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A FSSPX é uma opção à radicalização das normas da Traditiones Custodes? Considerações iniciais sobre os Tribunais da FSSPX
Prof Orlando Fedeli e Alberto Zucchi
Tem sido muito divulgado por diversos meios de comunicação que, através de um novo documento do Vaticano, haveria uma radicalização do Motu Proprio Traditiones Custodes, no sentido de aumentar as proibições da celebração da Missa Antiga. Segundo os boatos, essas novas proibições na prática impossibilitariam padres diocesanos de celebrar a Missa Tridentina e obrigariam todos os padres ligados às comunidades “Ecclesia Dei” a celebrarem o Novus Ordus. Chegou-se a cogitar que o novo documento afirmaria que a assistência à Missa Antiga não cumpre o preceito dominical.
E para surpresa geral, mas não de todos, a Fraternidade Sacerdotal São Pio X – FSSPX - seria apresentada pelas autoridades romanas como a opção para aqueles que desejam permanecer ligados ao rito tridentino. As concessões feitas pelo Papa aos seus padres seriam não somente mantidas, mas possivelmente ampliadas.
Graças a Deus, pelo menos até a redação deste artigo essas ameaças não se concretizaram.
Já faz algum tempo que a FSSPX, ainda que não de forma efusiva ou declarada, se alegra com as proibições ao Rito Tridentino apresentadas pelo Papa Francisco. O superior da casa de São Paulo afirmou a seminaristas diocesanos que as atitudes do Papa em muito ajudam na propagação da FSSPX. A Fraternidade São Pio X não se cansa de repetir que as atitudes do Papa Francisco confirmam que ela agiu corretamente ao não concretizar um acordo com o Vaticano e que os demais institutos tradicionais fizeram mal em aceitar sua regularidade canônica.
Foi a partir do “Traditiones Custodes” que começou a surgir uma forte tendência, não só nos meios tradicionalistas, mas também em setores progressistas, de apresentar a FSSPX como solução para as restrições à Missa Antiga. A FSSPX, é claro, aproveita essa situação para atrair novos padres e reforçar seu número de seguidores.
Mas, para que isto possa ocorrer, a FSSPX precisa se equilibrar em uma “corda bamba”, da qual ela pode cair de dois lados. A FSSPX criou termos próprios e um tanto ambíguos para tentar passar um conceito que definisse sua situação. A expressão “comunhão plena” é a que mais tem sido utilizada.
Por um lado, se a “comunhão” for “muito plena”, a FSSPX perde sua independência em relação à hierarquia da Igreja a qual, segundo eles, é necessária para permanecerem na fé. Por outro lado, se a “comunhão” for “pouco plena”, eles podem ser acusados de cismáticos e caminhar rapidamente para o sedevacantismo e, neste caso, o apoio recebido se restringiria a um pequeno número de fanáticos, ou melhor, lunáticos, que já se encontram em outro hospício. Não é sem razão que o caminho normal de muitos sedevacantistas foi passar pela FSSPX.
Assim, ao mesmo tempo em que a FSSPX alardeia sua independência das autoridades do Vaticano, insiste de forma veemente que não é cismática e, como argumento, não se cansa de repetir, de forma categórica, que as autoridades do Vaticano não consideram que ela esteja em cisma. Também reafirma várias vezes, em comunicados públicos, que ela está em comunhão com o Papa e que a ideia de separação seria uma difamação originada em padres diocesanos.
Para comprovar essa “comunhão plena, mas não muito plena” são apresentados alguns exemplos concretos, como o fato de um padre da FSSPX ser recebido de maneira muito gentil no Vaticano e ter tido a permissão e o apoio material para celebrar a Missa Antiga na Basílica de São Pedro, o que é proibido a todos os demais padres.
Chegamos então a uma situação paradoxal, tão comum em nossos dias: a FSSPX aceita a “Roma modernista” quando se trata de apoiar a ela e, por outro lado, para os modernistas, os integristas da FSSPX são a solução para todos aqueles que desejam manter o rito romano, em união com o Vaticano. Dir-se-ia que o tal “acordo prático” tão rejeitado pela FSSPX no passado se concretizou da maneira mais estranha possível.
Neste quadro surge a questão se devemos deixar de frequentar as igrejas e os sacramentos dos padres diocesanos e dos Instituto Ecclesia Dei para reforçar as fileiras da FSSPX.
Nossa resposta a esta pergunta é muito clara e objetiva: Não! de maneira alguma! Isto seria um enorme erro, que envolve dois aspectos: doutrinário, que é o principal, e político que é secundário, mas também não deixa de ter uma significativa importância. Entretanto, não podemos deixar de considerar que esta é realmente uma questão que envolve muitos aspectos e perturba as consciências. Por isto precisa ser bem analisada, o que pretendemos fazer em alguns artigos.
Comecemos nossa análise tratando de uma questão doutrinária que é a tendência, para utilizar uma expressão bem moderada, de substituir a Igreja pela própria FSSPX.
Para iniciarmos nossos artigos republicamos aqui o trabalho sobre os Tribunais da FSSPX, elaborado pelo Professor Orlando.
Este trabalho foi escrito em razão da descoberta desses tribunais pelo Professor Orlando – descoberta é a palavra correta porque os tribunais da FSSPX foram instituídos e agiam de forma secreta. A finalidade desses tribunais é julgar principalmente nulidades matrimoniais em substituição aos tribunais romanos, que seriam liberais.
Assim que deles tomou conhecimento, o Professor ficou perplexo e escreveu para Dom Tissier de Mallerais, que respondeu confirmando a existência dos tribunais e apresentando justificativas para sua existência.
A resposta do Bispo da FSSPX confirmou os temores do Professor Orlando de que os referidos tribunais usurpavam o poder de julgar, que é um de direito exclusivo do Papa. Isto levou o Professor a elaborar um trabalho onde ele demonstra que o “estado de necessidade” não justifica a existência de tribunais e que a usurpação desse poder papal se constitui em um ato cismático. O professor conclui o seu trabalho afirmando:
“Conclusão: por tudo o que acabamos de expor, a instauração de tribunais eclesiásticos e de órgão ao qual se atribuem os poderes da Rota Romana pela Fraternidade São Pio X nos parece evidentemente um ato cismático”.
E em consequência desta conclusão o Professor afirma:
“Tendo em vista tudo isso, nós membros da Associação Cultural Montfort declaramos que queremos manter-nos na Igreja Católica Apostólica Romana de sempre, submissos à autoridade do Sumo Pontífice, o papa João Paulo II. E por isso nos declaramos totalmente separados do movimento tradicionalista da Fraternidade São Pio X fundada por Monsenhor Lefebvre, assim como da Fraternidade Sacerdotal São João Maria Vianney dos padres tradicionalistas de Campos”.
