Igreja

Dois documentos, dois comentários, uma constatação
Marcelo Fedeli


Dois documentos:

- "Ecclesia de Eucharistia", última encíclica do Papa João-Paulo II, complementada pelo segundo:

- Instrução “Redemptionis Sacramentum”, condenando os “abusos litúgicos”.

Dois comentários:

- do jornalista Gianteo Bordero, publicado no site RAGION POLITICA, defendendo os termos da Instrução Redemptionis Sacramentum (http://www.ragionpolitica.it/testo.2155.html - vide abaixo).

- da Agência ADISTA NEWS (Itália) - N°33 (08/05/2004), contrariando aquela Instrução http://www.adista.it/numeri/adista04/adi33/adi33-1.html - vide abaixo).

Em posições opostas, tais comentários refletem a atual divisão generalizada entre os católicos após o Concílio Vaticano II, e a conseqüente expectativa de obediência, ou não, àquela Instrução papal.

Uma constatação:

- o Concílio Vaticano II, e a decorrente reforma da liturgia Paulo VI, de uma forma ou de outra, são apontados pelos documentos papais e pelos referidos comentários como  a origem da atual crise litúrgica, cujos abusos — vejam-se algumas fotos abaixo —  são condenados na “Redemptionis Sacramentum”.

 

Ecclesia de Eucharistia e Redemptionis Sacramentum:

De fato, diz o Papa na encíclica Ecclesia de Eucharistia e confirmado tanto na Redemptionis Sacramentum como na “Apresentação do Cardeal Arinze” daquele documento:

10 – (...) Não há dúvida que a reforma litúrgica do Concílio trouxe grandes vantagens para uma participação mais consciente, ativa e frutuosa dos fiéis no santo sacrifício do altar.(...) A par destas luzes, não faltam sombras, infelizmente”.
(
http://www.vatican.va/edocs/POR0245/_INDEX.HTM).

(Negrito nosso, itálico do original).

Assim, o próprio Sumo Pontífice, de forma oficial, por escrito e em encíclica, afirma que  “a reforma litúrgica do Concílio”, ao lado de “grandes vantagens”, trouxe “sombras”.

Portanto, segundo o Papa João Paulo II, o Concílio Vaticano II, pelo menos no campo da liturgia, ao em vez de trazer só “luzes”, como todos os 20 Concílios anteriores o fizeram em todos os campos, trouxe “sombras”, reconhecendo, assim, e oficialmente, o caráter não infalível daquele Concílio, como contrariamente muitos pretendem atribuir-lhe, apesar das afirmações claras até do próprio Papa Paulo VI quanto ao aspecto pastoral, não infalível do Vaticano II.

Mais: o próprio Papa derruba a concepção orquestrada pelos meios Modernistas, segundo a qual o pastoral Vaticano II é superior a todos os 20  concílios dogmáticos que o antecederam, que só ele é válido, relegando todos ao ostracismo, quando não à “condenação” absoluta. No entanto o Papa cita inúmeras vezes, naquele documento, o Concílio de Trento, o da Missa Tridentina, tão execrado pelos modernistas conciliares e pós conciliares, que tudo, absolutamente tudo aceitam de todas as religiões ou tradições religiosas, como dizem, mas não toleram nem o nome da Missa de S. Pio V,  que não possibilitava forma alguma de abuso.

Não seriam as “sombras” constatadas hoje por João-Paulo II, as mesmas aludidas por Paulo VI  em suas sombrias e tenebrosas declarações pós conciliares, quando se referiu à “autodemolição da Igreja”, à “tempestade em lugar da esperada primavera ensolarada” e à “fumaça de Satanás que, por alguma fresta, penetrou no templo de Deus”?

Deus o sabe!... Contudo, pelas estatísticas constata-se que não só a crise litúrgica, mas quase todas as crises que atigem o clero e, conseqüentemente, a sociedade de hoje, foram intensificadas logo após aquele pastoral Concílio.

Mas, vamos às fotos que registram, mais do que com palavras, alguns dos abusos litúrgicos, condenados pela Redemptionis Sacramentum, e aos referidos artigos.

Marcelo Fedeli

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II – ALGUMAS FOTOS DE ABUSOS NA LITURGIA

1 – Fotos publicadas no site UNAVOCE VENETA (http://www.unavoce-ve.it/05-04-31.htm) –  (há outras além destas, naquele site). 

