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Padre Simplício
Orlando Fedeli
Costumo receber mensalmente o jornal interiorano proveniente da cidade onde morava minha avó - Brejo da Mata -, perdida lá nos confins de Minas, terra de "montanhas altaneiras", como se tornou praxe qualificar as serranias pedregosas ou azuladas pelas florestas e pelas distâncias mineiras. O jornal de Brejo da Mata, querida cidadezinha de minha avó, onde eu passava as férias de fim de ano, traz comerciais da farmácia de seu Idalino, receitas de cocada e de doce de leite, horóscopos, correio amoroso, notícias da Câmara de Vereadores e de suas "ferozes" seculares disputas entre as duas facções tradicionais dos Arrudas de Menezes e dos Botelhos Sampaios, notícias da festa de aniversário da "prendada senhorita" Silvinha Campos, e outros eventos de importância universal. O jornal se intitula "O Constitucional de Brejo da Mata" e tem como epígrafe uma frase rebarbativamente anti-clerical de Voltaire. Que nunca imaginou que terminaria tendo admiradores em Brejo da Mata.
Jamais leio o jornal, que, logo que chega, vai diretamente da caixa do correio para a cesta dos jornais velhos. Mas todo ano, infalivelmente, renovo a assinatura, por fidelidade a Brejo da Mata e a Seu Venâncio, que há trinta e cinco anos redige os editoriais que ainda trazem ecos das disputas dos liberais contra os conservadores do tempo do Império. As coisas custam a passar em Brejo da Mata...
Renovo a assinatura também por saudades das correrias pelo campo, por nostalgia do cheiro de mato, e por relembrar o sabor do doce de leite que ele me traz, todo mês, ao chegar o correio. Se o jornal não chegasse, ficaria com a impressão de que um mundo acabara. Porque, Brejo da Mata foi um mundo para minha infância. Um mundo com doce de leite, travessuras na várzea, e serões na varanda da fazenda.
Outro dia, ao chegar o jornal, deparei, nele, com uma faixa de luto que me atraiu a curiosidade. Abri o jornal e dei com uma foto - coisa rara no jornal - uma foto do velho vigário de Brejo da Mata, Padre Simplício.
A notícia informava o que se esperava há tanto tempo e após tanta tosse: "Depois de longa vida de sessenta anos de sacerdócio, piedosamente dedicados ao serviço da Humanidade e da Religião, morreu o nosso caríssimo vigário, Padre Simplício".
Que pena! O bom Padre era, de algum modo, a própria alma de Brejo da Mata. Com ele morria também um pedaço de Brejo da Mata e um pedaço de mim mesmo. Brejo da Mata e Padre Simplício eram indissociáveis.
A notícia prosseguia, dizendo que os funerais foram solenes, e que a Missa de corpo presente fora rezada pelo senhor Bispo de Itapauçu.
Todo mundo compareceu. Até gente de Itapauçu. Até a Loja Maçônica "Fraternidade, União e Simplicidade" com seus estandartes, nos quais um surpreendente São João se misturava com esquadros e compassos, tudo encimado por uma cruz e envolvido numa imensa rosa aberta...
No enterro, todo mundo chorou com o discurso de Seu Edmundo, que era, ao mesmo tempo, presidente do Apostolado da Oração e Venerável da Loja "Fraternidade, União e Simplicidade"...
Brejo da Mata era uma só alma com Padre Simplício que, de alguma forma, era um símbolo ou uma síntese da cidade, daquelas terras, e até de Minas, como disse seu Edmundo, em sua oração fúnebre, pronunciada ao pé da tumba e impressa no jornal. Uma peça literária, que Pe. Simplício bem mereceu. Pois Pe. Simplício foi um arquétipo de padre. Pelo menos de um certo tipo de padre.
***
Pobre Padre Simplício! É verdade! Ele foi um símbolo vivo de Brejo da Mata, de Minas, do Brasil, exclamei eu, comovido e saudoso, com os meus botões.
Meus atuais botões não haviam conhecido Brejo da Mata, e nem tiveram "a graça" de conhecer Pe. Simplício, e, diante de seu quase proclamado e escandaloso ar dubitativo, tentei convencê-los, rememorando, com doçura, o que guardara em meu coração de saudades de Padre Simplício...ou de Brejo da Mata, porque, também em meu coração e em minha memória, os dois se misturavam inseparavelmente abotoados.
Padre Simplício estava de tal modo unido ao lugarejo que até se parecia com certos rios que escorriam pela região. Com efeito, naquelas bandas, há dois tipos de rio: os rios que vêm das serras, e os rios dos campos.
Os primeiros correm para leste, buscando o Atlântico. São rios precipitados, escachoantes, briguentos contra as pedras, fazendo espuma e barulho, despencando em cachoeiras. Esses não, esses não se pareciam com Padre Simplício. Os rios que pareciam com Seu Vigário eram os rios que escorriam para oeste, preguiçosamente procurando, sem pressa, o São Francisco. Rios calmos, confiantes porque, quem procura acha. Rios quase parando, esticando-se pelo campo, devagar, espreguiçando-se e divagando em meandros lentos e silenciosos, sob a sombra copada e protetora das matas.
Assim também era Pe. Simplício: calmo, silencioso, trabalhando cautamente, sob a sombra, sem brigas inúteis, e mesmo sem brigas úteis. Especialmente evitando as brigas mais necessárias. "Sou macaco velho, dizia ele, e macaco velho não mete a mão em cumbuca"...
E não metia mesmo. Ainda que lhe custasse algum vexame.
