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Como apresentar hoje a fé cristã: duas instruções para ganhar o ouro
La Civiltà Cattolica
O renomado vaticanista Sandro Magister comenta dois recentes escritos criticando a mentalidade ecumênica que tende a colocar no mesmo plano as “três grandes religiões monoteístas” (um da Diocese de Roma e outro da revista "Civiltà Cattolica)Segundo Magister, em resumo, ambos os livros "são sinais de uma nova posição de apresentar hoje as razões da fé cristã: posição mais de rompimento que de conformidade com o espírito do tempo, mais de distinção que de adaptação, mais de missão que de diálogo".
Há, ainda, referência crítica à fenomenologia e, nominalmente, a Umberto Eco.
Os livros:
1 - "Ho creduto, per questo, ho parlato" (“Acreditei, por isto falei”) sobre o CREDO;
Autor: "Diocese de Roma" (Prefácio do Cardeal Ruini, bispo de Roma).
2 - "Il Padre Nostro" : comentários que diferenciam o Cristianismo do Judaísmo e do Islamismo
Autor: Pe. Roland Meynet, SJ, publicado na revista "La Civiltà Cattolica".
Abaixo : artigo de Sandro Magister (Tradução e negritos nossos)
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COMO APRESENTAR HOJE A FÉ CRISTÃ:
DUAS INSTRUÇÕES PARA GANHAR O OURO
(www.chiesa.espressonline.it http://213.92.16.98/ESW_articolo/0,2393,42223,00.html)
Trata-se de um livro da diocese de Roma sobre o “Credo” e de um artigo da “Civiltà Cattolica” sobre o “Padre nosso”. Ambos muito orgulhosos do primado do cristianismo. E muito severos contra os céticos e contra as religiões rivais.
de Sandro Magister
ROMA – Em pleno verão foram publicados em Roma dois importantes escritos que visam orientar o modo de anunciar ao mundo a fé cristã.
O primeiro é um pequeno livro que se apresenta como “ajuda aos cristãos de Roma para exprimir as razões da própria fé”. No lugar do nome do autor lê-se: “Diocese de Roma”. O prefácio é assinado pelo cardeal Camillo Ruini que, como vigário do papa, é o titular da diocese.
O editor é a Imprensa da Universidade de Latrão, da Pontifícia Universidade Lateranense, da qual Ruini é grande chanceler e seu ex-bispo auxiliar, Mons. Rino Fisichella, é reitor, ao qual se deve boa parte do texto do livro. O título foi tomado da segunda carta de S. Paulo aos Coríntios, capítulo 4, parágrafo 13: “Acreditei, por isto falei”. Subtítulo: “Para uma compreensão da fé”.
O segundo é um artigo publicado no número 7-21 de agosto de 2004, na “Civiltà Cattolica”, revista dos jesuítas de Roma, que, de regra, passa pela aprovação da secretaria de Estado do Vaticano antes de ser publicado. O autor é o jesuíta Roland Meynet, professor de exegese do Novo Testamento na Pontifícia Universidade Gregoriana. E o tema é o “Padre nosso”, a oração típica dos cristãos, ensinada por Jesus aos discípulos e relatada no Evangelho de S. Mateus, no sermão da montanha.
Ambos os escritos se voltam para o centro do cristianismo: o “Credo” e o “Padre Nosso”. Insistem intencionalmente nos fundamentos originais, únicos da fé cristã. Se se referem a outras religiões é para mostrar que estas, de forma alguma, possam se assemelhar àquela. Mas, sigamos a ordem.
1 – O “Credo” da diocese de Roma
No prefácio ao “Acreditei por isto falei”, o cardeal Ruini explica que a idéia do livreto lhe veio da “missão citadina”, que ele promoveu na diocese de Roma, no passado. Percebemos, escreve ele, que “não conseguimos exprimir com coerência a originalidade que o cristianismo possui”. Assim, “aquilo que se quer propor com este texto é apresentar algumas razões pelas quais a fé em Jesus Cristo merece ser acolhida, escolhida e vivida. Ela não se coloca junto a outras manifestações religiosas como se fosse uma das tradições com as quais deparamos num mundo já globalizado. [...] Comunicar a fé no mundo atual requer o empenho primário de conhecer aquilo em que se crê e de saber vê-lo na sua verdade e originalidade, sem sincretismos de nenhuma espécie”.