Trata-se, portanto, de uma crítica clara e objetiva, o que nos leva a uma outra questão - que não será objeto, neste momento, da nossa análise, mas que vale a pena aqui mencionar: como aqueles que conhecem bem este estudo e que se apresentam como continuadores da obra e do pensamento do Professor Orlando frequentam a FSSPX sem qualquer restrição, procurando nela apoio às suas atividades e frequentando os seus sacramentos, quando há em suas dioceses muitos locais onde esses mesmos sacramentos são realizados?
A publicação do trabalho do Professor, no início de 1997, causou grande repercussão nos chamados meios tradicionais e na própria FSSPX. Até mesmo entre seus padres o assunto causou grande perplexidade e muitos pediram explicações.
Um deles foi o Padre Rafael Navas, então superior da FSSPX no Chile e que posteriormente se tornou o primeiro padre fora da França a ingressar no Instituto do Bom Pastor – IBP, imediatamente após a sua fundação. Nenhuma resposta foi apresentada ao padre Navas, a não ser sua expulsão sumária da FSSPX. Aqueles que julgam que as autoridades eclesiásticas romanas são muito duras nas punições aos padres tradicionais, conhecendo a história do padre Navas talvez cheguem à conclusão que elas são até gentis, quando comparadas às autoridades da FSSPX.
Quando nos encontramos em Santiago com o padre Navas, logo após sua expulsão, vimos um padre alegre e disposto ao apostolado, mas com os sinais de um grande sofrimento. Vimos o casebre de madeira de apenas dois cômodos onde ele estava e a sua batina com um enorme remendo na parte da frente. Mas esta questão do tratamento dado aos padres que discordam da direção da FSSPX será objeto de uma análise específica, pois ela também faz parte da demonstração de como a FSSPX pretende substituir a Igreja.
Durante um bom tempo não houve qualquer resposta ao Professor por parte da FSSPX, mas, quando esta se instalou na cidade de São Paulo, muitos dos que começaram a frequentar seus sacramentos era oriundos da Monfort e, por isso, o ex-padre Joel Danjou, julgou necessário responder ao estudo, através de um artigo publicado no site da FSSPX de São Paulo, em fevereiro de 2007.
No tempo de Bento XVI, com a possibilidade do acordo entre o Vaticano e a FSSPX, o Professor Orlando deixou de tratar do assunto. Devido às várias migrações de sistemas que foram realizadas no site Montfort, deixou também de ser possível acessar esse trabalho.
No outro lado, o padre Joel Danjou pediu a “redução ao estado leigo” e, segundo ele informou a amigos nossos, ele fez este pedido através dos tribunais “liberais e modernistas” do Vaticano e não pelos tribunais “sérios e de exceção” da FSSPX. A resposta do ex-padre também será analisada em outro artigo.
O trabalho do senhor Joel Danjou permaneceu por algum tempo no site da FSSPX de São Paulo, foi retirado quando ele retornou a França para tratar de seus problemas e, posteriormente, foi respostado quando da nossa polêmica com a FSSPX sobre as “reordenações sob condição” feitas aos padres que deixam suas dioceses para ingressar na FSSPX. Realmente há muito que analisar.
Juntamente com a republicação do trabalho apresentamos algumas respostas do Professor sobre esse tema às cartas de leitores do site e que representam a posição da Montfort sobre o tema.
Alberto Luiz Zucchi
01/06/2023
Se instituir um "tribunal eclesiástico" com os poderes da Sagrada Rota constitui cisma
I - Status questionis
A revista Iesus Christus - órgão da Fraternidade São Pio X da Argentina (ano VIII, n. 43, de janeiro-fevereiro de 1996), publicou uma nota, em sua página 17, intitulada Nulidade de Matrimônios, na qual noticia o grande número de anulações concedidos pelos tribunais eclesiásticos, especialmente nos Estados Unidos, e que indicam qual é a situação moral atual da Igreja. E concluiu dizendo:
"Eis aqui o que confirma a legitimidade dos matrimônios abençoados por nossos sacerdotes, assim como nossos tribunais para causas matrimoniais" (O sublinhado é nosso).
Pela primeira vez, ao que saibamos, se noticiava a existência de tribunais para causas matrimoniais da Fraternidade São Pio X.
Evidentemente, isto nos causou enorme perplexidade, visto que a existência desses tribunais - típicos órgãos jurisdicionais - indicava que a Fraternidade São Pio X havia mudado quanto à questão da jurisdição.
Com efeito, ainda antes da sagração dos Bispos em Écône, Mons. Lefèbvre havia deixado claro que, se porventura ele sagrasse um dia Bispos, eles teriam apenas uma ação sacramental e nunca de jurisdição:
"Se um dia fosse necessário sagrar Bispos, estes teriam a única função episcopal de exercer seu poder de ordem e não teriam nenhum poder de jurisdição, não tendo missão canônica". (Mons. Lefebvre, apud Si, si, no, no, Hirpinus, artigo "Nem cismáticos, nem excomungados, julho de 1988, ano XIV, n. 13).
Quando se deu a sagração dos Bispos em Ecône, Mons. Lefebvre declarou:
"Eu me vejo constrangido pela Providência divina a transmitir a graça do Episcopado católico que recebi. O principal escopo desta transmissão é de conferir a graça da ordem sacerdotal para a continuação do verdadeiro Sacrifício da Santa Missa e para conferir a graça do Sacramento do Crisma às crianças e aos fiéis que nô-las pedem"(Hirpinus, art cit.).
Comentando esta declaração escreveu Hirpinus:
"Portanto, Mons. Lefebvre não se arrogou o direito de conferir aos novos Bispos o poder de jurisdição que provém mediata ou imediatamente do Romano Pontífice, não organizou nem entende organizar uma hierarquia paralela (além de que os Bispos por ele ordenados permanecem na Fraternidade submissos ao Superior Geral), e ainda menos uma igreja paralela. Ele se limitou a transmitir aquele "poder de ordem" que o Bispo recebe diretamente de Deus no ato da consagração, a fim de que os novos Bispos possam suprir ao estado de necessidade das almas e dos candidatos ao Sacerdócio." (Hirpinus, art. cit.).
A notícia da revista Jesus Christus de que havia tribunais na Fraternidade São Pio X contrariava, pois, essa declaração de Mons Lefebvre, assim como as reiteradas afirmações dos sacerdotes de Ecône e de Campos de que não se caíra em cisma, porque não se assumira nenhuma jurisdição territorial que só o Papa pode dar.
Um segundo ponto a observar na notícia citada é que nela se afirma que o escandaloso número de anulações matrimoniais concedidos pelos tribunais canonicamente instituídos "legitima... nossos tribunais" (Jesus Christus, nota citada).
Ora, essa afirmação é absurda e inaceitável: o relaxamento ou o rigor das decisões de um tribunal, conforme exporemos, jamais o tornam ilegítimo e, muito menos, podem conferir legitimidade à instituição de um outro tribunal, paralelo ao oficial existente.