Um padre maldoso – que os há – um dia, misturando sabedoria latina e mineira, sugeriu que ele adotasse como lema de vida: "Non in cumbuca, manus".
Como os rios do campo, ele era concorde, sem quedas nem tropeços. Sem pressas atabalhoantes nem precipitações imprudentes, praticando compromissos tácitos. Tolerância e moderação podiam ter sido os valores componentes de seu lema heráldico, caso ele tivesse nascido em tempos de antanho, e tivesse tido direito a escudo e listel.
Especialmente, ele se movia - como os rios dos campos - sem choques e sem barulho. "Non in rumore, Dominus!", sentenciava Pe. Simplício, que conhecia o seu latim! Porque Pe. Simplício era um erudito. Sem dúvida! Estudara Filosofia e Teologia em Mariana. No tempo em que havia Filosofia e Teologia, em Mariana e no mundo.
Faz tanto tempo...
Hoje, já não há mais Filosofia e, muito menos, Teologia. Parece que nem há mais seminário em Mariana. Nem sei se ainda existe Mariana.
Pe. Simplício era mineiro, mesmo no físico: magro, franzino, de saúde fraca, com uma tosse insistente e teimosa. Parecia que ia durar pouco. Quero dizer ele, porque a tosse, essa, era perpétua. Mas ele era teimoso e agarrado à vida.
Agarrou-se à tosse, já que certamente ela duraria muito. Ele - e a tosse- pareciam intermináveis. Viveu com ela, ambos teimosamente, arrastados e tossidos 88 anos.
No mês passado, teve a última tosse.
Morreu.
De rosto, ele parecia um gato. A boca era larga e torta. O olhar era de baixo para cima, desconfiado e timidamente dissimulado, atrás dos óculos de lentes grossas de míope, camuflando um olhar esquivo, ambíguo e oblíquo de vesgo.
Normalmente sua fala era mansa e o riso alto e sacudido. O andar, era manquitola, fruto de um acidente de automóvel e de reumatismos que pomada nenhuma de seu Idalino curava.
Interessava-se por todos os casinhos mineiros da cozinha, da vizinhança e de Brejo da Mata, estendendo-se o seu interesse até umas seis léguas em torno da casa paroquial. Ouvia e contava casos, comendo broinhas de fubá.
Na casa paroquial, ele se permitia um certo "luxo" condigno. Entendam-se bem as aspas: um "luxo" no nível Brejo da Mata...Condigno de Brejo da Mata. Umas almofadonas com flores enormes e de colorido forte, bordadas por Dona Mafalda (não sei por que, todas as Mafaldas gostam de almofadonas, especialmente se são solteironas). Almofadonas como só uma eterna solteirona sabe bordar, com rosas tão enormes e sempre solitárias, mesmo quando bordadas em tufos. Depois, umas poltronas pesadonas, uns azulejos azuis carregados, "combinando" com outros amarelos, na cozinha e no banheiro, um tapete grosso e de lã, que fazia suar só de se olhar para ele. Na empoeirada salinha de visitas, uma vitrola velha, onde ele ouvia discos de Beniaminio Gigli e músicas caipiras. Tal era o "luxo" condigno de Pe. Simplício.
Nas paredes, dependurados, uns santos de olhar lânguido. Lembro-me particularmente de um São Roque - será que era São Roque? - entre um jacaré e uma serpente, com uma Nossa Senhora no alto. Quando, ainda menino, eu ia com meus pais visitar Pe. Simplício, passava as horas com o olhar pregado no jacaré de bocarra aberta, pronto a engolir o coitado do São Roque.
O pavor do santo e o meu medo faziam-nos amigos, solidários contra o jacaré. Tanto que eu me considerava quase um protetor de São Roque. Ademais, o São Roque da gravura tinha uma chaga na perna e um cachorro vira-latas e manchado, como há tantos nos sítios em Minas.
Pobre chagado com cachorro ao lado, à porta de qualquer igreja, lá não falta. O cachorro magro e a perna chagada faziam do São Roque da gravura alguém muito próximo. Muito mineiro. Quase um santo caseiro.
O jacaré de bocarra aberta, esse não. Esse era o vilão ameaçador do pobre santo, eternamente dependurado na parede da sala de Padre Simplício.
Aludi à vitrola de Pe. Simplício e a seus gostos musicais, raros em Minas, e únicos em Brejo da Mata.
Estranharão, por certo, Beniaminio Gigli, em Minas? Em Brejo da Mata?
Sim, porque Pe. Simplício, embora não entendesse o italiano, "apreciava óperas". Principalmente as árias da Traviata, da Tosca, e da Bohème.
Um professor italiano que ele tivera no seminário, em Mariana, o fizera apreciador de "música lírica", e inimigo da música moderna. Do samba e do fox. Gostava de ópera, e se comovia com os soluços do Gigli, berrando: "e muoio disperatto", do "Lucevan le stelle", por não ter mais as "languide carezze" de sua "bruna amante"(que Pe. Simplício supunha ser uma tal de Bruna, certamente rival da Tosca, a heroína da ópera).
Não se pense, porém, mal de Pe. Simplício, que não entendia o que queriam dizer as tais "languide carezze" a que aludia a voz soluçada de Beniaminio Gigli. Ele ouvia e ficava comovido, ele também, com os comovidos soluços do tenor, "o maior de todos os tempos", advertia ele, aos que tinham recebido a honra de ouvir, com ele, um disco do Gigli, em um dia de festa, em que ele se concedia sadio e espiritual lazer.