E ainda:
“O diálogo, que particularmente nestes anos vincula os cristãos com outros que não partilham da mesma fé, não é um impedimento, mas uma provocação para verificar, especificamente, a peculiaridade do cristianismo e, assim, tocar com a mão as diferenças que o distingue das outras religiões. O respeito nos confrontos com os que não têm a nossa fé não equivale a uma genérica forma de tolerância, da qual freqüentemente se ouvem os reclamos. O respeito é muito mais profundo e obrigatório que a tolerância, porque conhece o objetivo último: não um achatamento geral das religiões, mas a busca da verdade, que só pode ser uma e que é encontrada em plena liberdade. As diversas formas e diferenças não impedem, mas impelem a verificar onde a verdade se encontra e, uma vez encontrada, a tornar-se familiar”.
O fato de conviverem hoje muitas diferentes religiões na capital do catolicismo, escreve Ruini, não é uma novidade e nem deve ser um freio:
“Roma sempre foi ‘patria communis’. Quando os primeiros cristãos chegaram em seus muros, encontraram a religião romana, a hebraica e outras expressões religiosas vindas das regiões conquistadas por Roma. Nenhum cristão se identificou a nenhuma destas religiões, mas, pelo contrário, viu-se no dever de comunicar a sua fé em Jesus Cristo, porque n’Ele tudo mostrava os sinais do cumprimento e da definição do sentido da vida. Não objetaram as outras religiões, mas verificou-se o contrário. O que fizeram foi viver a fé na forma mais coerente, para manifestar com o seu estilo de vida o encontro da verdade. [...] Os nossos dias nos mostram a presença de tantos que bem próximos de nós professam uma outra religião. A nossa história e a nossa forma de vida não muda. Somos chamados para viver a fé com a mesma intensidade dos primeiros cristãos, com a mesma convicção e com a mesma certeza que a plenitude da verdade se encontra somente em Jesus Cristo”.
No livro, “a superioridade da revelação cristã sobre outras formas religiosas” é afirmada muitas vezes e sem timidez. Também as semelhanças são desmentidas. Por exemplo:
“O cristianismo, diferentemente da religião hebraica e do islã, não poderá nunca ser definido como a ‘religião do livro’. A revelação de Jesus vai muito além da codificação de um texto. [...] O anúncio que Jesus cumpre não está separado do seu tornar-se presente e mostrar o seu rosto: uma unidade incomparável que a história jamais conhecera e que nunca encontrará no futuro”.
Outra semelhança desmentida no livro se refere aos mártires cristãos e muçulmanos:
“A fé é o fator sério da vida. E há uma palavra que permite captar o sentido total da fé: o mártir. O martírio é o sinal do maior amor porque, pela fé, dá o testemunho supremo: aquele de escolher livremente a morte imposta pela certeza de estar na verdade e de ter a vida”. [...] Também “o shahid tem um grande valor para o islã, quer sunita quer shiita: quem dá prova de ter renunciado a vida terrena pela glória de Allah, dedica-se à jihad e por ela morre, ganha o paraíso. [...] Mas o shahid provoca a morte de outras pessoas, cria uma situação de violência e de morte, sem fazer distinção alguma se entre suas vítimas há inocentes. O que move sua intenção é uma vontade de impor o seu projeto de vida. [...] Julgamos, portanto, que não se aplica a esta definição de mártir; na realidade, o que se apresenta, não é um testemunho, mas uma exibição que se coloca subjetivamente a serviço de uma ideologia de violência, que não pode ser comparada nem confundida com qualquer outra expressão de dedicação, solidariedade e amor”.
Em outra passagem, o livro realça a superioridade do cristianismo não só sobre o islã, mas também em relação às grandes religiões asiáticas:
“O ato [cristão] de fé é colocado diante da verdade de Deus e do homem de forma tão coerente e equilibrada que não encontra similar nas outras religiões. Não se pede ao homem de humilhar-se além da medida, aniquilando-se a sim próprio diante de Deus. A Deus não é imposto de meter-se em todas as coisas, confundindo-se com a sua própria criação”.
Quanto à “questão da salvação dos que se encontram em outras religiões”, o livro se previne contra uma “cilada sutil”, assim descrita:
“Se a pessoa se salva em qualquer religião, [...] todos devem permanecer na sua religião, sem haver a necessidade de conversão alguma. Isto, de um lado, elimina a necessidade da missão e, de outro lado, impede de analisar se as religiões, enquanto tais, possuem em si um impulso para a sua realização e para a única verdade, que se torna presente no único e verdadeiro Deus.Tudo, em resumo, parece hoje se resolver num conhecimento histórico e fenomenológico das outras religiões, sem entrar no mérito do confronto de do julgamento que deve ser feito”.
