Monsenhor Ranjith: "Devemos ter a coragem de corrigir o que está sendo feito"
Gregor Kollmorgen
Deve ter sido lido o noticiário sobre a Missa Pontifical que Sua Excelência Monsenhor Malcolm Ranjith, Secretário da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, celebrou, este ano, na festa da Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria, em Maria Vesperbild, Baviera.
Depois da Missa, Mons. Ranjith deu uma entrevista ao excelente jornal católico alemão, Die Tagespost.. É absolutamente significativo que a segunda pessoa com autoridade da Congregação para o Culto Divino, escolhida pelo Santo Padre, reconheça abertamente que, no campo litúrgico, é necessário fazer uma correção de rumo da reforma litúrgica pós conciliar.
Die Tagespost: A Ásia é considerada, na Europa, como o continente da contemplação, do misticismo e da profundidade espiritual. Que pode aprender a Igreja Católica da Igreja na Ásia?
Mons. Ranjith: A Igreja Católica pode aprender muito da Igreja na Ásia. O pré-requisito para isso é a inculturação corretamente entendida, isto é, a integração com êxito de certas partes da cultura asiática na Cristandade viva.
Falo aqui especificamente da inculturação corretamente entendida, porque a inculturação, de certo modo, foi completamente incompreendida na Ásia, pelo menos por aqueles que falam de inculturação. Devemos, pois, não nos enganarmos sobre o que é realmente asiático.
Com relação às ideologias ocidentais, às escolas de pensamento, a influência do laicismo, e das perspectivas horizontalizantes, que não liberam verdadeiramente o homem, não se pode absolutamente falar de espiritualidade e de valores asiáticos. Somente se retornarmos às raízes, e se falarmos autenticamente sobre valores asiáticos, e do modo de vida asiático, podemos contribuir para a Igreja Católica. Tudo o mais será apenas fumaça e miragem.
Para evitar uma visão superficial da inculturação, precisamos distinguir entre o que é verdadeiramente asiático, do que pertence às religiões asiáticas.
Muitas práticas religiosas se desenvolveram da vida quotidiana. Confundir as duas coisas seria apenas o terreno de cultivo de uma teologia sincretísta, e a destruição do modo de vida católico. Consequentemente, devemos inicialmente efetuar uma espécie de desmitologização, e ver o que há por trás das atitudes das várias religiões. Somente então se pode discernir o que é verdadeiramente asiático.
DT: Onde V Excia vê exemplos de fracasso da inculturação cristã, na Ásia?
Mons. Ranjith: Por exemplo, através da Ásia, e através do respeito dos símbolos religiosos, por exemplo, a atração pelo sacerdote e pelas vestes religiosas. Em menhum templo budista se encontrarão monges budistas sem o hábito de monge. Os Hindusanyasis têm seus símbolos de identidade, que os distinguem dos outros, no templo, ou na rua. Essa atitude não é nem tipicamente budista, nem tipicamente hindu. É asiática. Os asiáticos, com esses símbolos, querem apontar a realidade oculta por trás da realidade visível. Eles consideram, por exemplo, as vestes sacerdotais ou religiosas como uma distinção que faz a pessoa que as veste distinta da massa, por causa de seu ideal pessoal. Se padres ou religiosos aparecem em vestes civis ocidentais e não revelam o seu estado, então não há nada a fazer com a inculturação, mas com uma pseudo visão asiática, que, de fato, é mais européia. Portanto, é muito lamentável que sacerdotes e religiosos, em muitos países da Ásia, não mais se vistam de modo correspondente a seu estado. Uma das congregações mundialmente mais conhecidas, que conseguiu pleno sucesso por meio de seu hábito religioso, modelado conforme com o estilo local de vestir, é a Congregação das Missionárias da Caridade (as Irmãs de Madre Teresa). Elas são um exemplo de inculturação cristã bem sucedida, porque toda criança na rua pode imediatamente identificá-las.
DT: Que normas se devem aplicar para ter êxito na inculturação?
Mons. Ranjith: “O texto sinodal "Ecclesia in Asia" declara expressamente que Cristo era asiático. As raízes da Cristandade e da cultura judaica que Jesus encontrou em Jerusalém, eram asiáticas. Claro que a Cristandade se expandiu para o Ocidente através do pensamento Greco-romano.
São Paulo e outros foram uma espécie de abridores de portas para isso. Infelizmente, as vicissitudes da história tornaram impossível uma primeira larga expansão da Cristandade na Ásia. Simplesmente não houve um abertura ou conexão suficiente para a maneira de pensar asiática.
