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A atual obsessão antilitúrgica
Dom Hector Auger
Apresentamos aos nossos leitores artigo escrito por Dom Hector Auger, bispo emérito de La Plata na Argentina.
O prelado discorre sobre a situação da Igreja em razão das alterações promovidas por Paulo VI na Missa, confirmando a ideia de que as alterações propostas representaram a invenção de uma nova Missa, feita por um maçom, e não simplesmente modificações acidentais decorrentes de uma evolução natural, e que nos dias de hoje, os católicos e sobretudo os jovens buscam sua espiritualidade na Missa Tradicional.
Em sua essência o artigo de Dom Hector afirma que há uma paixão, uma verdadeira obsessão contra a liturgia tradicional e que esta atitude é contraditória com a ação ecumênica tão defendida pelo Papa Francisco, ação esta que chega a distorcer a missão da Igreja dada por Nosso Senhor.
Uma vez explicada a atual situação da Igreja conclui o autor:
“Neste contexto, explica-se a paixão antilitúrgica contra a "Missa de sempre", na qual brilha com clareza a verdadeira fé e a coerência com a vontade de Jesus Cristo e a missão tradicional da Igreja”.
Recomendamos a leitura atenta deste importante artigo.
A atual obsessão antilitúrgica
Celebrei minha primeira missa em 26 de novembro de 1972. Empreguei o rito então vigente, que era aquele criado por Paulo VI; autor: o maçom Annibale Bugnini. Em espanhol, claro; sobreviviam em latim as orações secretas do celebrante.
Nunca me ocorreu recorrer à “Missa de Sempre”; aquela que rezamos no Seminário todos os anos da minha formação, com a novidade de que era - na capela da Filosofia, diariamente - "versus populum".
Nunca me ocorreu recorrer -contrariando a proibição canônica, pacificamente aceita- à velha forma. Nem mesmo depois que Bento XVI o aceitou como forma extraordinária do Rito Romano através de seu "Motu Proprio" Summorum Pontificum.
Apesar dos meus estudos teológicos e litúrgicos, que me davam lucidez para o ritual esquecido, nenhum reparo ideológico ou nostalgia me impuseram isso; o costume ficou estacionado e, talvez por preguiça, não ousei contrariá-lo julgando criticamente a novidade que se seguiu ao Vaticano II, durante o qual não houve inovações litúrgicas.
Hoje posso pensar que Paulo VI poderia ter feito algumas modificações para atualizar a "Missa das eras", que vigorava há séculos, e não inventar uma nova missa. Meço friamente o “atrevimento”, um alarde inesperado para muitos do progressismo; muitos séculos foram jogados fora, descartados no turbilhão da mudança.
Recorri a esta história para enfatizar que sou livre: continuo a celebrar a Missa de Paulo VI. Esta posição eclesial permite-me avaliar o dano causado pelo Motu Proprio Traditiones custodes, recentemente reforçado por um “rescrito”. Roma teria que se perguntar por que cada vez mais sacerdotes e leigos -estes sobretudo- reverenciam com veneração o antigo rito. A obsessão antilitúrgica é a ideologia que canonicamente se torna tirania. Apesar de a proibição do Missal de João XXIII ser efetivamente ignorada pelos jovens, que aspiram a um culto que responda à verdade da fé: o culto a Deus, não ao homem. Porque Roma ainda se apega ao “die anthropologische Wende”, de Karl Rahner.
Além disso, na última década, a tradição alitúrgica da Companhia de Jesus entrou em jogo. O deslocamento da liturgia dá lugar à imposição de atos e palavras de um moralismo relativista.