E sua inocência linguística e estética era tal, que julgava a Mimi da Bohème angelical...porque numa ária melosa ela dizia: "non vado sempre a Messa, ma prego assai il Signore". Frase que seu professor minimalista tivera a preocupação piedosa de traduzir para ele, e que ele não esqueceu. Era preciso compreender a misericórdia de Deus. Apesar de Mimi não ir "sempre a Messa", ela rezava bastante, e Deus, bondosamente, levaria isso em conta. Pobre Mimi...Não se devia deixar levar por rigores jansenistas, sentenciava!
Ingênuo e inocente Pe. Simplício!
Misericordioso Pe. Simplício!
Quem, num domingo à tarde, passasse pela calçada da casa paroquial, certamente escutaria o Gigli berrando que morria "disperatto".
Em Minas!
Inacreditável! Imaginaram? Morrer "disperatto" em Minas?!
Pois isso acontecia semanalmente, todo domingo. Lá em Brejo da Mata. E lá morria o Gigli "disperatto", nas quentes e tediosas, sossegadas e vazias, pachorrentas e ensolaradas tardes domingueiras de Brejo da Mata!
À mesa, Pe. Simplício era austero, cumprindo rigorosamente jejuns e abstinências. Comia o que lhe traziam, como mandava a regra e o costume do seminário, assim como o Santo Evangelho. E se ele citava antes a regra do seminário era porque, para ele, obedecer regras, ordens e portarias ditadas pelos superiores hierárquicos precedia até o próprio Evangelho.
Afinal de contas, as autoridades hierárquicas ditavam portarias e regulamentos em nome do Evangelho!
Comia o que lhe traziam porque, ao tomar posse da paróquia, estabeleceu uma escala entre as famílias de sua freguesia: cada dia da semana havia uma encarregada de trazer-lhe o almoço e o jantar. Isto lhe poupava preocupações, trabalhos e cuidados com a cozinha (e as despesas, é claro! e as despesas!) podendo ele, então, dedicar-se inteiramente à oração, à vida interior e ao apostolado, sem preocupações mundanas e vis. Dedicar-se mais à vida interior do que ao apostolado, do qual incumbira logo, por escalas bem organizadas, as várias associações paroquiais. Porque, explicava Padre Simplício, a oração é fonte do apostolado. Ele ficava com a oração. Do apostolado incumbiu outros, mais propensos à vida ativa (o que lhe evitava conflitos, sempre possíveis na vida apostólica). A vida de oração requer silêncio, paz, sossego...
Assim, passava ele os dias entre a igreja e a casa paroquial, raramente saindo, a não ser para ver um doente, - "nas últimas" -, ou para conversar com Seu Edmundo...
Todos já compreenderam, pelo que eu disse, que Pe. Simplício tinha tendências 'míshticas', preferindo entregar-se à oração e à meditação. Era leitor entusiasta de São João da Cruz e de Santa Teresa de Ávila.
Fazia duas meditações por dia: uma de manhã, logo ao levantar e antes da Missa, e outra depois do almoço, na hora da sesta - junto com a digestão - na cadeira de balanço, de olhos 'mishticamente' fechados. Por vezes, parecia que ele até tinha êxtases, pois ficava completamente alheio, nada ouvindo, sem nem tossir, e até ressonando levemente.
Mas era meditação mesmo, ele não estava dormindo. Pelo menos era o que garantia Madre Josefina, superiora da Congregação paroquial que ele fundara, e que só tinha por finalidades, em sua vida escrava, o progresso 'míshtico' e os cuidados prosaicos da casa paroquial.
Madre Josefina conhecia bem o espírito de oração e a tosse de Pe. Simplício, garantindo que era nítida a diferença entre o dormir - sempre com tosse - de Seu Vigário, e o êxtase - sempre sem tosse! - que ele tinha, normalmente, durante a meditação da hora da sesta. A ausência da tosse teimosa era a prova insofismável, quase fisiológica, de que Pe. Simplício gozava de graças especiais do céu.
Era um contemplativo.
Dissemos da austeridade de Pe. Simplício. De fato, ele só se permitia uma garrafa de vinho italiano, nas grandes festas litúrgicas.
Sobremesa?
Só "Papo de anjo". Uma sobremesa mineira e devota.
Cinema, nunca, já porque não havia cinema em Brejo da Mata. Mas, nem quando Pe. Simplício fazia viagens ocasionais a Itapauçu, normalmente acompanhado de Seu Edmundo, nem lá, Pe. Simplício se permitia ir ao cinema.
Raramente ia à Capital. A viagem e a Capital eram tão temidas que não o faziam dormir sossegado, noites seguidas antes da viagem, atormentado por pavores futuros.
Na capital, ele visitava o Bispo ou algum antigo colega de seminário, assistia uma ou outra reunião, conferência ou concerto - sempre na companhia de Seu Edmundo- e voltava.
Mas, sem Seu Edmundo ele não iria. Nem que o Bispo o chamasse. Era tímido. Mais que tímido. Diziam as más línguas - que as havia, mesmo em Brejo da Mata -- que ele era medroso.
Ele mesmo contava, rindo-se de seus medos, que quando viajava com Seu Edmundo, metia-se em sua poltrona, no fundo do ônibus, e de lá não saía nunca, "de jeito nenhum!" Não saía de seu canto e do fundo de sua poltrona do ônibus nem para comer, nem para nada! Seu Edmundo é que lhe trazia um sanduíche de mortadela e um copo de água.
"De meu banco, eu não saio. Tá loco!"
E, brincando consigo mesmo, humilde, confessava: "Poltrão não sai da poltrona!" E ria de seu trocadilho e de sua timidez.
Até em seus sonhos, os temores o atormentavam. E só nos sonhos ele perdia sua prudência e moderação.