A revista Jesus Christus noticiava, pois, que a Fraternidade São Pio X atravessara um Rubicão.
Procuramos, então, informar-nos com os padres tradicionalistas de Campos sobre a existência ou não desses tribunais, e como se justificaria a sua existência.
As respostas que obtivemos foram evasivas ou contraditórias.
Ora diziam-nos que os tribunais não existiam, ora que havia apenas um "bureau" para causas matrimoniais (como se a questão mudasse apenas por dar-se o nome de “Bureau” a um órgão que pronunciaria sentenças judiciais). Mais tarde, disseram-nos, e garantiram-nos, que não havia tribunais. Depois, confessou-se que eles existiam, mas que só eram conhecidos pelos padres que tivessem fiéis com algum problema jurídico matrimonial. D. Licínio escreveu que o "Bureau" de Campos dava apenas opiniões de peritos, ou seja, pareceres, e não sentenças. Entretanto, escrevia sua Excia.: "... o que na verdade acontece é que eu consulto, se necessário, os padres do Conselho da União Sacerdotal para diversos casos. Quem, porém, toma as decisões, sou eu, tendo em vista o princípio de jurisdição de suplência do Direito Canônico e os da jurisprudência dos mestres na matéria, para o caso de necessidade que justificou a medida de extrema gravidade das sagrações episcopais contra os direitos do Papa". (D. Licínio Rangel, carta à Sra. Márcia Doze).
O mesmo D. Licínio Rangel escreveu à Irmã Letícia de Bom Jesus do Itabapoana:
"E se a "Commission Canonique St. Charles Borromée", instituída por D. Lefebvre, o fizer [anular matrimônios] não estará usurpando nenhum poder do Papa, nem dos Bispos. Seus membros estarão, no caso, emitindo um juízo particular como peritos em Direito".
Portanto, D. Licínio afirmava que a Commission Saint Charles Borromée emitia apenas juízos particulares (ou seja, meros pareceres) e não propriamente sentenças.
Estando as coisas neste ponto, escrevemos a Mons. Féllay, atual Superior da Fraternidade São Pio X, indagando acerca da existência desses tribunais.
Recebemos então de Mons. Tissier de Mallerais - presidente da Commission Canonique Saint Charles Borromée - uma resposta que, ao invés de nos apaziguar as dúvidas, agravou-as. Nessa carta, datada de 9 de outubro de 1996, Sua Excia. nos informava que, além de tribunais eclesiásticos de primeira e segunda instância, a Fraternidade São Pio X instituíra um tribunal com os poderes da Sagrada Romana Rota.
"Pour les sentences que nous prononçons en troisième instance, nous appliquons par analogie à notre Commission Canonique les pouvoirs du tribunal de la Sainte Rote Romaine pour les mêmes raisons de la situation de nécessité, puisque la Rote elle-même est imbue des faux principes personnalistes. Là encore vaut le principe "Ecclesia supplet".
[Quanto às sentenças que nós pronunciamos em terceira instância, nós aplicamos por analogia a nossa Comissão Canônica os poderes do tribunal da Santa Rota Romana pelas mesmas razões de necessidade, já que a própria Rota está imbuída de falsos princípios personalistas. Aí também vale o princípio "Ecclesia supplet".].
Esta confissão de Monsenhor Tissier de Mallerais coloca claramente em foco o problema do cisma:
É lícito a alguém apoderar-se, ou atribuir-se, os poderes da Rota Romana?
Fazer isto constitui um ato cismático?
II – Cisma e Causas de Cisma
Tomemos as várias conceituações de cisma utilizadas pela própria Fraternidade São Pio X e pelos Padres tradicionalistas de Campos, nos documentos que eles publicaram.
"O cisma consiste em atribuir-se uma autoridade sobrenatural sobre os batizados, independentemente da Santa Sé" (...)
"A aptidão de dirigir uma porção da Igreja não pode ser posta em ato, por direito divino, pela vontade expressa de Nosso Senhor Jesus Cristo, senão somente pelo Bispo de Roma, enquanto sucessor de São Pedro. Somente o Papa recebe diretamente de Deus, no momento de sua ascensão à Santa Sé, a jurisdição imediata sobre todos e cada um dos fiéis, e os Bispos recebem do Sumo Pontífice o rebanho que devem dirigir.
"O cisma radica, pois, para um ser humano (seja ele Bispo ou não) na usurpação desta autoridade sobrenatural". ("Pode consagrar Bispos o Arcebispo Monsenhor Marcel Lefebvre sem cisma nem desobediência?" Suplemento de Roma Aeterna - revista da Tradição Católica - condensado de Fideliter n. 60).
"Quer dizer, são cismáticos aqueles que recusam estar e permanecer sob a autoridade, recusam participar da unidade de governo dada ao Corpo Místico por via jurisdicional autêntica. Isto supõe algo mais do que uma simples desobediência. É necessário que haja rebelião: acreditando na legitimidade do poder jurisdicional, recuso submeter-me à autoridade e reconhecê-la como superior a mim. Implica uma espécie particular de rebelião impulsionada por um desprezo obstinado da autoridade da Igreja.
"Por obstinada que seja a desobediência, não será cisma, enquanto ela não comporte uma rebelião contra a função do Sumo Pontífice e da Igreja. Se recuso considerá-lo como meu superior, acreditando ao mesmo tempo que ele o é, caio em cisma: aparto-me da unidade de direção que Cristo quis dar ao Corpo Místico e proclamo prática e concretamente minha decisão de agir como separado." (La Consagración de Obispos - Fraternidade Sacerdotal San Pio X , p. 4).
Cisma é, pois, uma recusa obstinada de aceitar a autoridade do Papa, instituindo um governo paralelo no corpo eclesiástico, rompendo assim a unidade da Igreja.
O Cardeal Journet, em seu livro L' Église du Verbe Incarné, comentando o que diz São Tomás a respeito de cisma, afirma:
"O pecado de cisma se opõe diretamente e de si à unidade... É o pecado daquele que tende de si - seja que ele o queira diretamente, seja que ele o queira indiretamente - a se separar da unidade que faz a caridade (...) São propriamente cismáticos somente aqueles que, de pleno grado e deliberadamente, se separam da unidade principal que faz a Igreja". (C. Journet, op cit., vol II , p. 823 a 850).
Num trabalho dos Padres de Campos, lemos que podem existir quatro causas de cisma, causas essas que podem se dar cumulativamente:
"1 - A RECUSA DE UM DOGMA DA IGREJA, quer dizer a heresia. Exemplo mais célebre é o protestantismo (...)
"2 - A RUPTURA DA SUCESSÃO APOSTÓLICA, ou a quebra do laço genealógico que faz de cada Bispo um sucessor dos Apóstolos. Essa ruptura se dá no caso de uma sagração inválida. É o caso da Igreja Anglicana(...)
