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Despertando de um sonho... Saudades do Paraíso? Sete cartas anti-românticas I
Orlando Fedeli
Jorge, meu prezado amigo,
Temos conversado a respeito das tendências gnósticas do mundo moderno.
Você bem sabe como todos os movimentos gnósticos do passado sonharam com um retorno a uma Idade de Ouro primitiva. Sabe ainda como, por trás desse mito pagão, se escondia uma recusa de aceitar a realidade concreta. Mais: o que está no fundo desse desejo de felicidade terrena inatingível, depois da expulsão do Paraíso, é uma recusa da contingência, um desejo de ser Deus. Em termos cristãos, há uma recusa da cruz. Há uma recusa em aceitar a expulsão do Paraíso Terrestre, para o qual o Romantismo queria retornar, por meio do sonho.
Tudo isto me veio à mente ao ler um artigo da revista que você me trouxe, comentando Veneza.(Revista Dr. Plínio, Editora Retornarei Ltda, São Paulo, Ano I, n 0 2, Maio de 1999, pp 26-27 ).
De passagem, não é possível deixar de notar que extremo fanatismo revela o dar a uma revista o nome de uma pessoa !
O autor do artigo -- e dono do nome da revista -- entre outras coisas, era ...um... digamos... um "critico de arte"... E que se considerava Doutor Inerrante em qualquer matéria que fosse, quando nem mesmo simples doutor jamais ele fora, a não ser, muito brasileiramente, como são doutores todos a quem o tratamento caipira chama com tal titulo. Isto é, todos que estudaram em Faculdade. Lembra-se, você, do que diz o Eça ? "No Brasil, todos são doutores". Mas, nunca se viu, nem no Brasil -- e nem no Eça - um doutor como esse, que se pretendesse inerrante.
Não, não estranhe essa aberração delirante que alguém maldoso diria inteiramente... fora da normalidade... Já as houve no passado aberrações desse tipo, e elas não podiam faltar neste século de todos os delírios.
Para levar o desvario ao cúmulo, você tem que saber que o falecido...digamos... critico de arte... se dizia também modesta e francamente imortal.
Mas, só proclamava esta sua certeza, "en petit comité", como ele costumava dizer, para poder desmentir, depois, de público, o que dissera "parâmicamente", isto é, "discretamente", caso alguém o acusasse de ter dito esse desvario.
De público, dizia-se modesta e escancaradamente mortal. Pois que, de público, só convinha ter modéstia. A franqueza, ele a reservava para as "Conversas de Sábado â Noite", isto é, para as reuniões em que estavam presentes só alguns mais iniciados em suas doutrinas e desígnios. Nessas conversa mais discretas, sistematicamente, e bem por baixo do pano, alimentava ele, entre seus devotos sequazes, as esperanças mais firmes e claras de que jamais ele faleceria. Pelo menos, a certeza de que ele não morreria sem ter fundado, antes, um "Reino de Maria", com todas as notas do mais furibundo milenarismo.
Faleceu.
E antes de fundar o tal Reino.
Faleceu.
Está morto até hoje.
E, hoje, tanto como o velho Malbrough, "il est mort et enterré ! Definitivamente enterré ! E embora digam os franceses que "quand ont meurt, c'est pour longtemps" (Quando se morre é por muito tempo), seus devotos esperam sua volta para breve. Para daqui a pouco. Para fundar o Reino!
Pois você pode não acreditar no que estou lhe informando, mas é a mais pura verdade: seus admiradores esperam, agora, sua ressurreição de um momento para o outro. Que ressurja, "tutto d'una volta" (Todo de uma só vez), como dizem os italianos, para anunciar o que acontece de repente.
O que prova ser o delírio contagioso. Não lhe disse já, que nosso século é o de todos os delírios?
Pois então, vamos ao centro da questão! Analisemos o artigo do falecido imortal e inerrante autor sobre Veneza, que você me envia. Ao ver dos sequazes do autor do artigo, você me pede que eu cometa, sim, um sacrilégio gravíssimo! Porque, na seita que ele fundou, pensar em fazer o mais leve reparo ao que ele dizia, já era crime de lesa profetismo!
Que seria então pretender criticá-lo ?