Um dia ele nos contou um de seus pavorosos sonhos noturnos. Sonhara, contou, que imprudentemente discutira com um grandalhão desconhecido por uma dessas razões irrazoáveis que se dão nos sonhos. E, tomado de fúria - impossível para ele na vida real-, Pe. Simplício disse-nos que avançou para o grandalhão, valentemente, berrando-lhe mil ofensas. "De repente - disse-nos o bom e cauto sacerdote - ele se virou e veio para cima de mim. Eu, então, fui saindo de mansinho, encolhido e devagarinho, fingindo que não era comigo..."
"Aí, eu acordei", concluía aliviado o temeroso sacerdote. Pe. Simplício voltava para a realidade, com o coração batendo descompassado pela sua valentia inesperada e inoportuna, e sua voz ainda era trêmula, ao nos contar sua imprudente aventura onírica.
Descobriu com esse sonho terrível, que até macaco velho – nos sonhos, pelo menos – mete a mão em cumbuca.
O que o fez redobrar, quando desperto, os cuidados com as cumbucas que a vida real nunca deixa de oferecer. Ele não estendia a mão para a cumbuca, nem que ela devotamente lhe pedisse a benção.
Com tanta coragem, era natural que ele fosse bom diplomata.
Aprendera a arte de tudo conciliar no seminário, tanto em teoria como com o exemplo vívido de seus mestres. Depois, na vida prática, completou sua aprendizagem moderadora e prudencial, apaziguando as famílias do lugarejo em suas desavenças lugarejentas, e conciliando vereadores e prefeitos em seus desacordos pirracentos.
"Bem-aventurados os fautores da paz", disse dele um dia, num discurso solene, o Senhor Bispo de Itapauuçu, quando, certa feita, Pe. Simplício apaziguou a desavença entre a Loja "Fraternidade, União e Simplicidade" e a Loja "Progresso e Filantropia" de Itapauuçu. Era esse elogio que Pe. Simplício se repetia comovido, para se justificar, quando alguns pirracentos lhe criticavam o espírito acomodatício, injustamente confundindo sua prudência com covardia.
Todos sofremos incompreensões! Também Pe. Simplício - ele tão pacífico! - acabou tendo inimigos que não compreendiam sua mansidão evangélica! Bem-aventurados - e incompreendidos - "fautores da paz"...
Pe. Simplício era hábil. Manso no falar, sabia dar razão a todos, reconhecendo que todos têm defeitos. Quando ouvia queixas contra alguém, a primeira coisa que ele lembrava era esta verdade profunda: todos temos defeitos. Verdade que lhe garantia uma posição de equilíbrio neutral entre os desafetos... O que lhe permitia ficar de bem com os dois lados. Pois ambos tinham defeitos.
Se ele era obrigado a condenar alguém, jamais o fazia em sua presença. Só quando a pessoa estava ausente. E com palavreado brumoso, que facilmente poderia ser tingido de rosado.
Se, por absurda situação - na vida diplomática, por vezes, ocorrem situações tais que é impossível escapar sem dar uma sentença clara - fosse ele obrigado a dizer claramente a alguém que errara, Pe. Simplício preparava o terreno anestesiando as reações com elogios às virtudes do que ia ser criticado, pois "toda pessoa tem seus defeitos e suas virtudes". Tem até as virtudes de seus defeitos, sentenciava com sabedoria e diplomacia Pe. Simplício. E abraçava o criticado. E sussurrava ao seu ouvido, enquanto lhe dava suaves tapinhas nas costas, a correção "dura" que só o corrigido podia ouvir, e que ninguém tinha direito de saber. Era, assim, amigo de todos. Até dos Botelhos Sampaio e dos Arrudas de Menezes.
Ao mesmo tempo!
E cada um dos clãs, secularmente engalfinhados em inimizade ferozmente vilareja, piamente acreditava que Pe. Simplício estava "de seu lado". Era assim Pe. Simplício, como os rios da terra que correm silenciosos, em meandros, de um lado para o outro, entre os rochedos dos Arrudas de Menezes e os penhascos dos Botelhos Sampaios. Indo, silente, ora para um lado, ora para o outro. Sob as sombras do farto arvoredo.
Abençoadas sombras! Abençoados silêncios! Ó santo equilíbrio! Ó perfeição na moderação!
"Benditos os fautores da paz", como proclamara o Senhor Bispo.
Nas reuniões do clero, a voz de Pe. Simplício era a moderadora. Ele era sempre o fiel da balança. Esperava todos darem sua opinião para só então, com prudência, moderação e equilíbrio, dar a sua.
A qual, normalmente, seguia a do Senhor Bispo e a da maioria. Ou, quando o Senhor Bispo estava ausente, a do partido mais forte no momento. Entretanto, ele sempre cuidava de não deixar ressentidos os derrotados. Invariavelmente saía das reuniões do clero caridosamente acompanhando até a rua um dos derrotados. Voltava depois bem depressa para colher os louros do triunfo com o lado vitorioso, trazendo sempre uma pequena informação a mais, obtida no último abraço amigo, quando apoiava o passo do derrotado.
Caridoso Padre Simplício.
Indiscutivelmente, Pe. Simplício era mineiramente hábil.
Era o homem das distinções sábias e sutis, que permitiam harmonizar os inconciliáveis.
Se tivesse lido, não digo Marx, mas o Cardeal de Cusa, se diria que Padre Simplício era um dialético, capaz de fazer o sim virar não e o amargo virar doce.
Caseira e mineiramente ele se explicava, dizendo que era preciso saber como virar a broinha na frigideira, cozinhando-a em fogo lento... Sem deixar que ela se queimasse.