"3 - A REBELIÃO CONTRA A AUTORIDADE DO PAPA, quer dizer, deixar de reconhecer o primado do Soberano Pontífice. Exemplo dessa ruptura é o cisma do oriente.
"4 – USURPAÇÃO DOS PODERES DE GOVERNO DO PAPA, FORMANDO
UM IGREJA PARALELA
"Há dois tipos de poder na Igreja: o poder de ordem, que se transmite sacramentalmente, e o poder de governo (a missão apostólica do Bispo, sua jurisdição:
sua diocese, sua função), que procede só do Papa.
"Como bem explicou o atual decano da Faculdade de Direito Canônico do Instituto Católico de Paris, Padre Patrick Valdrini: "Não é a sagração de um bispo que cria o cisma, mesmo que isto seja uma falta grave contra a disciplina da Igreja; o que consuma o cisma é conferir, em seguida, a estes bispos, uma missão apostólica. Pois esta usurpação dos poderes do Soberano Pontífice prova que se constituiu uma Igreja paralela."
(Padre FERNANDO ARÊAS RIFFAN - Por que a sagração de Bispos efetuada por D. Lefebvre não constitui um cisma. Este artigo tem uma aprovação manuscrita e assinada por D. Antônio de Castro Mayer, Bispo Emérito de Campos).
Conclui-se de tudo isto que usurpar, isto é, apoderar-se ou atribuir-se indevidamente os poderes próprios do Papa é cisma.
III – O que escreveu Monsenhor Tissier de Mallerais.
Monsenhor Tissier de Mallerais, na carta que nos enviou afirmou:
1 - que na Fraternidade São Pio X foram instituídos tribunais de primeira e de segunda instância;
2 - que se atribuiu à Comissão Canônica São Carlos Borromeu "os poderes da Sagrada Rota Romana", a fim de emitir sentenças em terceira instância;
Razões disto teriam sido:
a- os princípios personalistas de que está imbuída a Sagrada Rota atual; o grande número de declarações de nulidade matrimonial baseadas nos cânones 1095 e 1098 do Novo Código de Direito Canônico;
b- o estado de necessidade criado por esses abusos;
Em conseqüência, a Comissão Canônica São Carlos Borromeu da Fraternidade São Pio X considerou ser legítimo assumir os poderes da Sagrada Rota Romana - que é um Tribunal papal - com base no cânon 144 do Novo Código Canônico (209 do antigo Código) que trata da jurisdição de suplência.
IV - Se assumir os poderes dos Tribunais eclesiásticos, e especialmente da Sagrada Rota Romana, constitui, em tese, cisma
Na Igreja Católica Apostólica Romana, o poder supremo pertence ao Papa, sucessor de São Pedro e Bispo de Roma. O Papa tem o poder executivo, legislativo e judiciário sobre toda a Igreja.
Na Igreja, não existe a divisão de poderes, como é admitido nas democracias liberais. O poder é uno e emana unicamente do Papa. Por isso, quem usurpa um dos poderes do Papa está usurpando todo o poder pontifício.
“El Sumo Pontífice, por razón del primado de la Iglesia, no solamente ocupa el grado supremo de la Jerarquía, sino que en el mismo reside toda la potestad, que puede ejercer en cualquier forma o momento, bien sea inmediatamente por si mismo sobre cualquier persona o cosa, bien sea por medio de tribunales ordinarios o por juices delegados” (Tomás G. Barberena, Comentarios al CDC, Volume III, pg. 310).
Segundo o Cânon 1442 do novo Código de Direito Canônico,
"O Romano Pontífice é o juiz supremo para todo o mundo católico e julga pessoalmente pelos Tribunais ordinários da Santa Sé, ou por juízes por Ele delegados"
E o cânon 1443 diz:
"O Tribunal ordinário constituído pelo Romano Pontífice para receber apelações é a Rota Romana".
A Sagrada Rota Romana é, assim, o Tribunal papal para apelações em grau de recurso em terceira instância, e, para outras causas, em primeira instância.
O cânon 360 estabelece que a Sagrada Rota Romana é um órgão da Cúria Romana, que fala em nome do Papa e com a autoridade do Papa:
Cânon 360: "A Cúria Romana pela qual o Romano Pontífice costuma tratar os negócios da Igreja universal e que em nome dele e com a sua autoridade desempenha função para o bem e o serviço das igrejas consta das Congregações (...) do Tribunal da Rota (...)".
Os juízes da Rota são nomeados diretamente pelo Papa e esta - como todos os outros órgãos da Cúria Romana – é um vicariato papal, isto é, falam em nome do Papa, fazendo as vezes do Papa.
A Sagrada Rota é chamada também de Tribunal da Santa Sé, pois, no dizer de Barberena, “é constituído pela Santa Sé e julga em nome do Papa” ( Tomás G. Barberena, Comentários ao CDC, Volume III, p. 314).
Por isto, é de praxe que as sentenças da Rota citem o Papa reinante, pois que essas sentenças são de seu Tribunal e dadas em seu nome.
Já os Tribunais locais, embora instituídos pelos Bispos em suas Dioceses, nem por isso deixam de atuar por delegação da jurisdição papal, nos termos do cânon 1142.
Não há dúvida, pois, que a Rota Romana, assim como todos os tribunais eclesiásticos instituídos pelos Bispos em suas Dioceses, são tribunais papais. Usurpar os seus poderes, portanto, constitui, em tese, um ato usurpatório do poder papal, sendo, pois, um cisma.
V - Escusas alegadas por Monsenhor Tissier de Mallerais e pelos padres tradicionalistas para instituir tribunais para causas matrimoniais
Os tradicionalistas alegam as seguintes razões para justificar a instituição de tribunais para pronunciar sentenças sobre causas matrimoniais:
1 - A adoção pelos juízes dos Tribunais Oficiais e da Rota Romana de princípios personalistas, que tornaria suas sentenças “duvidosas ou mesmo nulas”;
2 - O número excessivo de declarações de nulidade matrimonial sentenciados pela Rota ou por tribunais diocesanos;
3 - O "estado de necessidade dos fiéis" cuja salvação estaria em risco, devido a essas sentenças abusivas ou relaxadas emitidas pelos tribunais canônicos diocesanos ou romanos;
4 - Esta situação de necessidade justificaria a instauração de tribunais com a chamada "jurisdição de suplência" expressa pelo cânon 144 do novo Código de Direito Canônico.
VI - Refutação
1º argumento da Fraternidade São Pio X:
- A adoção de uma filosofia errada, e mesmo herética, por parte de juízes torna um tribunal ilegítimo.
Refutação
A legitimidade de um tribunal civil provém do Estado, que ele representa, e não da filosofia de cada um ou de todos os seus membros.
