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O TRIUNFO DA MISSA É PRIMEIRAMENTE INTERIOR: O CASO DE SÃO PEDRO JULIÃO EYMARD
pe. Ivan Chudzik
INTRODUÇÃO
Assim como Paulo VI esperou do Concílio Vaticano II um “despertar primaveril” para a Igreja, mas constata - dez anos depois da sua abertura - que “a fumaça de Satanás entrou no templo de Deus”1, paradoxalmente encontramos a mesma dicotomia de expectativa/realidade entre sacerdotes e fiéis ligados ao Rito Romano tradicional. Desde que o Motu Proprio “Summorum Pontificum”, de Bento XVI, reconheceu que este Missal jamais fora ab-rogado, a expectativa de muitos católicos era de assistir a um triunfo litúrgico súbito, com igrejas abarrotadas de fiéis, munidas cada uma de seu corpo de acólitos, de um coro gregoriano, além de todo o aparato de outrora. Mas a realidade que se seguiu foi outra. Fazendo abstração da dificuldades maiores - encontrar um sacerdote que saiba e esteja disposto a celebrar e obter um juízo favorável do Bispo local -, não raro o número inicial de frequentadores esteve muito abaixo do esperado. Depois de alguns meses, o crescimento pode não ter sido exponencial, como também muitos curiosos já se afastaram para voltarem à sua vida paroquial ordinária. Se nas capitais há mais interessados do que nos interiores, é preciso reconhecer que eles vêm de todas as pontas da Arquidiocese e mesmo de fora, o que significa que a “igreja cheia” não esconde um certo “vazio” no próprio bairro em que a Missa é celebrada. Diante deste cenário, quantos sacerdotes não desistiram sob o peso das dificuldades e oposições, e quantos fiéis não abandonaram o engajamento litúrgico para substituí-lo pelo político. Para reafirmar a prioridade do espiritual sobre o político, fazendo do Santo Sacrifício da Missa o coração do apostolado católico, convém consultar a vida do “apóstolo da Eucaristia”, São Pedro Julião Eymard, cujo itinerário espiritual incluiu uma purificação do apego ao triunfo exterior das obras.
VIDA
Pedro Julião Eymard nasceu em 4 de fevereiro de 1811 em La Mure d'Isère, sudeste da França, a 40km de Grenoble. Foi o décimo filho de seu pai, Julião Eymard, e o quarto da sua mãe, Madalena Pelorce. Apesar da resistência paterna, entrou nos Oblatos de Maria Imaculada em 7 de junho de 1828 em Marselha.
Preocupado em vencer o atraso escolar, fragilizou a própria saúde pelo excesso de estudo, tendo que abandonar o noviciado poucos meses depois. Em 1831, já recuperado, entrou no Seminário maior de Grenoble. Em 20 de julho de 1834, recebeu a ordenação sacerdotal. Exerceu o ministério na Diocese de Grenoble durante cinco anos, sendo muito zeloso tanto na oração quanto no estudo.
Atraído pela vida religiosa, Padre Pedro Julião abandonou a Diocese e entrou nos maristas em 18 de agosto de 1839, onde permaneceu durante dezessete anos. Em 1851, constatou a falta de formação de leigos e sacerdotes e o pouco de devoção à Santíssima Eucaristia. Então ele se perguntou: “Nosso Senhor está no Santíssimo Sacramento, só, sem um corpo religioso que o guarde, que o honre, que o faça glorificado! Por quê não estabelecer alguma coisa?”2 Para tanto, começou a esboçar uma Constituição e se pôs em relação com religiosos que tinham o mesmo ideal.
Em 1856, o Padre Eymard foi dispensado dos seus votos. De Lião dirigiu-se a Paris, a fim de tratar com o Arcebispo, que não queria uma obra—mais uma—de natureza puramente contemplativa. Diante desta objeção, o futuro fundador respondeu: “Nós queremos adorar, mas nós queremos também fazer adorarem.” A resposta apostólica lhe mereceu a autorização para fundar a Sociedade do Santíssimo Sacramento, em 13 de maio do mesmo ano.
