Mundo

Matar embrião no útero é crime, mas em laboratório é "acidente"
FERNANDA CÂNCIO (Diário de Notícias)

FERNANDA CÂNCIO (Diário de Notícias)

Ninguém sabe quantos embriões humanos já foram destruídos, por acidente ou desígnio, em duas décadas de procriação modicamente assistida (PMA) nos hospitais e clínicas portugueses. Como se ignora quantos embriões existem, em criopreservação, no País. Nenhum levantamento ou fiscalização foi jamais feito nessa área, que não é regulada por qualquer lei.

Ora é precisamente a destruição de um embrião que está em causa no aborto, que em Portugal, fora de determinadas circunstâncias, é criminalizado com pena de prisão até três anos para a mulher e até oito anos para quem induz o procedimento. Assim, o mesmo acto - destruir um embrião - pode ser crime, se ocorrer dentro do útero de uma mulher , ou «um acidente de percurso» laboratorial, sem qualquer gravidade em termos legais e não passível de qualquer penalização, se se passar no âmbito de técnicas de PMA.

Como explicar que o aborto seja considerado como um dos temas mais «fracturantes» da sociedade portuguesa
, dando periodicamente origem a discussões extremadas, e ninguém pareça preocupar-se com o que se passa com os embriões nos laboratórios? Ainda há poucas semanas, recorde-se, a vinda a Portugal do barco da organização holandesa Women on Waves, que se propunha possibilitar a portuguesas interromper uma gravidez até às seis semanas e meia em águas internacionais, criou uma crise política, com o governo a impedir o barco de entrar em águas nacionais, o presidente da República a pedir explicações e a oposição a clamar pela descriminalização do aborto.

A justificação do governo para proibir a entrada do barco, recorde-se, foi de que este constituía um «perigo para a saúde pública» e tinha a intenção de «desafiar o ordenamento jurídico português». Ordenamento jurídico no qual coexiste, há vinte anos, a vigência da lei que criminaliza a interrupção da gravidez e um absoluto vazio legal em relação à prática, em hospitais públicos e clínicas privadas, das técnicas de procriação assistida .

«É uma enorme incongruência». Para o presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução, Silva Carvalho, a situação é difícil de entender: «É o mesmo embrião! Há estatutos diferentes, incoerências de procedimento. É o legislador a falar de ideias abstractas e princípios filosóficos, sem se ater à realidade.» Para este especialista de PMA, as questões éticas e legais suscitadas pela técnica e pelo aborto «podem e devem ser ligadas, e embora só encare a interrupção da gravidez em situações excepcionais, nunca a tendo praticado, não vejo motivo para escamotear as coisas.»

Silva Carvalho é aliás muito claro ao admitir que, quer na manipulação laboratorial quer nos diagnósticos pré-transferência para o útero (em caso de risco de doença genética grave) os embriões podem ser destruídos por acidente. Mas podem sê-lo também de propósito - por exemplo quando se diagnosticam problemas genéticos. Quanto aos embriões excedentários, os que «sobram» após ter-se obtido uma gravidez - ou quando a mulher/casal desiste -, e são congelados, perdem a «validade» após cinco anos. Ao fim de vinte anos de PMA, a quantos isso não sucedeu? Quantos não foram utilizados para investigação?

Esta inexplicável desigualdade dificilmente será sanada quando - e se - a PMA for objecto de lei: não é crível que a destruição de embriões no âmbito deste tratamento venha a ser criminalizável. Resulta daí que, ficando a lei do aborto como está, o embrião que surge «por acaso», no útero de uma mulher, mesmo contra a vontade da mesma, será sempre mais protegido em termos jurídicos que aquele deliberadamente criado em laboratório .

«O acaso, tal como as coisas estão, favorece o embrião», reconhece o penalista Germano Marques da Silva. «A questão é saber qual a alternativa. Num dado momento entendeu-se que a PMA é um bem para a humanidade, mas não há bela sem senão... E agora eis-nos perante esta situação, em relação à qual, pela sua novidade e dificuldade, o legislador não encontra uma solução. Por isso se diz que o Direito se está a afastar da Ética...»

Em Julho, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida emitiu um parecer que admite a utilização dos embriões excedentários para investigação, abrindo caminho a uma lei sobre PMA mais «liberal» que a vetada em 1999 por Sampaio (ver texto nesta página). Marques da Silva extrai a conclusão lógica: «Se se admite a instrumentalização do embrião seja para o que for, a sua dignidade cai pela base. O que empurra a lei do aborto para um entendimento mais aberto.»

A questão, anote-se, está longe de interessar só aos embriões: a criminalização do aborto tem ocasionado vários julgamentos e algumas condenações a prisão efectiva, nomeadamente de técnicos de saúde - caso da enfermeira Maria do Céu Ribeiro, sentenciada em 2000a oito anos e meio de cárcere.


    Para citar este texto:
"Matar embrião no útero é crime, mas em laboratório é "acidente""
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/imprensa/mundo/embriao_utero_laboratorio/
Online, 21/12/2024 às 15:03:44h