Inovações antilitúrgicas se sucederam sem interrupção desde a promulgação da "Missa Nova". Este começo sinalizou uma mudança desnecessária. O propósito de renovação do Concílio Vaticano II poderia ter sido cumprido com ligeiras modificações do Rito Romano, ou melhor, com a correção das alterações produzidas na história, continuando a obra de Pio XII, que foi um verdadeiro renovador. O propósito conciliar foi significativamente chamado de “instauratio”, restauração. Dissidências grosseiras aconteceram a partir dos anos 70, diante da ousadia de Roma. Bento XVI, por meio de seu Motu Proprio Summorum Pontificum, habilitou a Forma Extraordinária do Rito Romano; foi uma solução salomônica que poderia satisfazer as aspirações dos sacerdotes e fiéis apegados à Tradição e, ao mesmo tempo, dar a razão das objeções dirigidas contra a Missa promulgada por Paulo VI. Esta decisão de prudência e sensibilidade pastoral permitiu esperar uma paz estável, com o retorno à obediência de numerosas comunidades que viviam em situação de conflito com Roma. É verdade que as divergências contra o Vaticano II iam muito além da ordem litúrgica, estendendo-se ao campo doutrinal e jurídico-pastoral. O magistério litúrgico do Papa alemão retomava a teologia da liturgia desenvolvida pelo cardeal Ratzinger, que seguia os passos de Romano Guardini e Klaus Gamber.
Um lamentável retrocesso ocorreu com o Motu Proprio Traditiones custodes, que eliminou a Forma Extraordinária do Rito Romano e impôs fortes condições para conceder o uso da "Missa dos séculos". Nesta perspectiva, pode-se apreciar a seriedade das disposições de Paulo VI, que inauguraram uma nova etapa em todos os âmbitos da vida eclesial, e deram lugar no pós-concílio a erros e mutilações piores do que os propostos pelo modernismo no início do séc. XX, condenado por São Pio X. A linha aberta por este Motu Proprio foi recentemente ratificada e agravada pelo "rescrito" que impõe aos bispos a obrigação de obter o placet pontifício antes de autorizar o uso da "Missa de todos os tempos".
Esta inverossímil imposição liquida com a alardeada “sinodalidade”; a autoridade dos bispos foi recortada em um campo essencial de seu munus como Sucessores dos Apóstolos. É de se temer que esta pertinácia antilitúrgica suscite novamente atitudes contrárias à "unidade" que Roma diz professar. Da mesma fonte vem -parece-me- a ilusão de uma reforma, que teria sido solicitada pelo conclave que elegeu o Papa. A Companhia sempre foi um fator de recolocação da Igreja na sociedade, em concorrência com a Maçonaria. O Vaticano está cheio de maçons e o pontífice tenta usá-los. Acho admirável, surpreendente, a complacência do Papa em sua década de governo, e a ficção de atribuir sucessos aos colaboradores. Um problema crônico da Companhia tem sido o da humildade.
O aliturgicismo inclui a devastação daquilo que na liturgia do Rito Romano procede da Tradição. A obsessão antilitúrgica, que já indiquei, chega ao extremo de boicotar a sinodalidade. Um bispo, para autorizar um padre a celebrar com o Missal de João XXIII – isto é, a “Missa dos séculos” – precisa pedir permissão a Roma. Tal é o teor do recente rescrito: uma verdadeira tirania pontifícia que impossibilita os Sucessores dos Apóstolos de exercerem seu ministério em matéria tão fundamental. Esta orientação inclui permitir que a devastação do Rito Romano seja realizada com impunidade. Volto a referir que esta liberdade contraria o que prescreve o Concílio, na Constituição sobre a liturgia Sacrosanctum Concilium, a saber: que ninguém, ainda que seja sacerdote, modifique, acrescente ou subtraia algo por sua própria iniciativa nos ritos litúrgicos. A liberdade da devastação vai unida com a perseguição aos tradicionalistas.