Passou a vida virando broinhas mineiras em Brejo da Mata. Não queimou nenhuma. E, principalmente, nunca se queimou.
Certa vez, tive ocasião de presenciar seu talento diplomático ao vivo e em minha própria carne. Às minhas custas. Nesse caso, eu fui uma das broinhas. A outra foi um turista monarquista.
O tal turista monarquista, de passagem por Brejo da Mata, trouxe à baila o caso do Rei da Bélgica que, espertamente, segundo o monarquista, renunciara ao trono - só por um dia - para não ser rei, quando ia ser aprovada a lei do aborto na Bélgica.
Pe. Simplício, que era doutor em espertezas mineiras, revoltou-se com a covardia do Rei belga, e postou-se firme na defesa da lei natural, exprobrando a falta de caráter do soberano, que deveria ter renunciado para sempre e não, oportunisticamente, por uma dia apenas, voltando ao trono com a nefanda lei promulgada, mas sem sua assinatura.
Pe. Simplício estava deveras zangado nesse dia. Afinal de contas, a Bélgica era longe, e o covarde Rei dos belgas jamais poderia revidar ao zeloso ataque de Padre Simplício. O Rei belga nem sabia que existia Minas! Quanto mais que existia ele, Padre Simplício.
Era, pois, um ataque valente, sem perigo de reação do Balduíno belga. Por isso, talvez, Pe. Simplício gritava alto contra ele, para se fazer ouvir por sobre as ondas do Oceano.
Padre Simplício não contara, porém, com a reação do turista admirador do longínquo rei. E o turista estava ali. Ali, em Minas. Justo ali. Em brejo da Mata. E o turista enfezou-se. Ficou vermelho de raiva, e atacou o pobre Pe. Simplício, chamando-o de republicano, e até fez alusões misteriosas à amizade do vigário com Seu Edmundo, amizade essa que estaria politicamente influenciando mal o Vigário de Brejo da Mata. Quase chamou Padre Simplício de citoyen.
Padre Simplício, ante o inopinado ataque, foi-se encolhendo, encolhendo, de dar dó.
A situação estava ficando pessoal e politicamente grave. Fiquei com pena do Padre. Parti em socorro do Senhor Vigário; primeiro, porque sua causa era justa, e segundo, porque dava pena vê-lo encolhendo-se, encolhendo-se, atemorizado por sua própria ousadia. Simplicisticamente encolhido.
Comprei a briga dele. Discuti com o turista monarquista, atacando o Rei belga e defendendo as razões expostas pelo padre mineiro.
Vendo-me engalfinhado em alta discussão moral e ontológica, quase renovada a luta entre a Igreja e o Império, entre Guelfos e Gibelinos mineiros (em Brejo da Mata!) - e com um calor que prenunciava para breve o uso da força física no lugar da metafísica - Pe. Simplício desencolheu-se. Apelou para todo o seu talento diplomático. Passou a valorizar os argumentos do turista monarquista, dizendo compreender a situação delicada de Sua Majestade, o Senhor Monarca da Bélgica, e que, considerando as circunstâncias da política internacional, talvez fosse um mal menor a aceitação do aborto real e o abandono do trono por um dia apenas... Ao mesmo tempo, ele começou a desvalorizar meus argumentos - que eram os dele até momentos antes - para, assim, poder assumir a postura de juiz imparcial entre o turista enfezado e aquele ingênuo paladino que viera em seu socorro, e que imprudentemente comprara sua briga.
Saí brigado com o turista, meu conhecido de outras plagas, enquanto Pe. Simplício o acompanhava, caridosa e carinhosamente abraçando seus ombros...
Saíram amigos.
Eu fiquei só, com fama de desajeitado e precipitado. Senti-me qual broinha que foi jogada na frigideira, e que dela foi habilmente retirada na hora certa. E saí sem poder dizer nada. Nem que saí queimado. Afinal, eu é que me intrometi... na frigideira...
Se Guelfos e Gibelinos tivessem conhecido Brejo da Mata, a história de Florença teria sido bem diferente!...
Que diplomata Florença desconheceu!
Se Pe. Simplício era tímido, e até medroso em certas circunstâncias, em casa era exigente. Impunha uma disciplina de ferro às Irmãs de sua Congregação paroquial que ele, como seu Superior, seu Fundador, seu Guia espiritual, e sobretudo seu "Diretor míshtico" - Pe Simplício fazia chiar os ésses como se eles fossem seguidos de um agá - dirigia com um punho de ditador e com gritos - ele que tinha fala tão mansa!... - com gritos mussolinianos.
Em casa, dirigindo suas tímidas, obedientes e "míshticas" ovelhas, Padre Simplício era Rio de Serra. E que rio! Tonitroante!
Era preciso dar exemplo de energia e de fortaleza para as pobres monjas que, certa manhã, haviam esquecido suas torradas ao fogo.
(Eu esquecera de contar que, para o café da manhã, não fora feita escala entre as famílias da paróquia. Era um dos deveres de vida ativa que o Padre Fundador impusera às monjas, para equilibrá-las em seus esforços - tão mais elevados! - da vida "míshtica".)
