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Gestação de terremotos
Orlando Fedeli
Ocorrendo os terremotos subitamente, o homem simples não imagina que eles são gestados durante séculos no ventre da Terra.Assim, também, as grandes revoluções, embora irrompam em dias determinados, são resultados de uma preparação silenciosa, empreendida durante décadas, e, às vezes, durante séculos.
Diz-se que a Revolução Francesa, por exemplo, eclodiu no dia 5 de maio de 1789, com a abertura dos Estados Gerais, ou no dia 14 de julho de 1789, data da tomada da Bastilha. Entretanto, ela foi, de fato, preparada durante pelo menos um século, pelos enciclopedistas iluministas e racionalistas, assim como pelos místicos iluminados, como Rousseau ou Luis Claude de Saint-Martin, o mestre de Joseph de Maistre... E poderíamos ir mais longe: esses racionalistas e místicos apenas chocaram o ovo que havia sido posto por Lutero.
Essas considerações são conhecidas e aceitas por qualquer pessoa que tenha um estudo sério da História. É evidente que os sacerdotes - pelo menos os que foram formados nos antigos seminários - deveriam ser contados entre tais estudiosos.
Entretanto, se dissermos a um sacerdote, mormente de linha tradicionalista, que o terremoto do Vaticano II e a erupção ecumênica que ele trouxe foram gestados durante longas décadas, que incluem necessariamente o reinado de Pio XII, eles provavelmente recusarão o raciocínio que haviam admitido inicialmente.
Para um padre tradicionalista ou conservador, que toma posição contrária à orientação dada à Igreja a partir de João XXIII, Pio XII seria o oposto radical dos Pontífices que o sucederam, e não teria permitido qualquer progresso modernista.
Eles argumentam com a diferença diametral de estilos entre o Papa Pacelli, hierático e solene, e João XXIII, popular, igualitário e quase “caseiro”. Alegam a oposição política total entre o anti-comunismo de Pio XII e a famigerada “apertura a sinistra”, assim como a desastrosa Ostpolitik de Casarolli, patrocinada por Paulo VI e João Paulo II.
Sublinham a preocupação com a ortodoxia, característica de Pio XII - afinal, foi ele quem canonizou São Pio X - tão diferente da fenomenologia e do kantismo de João Paulo II.
Entretanto...
Entretanto, erupções desse porte não são gestadas em um só dia, nem em dez anos. Foi o que constataram e confirmaram historiadores insuspeitos.
Tomemos, por exemplo, a obra de Jean Chélini L’Église sous Pie XII, (Fayard, Paris, dois vols.). Na contra-capa do segundo volume, que trata do “Após Guerra”, pode-se ler uma apresentação que, entre outras coisas, diz:
“No espelho da História, Pio XII aparece como a imagem grandiosa e radiante do papado, o modelo do Papa da Contra-Reforma, levado à perfeição. Mas, a solenidade do comportamento não deve nos esconder, por mais tempo, a ousadia de sua ação. Pio XII é, de longe, o Papa mais citado no Vaticano II. (...) Se na concepção e exercício da função de Papa as diferenças com seus sucessores são reais, se a maneira de definir e de “praticar” a Igreja mudou com o Concílio [Vaticano II] , se o ecumenismo adquiriu novo impulso, se se desenvolveu o diálogo entre a Igreja e o mundo, o reinado de Pio XII preparou o trabalho conciliar, colocando os marcos da reflexão e os lineamentos das reformas” (J. Chélini, op. cit. contra-capa do segundo volume. Sublinhado e negritos são nossos).
Tal é a apresentação da obra de um historiador simpático a Pio XII. Ela impressiona.
Em artigo anterior, tivemos a oportunidade de abordar o papel de Pio XII na revolução litúrgica (O “Pastor Angélico” e o Cavalo de Tróia da Revolução Litúrgica, Veritas no. 36, maio de 1996, pág. 5).
Analisaremos agora, nos limites de um artigo, outra questão complexa - a idéia da construção de uma “nova ordem mundial”- tal como defendida por Pio XII e, depois, sua evolução sob os pontificados seguintes.
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Trata-se da posição “política” de Pio XII. Não nos referimos à polêmica questão do chamado “Silêncio de Pio XII” sobre o nazismo e o genocídio, que tanta tinta fez correr, mas à questão do comunismo e da “construção” de uma “Nova Ordem do Mundo”, no após-guerra.
Sem dúvida, ninguém pode negar a verdadeira “cruzada” anti-comunista movida por Pio XII no após-guerra, que salvou a Itália de um triunfo do PC. O Papa se empenhou com todas as suas forças na construção de uma “muralha” para deter o avanço dos comunistas na Itália. E o conseguiu.
Só que a “muralha” erguida por Pio XII era constituída pela Democracia Cristã, herdeira do Partido Popular e do Sillon... Foi a Democracia Cristã que assumiu o poder no lugar do PC. Ela fez a famigerada “apertura a sinistra”, colocando no governo os “marxistas moderados” do Partido Socialista, os quais se envolveram em operações que os juízes das “mani pulitte” não consideraram tão “pulitte”...
Se essa ação de Pio XII contra o comunismo merece louvor, ela não pode deixar de ser vista num plano maior.