 


PADRE PALHAÇO - Colle Don Bosco, 2001: Missa para rapazes. Um sacerdote
concelebra sobre o altar vestindo paramentos sagrados, com o rosto pintado como palhaço.

 

FOTO DE GRUPO: Moços e moças posam no interior de uma igreja.
À esquerda, o sacerdote, trajando ainda paramentos sagrados, mostra
os pés descalços, sobre os degraus do ‘altar’. No fundo, o tabernáculo.

 

Missa em Caserta
Notem os paramentos dos sacerdotes (e ministros?) e o ‘ALTAR’  da ‘celebração’.
No ano passado, os estandartes do arco-iris foram usados como toalhas para o ‘altar’ e cobriram estátuas de Nossa Senhora.

 

Um sacerdote prega a homilia em igreja de Menzingen (Suíça)
 

Brincadeira durante Missa matinal - Colle D. Bosco
 

Colle D. Bosco
Durante a Missa, efeito ‘mágico’ de levitação
v
 

Momentos festivos durante a celebração do
Santo Sacrifício do Calvário.

 

2 – Fotos publicadas no site Inter Multiplices UNA VOX – http://www.unavox.it/Frutti%20postconcilio/LiturgiaComparata/LiturgiaComparata02.htm


 

 

 http://www.unavox.it/Frutti%20postconcilio/NuoviPretiNuovaChiesa.htm
 

Paróquia da ressurreição - Viena
Elevação da “HÓSTIA” CONSAGRADA na Missa dos jovens.

 

Domingo  2 de maio de 2004
Igreja de Menzingen – Suíça
Missa dos acrobatas

 

Idem
 

7 de março de  2004, Dogtown, Missouri
Missa na  paróquia de St. James Greater

 

MISSA ECUMÊNICA EM BERLIN – Kirchentag" ecumênico
Maio de 2003


Wolfgang Huber bispo (?) protestante e o Cardeal Georg Sterzinsky
recitam juntos a “oração”

 

Idem – Pe. Gotthold Hasenhuttl fingindo “consagrar”, mas será que ele acredita?
 

Idem: comunhão dos fiéis...
 
 

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III - DOIS ARTIGOS SOBRE A “”REDEMPTIONIS SACRAMENTUM”

1 - "Redemptionis sacramentum"

Gianteo Bordero - 1 de maio de  2004

Publicado no site RAGION POLITICA (http://www.ragionpolitica.it/testo.2155.html) - (Tradução nossa).

Dizem que foram necessárias diversas revisões para que, finalmente, viesse à luz a nova Instrução da Congregação para o Culto divino – intitulada "Redemptionis Sacramentum"que condena os assim chamados “abusos litúrgicos.

Trata-se de um documento que fará suscitar – como já ocorreu na fase da elaboração do texto – incendiadas polêmicas e críticas, principalmente da parte daquela “teologia progressista”, pouco disposta a ouvir os apelos e o valor da Tradição, voltada mais para procurar um compromisso com  a mentalidade e a cultura do "saeculum", com aquele “ambiente deste mundo” de que falam, com palavras não muito elogiosas, os Evangelhos e as cartas de S. Paulo.

Ao ler a "Redemptionis Sacramentum" ficamos, de fato, até surpresos com a decisão e firmeza de linguagem que nada têm em comum com o sentimental e meloso linguajar, típicos de grande parte das pregações de hoje.A Instrução, de resto, segue uma série de encíclicas papais e documentos da Congregação da Doutrina para a fé (presidida pelo cardeal Joseph Ratzinger) que parecem ter tido a intenção de salientar  – ou pelo menos, de precisar claramente – uma determinada linguagem e um determinado pensamento teológico que, com a aparente e nobre motivação de maior abertura ao “moderno”, ao “diálogo” e ao “espírito dos tempos”, na realidade só contribuíram para rebaixar e banalizar a unicidade do evento cristão, o anúncio de Cristo como verdadeiro Deus e verdadeiro homem, como o único  “caminho, verdade e vida”.