Daí um juízo crítico sobre o moderno ceticismo e sobre seu mais famoso divulgador, Umberto Eco:
“Na base desta teoria encontra-se uma profunda desconfiança nos confrontos da verdade. O relativismo mostra aqui o seu lado mais simpático e convincente, mas não por isso menos perigoso e errado. Basta uma vazia expressão, como aquela de Umberto Eco no seu livro, “O nome da rosa”, para comprovar a intenção e a ideologia que se esconde por trás deste modo de pensar: ‘A única verdade significa: libertar-se da mórbida paixão pela verdade’. Como se percebe, na base há uma forma de idiossincrasia pela verdade, porque se quer sustentar que a verdade não existe, mas só uma verdade pessoal que merece ser vivida sem ser apresentada a ninguém”. Enquanto que “a questão da verdade, para qualquer religião, é essencial. Sem ela chegar-se-ia a uma equívoca relação com a divindade, sem nunca se ter a certeza da sua existência e da eficácia da oração”.
Os capítulos centrais do livro têm como títulos: “Deus é Pai” e “Jesus, o Revelador”. O final do primeiro destes capítulos é muito significativo:
“Certamente Jesus usou a palavra ‘abba’ para referir-se a Deus; a historicidade deste uso está hoje mais que consolidada e cientificamente provada. [...] ‘Abba’ expressa amor, confiança, intimidade e submissão; esta gama de sentimentos se encontra fundida no uso que Jesus faz do termo. Este revela a experiência primordial de Deus, o seu conhecimento de pertencer a ele de modo único. Por isso ele se diferencia dos discípulos quando fala do Pai [...]: todos os demais poderão chamar a Deus de ‘Pai nosso’ somente depois que ele revelou e afirmou ‘Meu Pai’. [...] Jamais, no Antigo Testamento, nem na literatura extrabíblica, registrou-se da parte de um homem uma relação similar quanto a Deus. Um hebreu jamais teria ousado a dirigir-se a Jaweh invocando-o deste modo. [...] Nesta expressão encontramos uma posterior confirmação da originalidade da fé cristã. [...] Vimo-la em relação à religião hebraica, mas também o muçulmano jamais poderia dirigir-se a Allah invocando-o como ‘pai’: dentre os 99 nomes que o Corão lhe atribui, falta o de ‘pai’. [...] Nem mesmo a peculiaridade da relação filial do cristianismo se confunde ou se identifica com a genérica relação de paternidade fundamentada na criação. Desde os tempos mais antigos Deus é chamado ‘pai de todas as coisas’ e, neste sentido, o termo faz referência à sua obra criadora. Dizer – como freqüentemente se ouve – que somos todos irmãos é uma verdade que propriamente se baseia na criação. Como homens e mulheres deste mundo, somos todos irmãos e irmãs porque nos referimos a um único criador que se encontra na origem de tudo e que, por isso, é chamado de ‘pai’. [...] Porém, além disso, os cristãos são irmãos e irmãs porque crêem em Cristo, que é o Filho de Deus, e que nele podem referir-se a Deus chamando-o de Pai. Portanto, essa relação filial vai além da genérica esfera da criação e se insere na relação específica da fé que aceita ter Deus como Pai, porque na água do batismo recebeu-se a sua vida, garantia antecipada do que ocorrerá na vida eterna. No Filho, portanto, somos realmente filhos, e pela fé nele podemos dizer, com plena confiança, a oração que ele nos ensinou como seus discípulos: ‘Pai Nosso’”.
E exatamente o “Pai Nosso” é o tema do artigo publicado na “La Civiltà Cattolica” de 7-21 de agosto de 2004, o segundo texto a que nos referimos.
2. O “Padre nosso” da “Civiltà Cattolica”
Também o artigo do Pe. Roland Meynet, na autorizada revista dos jesuítas de Roma, estabelece uma comparação entre o cristianismo e o islã pela exatidão entre o “Pai nosso” e uma análoga oração própria da tradição muçulmana, que segue:
“Senhor nosso que estás no céu,
santificado seja o teu nome,
seja feita a tua vontade no céu e na terra.
Oh Deus, como a tua vontade está no céu, da mesma forma estenda a tua misericórdia sobre nós na terra.
Oh Deus, Senhor dos bons, perdoa nossas culpas, nossos pecados e nossas faltas, e faça descer a tua misericórdia e a cura das tuas curas a alguém que padece, e que sare”.
