a Igreja do Amor. "Tu, Guitton, o disseste"!
E hoje, 40 anos após as diretrizes positivas e ecumênicas de Guitton ao Concílio Vaticano II, que frutos vemos na Igreja? Que frutos, até mesmo, para a tão exaltada humanidade?
Como Paulo VI, nos perguntamos:
– "Que aconteceu?"
Um dia saberemos.
Marcelo Fedeli
Agosto - 2002
Para citar este texto:
"Anotações "esquecidas" VI: Guiton dá diretrizes a João XXIII para o Concílio Vaticano II"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/igreja/jeanguitton3/
Online, 21/11/2024 às 10:24:25h