Assim surgiu, em 1993, a encíclica "Veritatis splendor", que condenou todas as orientações progressistas no campo da moral cristã. Depois veio a “Fides et ratio”, que reafirma, com a sensibilidade “filosófica” de João-Paulo II, o valor do conhecimento místico intrínseco à fé e à inseparável ligação da razão humana com o Absoluto e com o Eterno. E Wojtyla fez isso pedindo aos seminários de Teologia para retomar vigorosamente o estudo de S. Tomás de Aquino e daquele pensamento medieval que parecia, aos olhos de muitos teólogos “modernos”, mera herança de um passado do qual queriam se livrar o quanto antes. À “Fides et ratio” seguiu-se a “Dominus Jesus”, documento da Congregação para a Doutrina da fé que repetiu, contrariamente a certas tendências sincretistas, a irredutibilidade do Cristianismo a uma simples religião dentre as outras, a um pensamento de algum modo assimilável a outras mensagens religiosas, a um caminho dentre tantos percorridos pelo homem na sua contínua busca da verdade. Posteriormente, em abril de 2003, João-Paulo II quis, com a encíclica "Ecclesia de eucharistia", reafirmar a doutrina católica tradicional sobre o Mistério eucarístico, largamente esvaziado, tanto na práxis como na pregação, da sua natureza de sacrifício, contrariamente ao que Guareschi teria definido como fast food”, da mesa entre as mesas, alimento dentre alimentos.

À "Ecclesia de eucharistia" segue-se, agora, a "Redemptionis Sacramentum" que, significativamente, traz como subtítulo “Alguns pontos que devem ser seguidos ou evitados em relação à Santíssima Eucaristia”. «A ninguém é permitido menosprezar o Mistério confiado aos nossos cuidados: ele é muito grande para que alguém possa permitir-se a tratá-lo com arbítrio pessoal, que não respeite o seu sacro caráter e a sua dimensão universal». Estas palavras da "Ecclesia de eucharistia" foram citadas pelo cardeal Arinze (Prefeito da Congregação para o Culto divino) para explicar de que urgente exigência nasceu a Instrução: os “abusos” litúrgicos surgidos logo após a reforma pós-conciliar, «foram um motivo de sofrimento para muitos». «Há uma tentação – prosseguiu o purpurado – que devemos resistir: a de pensar que seja uma perda de tempo prestar atenção aos abusos litúrgicos. Alguns destes ameaçam tornar o sacramento inválido. Outros demonstram uma falta de fé eucarística. Outros, ainda, contribuem para disseminar confusão no povo de Deus e tendem a dessacralizar as celebrações eucarísticas».Palavras de Arinze, na verdade, pouco “moderadas”, mas que refletem muito bem a idéia de uma situação que, nestes últimos trinta anos, vem se tornando cada vez mais grave, insidiosa e – pelo que emerge do documento – difundida. Missas transformadas em shows pessoais do celebrante; textos da liturgia “improvisados” emotivamente e modificados livremente; leituras da Bíblia substituídas por afirmações de Gandhi ou Martin Luther King; altares similares a banquetes convivais; cantos que tudo fazem exceto que suscitar no fiel a oração, o sentido do sagrado pela participação no Mistério que se realiza na Missa. Isso, sem falar das homilias relegadas à improvisação dos fiéis, da representação de prestigiadores no momento da consagração, de padres inebriados por fantasias e extravagâncias litúrgicas, tornados “liturgicistas” leigos.

Fenômenos, em resumo, que podem obscurecer a natureza da Missa e do Sacramento,  relegar o Divino fazendo emergir o humano, apagar o Sacrifício ressaltando o “banquete”, banalizar o “Corpo Místico”  salientando exclusivamente  “o povo de Deus”. Assim, diz a "Redemptionis sacramentum", «embora a celebração da liturgia possua indubitavelmente uma conotação de participação ativa de todos os fiéis, não quer dizer, por dedução lógica, que todos devam cumprir materialmente algo além dos gestos e atitudes previstas, como se cada um devesse necessariamente assumir uma específica função litúrgica». E ainda: «É preciso compreender que a Igreja não se reúne por vontade humana, mas é convocada por Deus no Espírito Santo, e atende por meio da fé ao seu dever. O sacrifício eucarístico não deve, portanto, ser entendido como “concelebração” no sentido unívoco do Sacerdote junto com o povo presente. Pelo contrário, a Eucaristia celebrada pelos Sacerdotes é um dom “que supera radicalmente o poder da assembléia” [...] É absolutamente necessária a vontade comum de evitar toda e qualquer ambigüidade nessa matéria e corrigir as questões surgidas nos últimos anos. Portanto, devem ser usadas, com cuidado, certas expressões, tais como: “Comunidade celebrante” ou “Assembléia celebrante”».