Porém, as semelhanças, como o Pe. Meynet logo salienta, são só aparentes:
“Desde a primeira palavra, àquele a quem se dirige a oração não é chamado de ‘Pai nosso’, mas sim de ‘Senhor nosso’; a diferença toda já está aqui. Muitos cristãos estão de tal forma habituados a considerar Deus como Pai, que não conseguem nem imaginar que Ele possa ser considerado diferentemente por outros crentes. Ora, o islã se distingue da fé cristã sobre esta questão fundamental, a da filiação divina. Para o islã, Jesus não é, de forma alguma, Filho de Deus; e, por maior razão, o são os seus discípulos! Entende-se, assim, porque o pedido central do ‘Pai nosso’, que é o pedido específico do filho, esteja totalmente ausente na oração que a tradição muçulmana atribui ao mesmo Maomé”.
E, o “pedido central” lá ausente, como salienta o Pe. Meynet, é aquele que, pelo contrário, se encontra no centro da exegese do “Pai nosso”:
“O pão nosso de cada dia, nos dai hoje”.
Esse pedido é central no “Pai nosso” não só pela posição que ocupa – o quarto de sete pedidos –mas principalmente pelo seu significado.
Ele se liga no sermão da montanha de S. Mateus 5-7 a um outro grande setenário, o das bem-aventuranças que, por sua vez, tem como quarto, e central, um pedido de nutrição:
“Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”.
No conjunto das bem-aventuranças, salienta Meynet, que a justiça se identifica com Jesus:
“O pão pedido no centro do ‘Pai nosso’ tem, portanto, algo a ver com a justiça e, se Jesus é identificado com a justiça, temos o direito de considerar o pão como ‘o pão que vem do céu’ (Jo 6,32). As palavras de Jesus referidas no quarto Evangelho – ‘Eu sou o pão da vida, quem vem a mim não terá mais fome e que crê em mim não terá mais sede’ (Gv 6,35) – fazem direto eco à beatitude central”.
Mas, há mais:
“O pedido do pão diário é o que melhor combina com o nome daquele a quem se dirige a oração: ‘Pai nosso’. [...] As primeiras palavras com que Deus se dirigiu ao homem recém criado, homem e mulher, são uma dupla benção. A primeira é ‘Crescei e multiplicai-vos’ (Gen 1,28). [...] Deus é pai e o primeiro dom que ele concede ao homem é a paternidade. A segunda palavra de Deus, que compreende o verbo ‘dar’, refere-se à nutrição: ‘Eis que vos dou toda a erva...’ (Gen 1,29). [...] O que Deus nos dá é o alimento. A nutrição é a vida que se mantém e se desenvolve. Dando o alimento, Deus se comporta, portanto, como um pai. [...] Certamente não é por acaso que o problema dos problemas [para os pais] refere-se à alimentação, mais precisamente ao dom da nutrição. E isto redundará na maldição do solo, com estas palavras de Deus a Adão: ‘Comerás o teu pão com o suor do teu rosto’ (Gen 3,19).
É a primeira vez que a palavra ‘pão’ aparece na Bíblia. O pedido central do ‘Pai nosso’ a responde. [...] Aquilo que o pedido do pão deixa entender é que, agora, não será mais com o suor do rosto que o homem comerá o pão, mas o receberá da mão de Deus, gratuitamente. [...] O pão que Jesus nos manda pedir no ‘Pai nosso’, o pão que ele mesmo dará, é o seu corpo dado, junto com seu sangue derramado, ‘para a remissão dos pecados’ (Mt 26,28). Jesus é o novo Adão, que se dá ao invés de querer tomar, e assim redimi o pecado original. [...] Deve-se ainda lembrar que, ao nascer, Jesus foi colocado ‘numa manjedoura’; se a narração de S. Lucas insiste por três vezes na manjedoura, é para indicar que o recém nascido é um alimento, o que se concretizará no final do Evangelho, na doação do corpo de Jesus durante a ceia pascal (Lc 22,19-20). Finalmente, deve-se acrescentar, que Jesus nasceu em Belém, que significa ‘a casa do pão’.
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A exegese do “Padre nosso” publicada pela “La Civiltà Cattolica” merece ser lida por inteira, assim como o livro da Diocese de Roma “Ho creduto per questo ho parlato”.
São sinais de uma nova atitude para proclamar hoje a fé cristã: atitude mais de rompimento que de conformação com o espírito do tempo, mais de distinção que de adaptação, mais de missão que de diálogo.
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Link ao Editor:
Pontificia Università Lateranense
Link à revista dos jesuítas de Roma, que publicou o artigo do Pe. Roland Meynet, com o imprimatur do Vaticano:
Para citar este texto:
"Como apresentar hoje a fé cristã: duas instruções para ganhar o ouro"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/igreja/fe_crista/
Online, 21/12/2024 às 14:01:52h