Apesar das dificuldades materiais iniciais e a escassez de membros, em poucos anos a Sociedade já possuía casas em Marselha e Angers, além do ramo feminino. Em 3 de junho de 1863, o fundador obtém a aprovação pontifícia de Pio IX.
A partir de 1863, o Padre Eymard começou a gestar um projeto ambicioso: “[...] adquirir o cenáculo de Jerusalém para fazer dele o lugar de um culto magnífico à Eucaristia.”3. De encontro da sua ambição vieram inúmeras dificuldades, obrigando o Santo a se dirigir a Roma, em 10 de novembro de 1864, a fim de defender seu ideal junto aos Cardeais. No entanto, ele teve que esperar, pois o veredito viria apenas depois do Natal. No dia 25 de janeiro de 1865, entrou em retiro nos redentoristas para não sair até que recebesse a esperada resposta positiva. Não obstante, a graça do retiro o dissuadiu da sua ambição. Comenta um sacramentino: “Nesta pura procura de Deus e de sua vontade, ele descobre que o que mais importa não é o sucesso da Sociedade por mim, ou mesmo do Cenáculo, mas uma outra realidade, o despojamento de todo o seu ser, do seu eu.”4. Nove semanas mais tarde, o Santo recebeu, aos 29 de março, o veredito da comissão cardinalícia: não para o Cenáculo. Isso, porém, não o abalou em nada, uma vez que pouco antes, aos 21 de março, ele fizera o voto ou dom da sua personalidade, com estas palavras: “Nada para mim, ninguém […], nada por mim. Modelo: Encarnação do Verbo.”5 Na verdade, o Padre Eymard havia descoberto que mais importante do que um lugar magnífico de culto em Jerusalém era o “Cenáculo em mim”, como se lê em São Paulo: “Eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim.” (Gl. II, 20)
De retorno para a França, o fundador abriu novas casas e se dedicou ao aperfeiçoamento das Constituições - certamente as luzes do retiro o obrigaram a fazer modificações. O fechamento da casa de Nemours - que foi uma catástrofe financeira e moral para as servas do Santíssimo Sacramento - foi uma dura provação para o Padre Eymard, que caiu em completo descrédito junto aos Bispos. Nesta época, o Santo atravessou a noite dos espíritos. Entre 27 de abril e 2 de maio de 1868, entrou em retiro.
Em 17 de julho do mesmo ano, por ordem médica, teve que abandonar Paris e se dirigir à La Mure para tomar repouso na casa de suas irmãs. No dia 2 de agosto, os seus conterrâneos puderam dizer: “morreu o santo”. O Papa Pio XI o beatificou em 12 de julho de 1925, e João XXIII o canonizou em 9 de dezembro de 1962.
O APEGO AO TRIUNFO EXTERIOR
O ideal de fazer do Cenáculo de Jerusalém um lugar de culto magnífico surgiu em meados de 1863, quando o fundador pretendia que fosse “o primeiro buquê” após a aprovação canônica de Pio IX. A um confrade sacramentino escreveu em 1864: “Que não tivéssemos vindo ao Santíssimo Sacramento a não ser para esta bela missão: [a de] devolver seu Cenáculo a Nosso Senhor, parece-me que após isso não há mais [a se dizer] do que o nunc dimittis [o cântico de Simeão].”6 Nesta altura de sua vida, vê-se claramente o quanto o Santo estava convencido de que o Cenáculo era o fim da sua vida e da sua vocação eucarística. No mesmo ano, a um amigo ele garante que: “O Santíssimo Sacramento vai fazer [no Cenáculo] sua entrada triunfal. Dizem-me que seu culto por lá está bem miserável: tudo está morto e fala de morte, [mas] nós lá iremos mostrar a verdadeira vida.”7
Não obstante, sua obstinação pelo Cenáculo não faz dele um ativista que descarta os meios espirituais para obter sucesso em sua obra. O Padre Eymard rezava e fazia os outros rezarem pelo triunfo, atribuindo ao demônio e à dureza de coração dos homens todas as dificuldades que encontrava. Como escreveu a uma senhora: “Reze em união a este grande pensamento, pois o Cenáculo aberto ao culto do Santíssimo Sacramento parece inaugurar uma era de graça e de glória a Nosso Senhor. […] Quanto mais me dizem que é difícil, mais eu espero, porque o bom Deus levantará aí o seu braço inteiro.”8 Seu fim, portanto, era santo e nobre. Assim como os turcos expulsaram os cristãos de Jerusalém, chegava o momento de expulsar os turcos e devolver Nosso Senhor ao Seu Cenáculo. Quem poderia encontrar um erro de doutrina ou uma nódoa de pecado na proposta do Padre Eymard?