Em 24 de dezembro de 1939, o Papa lançou sua primeira Rádio-Mensagem de Natal, e nela introduziu uma novidade extraordinária e perplexitante: a inclusão, no seu texto, da íntegra de uma carta pessoal que o Presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, lhe acabara de enviar. Roosevelt se apresentava, contra todo o protocolo tão amado por Pio XII, como o “old and good friend” do Papa Pacelli.
Não é preciso explicar por que essa amizade causa surpresa. Afinal, não é todo dia que se vê um Presidente americano, laicamente ligado a sociedades que trabalham - digamos...silenciosamente - contra a Igreja Católica, visando destruí-la, se dizer um “old and good friend” de um Papa, e de um Papa tão hierático quanto Pio XII.
A carta de Roosevelt foi editada junto com a Rádio-Mensagem de Natal de Pio XII de 1939, pela editora Vozes de Petrópolis em 1957, na Coleção “Documentos Pontifícios”, número 64. É dessa edição que faremos nossas citações.
Roosevelt começa sua missiva ao Papa com um tom religioso e bíblico, aludindo às guerras do tempo do Profeta Isaías, das guerras do tempo do nascimento de Cristo, e das guerras daqueles séculos “a que damos o nome de idade das trevas” (p. 15 ed. cit.). Destas guerras surgiram períodos de paz e de verdadeiro renascimento. Roosevelt diz, então, ao Papa, que isto acontece por causa da “centelha espiritual, inerente à humanidade” (p.15 - o sublinhado é nosso).
Continua, então, Roosevelt, dirigindo-se a Pio XII, afirmando que da próxima guerra adviria uma “nova ordem” do mundo. Uma “Novus Ordo Saeculorum”, como pode-se ler na nota de um dólar.
Prossegue o bem informado Presidente dos EUA: “Creio que talvez já exista, no meio de nós, a nova ordem de coisas que os estadistas ainda mal divisam. Creio até que essa nova ordem já está sendo construída, silenciosa, mas inevitavelmente(...)”(p. 16. O sublinhado e o negrito são nossos).
Curioso... Muito curioso...
Previne o presidente “yankee” que a “nova ordem”, “só pela cooperação mútua e amiga daqueles que buscam a luz e a paz, poderá levar de vencida as forças do mal” (p. 17).
Quem seriam esses homens que “buscam a luz e a paz”? Seriam eles, por acaso, os mesmos “homens de boa vontade” aos quais tanto se referiram Paulo VI e João Paulo II em seus documentos magisteriais?
A seguir, Roosevelt previne o Papa Pacelli de que “nas circunstâncias do momento presente [a II guerra mundial] não há nenhum líder espiritual ou temporal que possa executar um plano determinado, capaz de por fim a esta destruição e a reconstruir uma nova ordem”(p. 17).
Portanto, para Roosevelt, nem o Papa teria esse poder de estabelecer sozinho um “Novus Ordo Saeculorum”.
O presidente americano, então, convoca “todos os que têm a peito o mesmo ideal” a formar uma “frente única de ação”, quando chegar o momento de reconstruir a “nova ordem do mundo”.
Quem seriam esses homens possuídos pelo mesmo ideal de “luz e de paz”, capazes de, unidos, construir a “nova ordem do mundo? Será que Roosevelt considerava seu “old and good friend”, Pio XII, um desses homens? É por isso que ele ousava escrever a um Papa de modo a supor que ambos tinham o mesmo ideal? Teria se convertido [silenciosamente] o Presidente americano?
E conclui, o laico Presidente dos EUA: “Nesse ponto também, um ideal comum exige uma ação comum”(p.18).
Roosevelt afirma, afinal, que para construir essa nova ordem mundial seria necessária uma ação ecumênica:
“Confio, pois, plenamente, que todas as confissões religiosas do mundo, que crêem no mesmo Deus, envidarão todos os seus grandes esforços, em prol de uma tão grande causa” (p. 18).
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Nem Roosevelt, nem Pio XII viveram o tempo necessário para realizar esse plano que fora urdido “silenciosa e inevitavelmente”. Foi preciso aguardar João XXIII, Paulo VI, Casarolli, Reagan, João Paulo II e Gorbatchev, para iniciar essa ação conjunta de “homens de boa vontade”, amantes da “luz e da paz”, a fim de construir a nova ordem do mundo na qual hoje vivemos, graças à conciliação entre marxismo e democracia, igualdade e liberdade, Estados e igrejas, e até entre a Igreja Católica e as seitas heréticas.
A cidade de Assis viu o prelúdio dessa nova ordem, em 1986, quando João Paulo II se reuniu com os chefes de quase todas as religiões para que, juntos, cada um rogasse a seu Deus, a paz para o novo mundo. Para o mundo novo, que se promete para o terceiro milênio - expressão de forte sabor joaquimita - quando nascerá a “Civilização do Amor”. Ou, como se lê no dólar, a “Novus Ordo Saeculorum”.
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Surpreendente esse documento de Roosevelt, que encontra-se inserido numa Rádio-mensagem papal. De Pio XII, não de Paulo VI.
É assim que se gestam terremotos. Silenciosamente.
Para citar este texto:
"Gestação de terremotos"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/igreja/gestacao/
Online, 21/11/2024 às 08:42:53h