Um texto, como se vê, que claramente contraria grande parte da práxis e da linguagem litúrgica em voga de algumas décadas para cá; ou seja, desde que, com uma discutível reforma litúrgica (basta lembrar, em especial, as duras críticas apresentadas pelos cardeais Bacci e Ottaviani, então prefeito do Santo Ofício), o “Novus ordo Missae” de Paulo VI abandonou a liturgia tradicional de S. Pio V, reinterpretando toda a ação sagrada à luz do conceito de “povo de Deus”. Os resultados foram a “coletivização” do rito, a “perda do sagrado na liturgia”, o enfraquecimento doutrinário objetivo da figura do sacerdote, não mais entendido – tradicionalmente – como “alter Christus” mas como outro do “povo”, ou seja, não mais aquele que repete o sacrifício incruento de Cristo, porém – de forma mais simples – como presidente de uma assembléia na qual o próprio “povo” – e nem mesmo o Mistério eucarístico – é o protagonista da celebração.

Assim, desde os títulos dos parágrafos até o último capítulo, dedicado aos “remédios canônicos para os abusos contra a Santa Eucaristia” entende-se como o documento "Redemptionis sacramentum" está preocupado com a gravidade de certos acontecimentos e situações já largamente difundidas e procura apresentar remédios para tal, com abundantes citações do Rito Romano e do Concílio de Trento. Os abusos não são somente “indicados”, mas também condenados e sancionados, reafirmando a excomunhão latae sententiae para quem profana ou deliberadamente ofende o Sagrado Corpo e Sangue de Cristo na hóstia consagrada.“Nada de novo sob o sol”, dir-se-ia; no fundo a adoração e a “defesa” do Corpo eucarístico – aquele Corpo que “une o céu e a terra” foram sempre, desde as origens,  o ponto central e o fim último da Esposa de Cristo, a Igreja. No entanto aquele Corpo sofreu sempre, na história,  tentativas de menosprezo, adaptação, falsificação. Por isso o cristão implora a Deus o dom do Espírito Santo, para si e para a Igreja, para fugir das tentações diárias e combater o “bom combate pela fé’. Aquela fé que é o verdadeiro e grande remédio – como salienta a Instrução "Redemptionis sacramentum" – para qualquer menosprezo, inclusive teológico ou litúrgico, do Mistério dos Mistérios, a vida divina participada ao homem em Cristo.

Ao ler a Instrução "Redemptionis sacramentum" parece que estamos relendo, quase que literalmente, muitos trechos das cartas pastorais de 1970-72 do cardeal Siri, sobre a Eucaristia e sobre a Missa. Já, naquela época, o arcebispo de Gênova advertia, quanto à liturgia, que «certos abusos, certas exageros, certos modos indicam claramente uma ausência de idéias teologicamente fundamentadas e corretas. Quaisquer que sejam o rito, a práxis, o instrumento, o conceito [...] relativos à Santíssima Eucaristia, devem ser tratados com profundo e sério cuidado, porque ou servem para afirmá-la clara e positivamente, ou servem para obscurecê-la, e, portanto, com o tempo, para obscurecer a Doutrina Revelada sobre a Eucaristia». Palavras “proféticas”, as palavras do cardeal Siri. E que lástima!... Passaram mais de trinta anos para que as mesmas palavras, esquecidas ou rotuladas de “retrogradas” e de “anacrônicas” nestas últimas décadas, voltassem a resplandecer – e claramente – no ensinamento católico sobre a liturgia.

Como disse, a "Redemptionis sacramentum" suscitou e está suscitando polêmicas e “ressentimentos”. No entanto, é no Mistério, evocado no nome do documento, que se encontra aquele alimento que só ele restaura, sustenta e salva a humanidade, conforme as palavras do “Ave Verum”, em que Mozart colocou colorida expressão musical:

«Salve, Corpo verdadeiro nascido da Virgem Maria:
que pelo homem padeceu e foi imolado na cruz;
do seu lado trespassado manou água e sangue.
Queira Deus que  nós o bebamos na hora da nossa morte.»

Gianteo Bordero

* * *

2 - Sentados, em silêncio e braços cruzados. Os leigos conforme a instrução vaticana sobre os abusos litúrgicos.