Na sociedade civil, os tribunais do Estado contam com juízes seguidores das filosofias mais absurdas, e nem por isso tais tribunais perdem legitimidade. Os juízes do tribunal de São Paulo, e de Campos ou de Êcone podem ser liberais, marxistas, protestantes, macumbeiros ou maçons, e nem por isso se torna permitido, a quem quer que seja, organizar tribunais paralelos. Quem tal fizesse, estaria promovendo uma rebelião ou uma revolução contra o Estado, do qual promana a legitimidade dos tribunais legalmente instituídos.
A Igreja jamais, em lugar nenhum, declarou que os católicos teriam o direito de estabelecer tribunais paralelos, caso os juízes do Estado adotassem uma filosofia herética ou inaceitável.
Dá-se o mesmo em relação às leis iníquas.
As sentenças que esses juízes pronunciassem fundamentadas em leis que derivam de uma filosofia errônea ou herética seriam, sem dúvida, injustas e até nulas. Mas isto não tornaria o próprio tribunal ilegítimo. Nem poder-se-iam acoimar todas as suas sentenças de “ duvidosas ou mesmo nulas”.
Pilatos foi o juiz autor da mais iníqua das sentenças. Entretanto, quando indagou a Nosso Senhor se não sabia que detinha o poder de crucificá-lo ou soltá-lo, teve sua legitimidade confirmada pelo próprio Deus:
“Tu não terias poder algum sobre mim, se não te fosse dado do alto”(Jo., XIX, 11).
Se a adoção de uma filosofia errônea ou herética pelos juízes de um tribunal tornasse ilegítimo o próprio tribunal, nenhum tribunal do mundo teria hoje legitimidade.
Ademais, antes de um juiz julgar qualquer réu, seria dado a este último julgar a filosofia do juiz, para verificar se sua sentença seria legítima ou não. O que é absurdo patente.
Os mesmos princípios assim expostos valem, sem dúvida, para os tribunais eclesiásticos, que certamente em outros períodos históricos também tiveram juízes de princípios heterodoxos. E nem por isso tiveram sua legitimidade contestada pelos santos, que jamais instituíram os seus próprios tribunais.
Ademais, a recusa da legitimidade de um tribunal pontifício como a Sagrada Rota Romana significa, de fato, a acusação de que o próprio Papa deixou de ser legítimo. Pois somente se poderia admitir que o Tribunal perdeu a jurisdição – não supressa pelo Papa – se o próprio Pontífice tivesse perdido o mandato a ele conferido por Cristo. E isso é a aceitação da tese sede-vacantista que a Fraternidade São Pio X sempre condenou. Aceitando que a Sé Apostólica não está vacante e que João Paulo II é Papa, a Fraternidade São Pio X, ao estabelecer um tribunal com os poderes da Rota Romana, cai em contradição e em cisma.
20 argumento da Fraternidade São Pio X:
O número excessivo de declarações de nulidade matrimonial quer pela Rota Romana, quer por tribunais diocesanos legitimaria os tribunais da Fraternidade São Pio X.
Refutação
Se um tribunal aplica leis de modo relaxado, ou mesmo que aplique leis baseadas em princípios filosóficos errôneos, tal fato, como vimos, não causa a ilegitimidade do próprio tribunal. O mau funcionamento de uma instituição, ou o abuso de seus princípios, não acarreta a sua ilegitimidade.
Também não procede a alegação de que a Rota Romana e os Tribunais Diocesanos perderam legitimidade, porque declararam um número excessivo de nulidades matrimoniais, fundamentando-se em cânones inaceitáveis pela doutrina tradicional católica (Os cânones 1095 e 1098). Quando uma lei é errada ou má, deve-se reformar a lei e não declarar ilegítimo o tribunal que a aplica.
O argumento da revista Jesus Christus dá um passo além, ao afirmar que o número excessivo de sentenças declaratórias de nulidade matrimonial provaria, não só a perda de legitimidade da Rota Romana, como também a legitimidade dos tribunais instituídos pela Fraternidade São Pio X .
Se esse princípio fosse verdadeiro, qualquer Bispo, mesmo que não fosse da Fraternidade São Pio X, poderia, alegando os mesmos vícios, instituir um tribunal próprio com os poderes da Rota, o que destruiria completamente a unidade da Igreja.
Afinal, por que só a Fraternidade teria agora o direito de instituir um tribunal com os poderes da Rota Romana? E quem teria dado à Fraternidade São Pio X esse direito e esse poder não o conferira também a outros?
Quem nomeou os membros da Comissão Canônica São Carlos Borromeu, dando-lhe um direito e um poder que só um Papa pode dar?
Sendo os juízes eclesiásticos vigários papais, que, como vimos, falam em nome do Papa, e dão sentenças em nome do Papa, em nome de quem os juízes da Comissão Canônica São Carlos Borromeu proferem suas sentenças?
Portanto, a declaração de Monsenhor Tissier de Mallerais cria a suspeita de cisma. Bastaria isto para nos obrigar a romper com a Fraternidade São Pio X, a fim de manter a união com Roma e com o Papa.
30 Argumento da Fraternidade São Pio X:
O estado de necessidade dos fiéis, cuja salvação estaria em risco devido às sentenças relaxadas emitidas tribunais, quer diocesanos, quer romanos, justifica os tribunais da Fraternidade.
Refutação
O pretenso "estado de necessidade dos fiéis" alegado pela Fraternidade São Pio X, nos parece inexistente. Tirar dele o direito de instituir tribunais paralelos aos canônicos, se nos apresenta como um abuso cismático.
“Necessidade- ensina Dom Oscar de Oliveira- é a circunstância que torna impossível a observância da lei” (Apud Padre Fernando Arêas Rifan, op. cit., p.14).
Cumpre verificar se, no caso das anulações de casamentos, há alguma circunstância que torne impossível – e não meramente difícil ou inconveniente – o recurso aos tribunais eclesiásticos canonicamente instituídos. Cumpriria, ainda, verificar se tal circunstância poderia conferir legitimidade a qualquer Bispo para que criasse seus próprios tribunais, à revelia de Roma.
Praticamente, podem apresentar-se aos sacerdotes duas hipóteses possíveis:
Ou o casamento submetido à apreciação dos Padres da Fraternidade foi realmente nulo, nos termos da lei correta, ou foi válido.
No primeiro caso - o de um casal cujo matrimônio foi realmente nulo - não haveria problema algum em recorrer aos tribunais da Igreja. Como é certo que tais órgãos estão declarando com excessiva facilidade nulidades matrimoniais, é igualmente certo que esse casal verá respeitado o seu direito, a tal declaração, e não sofrerá injustiça.
No segundo caso - o de um casal que contraiu validamente matrimônio - o padre ortodoxo (tradicionalista ou não), quando consultado, deverá dizer ao casal que seu matrimônio foi legítimo, e que não há razão de nulidade. Pode ainda adverti-lo de que uma possível declaração de nulidade por um tribunal eclesiástico não teria qualquer valor, tendo em vista que a lei moderna contempla casos de anulações de casamentos legítimos diante de Deus. È possível que esse casal, apesar disso, recorra aos tribunais eclesiásticos e à Rota Romana, e obtenha a declaração de nulidade por meio de uma sentença iníqua. Da mesma forma como, em tese, seria possível a um casal que teve a nulidade recusada pelos tribunais da Fraternidade recorrerem aos tribunais eclesiásticos e obtê-la.
