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Filosofia e Escultura na Idade Média
Orlando Fedeli
A arte é um retrato da filosofia de cada época. É o que se pode verificar ao analisar as fases da escultura gótica
A arte da escultura atingiu um de seus ápices na Idade Média. Até o século X, essa arte foi pouco praticada. Quando, porém, se começou a praticá-la, logo se conseguiu um progresso muito rápido. Em pouco tempo os escultores adquiriram uma grande técnica, tornando-se capazes de realizar obras de arte de nível tão elevado que poucas vezes foi igualado na História.
Na arte gótica distinguem-se três grandes períodos ou fases:
- O Gótico Primitivo, no século XII;
- O Gótico Radiante, no século XIII;
- O Gótico Flamejante, nos séculos XIII e XIV.
É bem sabido que todo estilo artístico tem profunda relação com a filosofia de seu tempo. Pode-se definir um estilo como a expressão de uma filosofia por meio de símbolos. Sendo assim, as fases do estilo Gótico exprimem por meio de seus símbolos a filosofia aceita em seu tempo. Então, a escultura Gótica Primitiva deve exprimir os conceitos da filosofia platônica e neo-platônica em vigor, em seu tempo. A escultura do Gótico Radiante exprime as idéias do aristotélico-tomismo, enquanto a escultura Gótica Flamejante retrata a filosofia nominalista de Ockham.
Tomemos um ponto característico desses diversos sistemas filosóficos – a questão dos universais – e vejamos como ela se refletiu na escultura desses períodos.
A questão dos universais atormentou os filósofos desde a Grécia antiga.
Chamam-se universais os termos que designam todos os seres de determinada espécie. Assim, o termo boi designa todos os bois que possam existir, qualquer que seja sua raça e características.
A questão é: o universal existe? Como existe ? Onde ?
Para resolvê-la, três soluções principais foram aventadas: a do platonismo, a do aristotélico-tomismo e a do nominalismo de Guilherme de Ockham.
A solução platônica afirmava que o universal existe realmente no mundo das idéias. Existiriam, em um mundo ideal, desprovidas totalmente de matéria, as puras idéias. Lá existiriam o boi ideal, a rosa ideal, o homem ideal, etc. Esse mundo das idéias, segundo Platão, seria um mundo puramente espiritual, perfeito e divino. É a solução denominada realista, porque considera o universal realmente existente. Essa posição conduz rapidamente à gnose, porque é negadora da bondade da matéria.
Oposta a ela, per diametrum , é a solução proposta por Ockham. Segundo esse filósofo franciscano e fraticello, o universal seria apenas um nome, sem nenhuma existência, de qualquer forma que seja. Daí sua filosofia chamar-se nominalismo. Para Ockham só existiria o indivíduo, e o conhecimento como a ciência seriam apenas dos seres singulares. Em conseqüência, o conhecimento só poderia ser experimental e nunca teórico. Sendo a matéria a causa da individuação, o nominalismo de Ockham devia necessariamente conduzir a humanidade para o experimentalismo, para o existencialismo e para o materialismo modernos, isto é, para várias formas de panteísmo. Pois nele se dá uma divinização da matéria, com desprezo ou negação do espírito, da forma substancial e da essência.
Para resolver a questão dos universais, o aristotélico-tomismo deu uma solução que se situa a meio caminho entre o realismo do platonismo e o nominalismo de Ockham. Segundo São Tomás, o universal existe na mente humana, enquanto idéia, e nos seres concretos, enquanto forma substancial. E seria isso exatamente o que nos permite reconhecer os seres como indivíduos de uma espécie. Na solução tomista não se despreza nem o espírito, nem a matéria; nem a forma, nem a matéria; nem a alma, nem o corpo.
Essas três soluções do problema dos universais foram sucessivamente adotadas no decorrer da Idade Média, causando conseqüências nas características da escultura de cada período.
A escultura Gótica Primitiva e o Realismo platônico
O estilo gótico foi criado no século XII. A primeira obra de arquitetura gótica foi a realizada por Suger ao reformar a fachada e o coro da Abadia de Saint-Denis. Entretanto, as primeiras esculturas em estilo gótico vão ser encontradas na Catedral de Chartres.
Na época em que se esculpiram as grandes estátuas de Chartres, os mestres das universidades medievais adotavam a filosofia platônica, e portanto admitiam a solução realista no problema dos universais. Daí os escultores darem inteira primazia aos valores universais, desprezando tudo o que era próprio do indivíduo. Por isso, não se esculpiam retratos nesse tempo. Fazia-se a imagem do Rei, do Bispo, do Cavaleiro, etc. Esculpiam-se modelos ideais, jamais pessoas concretas.
O realismo platônico desprezava a matéria; por isso os escultores do gótico primitivo davam pouquíssima importância aos corpos de suas estátuas. O que valia era a alma, expressa particularmente no rosto.