ADISTA NEWS - N°33 de 08 de maio de 2004 -

ROMA-ADISTA - http://www.adista.it/numeri/adista04/adi33/adi33-1.html

Aos padres, tudo; aos fiéis nada. Talvez, poder-se-ia assim sintetizar a Instrução Vaticana Redemptionis sacramentum [RS] que obsessivamente fecha qualquer possível desenvolvimento de quanto afirmou o Concílio Vaticano II sobre a Igreja como “povo de Deus”, interrompendo qualquer criatividade da comunidade eucarística local e, com a sua minuciosa indicação e condenação dos “abusos” na celebração da Eucaristia, confunde coisas totalmente contrárias, colocando no mesmo plano a profanação das sagradas espécies e a “concelebração” de sacerdotes católicos com ministros protestantes.

Formalmente, trabalho da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, presidida pelo Cardeal Arinze, o documento – datado de 15 de março, mas publicado sexta-feira, 23 de abril – estava no ar há tempo, e havia sido antecipado por João-Paulo II na encíclica Ecclesia de Eucharistia de 17 de abril de 2003. Na apresentação à imprensa o cardeal minimizou os contrastes que, na Cúria, haveria sobre o documento. E, no entanto, o purpurado de alguma forma se desmentiu quando afirmou que as “minutas” do texto foram, na verdade, doze: demais, para tudo estar tranqüilo. Adista (n. 70/03 de 4 de outubro de 2003) publicou parte de um dessas minutas – secretas – no texto latino então intitulado Pignus redemptionis (“ O testemunho da redenção”).

Surgida do esquema geral delineado pela última encíclica papal, a RS é uma “Instrução sobre algumas coisas que devem observar e evitar sobre a Santíssima Eucaristia”, subdividida em oito capítulos, com 186 parágrafos. Por ordem papal ela foi preparada “em colaboração” com a Congregação para a Doutrina da Fé (e, de fato, além de Arinze, ela foi apresentada à imprensa também pelo Mons. Angelo Amato, secretário da Cdf).

Eliminado o capítulo da discórdia, mas a substância permanece

Com relação à “minuta” publicada pela Adista, a mudança mais substancial – fora outros detalhes menores – é que, na efetivamente publicada, falta um capítulo, o nono, que tratava da relação ecumenismo-Eucaristia. Vozes de corredores afirmam que, sobre o tema, houve uma grande divergência entre o prefeito da Cdf, cardeal Joseph Ratzinger, e o cardeal Walter Kasper, presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da União dos Cristãos. Por esse motivo – sempre conforme as “vozes” – o Papa teria decidido eliminar este problema, que poderia ser tratado em futuro documento ad hoc.

De qualquer forma, a questão ecumênica está presente na RS em resumidas vinte linhas, mas muito pesadas. De fato, afirma o item número 8, substancialmente citando a encíclica papal: “Deve-se notar com grande amargura a existência de iniciativas ecumênicas que, embora generosas nas intenções, conduzem aqui e acolá a práxis eucarísticas contrárias à disciplina com a qual a Igreja exprime a sua fé. O dom da Eucaristia, no entanto, é demasiado grande para admitir ambigüidades e diminuições”.

O nº 84 pede vigilância em Missas celebradas para grandes multidões, para que não aconteça que, “por falta de conhecimento”, se aproximem da comunhão não católicos, ou pior, não cristãos. E o nº 172, dentre os graviora delicta [delitos mais graves] contra a Eucaristia, relaciona no mesmo grupo a profanação sacrílega das espécies consagradas e “a concelebração proibida do Sacrifício eucarístico com ministros de Comunidades eclesiais os quais não têm a sucessão apostólica, nem reconhecem a dignidade sacramental da ordenação sacerdotal” [ou seja, pastores das Igrejas da Reforma Protestante]. Tal “delito” já estava substancialmente previsto no Código de Direito Canônico em vigor e num documento de Ratzinger publicado há trinta anos. Repetindo-o agora, talvez o Vaticano quis responder à clamorosa – porque amplamente preanunciada na imprensa – “hospitalidade eucarística”  realizada por um padre católico em Berlim, em maio de 2003, durante o "Kirchentag" ecumênico (v. Adista n. 45/03).

Os leigos fiquem em seus lugares. O último

Mas a RS visa principalmente o interior da Igreja católica, e o motivo, sempre repetido pela Instrução, é que cabe ao sacerdote, e somente a ele, enquanto consagrado, o direito e o dever não só de celebrar a Missa, mas também de proclamar a homilia, excluindo taxativamente desta última função os “leigos” e até os teólogos e seminaristas (nº. 65, 66).

