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A guerra entre a Igreja e a Maçonaria em Pernambuco no séc. XIX - parte 1
Iniciamos hoje a publicação do estudo de nosso amigo Gustavo V. de Andrade, a respeito da Questão Religiosa que opôs a Igreja à Maçonaria no Brasil Monárquico do século XIX, culminando com o sacrifício do heroico bispo pernambucano Dom Vital.
Prefácio
“Nihil novi sub sole” (Não há nada de novo sob o sol) Ec, 1:9
Todas as idéias e doutrinas possíveis resumem-se a duas: a obediência a Deus e a desobediência. Não há heresia que não diga “Não servirei”, assim como não há reto agir que não diga “Faça-se em mim segundo a Vossa Palavra”. As revoluções e disputas intensas que tiveram lugar em Pernambuco no século XIX nada mais são que a velha revolta original com as novas roupas do tempo. Para bem entender como se chegou ao limite da disputa hoje chamada de “Questão Religiosa”, na qual o heróico bispo Dom Vital ousou enfrentar as forças maçônicas que se infiltravam na Igreja de Cristo, é preciso observar o movimento maior das ondas no mar revoltoso. Todas as revoluções não passaram de batalhas nesta guerra maior, ainda inconclusa, mas que para uma compreensão histórica restringiremos ao seu momento mais caudaloso. Começaremos, então, a narrativa dos fatos a partir de acontecimentos dos séculos antecedentes ao de nosso enfoque, para dar a perceber como se ocultou no tempo a semente da desobediência, a semente da escravidão ao pecado, e como dela brotaram os frutos da perdição.
Parte I
Da Missão ao Oratório
Chegavam a Portugal relatos da desolação resultante do período de ocupação holandesa no Brasil. Em Pernambuco, casa de civis assaltadas e depredadas, assassinato de inocentes, estupros na ordem do dia, jovens obrigados a frequentar as escolas sectárias protestantes, sacerdotes exilados para as regiões de colonização espanhola na América ou perseguidos até buscarem abrigo nos sertões desérticos, igrejas demolidas e profanadas, altares violados, imagens incineradas e toda sorte de objetos sacros destinados a uso profano. Num desses relatos conta-se que “os novos cristãos que fugindo para os sertões deixaram a fé e tornando às trevas da idolatria perseveravam na mesma cegueira; muitos portugueses que residiam na Capitania viviam mui esquecidos das obrigações de cristãos, entregues a todo o gênero de vícios e sem frequência de sacramentos. Faltavam párocos que catequizassem os índios e os trouxessem ao conhecimento do verdadeiro Deus; havia também grande falta de ministros evangélicos que pregassem nas Aldeias e lugares distantes; e finalmente era geral a ignorância da Doutrina Cristã especialmente nos meninos e gente mais rude, o que tudo cedia em grave dano da Cristandade”.
No Natal do ano de 1659, depois de ordenados e tendo passado um período de recolhimento nos Açores, rezaram suas primeiras missas os padres João Duarte do Sacramento e João Roriz Victória, ambos discípulos do Pe. Bartolomeu de Quental, pregador da Capela Real Portuguesa. De tal modo conduzia o Pe. Quental à vida religiosa na corte portuguesa que em muito mais parecia um mosteiro que propriamente uma corte, tendo de fato várias damas seguido a vocação religiosa. Foi ao tomar conhecimento da triste realidade da colônia lusa, que há pouco bravamente tratava de expulsar os holandeses, que o Pe. Quental decidiu-se pela necessidade missionária dessas terras, chegando a cogitar ele mesmo ir a Pernambuco. Por circunstâncias diversas, depois de uma longa e profunda meditação, resolveu o pregador da Capela Real Portuguesa enviar alguns de seus discípulos a Pernambuco. O escolhido por chefe da expedição catequética foi o Pe. Sacramento, desde muito jovem credenciário da corte (na prática, algo como um estagiário de sacristão), de grandes virtudes e fama de santidade, a quem muito apreciava a Rainha D. Luiza de Gusmões.
[caption id="attachment_12084" align="aligncenter" width="187" caption="Padre João Duarte do Sacramento"][/caption]A missão inicialmente contava com quatro sacerdotes, mas o grande fervor apostólico dos missionários portugueses logo fez crescer o número de jovens e rapazes que desejavam seguir tão bela vocação em terras pernambucanas. Como à época o bispo mais próximo residia na Bahia se fazia muito difícil a ordenação daqueles brasileiros que se uniram aos quatro padres. Então, todos os que se decidiam por seguir aos missionários permaneciam como irmãos consagrados, seja ajudando aos padres em suas muitas e constantes viagens, seja residindo em aldeias e tribos como responsáveis pela formação e zelo das almas na ausência dos sacerdotes.
