Cartas quase marcadas no Vaticano
Gerson Camarotti
Diferentemente do que a Igreja Católica costuma ensinar, o Espírito Santo não presidiu o último conclave. O caráter político da eleição do Papa Bento XVI foi muito mais forte do que se divulgou até hoje. O cardeal alemão Joseph Ratzinger deu sinal verde para sua candidatura, mandou dizer aos colegas que aceitaria ser Papa e fez uma forte campanha nos bastidores para tornar-se Bento XVI. Chegou a contar com a ajuda de um grupo influente de cardeais conservadores como cabos eleitorais. Esses cardeais pró-Ratzinger passaram a sondar os colegas em conversas reservadas logo após a morte do Papa João Paulo II. Com isso, Ratzinger entrou para o conclave, no dia 18 de abril, praticamente eleito.
O relato foi feito por um dos quatro cardeais brasileiros que participaram da votação — a mais secreta e misteriosa do mundo contemporâneo. O cardeal revelou os bastidores do conclave ao GLOBO sob condição de anonimato. Os que quebram o sigilo da eleição de um Papa estão sujeitos à pena máxima da excomunhão.
Opus Dei e Cúria Romana ajudaram
A mobilização de Ratzinger não foi discreta. Ele contou com ajuda dos principais cardeais da Cúria Romana e até de grupos de pressão de grandes movimentos da Igreja, principalmente da Opus Dei — de perfil conservador e com forte influência no Vaticano.
A estratégia montada por Ratzinger foi extremamente sofisticada. Ele deu sinal verde a alguns cabos eleitorais, que começaram a trabalhar os votos dos 115 eleitores (eram 117, mas dois não compareceram ao conclave por motivo de saúde). Eles se dividiram por continentes. Na América Latina, os principais cabos eleitorais de Ratzinger foram os cardeais Alfonso López Trujillo, colombiano, e Jorge Arturo Medina Estévez, chileno, ambos próximos da Opus Dei. Também ajudou de forma ostensiva o cardeal austríaco Christoph Schoenborn, colocado em Viena por Ratzinger para barrar os ventos progressistas da arquidiocese.
Trujillo e Medina organizaram jantares e encontros com cardeais latino-americanos para fazer campanha de forma aberta. Esses encontros ocorriam em conventos e casas religiosas onde cardeais de vários países se hospedaram ao chegar ao Vaticano logo após a morte de João Paulo II. Nessas conversas pré-conclave foram fechados os votos necessários para que Ratzinger surgisse de forma antecipada como favorito.
— Quando chegamos a Roma, havia muita dúvida e incerteza. Trujillo e Medina organizavam encontros e jantares. Nessas conversas, deixavam claro que tinham consultado Ratzinger e garantiam que o cardeal alemão aceitaria ser Papa e tinha dado sinal verde para a campanha. Também listavam todas as qualidades de Ratzinger para ser o sucessor ideal de João Paulo II — revelou o cardeal brasileiro.
Historicamente, são dessas reuniões informais, realizadas entre a morte de um papa e o conclave, que surgem os nomes dos principais papáveis. Esse período é chamado de pré-conclave. Além das reuniões oficiais diárias, chamadas de congregação-geral, ocorrem jantares de confraternização em que os cardeais mais influentes tentam conquistar apoio. Ratzinger evitou aparecer pessoalmente nesses encontros. Se imagina que ele não queria se expor de forma aberta, e por isso mandava cabos eleitorais.
Mas não foi uma tarefa fácil para Ratzinger chegar ao conclave como favorito. Foi preciso que os cabos eleitorais esclarecessem questões que começavam a surgir na imprensa sobre o cardeal alemão. Entre as notícias que mais prejudicaram sua campanha estava a de que ele fora membro da Juventude Hitlerista.
Mas segundo o cardeal brasileiro, o maior problema foi a veiculação de informações de que Ratzinger não queria ser Papa, pois estava velho e cansado, em busca de uma aposentadoria tranqüila, e que por isso sua candidatura não seria para valer. Os jornais italianos publicaram com destaque que Ratzinger era um candidato simbólico. Sua candidatura, diziam, visava a arregimentar um grupo de cardeais conservadores para que num segundo momento fosse lançado um outro candidato, mais competitivo.
— Isso abalou a candidatura — lembrou o cardeal brasileiro.
Quatro dias antes de começar o conclave, dois dos principais vaticanistas italianos, Luigi Accattoli, do jornal “Corriere della Sera”, e Marco Politi, do “La Repubblica”, anunciaram que Ratzinger estava sendo vetado por cardeais alemães e americanos. Accattoli foi além. Em artigo, afirmou: “Ratzinger teria dito aos amigos que não considera viável sua própria eleição e que não a deseja”.
Era exatamente o contrário do que acontecia nos bastidores. De última hora, rodadas de conversas foram conduzidas por Trujillo e Medina com cardeais latino-americanos. O mesmo foi feito com cardeais de outros continentes. O colombiano e o chileno informaram ao cardeal brasileiro, pouco antes do conclave, que Ratzinger continuava candidato. Àquela altura, acrescentavam, a Cúria já estava fechada no apoio ao alemão.