O papel dos leigos é, na prática, aquele de expectadores: a homilia, não, e pronto; a leitura do evangelho, não (n. 63), e não se trata de novidade; mas também outras formas de pregação, “na igreja ou num oratório fora da Missa”, que embora possam ser “admitidas como norma de direito”, não podem “mudar em caso de absoluta excepcionalidade como fato ordinário”, nem devem ser entendidas “como autêntica promoção do laicato”, sendo que o bispo poderá permitir caso a caso (nº 161). E se o leigo pode distribuir a comunhão, mesmo assim como função conferida de modo extraordinário pelo sacerdote (n. 156), “é reprovável a práxis dos sacerdotes que, embora presentes à celebração, se abstêm de distribuir a comunhão, encarregando tal função aos leigos”. Além disso, e como condição excepcional, mas realmente excepcional, “se houver a exigência de fornecer informações ou testemunhos de vida cristã aos fiéis reunidos na Igreja, é preferível que isto se faça fora da Missa. Entretanto, por uma grave causa, se pode apresentar tais informações ou testemunhos quando o sacerdote tenha pronunciado a oração depois da comunhão. Este uso, porém, não deve se tornar costumeiro” (n. 74).

Disso decorre que, enquanto é referido à celebração eucarística, “se usem somente e com cuidado locuções como: ‘comunidade celebrante’ ou ‘assembléia celebrante’, para que não seja passada à mente das pessoas a idéia de reduzir a função essencial do padre” (n. 42; aquele "se usem somente e com cuidado” é um abrandamento em relação à minuta do qual Adista tratou no último outono: lá se proibia praticamente o uso das supracitadas “locuções”).

Diante do documento, os fiéis leigos não devem ser como estátuas ao assistir a Missa: no nº 32 lê-se que “a participação dos fiéis leigos na celebração da Eucaristia e em outros ritos da Igreja não pode ser reduzida a uma simples presença e muito menos passiva”. Podem aclamar, cantar, talvez se mover ou ficar calados: “Para promover e salientar a participação ativa – explica o documento no nº 39 – a recente reforma dos livros litúrgicos favoreceu, conforme as intenções do Concílio, as aclamações do povo, as respostas, a proclamar os salmos, as antífonas, os cantos, bem como as atitudes ou gestos e postura do corpo, e providenciou a ser observado no devido tempo o sagrado silêncio, indicando nas rubricas também as partes devidas aos fiéis”.

Espaço para a fantasia

 A relação dos “abusos” é implacável, quase até grotesca. Assim afirma o nº 94: “Não é permitido que os fiéis tomem a hóstia consagrada nem o cálice sagrado «por si mesmos, nem muito menos que se passem entre si de mão em mão».Nesta matéria, além disso, deve-se suprimir o abuso de que os esposos, na Missa nupcial, administrem-se de modo recíproco a sagrada Comunhão”. Reafirma-se depois – contrariando dessa forma o pensamento de muitos teólogos e de muitas comunidades – que a primeira comunhão das crianças deve sempre ser precedida da confissão sacramental e da absolvição (nº 87).

E as mulheres? São admitidas as “coroinhas” (nº47), sob a decisão não do padre ou do pároco, mas somente do bispo.

Não se encontra mais entre os abusos, como constava da minuta, aquele relativo à celebração eucarística presidida por mulheres: no final das contas, que necessidade haveria para falar disso? Tanto, seguramente, elas são leigas. Também não se encontra aquele relativo às danças durante a celebração. O Papa pode respirar de alívio. Permaneceu aquele que pode ser definido como um encorajamento para a denúncia: o nº 184 convida os fiéis a denunciar à autoridade qualquer “abuso”. E, de fato: “Qualquer católico, seja sacerdote, seja diácono, seja fiel leigo, tem direito a expor uma queixa por um abuso litúrgico, ante ao Bispo diocesano e ao Ordinário competente que se lhe equipara em direito, ante à Sé apostólica, em virtude do primado do Romano Pontífice. Convém, sem dúvida, que, na medida do possível, a reclamação ou queixa seja apresentada primeiramente ao Bispo diocesano. Para isso se faça sempre com veracidade e caridade”. Também neste contexto há um abrandamento comparado à minuta, para não querer dar à denúncia um excessivo realce: falta o parágrafo sobre “devido respeito” que devem ter “aqueles que denunciam o abuso”.

 


    Para citar este texto:
"Dois documentos, dois comentários, uma constatação"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/igreja/2documentos/
Online, 30/12/2024 às 17:03:15h