Em flagrante contradição: os tradicionalistas são perseguidos, mas é permitida a integração no Rito Romano de ritmos percussivos e dançantes, e a adoção de ritos pagãos, hindus e budistas, de acordo com os princípios da NOM ou Nova Ordem Mundial, em competição com a Maçonaria. Nas visitas às diversas nações, aceita-se introduzir na liturgia ritos tribais da cultura ancestral dos povos visitados. Assim, a deformação do culto divino beira a idolatria. Esta atitude se repete em muitos países, como uma perversão do diálogo inter-religioso. Em 2019 o Papa assinou em Abu Dhabi o Documento sobre Fraternidade Humana para a Paz Mundial e Convivência Comum, no qual se afirma: “O pluralismo e a diversidade de religião, cor, sexo, raça e língua são uma sábia vontade divina, para a qual Deus os criou seres humanos. Esta Sabedoria divina é a origem da qual deriva o direito à liberdade de crença e à liberdade de ser diferente”. Deus Criador, seria então o autor do politeísmo. Esta afirmação equivale a renunciar à missão essencial e original da Igreja, como está expressamente afirmado no Evangelho: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado” (Mc 16, 15-16). Tal renúncia só pode ser vista como uma apostasia. A mesma atitude se encontra em 2020, na aceitação da proposta de um dia de oração e jejum para todas as religiões no dia 14 de maio. O Pontífice referiu-se à aceitação da proposta: “Aceitei a proposta do Comitê Superior para a Fraternidade Humana para que no dia 14 de maio os crentes de todas as religiões se unam espiritualmente em um dia de oração e jejum e de obras de caridade”.
É evidente que a Igreja desconhece a sua missão original de anunciar o Evangelho da salvação e adere ao concerto politeísta global, participando assim, como uma das religiões da NOM, da Nova Ordem Mundial, preconizada pela Maçonaria. Isso não seria possível se o Vaticano já não estivesse infiltrado pela Maçonaria universal.
O contraste com a doutrina e a práxis seculares da Igreja não poderia ser mais claramente marcado. Nesta perspectiva, compreende-se a incorporação na liturgia dos ritos pagãos. Também se explica a perseguição aos tradicionalistas, que com sua recusa impedem a plena integração na Nova Ordem Mundial; assim a Igreja se encaminha para o reino do Anticristo. A confusão dos crentes é a consequência; trata-se do “mysterium iniquitatis” exibido pelo diabo.
O documento de Abu Dhabi implica a apostasia da fé católica para aderir - como já escrevi - à NOM. Não há compatibilidade entre ela e a fé cristã; a confusão em que os crentes são lançados não pode ser maior. Este contraste aparece em cada intervenção do Pontífice, o que prova que é assim que ele entende a missão da Igreja, e assim é entendida a sua tarefa de governo.
Um exemplo muito claro pode ser encontrado na carta que os políticos argentinos lhe dirigiram por ocasião do décimo aniversário do pontificado:
“Queremos expressar nossa admiração por seu trabalho em favor da Humanidade (assim, com letra maiúscula no original), em particular dos excluídos e pobres, sua firme defesa da paz mundial e sua permanente promoção de uma Ecologia integral (letra maiúscula no original), que nos permite ouvir o grito da Mãe Terra e do Ser humano (linguagem politeísta e maçônica) diante de situações destrutivas que atentam contra os povos e a natureza”.
Neste contexto, explica-se a paixão antilitúrgica contra a "Missa de sempre", na qual brilha com clareza a verdadeira fé e a coerência com a vontade de Jesus Cristo e a missão tradicional da Igreja.
Agora se insinua uma nova compreensão da sinodalidade: se um bispo quiser autorizar um padre a celebrar a “Missa de Sempre”, deve pedir permissão a Roma! A obsessão não tem mais fronteiras.
+ Heitor Aguer
Arcebispo Emérito de La Plata.
Buenos Aires, quinta-feira, 30 de março de 2023.
Publicado por La Prensa em 4 de abril de 2023
Tradução Montfort
Para citar este texto:
"A atual obsessão antilitúrgica"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/igreja/dom-hector-auger-e-a-antiliturgia/
Online, 21/12/2024 às 14:06:21h