Na Ásia, com relação à Cristandade, ainda predomina a imagem de uma religião importada pelos colonialistas. Mas isso não é verdade A Cristandade veio à Ásia muito antes dos poderes colonizadores. Na Índia, por exemplo, tivemos a forte tradição dos cristãos de São Tomé. Quem quiser transferir a Cristandade para a maneira asiática de vida deve mostrar humildade antes que o mistério de Deus. Somente uma pessoa crente pode ter êxito. Isso não é uma questão de competência teológica ou filosófica. O simples homem devoto, na rua, muitas vezes, pode ter vantagem, porque ele aproxima o mistério de Deus sem prejuízos, e é completamente pervadido pela mensagem cristã. A vox populi desempenha um importante papel para a inculturação. Somente com pessoas profundamente religiosas que rezam é possível o triunfo de uma inculturação. Frequentemente, teólogos esquecem que podemos descobrir o verdadeiro valor da mensagem de Jesus apenas se ficarmos ajoelhados. Vemos isso no modo como Paulo evangelizava. Ele era um homem de Deus, que amou a Deus, e que dedicou totalmente sua vida a Cristo, e viveu em constante contato com Ele. Somente uma pessoa como essa pode ter o modelo da inculturação cristã. De outro modo, a Cristandade não passará de ser mais do que a capa de um livro. E desgraçadamente deve-se dizer que presentemente não há um pensamento teológico sério, na Ásia. Temos um grande amontoado de idéias: um pouco de Teologia da Libertação, vinda da América Latina, um pouco de Teologias Ocidentais, algum tanto de correntes filosóficas das Universidades Ocidentais - e, cada uma dessas coisas, sendo impetuosamente tentadas. Por conseguinte, há uma espécie de isolamento, pois cada uma dessas coisas não é aberta para o mistério dos caminhos de Deus. A Teologia é considerada apenas como uma espécie de evento humano. A abertura para a luz de Deus está perdida. O sentido da profunda união mística com Deus está perdido, assim como a capacidade para entender a fé das pessoas comuns. Mas é precisamente dessas características de que um teólogo precisa.
DT: Da Ásia, ouvem-se vozes dizer que o debate sobre a liturgia tridentina é tipicamente europeu, e nada tem a ver com o povo das regiões de missão. Como V. Excia vê isso?
Mons. Ranjith: Bem, essas são opiniões individuais que não podem ser generalizadas para a Igreja Católica. Que toda a Ásia rejeite a Missa tridentina é inconcebível. Deve-se tomar cuidado com generalizações tais como: "A Missa antiga não convém para a Ásia". Precisamente é o rito da liturgia extraordinária que reflete alguns valores asiáticos em toda a sua profundidade. Acima de tudo, o aspecto da Redenção e o sentido da perspectiva vertical da vida humana, a relação profundamente personalizada entre Deus e o sacerdote, entre Deus e a comunidade, são expressas mais claramente na antiga liturgia do que no Novus Ordo. O Novus ordo, pelo contrário, sublinha mais a perspectiva horizontal. O que não quer dizer que o próprio Novus Ordo sublinhe uma perspectiva horizontal, mas antes sua interpretação por diferentes escolas litúrgicas, que consideram a Missa mais como uma experiência comunitária. Contudo, se certas maneiras de pensar forem evocadas, alguns reagem desconfiadamente. A Santa Missa não é apenas um memorial da Santa Ceia, mas também o Sacrifício de Cristo e o Mistério de nossa Salvação. Sem a Sexta-Feira Santa, a Santa Ceia não tem sentido. A Cruz é o sinal maravilhoso do amor de Deus e somente em relação com a Cruz é plenamente possível haver verdadeira comunidade. Aqui está o real ponto de partida para a evangelização da Ásia.
DT: Em que sentido a reforma litúrgica pós-conciliar contribuiu para uma renovação espiritual?
Mons. Ranjith: O uso do vernáculo permitiu que muitas pessoas entendessem mais profundamente o mistério da Eucaristia, e permitiu um mais intensa relação com os textos da Escritura. A participação ativa do fiel foi encorajada. Entretanto, isso não significa que a Missa deva ser inteiramente orientada para o diálogo. A Missa deve ter momentos de silêncio, de interioridade e de oração pessoal. Onde há um falar contínuo, o homem não pode ser profundamente penetrado pelo mistério. Não devemos falar continuamente diante de Deus, mas devemos também deixá-Lo falar. Contudo, a renovação litúrgica foi afetada por uma arbitrariedade experimental com a qual a Missa, hoje, se tornou livremente numa liturgia “faça-a você mesmo” ("do-it-yourself liturgy") . O espírito da liturgia, por assim dizer, foi retirado. O que aconteceu não pode mais ser desfeito. O fato é que nossas igrejas ficaram mais vazias.. Certamente houve também outros fatores: o irrefreável comportamento consumista, o laicismo, uma excessiva imagem do homem. Devemos reunir coragem para corrigir esse rumo, pois nem tudo o que aconteceu depois da reforma da liturgia estava de acordo com a intenção do Concílio. Por que deveríamos acatar o que o Concílio absolutamente não queria?
DT: Na Alemanha, é cada vez mais freqüente que as Santas Missas sejam substituídas por celebrações da Palavra de Deus dirigidas por leigos, embora haja padres disponíveis. Em troca, em muitos lugares, padres, em curso de fusão de paróquias, tem que concelebrar mais frequentemente, desse modo, cada vez menos Missas são celebradas. A Igreja deve rever a prática da concelebração?
Mons. Ranjith: Isso é menos uma questão de concelebração do que uma questão de compreensão da Missa e da imagem do Padre. O padre realiza na Eucaristia o que outros não podem fazer. Como outro Cristo, ele não é o personagem principal, que é o Senhor. Concelebrações devem ser restritas para ocasiões especiais. Uma concelebração que significa uma despersonalização da celebração da Missa é, portanto, tão errônea como a idéia de que se poderia obrigar a um padre concelebrar regularmente, ou a de fechar as igrejas de várias aldeias, para concentrar a Missa em um só lugar, embora houvesse um suficiente número de celebrantes disponíveis.