Fundamental para a eleição de Ratzinger, o trabalho dos cabos eleitorais continuou durante o conclave. Eles reafirmavam a plataforma de Ratzinger e ressaltavam o fato de ele ser considerado o maior teólogo da Igreja moderna e um intelectual brilhante. Chamavam atenção também para o fato de ele ser idoso (quando foi eleito Papa, Ratzinger tinha 78 anos). Depois de um pontificado longo como o de João Paulo II, os cardeais optaram pelo que chamam de um papa de transição. Foi lembrado ainda o fato de Ratzinger ter sido o mais fiel cardeal de João Paulo II e o que ficou mais tempo na Cúria — o que garantia o chamado “wojtylismo sem Wojtyla”.
O cardeal brasileiro lembra ainda que a eleição derrubou dois tabus: a teoria do pêndulo, segundo a qual o eleito teria características opostas às de João Paulo II; e o fato de não ser tradição eleger papa um cardeal com origem na Cúria Romana. O brasileiro lembra que a mesma plataforma utilizada pelos aliados de Ratzinger antes da reunião secreta também foi usada durante o conclave para obter os votos necessários.
— Trujillo e Medina fizeram questão de afirmar que a candidatura era para valer. Entramos para o conclave certos disso. O que ficou muito claro desde o primeiro escrutínio. Ali, tivemos a certeza de que ele seria eleito rapidamente, tamanha foi a diferença. No conclave, durante as refeições, era comum ver os mesmos cardeais trabalhando de forma reservada o voto de outros. A campanha aumentou nas votações seguintes — observa o cardeal brasileiro.
Ele confirmou os números da votação divulgados em setembro pela revista italiana “Limes”: Ratzinger foi eleito com 84 votos dos 115 cardeais e o segundo colocado foi o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, com 26 votos. A revista teria obtido o diário escrito por um dos cardeais do conclave. Para ser eleito, Ratzinger precisava de 77 votos.
De acordo com o diário, no primeiro escrutínio, no dia 18 de abril, o alemão disparou com 47 votos. Contra ele, surgiram Bergoglio com 10 votos e o ex-arcebispo de Milão e líder da ala progressista, o cardeal italiano Carlo Maria Martini, com nove votos. No segundo escrutínio, Ratzinger subiu para 65 votos e Bergoglio recebeu 35. No terceiro, o alemão atingiu 72 votos, e Bergoglio, 40.
Dom Cláudio Hummes recebeu votos, diz cardeal
O cardeal brasileiro acrescenta alguns detalhes da votação. Um é que Martini andava de bengala, o que prejudicou muito sua imagem. Ele seria o principal adversário de Ratzinger. Mas ficou nítido para os cardeais que Martini estava muito doente. Na ocasião, foi divulgado que o italiano sofria de mal de Parkinson. Outra lembrança é de que no primeiro escrutínio o arcebispo de São Paulo, dom Cláudio Hummes, teria obtido cerca de 5 votos.
Segundo o cardeal brasileiro, à medida que os votos se concentravam em torno do cardeal alemão, Bergoglio passava a funcionar como um candidato anti-Ratzinger. Na quarta e última votação, quando foi alcançado o voto de número 77, todos os cardeais começaram a aplaudir Ratzinger. Nesse momento, o novo Papa ficou com os olhos marejados.
— Ratzinger estava visivelmente emocionado — lembra o brasileiro.
Ele conta outras curiosidades. Na Casa de Santa Marta, hotel construído para hospedar os cardeais durante o conclave, as janelas dos quartos eram lacradas. Também havia nos quartos um equipamento para impedir comunicação por rádio ou telefone celular. Durante as refeições, ele conta, os cardeais conversavam e faziam uma discreta campanha.
Para o brasileiro, alguns fatores contribuíram ainda mais para a eleição de Ratzinger. O fato de haver vários cardeais novos e com pouca experiência na Cúria Romana produziu um fato raro: Ratzinger era um dos poucos que tinham contato com quase todos eles. Ele era conhecido por todos os outros 114 eleitores.
Um dos argumentos usados pelos eleitores de Ratzinger, lembra o cardeal brasileiro, era que o alemão teria coragem para reformar a Cúria, descentralizando um pouco mais o poder de Roma. Os cardeais ainda aguardam essa promessa de campanha.
Também pesou o fato de, como decano do Colégio de Cardeais, Ratzinger ter rezado a última missa aberta ao público antes do conclave. A homilia do alemão impressionou muito os cardeais eleitores. Na ocasião, ele fez uma defesa da doutrina católica e deu uma dura resposta aos que reivindicavam reformas para adaptar a Igreja aos novos tempos. Como guardião da doutrina da Igreja no pontificado de João Paulo II, ele protestou contra o que chamou de “ditadura do relativismo”. O tom forte da homilia funcionou como bandeira de campanha.
No pré-conclave, ele já demonstrava autoridade ao recomendar que os cardeais não falassem com a imprensa, ao contrário do que aconteceu em 1978, quando vários eleitores deram entrevistas. O cardeal brasileiro lembra ainda que Ratzinger teve vantagem ao comandar o conclave, o que permitiu a ele demonstrar liderança e serenidade, qualidades fundamentais para um papa.
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