O mundo ideal de Platão, sendo inteiramente espiritual, não admitia nem sentimentos, nem emoções. Por isso, a estatuária dessa época era absolutamente fria, não revelando emoção nenhuma. São rostos que não riem nem choram. Fisionomias absolutamente impassíveis. Nelas há uma tal ausência de sentimentos e movimentos que elas puderam ser feitas como estátuas-colunas, como se vêem tantas nos portais de Chartres. Também não se dava importância a que os corpos das estátuas fossem desproporcionados às cabeças. Muitas das estátuas da Catedral de Chartres apresentam uma relação anormal entre corpo e cabeça. Sabe-se que essa proporção, normalmente, deve ser de 1 para 7 ou 8; no máximo de 1 para 9. Nas estátuas de Chartres se vai bem além dessas proporções.
Eram comuns as estátuas-colunas, pois a ausência de movimento dava à figura uma verticalidade que fazia dela quase um prolongamento do pedestal, tornando-se ela mesma como que uma coluna.
Essas figuras apresentam os cabelos e os fios das barbas escorridos, quase sem ondulação, para acentuar a falta de movimento e a estabilidade. Também as vestes não apresentam dobras profundas e apenas caem ao longo do corpo da estátua. São dobras rasas, quase que paralelas, e quase estilizadas.
O gótico radiante e o aristotélico-tomismo
No período radiante, durante o século XIII, atinge-se o apogeu do estilo gótico. A escultura desse período é talvez a mais perfeita que se tenha alcançado na História. É o tempo do apogeu da escolástica, quando São Tomás de Aquino arquitetou a Suma Teológica harmonizando a filosofia aristotélica e o cristianismo.
Para Aristóteles, os seres que vemos ao redor de nós possuem duas causas intrínsecas: a causa material e a causa formal.
A causa material é aquilo de que as coisas são feitas, enquanto a causa formal é aquilo que faz da coisa o que ela é. Por isso, matéria e forma substancial deveriam se refletir na escultura. Ao contrário pois do platonismo, a filosofia aristotélica aceitava a matéria. Para o cristianismo isso é absolutamente certo, pois foi Deus quem criou todas as coisas, e o Criador, ademais de afirmar que cada coisa criada era boa, ao contemplar a sua obra criativa, contemplando tudo o que fizera, disse que era "valde bona", isto é, muito boa.
A recusa em aceitar a matéria como boa era típica tese gnóstica, que a Igreja condenara. O próprio Filho de Deus se encarnou e instituiu sacramentos sempre utilizando matéria, demonstrando assim que a matéria é boa.
Ao triunfo da filosofia aristotélico-tomista corresponderia a realização de esculturas em que não se buscava representar apenas a idéia de algo, mas o ser real concreto, com matéria e forma.
Esse foi o tempo do gótico radiante, do qual são obras típicas as catedrais de Reims, boa parte de Notre Dame de Paris e de Estrasburgo.
As esculturas desse período atingem grande perfeição e grande equilíbrio. Elas não visam a representar o universal. Elas buscam figurar também o indivíduo, sem esquecer o universal.
Por isso, elas não são mais figuras ideais do rei, do cavaleiro, do bispo, mas retratam o Rei São Luís, o Bispo Maurice de Sully, o cavaleiro tal, o Abade Suger. Elas não são puros retratos e nem puras idealizações simbólicas de um conceito universal, mas preocupam-se em esculpir um indivíduo concreto sem menosprezar o que ele era.
Realizando a figuração real de corpos, a estatuária radiante não recusava representar as emoções e o movimento. As figuras fazem gestos , se voltam, não são mais estáticas. As suas vestes se movimentam também, dando ocasião de representá-las com dobras profundas e majestosas, ou então leves e delicadas.
As estátuas desse período revelam emoções, mas sempre emoções equilibradas, sem excessos. Elas jamais gargalham. Sorriem. Exemplo típico disso são os magníficos anjos do sorriso que se podem contemplar na Anunciação de Reims ou na apresentação de Jesus no Templo.
Pela primeira vez na História da arte se teve a idéia de representar uma figura sorridente. Os anjos do sorriso de Reims superam tudo o que se havia feito até então em matéria de escultura.
Outras obras primas dessa época são a Virgem dourada de Amiens, a serva da apresentação no Templo de Reims e a inigualável escultura do Beau Dieu de Amiens, ainda com alguns traços do gótico primitivo em seu rosto.
Tanto se fala - e com razão, se se atenta apenas para a beleza material – da perfeição das esculturas helênicas. Nelas, porém, jamais se vê um rosto sorridente. Normalmente as esculturas clássicas gregas são de rosto quase inexpressivo. Apenas nas figurinhas de Tanagra se pode encontrar a representação do gracioso.
No gótico radiante, pelo contrário, a felicidade da Idade Média, fruto da paz de alma, sorri nos anjos de Reims.
O gótico flamejante e o nominalismo
No século XIII a escolástica decai e o nominalismo de Guilherme de Ockham – negador de todo universal e defensor da tese de que só existe o indivíduo – introduz o experimentalismo na ciência, o individualismo na sociedade, e prepara com isso o livre exame luterano e todo o cientificismo moderno. Ockham foi um dos responsáveis pela destruição da Cristandade.