Nesse caso, o sacerdote ortodoxo não acataria aquela sentença iníqua,e não reconheceria aquela anulação. Mas não poderia, por isso, deixar de aceitar a legitimidade do próprio tribunal. Como é fácil perceber, em qualquer das hipóteses, seria possível contornar, sem qualquer violação da lei da Igreja, e mesmo sem qualquer inconveniente, os erros decorrentes de uma má doutrina e da moderna lei canônica.
Chegou-nos notícia de que assim age, sem qualquer problema um outro grupo de padres tradicionalistas.
Portanto, não há circunstância que torne impossível o cumprimento da lei. Não se configura, pois, o estado de necessidade dos fiéis.
40 Argumento da Fraternidade São Pio X:
Esse estado de necessidade dos fiéis justificaria a instituição de tribunais com a chamada "jurisdição de suplência", tal como é determinada pelo cânon 144 do novo Código de Direito Canônico.
Refutação
Para analisarmos este argumento, será necessário estudar, embora sucintamente, em que circunstâncias podem ocorrer, nos termos da lei canônica, a suplência de jurisdição, de que trata o cânon 209 do antigo CDC ( Cânon 144 do atual Código).
O Poder de jurisdição, na definição de Devoti, é “aquele poder concedido por Cristo aos Apóstolos e a seus legítimos sucessores, para governar os fiéis, seus súditos, nas coisas eclesiásticas” ( Apud Vincenzo Politi, La Girusdizione Eclesiáastica e la sua delegazione, Milano, 1937, p.32).
A jurisdição pode ser ordinária, quando ligada a determinado cargo, ou delegada, quando atribuída a pessoa determinada.
É a jurisdição que confere ao sacerdote a faculdade de exercer legitimamente o poder da ordem e o direito de tomar parte no governo da Igreja( Padre Gualtero Devivier, Curso de Apologetica Cristiana, 2a edição, Barcelona, vol. II, p. 39).
Entretanto, se algum sacerdote exerce alguns atos que exigiriam a jurisdição, sem a possuir, a Igreja, em determinados casos, supre essa falta de jurisdição conferindo legitimidade a esses atos, a fim de tranqüilizar as consciências dos fiéis.
A matéria era regulada pelo antigo CDC nos seguintes termos:
“Cânon 209 – em caso de erro comum ou de dúvida positiva e provável, tanto de direito como de fato, a Igreja supre a jurisdição tanto no foro externo como no interno”.
A nova lei trata da matéria de forma semelhante:
“Cânon 144 §1: No erro comum de fato ou de direito, assim como na dúvida positiva e provável de direito ou de fato, a Igreja supre o poder executivo de regime, tanto para o foro externo como para o interno”.
Portanto, tanto nos termos da lei antiga como da nova, somente a falar-se em suplência de jurisdição caso ocorra uma destas duas hipóteses: erro comum ou dúvida positiva e provável.
a) Erro comum “é aquele que afeta o conjunto de membros de uma comunidade, a respeito da existência da jurisdição ordinária ou delegada, delegada, que é falsamente atribuída a alguém” (R. Naz e outros, Traité de Droit Canonique: Introduction Règles Génerales des Personnes, Letouzey et Ané, Editeurs, Paris, Tomo I, Pág. 350).
Os autores da obra citada fornecem um exemplo:
“Por ocasião de uma festa, um confessor extraordinário está presente numa igreja. Acredita-se que ele tem jurisdição, mas na realidade ele não a tem, pois esqueceu-se de pedi-la ao Ordinário. Algumas pessoas se apresentam para a confissão, pouco numerosas em relação ao número de paroquianos, que nem mesmo pensam em se dirigir a esse confessor. Haveria, nesse caso, erro comum. Se, com efeito, os outros paroquianos quisessem se confessar, eles cairiam necessariamente no mesmo erro”(R. Naz e outros, op. cit., tomo I, p. 350).
b) Dúvida positiva “é aquela fundada sobre razões positivas, não sobre a simples ignorância; ela é dita provável se essas razões tem peso(...). Exemplos de dúvida em relação a um fato. O tempo de jurisdição já se escoou? O confessor se encontra na diocese para a qual obteve jurisdição ? Tal pessoa encontra-se em artigo de morte? Exemplos de dúvida relativa ao direito. Tal pecado é reservado ou objeto de censura? O erro comum se verifica quando a maioria da comunidade ao participa?”(R. Naz e outros, op. cit., tomo I, p. 351).
Expostas as condições pra que a jurisdição seja suprida pela Igreja, cabe analisar se alguma delas se encontra presente no caso dos tribunais da Fraternidade S. Pio X, conferindo-lhes essa suplência que eles se atribuem.
A resposta só pode ser negativa.
Cabe notar que o erro ou a dúvida exigidos para a suplência de jurisdição tem por objeto a jurisdição ordinária ou delegada.
No exemplo de erro acima fornecido, os féis supõem falsamente que o sacerdote tem jurisdição delegada pelo Ordinário, e ele na verdade não a tem. Nos exemplos de dúvida, essa incide necessariamente sobre a jurisdição ordinária ou delegada.
Em outros termos, o que a Igreja evidentemente supre, postas determinadas circunstâncias, é a jurisdição ordinária ou delegada daqueles que não a possuem.
Ora, no caso da Fraternidade não há falar-se em erro, pois nenhum fiel supõe que algum dos juízes de sua “Comissão Canônica” possua jurisdição ordinária ou delegada. Eles mesmos admitem que não a possuem.
Portanto, não há falar-se de suplência de jurisdição.
Note-se ainda que Dom Tissier de Mallerais citou textualmente, em latim, o texto da nova lei canônica, que o condena. Pois, como vimos – e como citou sua Excia. – o que a Igreja supre, nos termos da lei, é apenas “o poder executivo de regime (potestates regiminis exsecutivam)”. E não o judiciário.
Comentando essa passagem, afirma Arnaldo Viana:
“A suplência de poder não pode aplicar-se ao exercício do poder legislativo nem tampouco ao poder judiciário, mas somente em atuações concretas em virtude do poder executivo, tanto em razão do ofício como também por delegação. Assim, por exemplo, não pode existir dúvida positiva e provável ao exerce-se o poder legislativo ou o poder administrativo geral (outra coisa é a aplicação da norma), nem tampouco quando se trata do exercício do poder judiciário, que exige sempre a certeza moral o juiz ao ditar a sentença (cf. cc. 1608, §§ 1 e 4, 1616 §1º).”
Ora, os tribunais da Fraternidade se arrogam uma suplência do poder judiciário da Igreja, expressamente afastada pela lei canônica.
