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Rosas
Orlando Fedeli
Folheando um velho livro há muito esquecido numa estante, deparei com uma página sublinhada. A obra, em italiano, versava sobre o humanismo. Mas o autor, embora peninsular, não aceitava de olhos fechados os sonhos dos humanistas, pois o título era: “Riserve su l’Umanesimo”. Reservas sobre o humanismo...
A primeira frase do texto sublinhado, há tantos anos atrás, era cheia de poesia “Nel Paradiso di Dante, io trovai una rosa...”
“No Paraíso de Dante, encontrei uma rosa...”
E o autor – Fausto Montanari – fazia reparar que o poeta não se referia à rosa cândida dos bem-aventurados, girando em torno da Luz divina, eternamente imóvel. A rosa que ele encontrara, no Paraíso, era uma simples rosa do campo, da qual dizia Dante na Divina Comédia: “come’l sol fa la rosa quando aperta” (Par. XXII, 56).
Montanari relacionava essa passagem com outro texto do poeta florentino, no Convívio (IV, XXVII):
“Convém que o homem se abra como uma rosa que não pode permanecer fechada, e o perfume que ela gerou em seu interior deve se espargir “.
[Embora a obra Convívio de Dante defenda veladamente uma doutrina gnóstica, pois até chega a dizer -- sem véus --que a mente do homem é uma parcela da Divindade, há nela alguns pensamentos verdadeiros e aproveitáveis.
Eis o que diz Dante:
"(...) e dico intelletto per la nobile parte del' anima nostra, che con uno vocabulo 'mente' si può chiamare" (Dante, Convivio, IV, XV) [ (...) e digo intelecto para designar a nobre parte de nossa alma, que com um vocábulo 'mente' se pode chamar"].
E mais:
"Onde si puote omai vedere che è mente: che è quella fine e preziosissima parte de l'anima che è deitade. E questo è il luogo dove dico che Ämore mi ragiona" [Onde se pode ver já agora o que é a mente: que é aquela fina e preciosíssima parte da alma que é a divindade. E este é o lugar onde digo eu que Amor me fala"] (Dante, Convivio, III, II. O negrito é nosso).
Portanto, intelecto, para Dante, é mente.
E mente, para Dante, é a parte da Divindade que existiria na alma humana.
Ora, dizer que há uma parte divina na alma humana --quer se a chame de mente, de éon, de pneuma, nous, atman, ka, fünkenlein, chamazinha divina --ou que quer que seja -- é afirmar uma tese gnóstica. É afirmar que, no homem existe um aparcela da Divindade que é preciso libertar do sepulcro ou da prisão da matéria.
Dante é gnóstico" (Orlando Fedeli, Introdução à Leitura do Primeiro Canto do Inferno de Dante Alighieri --Sotto il Velame.].
Nessa comparação entre a rosa e o homem feita por Dante, explica "sotto il velame" qual a situação da alma de um iniciado entre os Fedeli d´Amore, como demonstra Adriano Lanza em seu livro Dante e la Gnosi- Esoterismo del´ Convivio (Edizioni Mediterranee, Roma, 1990).
Mas está retratado também, no "velame", isto é, no sentido primeiro e literal do texto, o posicionamento do homem medieval face ao mundo.
A rosa do campo é tão efêmera! Hoje, ela brilha ao sol. Amanhã já feneceu. Entretanto a rosa se recusa a permanecer fechada, guardando apenas para si o perfume que ela gerou em seu seio. Ela quer abrir-se ao sol. Para perfumar o ambiente. O bem que ela possui, ela não o quer somente para si mesma.
Pobre rosa, tão passageira! Ó rosa tão generosa! Mesmo se soubesse que, abrindo-se ao sol, ela logo feneceria, ainda assim ela quereria abrir-se e morrer, contanto que pudesse dar a outros o seu perfume.
Assim também deve ser o homem. É o que afirma Dante, esse poeta sublime que, lamentavelmente, defendia doutrinas tão condenáveis. Mas que, aqui, pelo menos, proclama tão bela verdade!
Porque ao homem, Deus também deu um perfume interior, diferente para cada alma. E é esse perfume que o homem tem obrigação de desenvolver, para dá-lo aos outros, ainda que isso lhe custe a vida.