A fim de facilitar o trabalho missionário o Pe. Sacramento e seus companheiros passaram a dispor de um local de retiro, um convento, se assim o podemos chamar, extremamente miserável, cuja diminuta capelinha, de tão pequena, do chão se podia facilmente tocar o teto. Formularam estatutos os quais desejavam seguir e fazer aprovar. Eram absurdamente rigorosos esses estatutos, pois além das regras que deveriam guardar durante as missões eram ordenados ainda quando na casa a guardar perpétuo silêncio, andar sempre descalços, jejuar por todo o ano, passando a pão e água três vezes por semana, não ter nada em suas celas além de um banquinho, uma tábua pregada à parede, uma barra com uma esteira e uma manta, não podiam tomar dinheiro, ainda que das Missas, enfim um grande número de fardos para ombros humanos. Apesar disso nada obstou o cabido da Bahia aos estatutos, passando o pequeno grupo de religiosos a denominar-se os Padres da Recoleta de Santo Amaro.
O Pe. João Roriz Victória foi o encarregado de representar à pequena comunidade religiosa junto à Santa Sé no intuito de ter os estatutos aprovados pelo Papa. Ao passar por Lisboa foi também o Pe. Victória confiado como representante do Pe. Quental diante do Sumo Pontífice para que obtivesse a aprovação dos estatutos que se havia formulado para uma comunidade de sacerdotes em Lisboa (com rigores bem próximos daqueles formulados pelos padres missionários). Obviamente a Santa Sé recusou os estatutos como se apresentavam devido às exigências por demais escrupulosas. Desejando, no entanto, ambos os institutos viverem em comunidade sem proferirem os votos de obediência, castidade e pobreza, concedeu-lhes o Papa Clemente X, como regra a ser seguida, o regimento do Oratório de S. Filipe Néri de Roma.
Dificilmente se poderia transplantar uma regra diversa e mais branda sobre uma já existente e rigorosa sem empecilhos, essa obviedade foi percebida pelo Pe. Quental, superior do Oratório de Lisboa. Foi obtido então do Papa, para ambas as novas congregações do Oratório, regras mais adaptadas aos hábitos e costumes dos padres lusitanos. Os oratorianos brasileiros, no entanto, rejeitaram os novos estatutos, vendo tal ação como uma ingerência portuguesa, preferindo aceitar integralmente a regra apresentada pelo Santo Padre inicialmente, aquela do Oratório de Roma.
A fim de melhor viver a nova regra que lhes foi apresentada pela Santa Sé os Oratorianos iniciaram a construção de um grande convento (posteriormente utilizado como alfândega do porto e atualmente como shopping center), bem como uma igreja em Recife, ainda então comarca subordinada a Olinda. A escolha de localidade desde o início não foi vista com bons olhos pela nobiliarquia olindense, mas contavam os oratorianos com o favorecimento da monarquia portuguesa.
[caption id="attachment_12085" align="aligncenter" width="224" caption="Igreja da Madre de Deus, construída pelos Oratorianos no Recife"][/caption]Ocupado com as muitas funções que exercia a encargo do bispo, o Pe. Sacramento não pôde vigiar com grande zelo para evitar os problemas que o Pe. Quental já antevira. No Oratório fundado em Pernambuco não se tratou nem de seguir aos estatutos primeiros, aprovados pelo cabido da Bahia, nem aos estatutos do Oratório de Roma, seguindo-se uma miscelânea, favorecendo no que se pudesse à frouxidão dos costumes e da moral. Como solução pensou-se na união com o Oratório de Lisboa e a adoção de seus estatutos adaptados.
Após um longo trabalho de convencimento e tentativas frustradas de integração com o Oratório de Lisboa o Pe. Duarte do Sacramento veio a falecer pouco depois de escolhido como 2º bispo da diocese de Olinda. Seu sucessor no Oratório o Pe. Luiz Ribeiro obteve a adoção dos estatutos lisbonenses em Pernambuco. No entanto, um grupo de padres descontentes com a perda de alguns benefícios dos quais gozavam se insubordinaram realizando um verdadeiro cisma na comunidade. Os rebeldes foram auxiliados por frades franciscanos e carmelitas descalços que, além de abrigo, lhes prestaram ajuda jurídica numa batalha travada entre um monge beneditino, juiz canônico, e os bispos que se sucederam na diocese. O povo simples e ignorante acabou por apoiar as ações do monge desvairado que sentenciava excomunhões como se fossem cartões amarelos num jogo de futebol. A situação só foi revertida e pacificada em 1701 por um Motu Proprio do Papa dando razão ao bispo e aos oratorianos que desejavam a união com a casa de Lisboa.
Tristemente o vínculo formado entre os Oratórios foi a abertura para que as várias heresias que tomaram conta da corte portuguesa nos anos que se seguiram encontrassem o caminho rumo a Pernambuco e nesta capitania fossem fontes das várias revoluções do século XIX.
Para citar este texto:
"A guerra entre a Igreja e a Maçonaria em Pernambuco no séc. XIX - parte 1"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/historia/a-guerra-entre-a-igreja-e-a-maconaria-em-pernambuco-no-sec-xix-parte-1/
Online, 21/12/2024 às 18:06:17h