Seria crime pior do que cometer um pecado contra o Espírito Santo! Seria ato sem perdão! Equivaleria a lançar-se " de cabeça e de botinas - no fundo do caldeirão do Pedro Botelho !
Pois você atrevidamente me pede que eu faça esse mergulho infernal! É o "sacrilégio" lesa- profético que você me exige.
Se ouso atender o seu pedido, é porque sei, pelo Catecismo, que atacar falsos profetas é ato benemérito, e corrigir os que erram é obra de misericórdia.
À misericórdia, pois ! Ao mergulho ! Mas não de cabeça e de botinas, mas com a cabeça e com a caneta!
Mas assim como no Inferno de Dante há um ante-inferno, assim também, antes desse artigo, há uma apresentação. Mergulhemos e examinemos, então, inicialmente, a introdução, feita pela redaçâo da citada revista, aos ditos e pensamentos oraculares do pseudo profeta.
Logo de inicio, na apresentação do artigo feita pela redação da revista, pode-se ler as seguintes frases claramente milenaristas:
"Será possível ter saudades de algo que não se conheceu? Parece que sim, pois o homem conserva na alma a nostalgia de um mundo maravilhoso no qual nunca esteve, mas com que sonha imperceptivelmente. É o Paraíso, de onde nossos primeiros pais foram expulsos, como castigo pelo pecado original'(...) O vazio deixado na alma humana pela perda daquela felicidade primeira leva o homem a criar, conforme seu talento o inspire, miniaturas de Paraíso, que de algum modo saciem essas saudades. Uma delas é, sem dúvida, Veneza..."
Sei que você tem um outro exemplar desse mesmo número da revista, no qual você poderá conferir as citações que faço. É o número dois dela, e o artigo está na página 26.
Encontrou ?
Pois então, prossigamos, que eu o conduzirei como Virgílio a Dante, pelos labirintos românticos do falso profetismo, sem pretender dizer com isso senão que executo apenas uma ação semelhante à de Virgílio, de orientação de alguém, sem evidentemente, pretender ter o valor do vate romano. Precavenhamo-nos contra as interpretações delirantes de possíveis desvairados.
Você note, antes de tudo, que o autor da nota de apresentação do artigo diz que "o homem (...) sonha imperceptivelmente".
Se esse sonho é "imperceptível" como é que ele o percebeu ?
Não é preciso também esclarecer uma pessoa de bom senso de que é impossível ter saudades de um lugar, onde nunca se esteve. Não ofenderei a sua inteligência, que sei lúcida, tentando demonstrar que isso é um absurdo.
O redator, que apresenta o artigo com esse preâmbulo estapafúrdio, ele, tanto quanto o "doutor inerrante", parece não ser tão lúcido, pois julga que tais saudades são possíveis e perceptíveis. E garante que o homem, nostálgico desse paraíso perdido, "sonha" - o termo é caro aos românticos - sonha em realizá-lo.
Seria um "sonho imperceptível", mas sempre sonho.
Evidentemente, poder-se-ia argumentar dizendo que o homem, conhecendo - e não tendo saudades - de que houve um paraíso terrestre original, geme e chora por estar, hoje, neste "vale de lágrimas".
Todo católico reza isto na "Salve Rainha". Mas, o verdadeiro espírito católico aceita a justa expulsão do homem do paraíso terrestre, toma a sua cruz, e segue a Cristo, sem sonhos de restabelecer o jardim edênico do qual Adão foi tão justamente expulso. E nem pretende burlar a vigilância do anjo que Deus colocou à porta do Éden, infiltrando-se lá dentro, por meio do sonho romântico.
Pois o apresentador do artigo não teme confessar seu sonho, e o atribui, muito genérica e erroneamente, a todo homem.
Pior. Ele considera normal que o homem tente realizar este sonho, criando "miniaturas de paraíso".
Ora, este é um ultra conhecido sonho dos românticos, que tentaram realizá-lo de mil modos diversos e até por meio das drogas. Baudelaire conta algo sobre isso.