Também na arte, como não podia deixar de ser, o nominalismo ockhamista produziu efeitos péssimos. O estilo que corresponde às teses ockhamistas é o gótico flamejante ou gótico da decadência, que vigorou nos séculos XIV e XV.
Se só existe o indivíduo, e se a matéria é a causa da individuação, tinha-se que destacar o corpo e não a alma, a matéria e não o espírito.
O individualismo nominalista tem como resultado o triunfo do retrato na escultura. Já não se fizeram mais representações de conceitos universais , nem isolados, nem "encarnados" em indivíduos concretos. Faziam-se retratos o quanto mais realistas possível. Se a pessoa a ser representada tinha rugas, na estátua tinham que figurar as suas rugas. Se seu queixo era exageradamente pontudo, o escultor primava em fazê-lo tal qual era.
Assim, apareceram retratos brutais ou ridículos. O mercantilismo e o desenvolvimento do comércio e da urbanização deram grande progresso político e econômico para a burguesia, assim como favoreceram o absolutismo e o crescimento do papel do Estado.
Isso tudo, junto com o individualismo nominalista, impulsionaram a vaidade. Pessoas ricas, nobres ou burgueses , quando faziam doação de dinheiro para a construção de um altar em uma igreja, exigiam serem retratados, "piedosa" e um tanto vaidosamente ajoelhados aos pés dos altares que haviam financiado.
A preocupação com o real não recuou nem na representação do prosaico e até do obsceno.
O flamejante se caracteriza pelo triunfo da curva e da contra curva, que vai produzir linhas sinuosas que parecem as de labaredas. A contra curva é introduzida nas ogivas, nos arcos, e reina nas esculturas. Isto vai se casar com a preocupação absoluta de representação do real, e para eles o real era o corpo: a curva permitia a representação fiel dos movimentos dos corpos e dos rostos.
A estátua flamejante é sempre extremamente emotiva, e suas emoções são sempre violentas: ou pranto ou gargalhada, ou terror ou prazer. Os rostos flamejantes já não têm paz.
O gosto pela curva e pela contra curva faz os escultores se preocuparem em esculpir figuras com cabeleiras e barbas enormes e caracolantes. O Moisés de Claus Sluter no poço da Abadia de Champmoll em Dijon é exemplo típico disso.
O drapejamento também passa a ser riquíssimo. E, para que as roupagens tenham curvas e contra curvas, elas são esculpidas como se estivessem agitadas por um vento impetuoso.
Ao mesmo tempo que se agitam, riem ou choram, as esculturas flamejantes perdem estatura. O módulo flamejante diminui. As esculturas, em geral, passam a ter tamanho menor.
Normalmente prefere-se esculpir cenas e não mais pessoas isoladas. Exceção são os retratos de doadores, dos quais já falamos, e cuja "piedade" exigia figuras, se possível, em tamanho natural.
O caráter violentamente emotivo da escultura flamejante aparece claramente nas figuras sepulcrais.
O século XIV viu a Europa ser atingida por uma das mais terríveis epidemias que houve na História: a peste negra. Esse flagelo dizimou a população européia no longo período em que grassou pelo continente. Calcula-se que tenha morrido mais da metade da população.
As mortes eram bruscas e a enfermidade durava pouco. O terror se espalhou por toda a parte. Foi esse pânico que suscitou toda uma série de expressões artísticas. Na música, surgiram as canções terríveis, como os cantos da Sibila e as danças da morte. A conhecida seqüência Dies Irae é desse tempo.
Na escultura, desenvolveu-se uma arte tumular de caráter mórbido, na qual os mortos eram retratados em estado de decomposição, devorados pelos vermes. Eram figuras desesperadas ante o mistério da morte.
Como eram diversas as figuras tumulares na época do gótico primitivo e do radiante! No início da arte gótica e em seu apogeu, as figuras postas jazentes sobre os túmulos - os gisants – revelavam uma grande serenidade em sua tristeza calma.
Com efeito, ante a morte a atitude equilibrada não consiste em estóica indiferença, nem em desespero. A morte é contrária à nossa natureza e a ela repugna. É impossível não encará-la como trágica. Mas, por outro lado, a redenção de Cristo nos salvou da morte eterna. Por isso, os gisants das primeiras fases do gótico eram tristes com esperança. E a esperança da vida eterna punha nas figuras esculpidas sobre os túmulos uma triste mas serena paz.
Os gisants do flamejante são desesperados. Esse desespero era resultante da perda da Fé, já que o nominalismo, no fundo, era materialista.
Assim, se passou da beleza sublime obtida na arte como reflexo da Fé e da sabedoria escolástica para o desespero resultante do materialismo.
Quando se busca antes de tudo o Reino de Deus e sua justiça, tudo se alcança por acréscimo. Até mesmo a beleza artística. É o que comprova a escultura na Idade Média, um dos elevados cumes da arte na História.
Para citar este texto:
"Filosofia e Escultura na Idade Média"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/veritas/arte/filosofiaescult/
Online, 21/11/2024 às 10:15:09h