Portanto, não há suplência de jurisdição. As decisões dos tribunais da Fraternidade S. Pio X – ou de qualquer outro tribunal não autorizado pelo Papa – não passam de meros pareceres opinativos, sem qualquer reflexo na ordem jurídica.
Conclusão: por tudo o que acabamos de expor, a instauração de tribunais eclesiásticos e de órgão ao qual se atribuem os poderes da Rota Romana pela Fraternidade São Pio X nos parece evidentemente um ato cismático.
Circunstâncias agravantes
Segundo escreveu Mons. Tissier de Mallerais foi o próprio Mons. Lefebvre quem teria mandado instituir a Comissão Canônica São Carlos Borromeu, em 15 de janeiro de 1991.
O nome "Comissão Canônica" não tornava claro quais as suas funções e finalidades. "Comissão Canônica" poderia designar apenas um conjunto de especialistas em Direito Canônico, designados para emitir simples pareceres jurídicos, o que seria ótimo e muito conveniente. Nunca sentenças, o que seria próprio de um tribunal.
Ora, a carta de Monsenhor Tissier de Mallerais deixa bem claro que a "Comissão Canônica São Carlos Borromeu" pretende emitir sentenças, no mesmo nível e com os mesmos poderes da Rota Romana. Ela se constitui e se pretende, pois, um verdadeiro tribunal.
Curioso é que todo tribunal tem que ter caráter público, e a "Rota" analógica de Ecône foi mantida em muita discrição durante vários anos.
Tanto que até mesmo muitos sacerdotes tradicionalistas de Campos desconheciam a existência dessa Comissão-Tribunal, ou, pelo menos, ignoravam que ela se atribuíra o direito de pronunciar sentenças com os poderes da Sagrada Rota Romana.
D. Licínio Rangel escreveu e disse as coisas mais contraditórias sobre a existência do que ele chamava inicialmente de "Bureau" para causas matrimoniais.
O fato de ser mantido em relativo segredo a existência da "Rota" analógica ecôniana demonstra que se temia o escândalo e a suspeita de cisma que isso provocaria.
Havendo suspeita de cisma, é de sadia prudência recusar tal pretenso tribunal.
Hoje, ninguém aceitaria tomar uma injeção com uma seringa já utilizada, porque o risco de ser infectado pelo vírus da Aids é por demais perigoso. Da mesma forma, - e muito pior, já que se põe em risco a salvação da alma - não se pode aceitar correr o risco de cair em cisma, por aceitar essa "Rota" analógica de Ecône, ainda que fundada por Monsenhor Lefebvre.
Segunda circunstância agravante de suspeita foram as negativas da existência desse tribunal e as explicações contraditórias, esfarrapadas, - e até absurdas - de D. Lícinio e dos vários padres de Campos, para justificá-lo. Ficava-se com a impressão muito clara que se queria justificar, a qualquer preço, o injustificável.
Pior impressão ainda causaram as zangas e as tentativas raivosas e caluniosas empreendidas por vários sacerdotes de Campos, quando souberam que nos posicionávamos contra esse tribunal, por suspeitar que ele fosse cismático.
A existência de uma "Rota" ecôniana levanta uma suspeita ainda mais grave.
Tendo em vista o fato de que o atual Papa João Paulo II tem, de fato, uma filosofia fenomenologista, kantiana e personalista, assim como uma teologia modernista, levando-se em conta que os fiéis tem mais necessidade de um Papa verdadeiramente ortodoxo, não poderia a Fraternidade São Pio X levar sua visão distorcida do princípio de jurisdição de suplência até o ponto de eleger um "Papa" analógico?
É uma suspeita e não uma afirmação.
Mas se isto tivesse ocorrido, ficaria explicada a constituição de uma "Rota" em Ecône, já que esse é um tribunal pontifício, nomeado pelo Papa, que fala em nome do Papa e com a autoridade do Papa.
Tendo em vista tudo isso, nós membros da Associação Cultural Montfort declaramos que queremos manter-nos na Igreja Católica Apostólica Romana de sempre, submissos à autoridade do Sumo Pontífice, o papa João Paulo II. E por isso nos declaramos totalmente separados do movimento tradicionalista da Fraternidade São Pio X fundada por Monsenhor Lefebvre, assim como da Fraternidade Sacerdotal São João Maria Vianney dos padres tradicionalistas de Campos.
Orlando Fedeli
Presidente da Associação Cultural Montfort.
CARTAS DO SITE MONTFORT SOBRE QUESTÕES RELACIONADAS AOS TRIBUNAIS DA FSSPX
Boa Tarde!
Em primeiro lugar parabéns pelo site Montfort, utilíssimo em nossos dias para a formação católica e cultural de nossos jovens.
Professor, o que me moveu a escrever-vos foi a tão atual questão da fundação do Instituto Bom Pastor (IBP) e uma possível reconciliação com Roma, da Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX).
Gostaria muito de saber mais sobre estes dois institutos, e sobretudo saber a opinião do Sr. acerca deles.
Esperando ansioso sua resposta, rezo por todos e peço orações.
Rogério Becar
Salve Maria.
Orlando Fedeli
Gostaria de manifestar minha estranheza com relação ao posicionamento de Vossa Senhoria ao comentar o recente encontro entre S. Santidade Bento XVI e Mons.
A razão de tal sentimento deve-se ao fato da complacência com a qual Vossa Senhoria reportou-se a um cismático excomungado pela Santa Igreja.
Da mesma forma não compreendi sua empatia para com os dois excomungados Dom Lefebvre e de Dom Mayer, sendo certo caber a Deus e não a mim fazer juízos sobre salvação eterna, mas por outro lado, lembrando que em pública rebeldia realizaram ordenações episcopais sem a compulsória intervenção do Bispo de Roma, necessária para legitimá-las.
Preferiria o senhor que Dom Fellay não se reunisse com o Papa e que não houvesse paz?
Inicialmente, gostaria de dizer que me sinto honrado pela resposta tão pronta e detida de V. Senhoria.
Assim, passo a tecer os comentários que se seguem.
Por outro lado, insisto no ponto, que não foi objeto de suas análises, da ordenação episcopal realizada por D. Mayer e D. Lefebrve sem a autorização compulsória do Papa.
Assim diz o Catecismo da Igreja Católica: "somente a Simão, a quem deu o nome de Pedro, o Senhor constituiu em pedra de sua Igreja. Entregou a chave da mesma, instituiu-o pastor de todo o rebanho. Porém, o múnus de ligar e desligar, que foi dado a Pedro, consta que também foi dado ao colégio dos apóstolos, unido a seu chefe. Ele é o princípio e fundamento da unidade, quer dos Bispos, quer da multidão dos fiéis".