"Onde já se viu ?!", tonitroava Pe. Simplício naquele dia terrível em que as suas torradas foram chamuscadas. "Dies irae! Dies illa! Solvet torradae in favilla!" "Assim jamais - mas jamais!!! - elas sairiam da "noche escura" de que falava São João da Cruz, o maior Doutor em matéria de "mishtica"! Sem estrita obediência, jamais elas progrediriam nos ínvios caminhos da vida interiorr! (Pe. Simplício arrastava os erres no final das palavras, dando um acento cariocamente doce à sua fala). Sem obediência - por vezes, num lapso, ele dizia "estrita observância" - que se manifestava no desleixo com suas torradas chamuscadas. E, sem obediência perfeita, jamais elas alcançariam os "píncaros da vida espiritual". "Sem perfeita correspondência à graça de cada momento, de cada instante" - o que se comprovava pelo abandono do dever na vigilância das torradas - elas, as Irmãs, jamais teriam verdadeiro progresso na vida espiritual, e nem teriam sequer a possibilidade de um dia sentirem "o saborr das coisas interiores, o saborr das coisas do céu"... As torradas queimadas eram a prova, para os argutos olhos espirituais do Padre Fundador, da tibieza profunda em que jaziam e vegetavam as almas daquelas Irmãs relapsas! "Relapsas! Relapsas! É esse o termo que bem cabe a elas", trovejava, qual Zeus, Pe Simplício, unicamente preocupado com o avanço daquelas almas tíbias pelos difíceis caminhos da "míshtica" e da verdadeira espiritualidade. Por isso é que ele aproveitava o caso das torradas queimadas para fazer aquelas almas -"relapsas", é verdade - progredirem através das "moradas", como ensinava a grande Santa Tereza, cujos livros Pe. Simplício lia continuamente. Mesmo quando comia torradas, às vezes chamuscadas, ao café da manhã.
"Relapsas! Relapsas!" "Jamais aquelas Irmãs relapsas poderiam experimentar, um dia, "o saborr das coisas espirituais!".
E ao pronunciar as palavras: "O saborr das coisas espirituais", Padre Simplício esgarçava um sorriso em sua boca torta, revirava seu olhar oblíquo e vesgo e fazia um elegante gesto com a mão direita, em que os seus consagrados dedos se juntavam fraternal e amorosamente.
As "relapsas" foram dormir atormentadas com a impressão culposa, pior, com o remorso do crime que as privaria, para sempre, - "in aeternum, in sempiternum, per omnia saecula saeculorum" - de experimentarem o famoso "saborr" - Pe. Simplício, como explicamos, simpaticamente carregava os erres finais.- "com o saborr das coisas espirituais". "Saborr" que deveria ser infinitamente superior ao das torradas. Mesmo das torradas não chamuscadas...
E se ele era tão exigente com o "saborr" de simples torradas, como não deveria ser exigente nas questões de vida espiritual?! "Da vida mishtica!!!"
Eu soube, recentemente, de uma outra ocasião em que ele - normalmente tão suave como os rios da várzea - transformou-se em rio de serra.
O "causo" foi o seguinte.
Padre Simplício fora encarregado pelo Senhor Bispo de pregar um retiro de Santo Inácio para umas pobres freiras de um convento, numa cidadezinha próxima de Brejo da Mata.
Foi incomodado. Afinal, tinha que viajar, ainda que não muito. Mas foi de boa vontade. Primeiro, porque ao Bispo se obedece. Segundo, porque gostava de pregar. Terceiro, porque era ocasião para desenvolver os temas "míshticos" de que gostava, e iniciar aquelas pobres freirotas nas "moradas" de Santa Teresa.
E havia ainda uma quarta razão para aceitar pregar o tal retiro de Santo Inácio: é que no tal convento havia uma freirinha nova que fora aluna de um "intelectual" -- um verdadeiro Lamennais da Capital -, a quem era preciso humilhar, arrancando-a de um pseudo e orgulhoso intelectualismo esterelizador de toda a vida espiritual, que impedia -pelo orgulho intelectual - que a alma experimentasse o famoso "saborr das coisas espirituais".
Lá foi o Vigário de Brejo da Mata obedecer ao Bispo, que expressamente lhe ordenou que combatesse a má influência do "intelectual" vaidoso sobre a humilde freirinha.
De Santo Inácio - soube eu - o retiro não teve nada. Nem princípio e fundamento, nem exposição da regra do tanto quanto, nem as duas bandeiras, nem meditação dos talentos. Só se falou do Lamennais da Capital.
Com ordem do Bispo e diante daquelas ovelhinhas sem possibilidade de reação, Padre Simplício foi - como nunca! como nunca! - rio de serra.
Suas apóstrofes despencavam sobre a freirinha - que haviam posto na primeira fileira, bem debaixo do famoso gogó de ouro de Padre Simplício - como cachoeira. Foi um massacre. A ponto de, em certa hora, a superiora ter que ir pedir a Padre Simplício que "maneirasse" (ou mineirasse...) o ataque, porque, senão, "a flor ia murchar".
Padre Simplício não "maneirou".
Pela primeira vez na vida, ele não se moderou, pois era preciso "extirpar as raízes malignas plantadas pelo orgulhosos Lamennais da Capital no tenro coração daquela freira". Era a ocasião que a Divina Providência permitira para que aquelas ovelhas conhecessem sua fúria de leão e seu zelo de Santo Elias.
Padre Simplício nunca lera, por certo, Camões, falando do leão e das ovelhas...
Falando, porém, do Vigário de Brejo da Mata é impossível não comentar seus dotes retóricos.
Sua oratória, que variava da exortação constringente ao apelo convincente, passando pela argumentação fundamentada, era sempre preocupada em "ter unção". Ele insistia sempre, repetidamente, na importância da "correspondência à graça". Insistia tanto que algumas línguas maldosas - porque as havia (já o disse) em Brejo da Mata, infelizmente - chegavam a dizer que essa preocupação de Pe. Simplício com a "correspondência à graça" era quase uma obsessão. E as más línguas eram tão maldosas, que havia até quem falasse em influências jansenistas...