Outros quiseram refazer o paraíso por meios políticos. Os socialistas utópicos, o tentaram por meio de delírios, e os socialistas ditos "científicos", procuraram fazê-lo á força. Hitler também pretendeu recriar o seu éden germânico, usando a Gestapo. E, como bem disse um autor que se deve citar com ressalvas, Karl Popper, "toda tentativa de criar o paraíso, na terra, instaurou um inferno". O falso éden germânico, nascido do romantismo - é bom sempre lembrá-lo - instituiu o crime genocida e o instalou em Auschwitz, enquanto o paraíso socialista chamou-se Gulag. Foram paraísos com arame farpado, metralhadoras, câmaras de gás e de tortura.
Passemos ao artigo. Mergulhemos -- enfim -- no abismo romanticamente azul da falsa profecia.
O autor principia dizendo que, em Veneza, "o homem pôde realizar, afinal, este sonho: morar á beira d'água, sob um lindíssimo céu"
É uma afirmação surpreendente. Pois será que antes de fundar Veneza jamais os homens habitaram â beira d' água e sob um céu lindíssimo ?
Não!... Não creio!
Não creio, porque sempre os homens fundaram suas cidades á beira d' água. Sem água é impossível viver. Sempre as cidades foram estabelecidas ou á margem de rios ou de lagos, ou à beira mar. E, sobre todas elas, sempre existiu um esplêndido céu azul. Até mesmo esta feíssima São Paulo de hoje - que outrora foi São Paulo da garoa. Da garoa, e mais pitoresca -- foi fundada á beira do Tamanduateí, rio de horrendo nome, e rio hoje tão poluído, mas que já teve águas límpidas, nas quais minha infância chegou a pegar lambaris, bagres e peixinhos. E até sobre esta São Paulo babilônica brilha -- quando há condições meteorológicas favoráveis - o azul do lindíssimo céu com que Deus cobre os bons e os maus.Com o qual Deus cobre Veneza e Tombuctu.
Mas, já ouço o autor rebater imediatamente minha critica, lembrando que "o firmamento de Veneza é o céu dos céus". Enquanto o céu desta poluidíssima paulicéia realmente desvairada ficou tão cinzento... Tão cinzento,,, E sem garoa.
Sobre Veneza, não. Sobre Veneza há "o céu dos céus" ! Sobre Veneza, pois, brilharia o próprio Empíreo.
E eu que pensei que só nos tempos tuberculosos do romantismo se encontrariam exageros de tal monta!...Pois me lembro de uns versos que dizem "Nossas várzeas tem mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores".
(Ah! Perdão l Isso é de Gonçalves Dias!. Portanto, proclama uma verdade nacionalisticamente incontestável. Pois sussurro-lhe, entre parênteses, e bem, bem baixinho, que o autor dessa poesia -- Canção do Exílio -- romântica e hiperbolicamente nacionalista, não foi exilado para os bosques às margens do Dordogne. Ou, se os conhecia, então mentiu, porque lá há -- sem comparação ! -- muito mais flores).
Assim também parece um exagero "italianíssimo" dizer que o céu de Veneza é "céu dos céus", embora o céu italiano seja particularmente belo e lúcido. O nosso inerrante "critico de arte" caiu, ai, num pecado de exagero que ele tanto condenava nos italianos: o de 'Millecanismo", isto é, de afirmar que há mil cães, brigando numa praça, quando, na verdade, havia somente dois cachorros puxando-se pelas orelhas...
E, depois dessa afirmação um tanto exagerada, o autor prossegue romanticamente dizendo "O colorido é extraordinário, as brumas e os anoiteceres, lindíssimos"
Já ouvira falar das românticas brumas de Avalon, do "Além do horizonte azul" (era o nome de um filme de Holywood que assisti quando menino de calças curtas, num pulguento cinema de bairro), e até dos ventos uivantes sobre as charnecas inglesas da soturna Emily Brönte. Das brumas lindas de Veneza não ouvira falar.
Mas, como todos os românticos gostam de brumas e de nevoeiros pela vaga tristeza que despertam nas almas sentimentais, então é bem natural que o citado inerrante articulista e crítico de arte, romanticamente se desvaneça com as brumas de Veneza. Mas que isso é romantismo, isso é.