Dessa maneira, Ilustre Professor, sem querer ser desrespeitoso para com caros amigos seus ou sua memória, nem D. Lefebrve, nem Mons. Bernard Fellay, nem D. Pedro Casaldáliga ou D. Hélder Câmara, sozinhos ou unidos somente entre eles, o que reconheço: é impossível, têm autoridade para exercer o ministério sacramental consistente no múnus de ensinar, santificar e reger, se nele não se considerar incluído o Romano Pontífice.
Não pense, por favor, que fico triste ou raivoso com o retorno dos membros da Fraternidade Sacerdotal São Pio X à plena comunhão.
Faço as observações suso mencionadas porque respeito sobremaneira o seu apostolado e o bem que ele realiza (e como).
Por fim, devo confessar que fiquei um pouco impressionado com o fato do Sr. ter me considerado raivoso e zangado. Vou refletir detidamente sobre a questão porque, se me permite a brincadeira, nestes assuntos o Eminente Professor, e seu florete afiado, são mestres.
Respeitosamente, no Senhor.
DECRETO DE EXCOMUNHÃO DE Mgr. MARCEL LEFEBVRE, DE DOM ANTÔNIO DE CASTRO MAYER E DOS QUATRO BISPOS POR ELES SAGRADOS
Sagrada Congregação para os Bispos
Declaro ainda que Mons. Antônio de Castro Mayer, Bispo emérito de Campos, tendo participado diretamente na celebração litúrgica como co-consagrante e tendo publicamente aderido ao ato cismático, incorreu na excomunhão latae sentenciae, prevista pelo cânone 1364, par. 1.
Da Congregação para os Bispos, dia 1 de julho do ano de 1988.
Assinalamos em negrito a razão de ser dessa excomunhão, no pensamento do Vaticano: um ato cismático. Vamos mostrar agora que este decreto é nulo pelo Direito Canônico do Papa João Paulo II, de 1983.
Comecemos pela noção de cisma. O que é um cisma?
"Não basta uma desobediência, por mais obstinada que seja, para constituir um cisma; é necessário, além disso, uma revolta contra a função do Papa e da Igreja" (Cardeal Charles Journet, teólogo suiço, amigo de Paulo VI, L"Eglise du Verbe Incarné)
"Os teólogos medievais, pelo menos os dos séculos XIV, XV e XVI, tiveram o cuidado de notar que o cisma é uma separação ilegítima da unidade da Igreja, pois, dizem eles, poderia haver uma separação legítima, como, por exemplo, se alguém recusasse a obediência ao Papa que ordenasse uma coisa má ou indevida" (Torquemada, Summa De Ecclesia, citado em DTC, col.1302)
O Caso de Honolulu: uma capela da Fraternidade São Pio X recebeu do bispo de Honolulu a pena de excomunhão, por um decreto de 1º de maio de 1991. Cinco pessoas dessa capela recorreram a Roma. Em 28 de junho de 1993 o Cardeal Joseph Ratzinguer ordenou à Nunciatura Apostólica dos Estados Unidos que respondesse aos interessados.
"Depois de haver examinado o caso, com base no Direito Canônico, comunico que os atos referidos no decreto acima mencionado não são atos cismáticos formais, nos sentido estrito, e também não constituem pecado de cisma, e por isso, a Congregação para a Doutrina da Fé afirma que o decreto de 1/5/1991 carece de fundamento e validade"
"...A situação dos membros da Fraternidade Sacerdotal São Pio X é uma questão interna da Igreja Católica. A Fraternidade não é uma outra Igreja ou uma outra comunidade eclesial, no sentido usado pelo Diretório. Seguramente a Missa e os Sacramentos administrados pelos padres da Fraternidade são válidos. Os bispos são ilicitamente, mas validamente sagrados." (Cardeal Edwar Cassidy, presidente do Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos: 3 de maio de 1994, resposta a uma carta)
"Mgr. Lefebvre não fez absolutamente nenhum cisma com as suas sagrações episcopais". (Professor Geringer, perito em Direito Canônico da Universidade de Munique)
A Tese do Padre Gerald Murray: Em julho de 1995, a Universidade Gregoriana, de Roma, aprovou com nota máxima, a tese de doutorado em Direito Canônico do padre americano Gerald Murray. Título da tese: O Estatuto Canônico dos fiéis do Arcebispo Marcel Lefebvre e da Fraternidade Sacerdotal São Pio X: estão eles excomungados como cismáticos?
O padre conclui: "cheguei à conclusão de que, canonicamente falando, Mgr. Marcel Lefebvre não é culpável de nenhum ato cismático... O exame das circunstâncias nas quais o arcebispo Lefebvre procedeu a sagrações episcopais à luz dos cânones 1321, 1323, 1324, suscita pelo menos uma dúvida significativa, senão uma certeza razoável contra a validade da declaração de excomunhão pronunciada pela Congregação dos Bispos.
Eis, então, as autoridades romanas, do Vaticano, afirmando diversas vezes que não houve cisma e não há excomunhão.
Cabe lembrar que essa matéria é revestida hoje de uma característica própria: as pessoas ignoram tudo sobre a infalibilidade papal e ficam repetindo pelos cantos, com ares de heróis da fé, um raciocínio falso, mas que agrada, principalmente porque resolve dois problemas ao mesmo tempo: dá ao ignorante a impressão de ser muito católico e, por outro lado, evita ter de aprofundar o debate. Pois se o Papa é infalível, para quê discutir; obedeçam e não chateiem.
Desobedecer materialmente ao Papa não significa, portanto, de forma alguma, querer impor uma opinião própria, querer rebelar-se contra uma autoridade agindo dentro dos seus limites. A Fé vale mais do que a obediência cega, logo podemos estar, e estamos de fato, em condição de agir assim para guardar a fé, nosso mais importante dever.
Que a atitude de Mgr. Lefebvre, assim como a de Dom Antônio de Castro Mayer, em Campos, Rio de Janeiro, sirvam para nós como exemplo de zelo pela doutrina infalível da Igreja. Que nós possamos compreender que, ao desobedecer ao Papa, Mgr.
O que está expresso nesse artigo, é exato. Haveria, entretanto, que fazer uma precisão, não quanto ao caso de Monsenhor Lefebvre, -- que o artigo prova, e bem, não ter tido intenção cismática -- mas com relação à questão do estado de necessidade.
Embora o estado de necessidade justifique muita coisa, que "a Igreja supre", essa suplência jamais se aplica a casos legislativos ou judiciários, mas tão só a atos executivos, como por exemplo a administração de Sacramentos.
Por que D. Tissier cai em cisma, se ele aplica os poderes por analogia, não se dizendo juiz da Rota nem dizendo que a verdadeira Rota é seu tribunal em Ecône?
Aprofundem esta questão da analogia.
Para citar este texto:
"A FSSPX é uma opção à radicalização das normas da Traditiones Custodes? Considerações iniciais sobre os Tribunais da FSSPX"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/igreja/fsspx-tribunais/
Online, 21/12/2024 às 17:46:20h