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A guerra dentro da Igreja continuará mesmo depois de Ratzinger: o que está em jogo é o conclave
Marco Politi
Escritor e jornalista
A guerra dentro da Igreja continuará mesmo depois de Ratzinger: o que está em jogo é o conclave
Marco Politi
Agora que Bento XVI está enterrado nas Grutas Vaticanas, uma era de confusão e ambiguidade termina. E não é por acaso que só agora Francisco tenha recebido para uma reunião D. Gaenswein, pondo fim à punição de seu "exílio". Sim, foi uma época de confusão e ambiguidade porque em toda a história da Igreja Católica nunca existiu um “papa emérito”. Aqueles que renunciaram foram forçados a se aposentar ou mantiveram o título de cardeal no máximo (mas nem sempre). De qualquer forma, desapareciam completamente da cena pública.
A ideia de conceder a si mesmo o título de pontífice emérito e manter o hábito papal branco foi uma invenção de Ratzinger, provavelmente incentivado por seu secretário Gaenswein que já era contrário à sua renúncia. Teria sido melhor - e mais coerente com a humildade e nobreza de Ratzinger - seguir o exemplo de Celestino V: despojar-se de todas as vestes pontifícias e vestir a túnica de monge.
Já sabemos que Francisco pretende eliminar o mal-entendido dos “dois papas”: no futuro só se falará de um bispo emérito de Roma. Mas, nesse ínterim, houve ambiguidade por uma década. Uma personalidade vestida de branco, aliás alojada dentro dos muros do Vaticano, atuou como um “segundo polo” silencioso no pontificado de Bergoglio.
É um erro acreditar que sua presença conteve os conservadores. Nunca foi assim. Por uma razão muito simples: Ratzinger nunca quis se envolver nas manobras anti-Francisco da frente conservadora. Ele nunca quis ouvir aqueles que o procuravam para reclamar das aberturas reformistas do Papa Francisco. Ele sempre enfatizou que "o Papa é ele... e ele sabe o que está fazendo".
Ao fazer isso, ele mostrou lealdade ao seu sucessor. Mas a história termina aí. A frente conservadora-tradicionalista se mobilizou contra Francisco de uma forma nunca vista contra um pontífice nos últimos cem anos (copyright Andrea Riccardi). Petições foram lançadas contra Francisco, Cardeais de primeiro escalão questionaram publicamente suas posições teológicas, em conferências convocadas a poucos passos do Vaticano falou-se de suas "teses heréticas", um arcebispo-núncio exigiu perante a opinião pública mundial que Bergoglio deixasse o trono papal!
Nesse sentido, a mera permanência no Vaticano de uma personalidade pontifícia era um ponto de referência para os opositores do reformismo bergogliano. Com efeito, nesses dias desejou-se esquecer que Ratzinger não foi apenas o teólogo e pensador que pregou o indispensável diálogo entre fé e razão. Este diálogo, que ele praticou antes de sua eleição com Juergen Habermas ou Paolo Flores d'Arcais e continuou nos últimos anos no retiro de seu convento vaticano com Piergiorgio Odifreddi, sempre ocorreu nas esferas dos maiores sistemas teológicos e filosóficos.
Em termos de governo, porém, quando Bento XVI ocupava o trono de São Pedro, o pontífice alemão era o incansável promotor de uma guerra cultural com a modernidade em nome de “princípios inegociáveis”. Quem viveu na Itália não pode esquecer a feroz oposição liderada pela Conferência Episcopal Italiana - com a expressa bênção de Ratzinger - contra o referendo sobre a fertilização heteróloga e o primeiro projeto de lei sobre as uniões civis (governo Prodi). Por meio de uma mobilização frenética de associações católicas e de políticos obedientes à hierarquia eclesiástica, o referendo foi sabotado e o projeto de lei do chamado Dico acabou derrubado.
Se nos Estados Unidos explodiu nos últimos anos o debate na Conferência Episcopal Americana sobre a legitimidade ou não de dar a comunhão a políticos democráticos que defendem a lei do aborto, esse é um fenômeno produzido pelas guerras culturais favoritas da doutrina de Ratzinger.
Ainda hoje, tudo o que se move entre os grupos de cardeais e bispos em manobras de ataque doutrinário a Francisco se baseia no legado do entrincheiramento teológico de Ratzinger e Wojtyla.
Assim, a guerra civil dentro da Igreja Católica continuará. O Papa Francisco se encontrou com Gaenswein, porque uma vez que Bento XVI faleceu, não faz mais sentido punir seu secretário pela intromissão sem precedentes que Ratzinger fizera na atividade de governo de Bergoglio, escrevendo um livro com o Cardeal Sarah para se opor à possibilidade de o Papa reinante autorizar a experiência de padres casados na Amazônia.
As memórias de D. Gaenswein sairão, haverá controvérsia, mas o grosso da batalha não é mais sobre o passado. É sobre o futuro. Em jogo está o próximo conclave que a aguerrida frente conservadora - fortalecida pelos temores dos moderados - pretende predeterminar.
A primeira etapa para ver as relações de força dentro da Igreja Católica será o Sínodo Mundial a ser realizado em Roma em 2024. Lá veremos como os episcopados mais influentes se posicionam em relação aos grandes temas: estrutura comunitária do catolicismo, participação dos fiéis (com particular atenção ao papel da mulher) e a missão da Igreja no século XXI.
Deve fazer-nos refletir que à frente de um dos episcopados mais importantes, seja no Concílio Vaticano II seja nos conclaves que se sucederam – o episcopado americano – tenha sido eleito o ex-ordinário militar e colaborador próximo do Cardeal Sodano (Secretário de Estado de João Paulo II): o Arcebispo Timothy Broglio.
Do conclave com certeza não deverá emergir um “Francisco II”.
Para citar este texto:
"A guerra dentro da Igreja continuará mesmo depois de Ratzinger: o que está em jogo é o conclave"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/imprensa/ultimas/politi-francisco-ii/
Online, 21/11/2024 às 08:38:56h