Veneza "é uma espécie de paraíso realizado pela fantasia, pelo gênio, pela capacidade de trabalhar e pelo desejo de sublime que tem o homem"
Na frase citada, o romantismo está na consideração que Veneza é um paraíso realizado pela fantasia. Porque, se alguma coisa "realizou Veneza", foi a inteligência, em primeiro lugar, e não a fantasia. Foram os românticos, você bem o sabe, que colocaram a fantasia adiante e acima da inteligência. A fantasia, a imaginação, esta louca da casa, como disseram vários santos. E pergunta estupefato, então, o autor do artigo:
"Afinal, como pôde um povo semi-selvagem - como eram os primitivos habitantes daquela região - construir algo tão maravilhoso?"
Ora, ai o autor do artigo - que foi catedrático de História [por nomeação, por nomeação... E duas vezes por nomeação, nunca por concurso ] - escorrega em um erro. Veneza não foi construída por um povo semi-selvagem. Ela foi construída pelos antigos habitantes de Aquiléia, que era uma das cidades mais importantes do avassalado e decadente Império Romano, e cidade muito católica já, a ponto que lá se realizou, no ano 381, um Concílio que condenou dois Bispos arianos.
A alma desse Concílio de Aquiléia de 381 foi, nada mais, nada menos, que o grande Santo Ambrósio de Milão. E participaram desse Concílio vários santos: São Valeriano de Aquiléia, Santo Eusébio de Bolonha, São Sabino de Piacenza, São Filostrato de Brescia e São Justo de Lyon.
Portanto, Aquiléia já fora governada por um Bispo santo, em meio ao mar do arianismo que havia inundado o mundo. Os habitantes de Aquiléia não eram, então, de modo algum, semi selvagens. Eram católicos e anti arianos há muito tempo. E foram estes católicos, junto com os povos mais rústicos que já habitavam o litoral da região, que fundaram a cidade dos canais.
Quanto à fundação primeira de Veneza, ela sim está envolta em brumas. Mas não físicas. Brumas apenas analógicas.
Segundo alguns, quando em 452, os hunos de Átila -- estes, sim, bárbaros e só de muito boa vontade semi-selvagens -- destruíram Aquiléia, seus habitantes fugiram para as terras além da Laguna de Veneza, (Jesolo, Heracléia, Lido, Malamoco), e, só depois, foram para as ilhotas da Laguna, onde estabeleceram os fundamentos da futura "Rainha do Adriático", a fulgurante Veneza. É o que ensina a Crônica do Doge Dandolo.
Outros, mais "científicos" do que o Doge Dandolo e do que sua Crônica, -- leitores da British Encyclopedia --afirmam que a fundação de Veneza se deu apenas com a invasão dos longobardos, no século VI
Os bárbaros lombardos é que teriam ocasionado a fuga da população de Aquiléia para as ilhotas da Laguna, e desta invasão teria nascido Veneza, provando que há desgraças que vem para bem.
Se foram os hunos ou os lombardos que causaram a fuga dos habitantes de Aquiléia, pouco importa.
Excelente foi que, dessa fuga, tenha nascido Veneza. E a glória e o esplendor do fruto faz esquecer as lágrimas e ruínas da semente. E quase que a gente se alegra pela invasão de hunos e lombardos porque, indiretamente, eles propiciaram o nascimento dessa flor esplendorosa, que é Veneza.
De qualquer modo, repito, Veneza nasceu por causa da invasão de povos semi selvagens, que afugentaram populações que já eram católicas desde os tempos de Constantino, o Grande, no século IV. Quem fundou, então, Veneza não era um povo semi-selvagem, a menos que se considere, desse modo, os habitantes da Itália posteriores a Constantino, eles que eram filhos cristianizados e anti arianos do decadente Império Romano, mas eram ovelhas de Santo Ambrósio, de São Valeriano e de tantos outros Bispos gloriosos daqueles tempo em que existiam hunos e lombardos, mas em que, felizmente, não existia ainda nenhuma Conferência Nacional dos Bispos da... Itália !.
...Saudades dos lombardos !...
E se essas ovelhas de São Valeriano eram semi selvagens, quem é então civilizado 7
E depois, Veneza não surgiu das águas de um dia para o outro, já com o Rialto e a Cá D'Oro brilhando ao sol, e beijados pelo marulho das ondas do Gran Canale.