Era pura maldade. A misericórdia de Padre Simplício para com a Mimi da Bohême era prova tangível do contrário. Aliás, ele se proclamava molinista em moral.
Ninguém negava seu valor como orador. Já no Seminário de Mariana, onde se cultivava a oratória sacra, ele ganhara aquele título bem admirativamente mineiro de "gogó de ouro"... E ele era consciente de ter gogó de ouro. Isto é, mais do que ter dotes oratórios, de orador sacro, ele tinha consciência da responsabilidade que lhe trazia ter seu tão famoso gogó. E compreendia que, um dia, daria a Deus contas do talento com que fora aquinhoado. Por isso ele caprichava nas pregações e discursos, escolhendo bem as metáforas, as metonímias e as circunlocuções elegantes. Era preciso usar bem a palavra de Deus, o "gladium Dei".
O gládio de Deus, no gogó de Padre Simplício.
E ele então fazia sermões arrebatadores e intermináveis. Às vezes tão intermináveis que até suas mais fiéis e pacientes ovelhas achavam que "hoje, Padre Simplício exagerou. Também, ele fala tão difícil e com tanta inspiração!"
Se jamais o chamaram de "Bossuet de Brejo da Mata", é porque as ovelhas de Padre Simplício de Brejo da Mata não conheciam Bossuet da França...
Do púlpito de Brejo da Mata borbotavam os pensamentos e as metáforas mais impressionantes, descrevendo o inferno, descrevendo o céu, voltando a descrever o inferno, as labaredas, as trevas... Terrível! Só no púlpito, diante das ovelhas admirativas e sem possibilidade de reação,é que Pe Simplício representava o rio de serra.
Mas, no que ele mais se notabilizava era na descrição dos "sublimes efeitos da graça na alma "míshtica", naquela que tinha o verdadeiro "saborr - ele carregava docemente os erres finais - o autêntico, mas o autêntico saborr das coisas espirituais". E ele acompanhava e sublinhava a palavra "autêntico" com um gesto sacudido de sua mão esquerda.
E falava com tanta segurança desse famoso saborr, que todos percebiam que ele tinha dele um conhecimento experimental. Ele era tão "míshtico" e tão devoto de Santa Tereza e de São João da Cruz, que marcara até seus livros com um "Ex libris" em que apareciam juntas a rosa e a cruz, certamente em "míshtica" e poética alusão a Santa Tereza- a rosa - e a São João da Cruz - a Cruz.
Uma beleza!
Tão "míshtica"!...
E era um sacerdote escrupuloso. Era de ver os cuidados que ele tinha com "as coisas do Senhor"! Era também rigoroso no cumprimento das minúcias da lei. Em Brejo da Mata, havia até quem dissesse: "Não vai perguntar o que manda a lei do jejum para seu Vigário que ele vai dar a interpretação mais dura".
E era verdade. Se alguém perguntasse a ele quais as condições para receber uma indulgência, podia contar que lá vinha uma carrada de exigências. Pe Simplício era preocupadíssimo em cumprir as minúcias da lei, e, mais ainda, as minúcias das portarias e regulamentos. Mesmo celestiais.
As famosas más línguas - que as havia, infelizmente, em Brejo da Mata - falavam de rigor farisaico pela lei.
Tinha-se a impressão de que, assim como seu Idalino tinha todas as receitas para reumatismo, erisipelas e até para quebranto, Pe. Simplício sabia todas as fórmulas para cumprir novenas e promessas de acordo com o rito e o gosto particular de cada santo.
O escapulário tinha que ter treze centímetros de altura e sete de largura. Se não, não valia. A vela para São Benedito tinha que ser das fininhas, enquanto a de Santa Edwiges, padroeira dos endividados, tinha que ser generosamente grossa.
Isso não significa que Pe. Simplício não conhecesse, ou não praticasse, a virtude da epiquéia, ou que tivesse mentalidade estreita.
Nada disso.
Ele a conhecia muito bem, e a praticava. Por exemplo, num dia de jejum, chegou-lhe uma marmelada de Dona Nhonhoca - a marmelada de Dona Nhonhoca era a mais famosa de Brejo da Mata - e Padre Simplício, por caridade, para não decepcionar Dona Nhonhoca, que caminhara duas léguas trazendo para seu vigário um pote de sua famosa marmelada, Pe. Simplício, aplicando a teoria da epiquéia, regalou-se na famosa marmelada, que acompanhou com um largo e vasto pedação de queijo fresco, apesar de ele ter já feito almoço, ceia e consoada. Tudo com as gramas exigidas pela lei da Igreja.
Quando chegou a Missa Nova de Paulo VI, com violão e pandeiro, Pe. Simplício inicialmente foi contra. Se ainda fosse para tocar na Missa o disco do Gigli cantando o "Panis Angelicum", o grande tenor soluçando o "angelicum", aí sim. Mas violão e pandeiro, nunca!
Entretanto, consultados os amigos, tendo conversado com o Senhor Bispo em Itapauuçu, tendo-se aconselhado com Seu Edmundo - que escreveu para seus amigos na Metrópole - e constatadas concordância e adesão gerais, Pe Simplício aceitou o novo rito, e na igrejinha simplesinha de Brejo da Mata entraram guitarras e pandeiro, samba e rock.
Pe. Simplício aceitou a nova liturgia porque era dever obedecer aos superiores hierárquicos. E essa obediência o fazia guardar o disco do Beniamino Gigli cantando o soluçado "Panis Angelicum" e aceitar aquelas novas músicas selvagens e decadentes, aquele bárbaro ritmo jovem.