Cada homem tem um valor inteiramente único, por um dom particular que Deus lhe deu ao criá-lo à Sua imagem e semelhança. Pois sendo Deus infinito, para que Sua imagem pudesse ser melhor espelhada pela alma finita do homem, Deus fez cada alma espelhá-Lo como que de um ângulo diferente. E assim, existindo em cada alma uma imagem do Criador, cada ser humano tem um dom particular – um reflexo de Deus – que o torna único. Esse valor único é o “perfume” que Deus dá a cada alma, ao criá-la. É esse “perfume”, que cada homem deve cultivar e desenvolver, com o auxílio da graça.
Tal é a razão da profunda diversidade das almas e das personalidades humanas.
Entretanto, esse valor pessoal que nos foi dado por Deus, nós não o recebemos para gozá-lo egoisticamente fechados em nós mesmos. Pelo contrário. Esse valor, esse bom odor do Verbo, no qual foram feitas todas as coisas, ele nos foi dado para que o déssemos generosamente aos outros.
Para isso, devemos abrir-nos ao Sol da Justiça, mesmo sabendo que esse abrir-se nos acarretará o fenecimento e a morte. Pois mais vale morrer, para fazer o bem ao próximo, do que fruir gulosamente do próprio perfume. Porque só existimos para fazer o bem aos outros. Tudo o mais é vaidade e cheiro de morte.
Assim a Idade Média – como Dante que, apesar de tudo, tinha bastante ainda da mentalidade medieval – via a rosa. Assim o homem da Idade Média lia, na rosa do campo, a lição da generosidade.
*** ***
Como é diversa a leitura da rosa feita pelo homem moderno!
Para o orgulho do homem moderno, todas as coisas somente existem para sua fruição egoísta. Se a rosa existe, é apenas para que o homem goze de sua beleza antes que ela feneça. Se o perfume da flor se evola, é preciso aproveitá-lo antes que se esvaeça.
Do mesmo modo, o bem dos outros deve ser aproveitado, enquanto o nosso deve ser mantido fechado em nós, e para nós mesmos. Antes morrer o outro, para o meu prazer! Antes preservar minha vontade do que sofrer qualquer dano para beneficiar o outro! Eis algumas máximas do egoísmo que triunfaram com o humanismo.
Tal é a mentalidade espelhada nestes versos de Poliziano e de Lorenzo de Médicis, chamado de “O Magnífico”, quando deveria ter sido chamado de “O Mesquinho”:
“Quando a rosa todas as suas pétalas expande,
quando é mais bela, quando é mais agradável,
então é que é bom colocá-la em guirlandas,
antes que sua beleza tenha passado.
De modo que, ò jovens, enquanto estiver mais florida,
Colhamos a bela rosa do jardim”, canta Poliziano numa balada.
E Lorenzo, o “Mesquinho”, lhe faz eco. Após descrever a beleza das flores em sua louçania, ele as vê fenecidas, algumas murchas e outras mortas, após bem breve tempo. E diz:
“...assim as vi nascer e morrer
e passar sua beleza em menos de uma hora.
E quando languentes e pálidas as vi partir,
as folhas mortas no chão, então me veio à mente
que coisa vã é o juvenil florescer!
(...) Colhe pois a rosa, ó ninfa
agora que me é belo o tempo”.
Ambos, Lorenzo dei Médici e Poliziano descrevem magnificamente a louçania e beleza das rosas e seu brilho tão efêmero. Ambos tiram desse fato a mesma lição: é preciso aproveitar da beleza da rosa antes que ela murche.
Ambos aplicam a lição da rosa ao homem, mas em sentido oposto ao de Dante e da Idade Média. Com a rosa, também a juventude é efêmera. Aproveite-se então a juventude antes que ela passe. Goze-se a vida!
Diante da rosa, como vemos, a Idade Média e o Renascimento fizeram leituras diferentes, baseando-se ambas na realidade objetiva, mas retirando da vida passageira da flor conclusões opostas: a Idade Média, de generosidade e dedicação; a Renascença, de egoísmo e de fruição da vida.
A Idade Média morreu, porque tinha vida, e a deu junto com seu perfume.
Mas a Renascença foi a morte. E ela só nos deixou o odor da putrefação da humanidade no egoísmo e no ódio. E do egoísmo e do ódio nasceram as guerras de todo tipo. E, das guerras, a putrefação de uma civilização.
*** ***
Um dia as rosas renascerão, porque Deus onipotente as criou a fim de que nelas lêssemos a lição da generosidade e da dedicação.
Um dia, haverá, de novo, homens que saberão ler.
Um dia, renascerão as rosas.
Para citar este texto:
"Rosas"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/cronicas/rosas/
Online, 21/11/2024 às 08:42:26h