Ainda que os italianos sejam bem rápidos, nem sua rapidez, nem a sua proverbial pressa, conseguiriam essa proeza. Veneza levou séculos para surgir esplêndida ao sol da Itália, com seus mosaicos dourados, seus palácios e suas gôndolas pitorescas flutuando sobre as águas da Laguna. De inicio, certissimamente, não se construiu nem a Cá Rezzonico, nem o Palácio dos Doges, e muito menos a atual San Marco.
E prossegue o autor decididamente a emitir suas opiniões como se fossem oráculos absolutos: "A meu ver, se esse povo não fosse batizado, essa cidade não existiria".
Ora, se o povo que fez Veneza era batizado, como ele o chamou de semi-selvagem ?
Portanto, isto não pode ser engolido assim, de um só bocado. Há conformes a colocar. Que Veneza seja o resultado extraordinário da arquitetura cristã, é incontestável. Mas o autor estava se referindo à realização de uma cidade "à beira d'água e sob um céu lindíssimo", digamos até, sob "o céu dos céus". Ora, dizer que só um povo cristão podia fazer isso, é colocar como causa quase única de se fazer uma cidade "à beira d'água e sob um céu lindíssimo" o fato de esse povo ser cristão. E dito isto só assim, isto é um exagero que escamoteia outros fatores, como, por exemplo, os históricos e os geográficos.
A guisa de prova, e por exemplo, os aztecas, -- que não eram cristãos - construíram, eles também, uma cidade sobre um lago. Certamente Tenochtitlán - a capital lacustre e palafita dos aztecas - estava "loin du trésor de Venise" ( longe de ser o tesouro de Veneza), como diria a doce poesia de Charles D' Orleans. Lá não havia nada que pudesse ser comparado em beleza à Piazza di San Marco - E que cidade no mundo pode ter algo que se possa comparar à Piazza de São Marco ? - nem à Chiesa della Salute, com suas volutas barrocas. Pelo contrário, em Tenochtitlán, havia templos tão monstruosos, que um deles foi chamado pelos espanhóis de "Puerta del Infierno", se não me trai a memória velha e enfraquecida...
Mas ela era feita à beira d'água. (Que é o que eu queria demonstrar).
Mas ela era imensa. Tinha centenas de milhares de habitantes, sendo todas as ruas de terra batida, e todas com canais. Todas as casas possuindo ancoradouro. E, se havia templos demoníacos, havia também jardins suspensos em quase todas as casas. E os espanhóis ficaram literalmente deslumbrados com sua beleza e organização. Basta ler a descrição dela feita por Bernal del Castillo, para compreender isto. E o que diz Jacques Soustelle, sobre esta cidade, em seu livro a respeito dos aztecas, o confirma.
E depois, se fosse suficiente ser cristão para fazer uma Veneza, não se entende como no nosso Piauí, não foi feita nenhuma coisa parecida.
Já sei, já sei, você vai me falar do "Recife, a Veneza brasileira", com suas quatro pontes sobre o Beberibe e o Capiberibe. Eu sei... O Recife é lindo, com suas pontes e capelas de ouro. Mas, está ainda muito longe do "trésor de Venise", apesar de todo pitoresco colonial da cidade e de toda a simpatia dos pernambucanos.
E, confirmando seu equivoco histórico a respeito dos habitantes de Aquiléia, o falecido imortal autor garante: "O bárbaro ao ser batizado ficou trabalhador, disciplinado e adquiriu o senso do maravilhoso". (Uái ! Uái ! Repito: Mas não dissera ele que Veneza foi feita por um povo semi-selvagem ? Batizado, anti ariano, e semi-selvagem ?). As maravilhas começaram a nascer".
Lembro, mais uma vez, que nem todo batizado tem essas qualidades. Mas o que se deve salientar aí, nessa última frase, é o tal "senso do maravilhoso", que é algo tipicamente romântico. Leia, meu prezado Jorge, o romântico Franz Von Baader, e você encontrará, em suas páginas teosóficas, toda a teoria do romantismo sobre "O Maravilhoso"!