Acostumou-se aos poucos, e aos resmungos. Sempre de sobrancelha levantada e mal humorada. Aos poucos a sobrancelha se abaixou e até, lá pelo fim de sua tossida vida, apreciava a música preferida de João Paulo II:
"Lá na praia, tu me olhastes nos olhos, a sorrir, pronunciastes meu nome..."
Realmente, uma canção que tinha doçura e fazia sentir "o saborr das coisas espirituais". Se fosse cantada pelo Gigli, ficaria uma beleza!
Imaginem o Gigli, num longo e vibratto agudo: "Lá na praia..."
E, depois, suavíssimo, num soluço comovido: "Tu me olhastes nos olhos..."
Pe Simplício juntava seu canto desafinado a seu comentário e imitava o Gigli, cantarolando desafinado e de olhos fechados: "Lá na praia..."
Que beleza!
Realmente, o Papa João Paulo II tinha bom gosto! "Lá na praia....Tralalá. E soluçava suavíssimo: "Tu me olhastes nos olhos...Tralalá".
Assim era, e assim morreu Padre Simplício, devoto, místico, diplomático, epiqueiamente virtuoso, conciliando tudo e todos, rosa e cruz, o Apostolado da Oração e a "Fraternidade, União, e Simplicidade". Santa Tereza e Beniaminio Gigli. Teologia antiga de Mariana com Missa Nova de Paulo VI e de pandeiro. Arrudas de Menezes com Botelhos Sampaios. Epiqueiamente harmonizando jejuns com marmeladas de Dona Nhonhoca. Vida e tosse.
Paz à sua alma!
***
Que?! Não acreditam em meu retrato de Padre Simplício? Por que? Que dizem vocês? É uma invenção? Vocês julgam que Padre Simplício não existiu? Que ele é uma figura ideal, igual a tantos outros padres de nossos e de outros tempos? Que ele é um Dom Abbondio do Manzzoni, em Brejo da Mata e no século XX?
O que? Não acreditam nem que exista Brejo da Mata?
Pois, "pro bono pacis", como dizia Pe. Simplício - que conhecia latim e era diplomata -, "pro bono pacis"... concordo... A ...ceito.
De fato, concedo que inventei Padre Simplício.
Inventei tudo...Ou... quase tudo.
Há alguns fatos reais em Brejo da Mata. Como em Padre Simplício.
Montei um Padre Simplício, juntando vários padres e vários Simplícios que encontrei nos brejos e nas matas, nas cidades e nos campos, ou melhor, nas capelas e sacristias por que passei.
Tive que comer muita broa de fubá e ouvir muitos e longos - e longos - sermões de muitos pretensos "gogós de ouro", pobres Bossuets dos brejos e das matas, para bem conhecer certa mentalidade típica de padres simplícios. Tive que ser fritado como broinha muitas vezes para bem conhecer a malícia de vários Simplícios.
Dos Simplícios do século passado, os Simplícos imaginários - mas muito históricos - que conciliavam a maçonaria com a devoção...
E de um padre Simplício muito real, que conheci, pessoalmente, no século XX. Que de fato era conhecido como "gogó de ouro", que era vesgo e oblíquo, no olhar e na alma. Que era leão só com as ovelhas mais indefesas. Que se julgava grande "mishtico" e saboreador das coisas espirituais, além da marmelada de Dona Nhonhoca. E etecetera. Etecetera...
Se o Padre Simplício que montei com esses retalhos parece tão real, é porque ele é uma mentalidade clerical muito encontradiça. Uma alma. Uma figura universal. Um arquétipo.
É um universal platônico, pelo menos de um determinado tipo de padre.
O indivíduo assim ideado realmente não existiu. Não vá então um certo Padre Simplício, real e vivo - que nunca foi maçon - imaginar que o caluniei, misturando alguns trapos verdadeiros com outros imaginários.
Tive intenção de descrever um arquétipo platônico e mineiro, e nunca a de caluniar nenhum padre concreto a quem alguma carapuça moral - retirando-se a maçônica, por triste acaso, serviu. E serviu literalmente.
Como se vê, então, Pe Simplício é um problema metafísico: existe e não existe. Dele, algumas coisas são reais, outras inventadas. Outras ainda são reminiscências de leituras.
Ele concilia até o real e o irreal...
Aliás, o mundo está tão cheio de Brejos da Mata, e andam e tossem tantos padres simplícios por aí...
Só não cedo numa coisa: a marmelada de Dona Nhonhoca era realmente uma delícia. Metafisica e realmente uma delícia. Só quem experimentou conhece. A marmelada de Dona Nhonhoca eu não inventei. Ela não era uma marmelada platônica. Existiu mesmo. E, embora fosse uma coisa do outro mundo, não era do mundo das idéias.
Era de Minas.
De Brejo da Mata mesmo.
E era tão "mishticamente" excelente que Pe. Simplício diria que ela, a marmelada, tinha "o saborr - ele carregava doce e simpaticamente os erres finais - o saborr das coisas espirituais". Um espetáculo de gostosura!
Isso eu sei!
Só não sei, se essa alma universalmente clerical de Padre Simplício se deu bem no outro mundo, onde não consta que haja marmeladas ou diplomacia... Nem sequer eclesiásticas!...
Dominus vobiscum!
Paz à sua alma...
Será?...
São Paulo, 21 de novembro de 2.000.
Para citar este texto:
"Padre Simplício"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/cronicas/padresimplicio/
Online, 21/11/2024 às 09:01:17h