E ainda haveria que fazer reparos e distinções à afirmação peremptória de que "o bárbaro, ao ser balizado, ficou trabalhador". Qualquer japonês pagão desmente essa assertiva. Ah ! se bastasse balizar para se ficar trabalhador !... Acontece que o batismo não apaga as consequências do pecado original, mas só a culpa.
Perdoe-me a prolixidade desta carta, meu prezado amigo, mas o artigo que você me pediu para examinar me divertiu. Para não cansá-lo, porém, corro um pouco pelos parágrafos, ciscando, aqui e acolá, algumas expressões mais claramente românticas, que é "o que queríamos demonstrar", conforme dizia meu professor de geometria no ginásio, o carrancudo, seco e ósseo Irmão José Bento.
Por exemplo, ele, o articulista inerrante, - que não era nada ósseo -- usa a famosa expressão dos poetas tisicamente tossedores : "um não sei quê", fala do "fundo grave, e até melancólico indispensável para que ela [Veneza] não se torne banal"
Sim. Para todo romântico, ter um "fundo melancólico" era absolutamente indispensável. E, sendo fiel á sua mentalidade romântica, era também absolutamente indispensável que o autor visse Veneza melancólica. Daí as brumas...
E, para concluir, o autor anuncia, solene, que vai citar o que disse uma "célebre poetisa de França" sobre Veneza. E introduz a citação, dizendo que ela produziu, com todo o seu intelecto poeticamente francês, uma "insólita exclamação".
E sabe você, meu caro amigo, qual foi a "insólita exclamação" da "célebre poetisa de França"?
Prepare-se. "Tu vás ouïr le comble de 1'admiration !" ( Você vai ouvir o cúmulo da admiração), diria Racine. Escute lá, o que disse a "célebre poetisa de França", ao ver Veneza.
Abra bem os ouvidos, que ela - a célebre poetisa - vai abrir a boca.
Pronto para ouvi-la ?
Então escute tá l Vai sair a "insólita exclamação":
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
[É a poetisa olhando, e admirando Veneza. Agora ela vai dizer a sua extraordinária e insólita exclamação poética]
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
"C'est trop de beauté !"
"É beleza demais !"
??? ????????????????? ??????????????????????????????????????????
[É o meu espanto!]
Uái!? Isto me lembra o parto da montanha l
Eu que estava esperando uma exclamação estupenda, e me sai da boca da "célebre poetisa de França" a mais trivial expressão!
Até minha cozinheira banguela, a Benedita.-- você já teve a felicidade de saborear, de degustar, diria o inerrante, a sua magnífica feijoada -- até a minha cara Benedita, tão absolutamente banguela quanto absolutamente analfabeta, com mo seu olhar vivo e inteligente, diria melhor.
Você sabe? Vou sugerir à Benedita que, ainda que analfabeta, comece, pelo menos, a fazer exclamações insólitas, sobre Veneza.
Ou... sobre Sant' Ana do Parnaíba. Isso ! Sobre Sant'ana do Parnaíba, à beira d'água construída !
Quem sabe, saia alguma frase do nível desta "insólita exclamação", da "célebre poetisa" de França.
Será a glória para a Benedita !
Um abraço sincero de seu amigo, que só deseja livrá-lo de todas as brumas românticas sopradas, em sua alma sofrida, pelas deletérias doutrinas abstrusas e ab-aeternas do imortal e inerrante profeta em tarde hora falecido.
In Corde Jesu, seu amigo sempre, Orlando Fedeli
P.S. Esqueci-me de citar um outro delírio levemente "insólito" desse "critico inerrante": ele se dizia "a encarnação da ordem do universo".
Não é demais?
Mas, se no hospício, há quem se diga "a mãe da natureza", porque não caberia no século XX, haver quem se proclamasse, de olhos abertos e desperto, a "encarnação da ordem da natureza"!
Divertindo-me à beça, e sempre o mesmo seu amigo, Orlando Fedeli
Para citar este texto:
"Despertando de um sonho... Saudades do Paraíso? Sete cartas anti-românticas I"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/cronicas/setecartas/
Online, 23/12/2024 às 04:19:09h