Não obstante, o próprio Santo parecia estar cansado de rezar, ele que cria que “a oração venceria tudo”. As orações dos religiosos e dos leigos parecendo não bastar, a impaciência o fez recorrer diversas vezes à diplomacia eclesial, mas sem sucesso. Uma irmã vidente lhe disse que três homens vestidos de turcos iriam comprar um terreno contíguo ao Cenáculo. Em súplica a Pio IX, o Santo manifestou interesse de comprar os terrenos vizinhos, alegando que boa parte já fora adquirida pelos cismáticos e protestantes.
A insistência do Padre Eymard constrangia o Papa e os Cardeais, que consideravam seu projeto inoportuno. Como a Terra Santa estava sob a custódia dos franciscanos, São Pedro Julião também se obrigou contestar o privilégio, alegando a pobreza do culto eucarístico em Jerusalém e prometendo a Pio IX o grande bem que faria o seu Cenáculo. Quanto maiores eram as dificuldades, menos o Santo demonstrava docilidade à vontade divina e mais se obstinava em triunfar a qualquer custo, seguro que estava da glória que renderia a Nosso Senhor. Como pôde a Igreja ter elevado às honras dos altares um fundador tão seguro do próprio ideal, se a santidade consiste, pelo contrário, na conformidade à vontade de Deus? Porque o Santo viveu uma conversão durante o retiro em Roma.
A PRIMAZIA DO INTERIOR
Enquanto estava em Roma à espera do veredito dos Cardeais, o Padre Eymard confidenciou em carta que o desinteresse dos purpurados deixava o seu coração doente, e que já estava cansado de visitar as autoridades da Cúria. Foi neste período que ele encontrou bons livros na biblioteca do Seminário que providencialmente o ajudariam a se desvencilhar do apego ao Cenáculo: o De bono status religiosi, do jesuíta Jerônimo Plati (†1591) e o De signis Ecclesiæ, do oratoriano Thomas Bozio (†1610). Ambos o conduziram ao interior, pelo exercício da caridade e do dom de si a Deus.
Consolado pela boa teologia, São Pedro Julião entrou em retiro em 25 de janeiro de 1865, festa da Conversão de São Paulo. Tomando para si a queixa de Nosso Senhor ao Apóstolo dos Gentios - “por que me persegues?” -, o fundador anota em seu diário do retiro9:
Minha alma está vazia de Deus... O mal vem do meu espírito sempre ocupado com os meios exteriores... Daí escravo dos meios exteriores para o sucesso... meu zelo é um zelo de operário que quer ganhar […]. Eu vi... uma grande e luminosa verdade, que é a chave da minha vida – e como que tendo medo – é que eu não disse o Senhor que quereis de mim a não ser para a grandeza, a glória do serviço de Deus, para o amor da glória de Nosso Senhor, para seu triunfo pelo zelo, pelo sucesso de seu culto.
Melhor dizendo meu pensamento, eu amei Nosso Senhor e seu serviço como o servo de um grande Rei... Amor de Deus de vaidade... Por que me servir do sobrenatural?
[…] eu vi que eu nunca me dei a Deus no fundo do meu eu […].
[…] Vontade leviana. Muito generosa por fora, mas só em si mesma... Ela teme a Deus... Ela se devota à sua glória quando precisaria se devotar à humildade; aos sacrifícios externos, quando precisaria se renunciar a si mesma; ao zelo quando precisaria se recolher – eis a ilusão...
[…] Nosso Senhor me pegou pelo meu fraco, pelo serviço de sua glória, pelo amor do seu culto, do seu triunfo. Minha vaidade se tornava exterior. Coisa impressionante! Eu me dei ao serviço, à glória, ao amor de Nosso Senhor, no Santíssimo Sacramento, mas pela lei […]. Eu não me dei pelo dom de si, pela abnegação interior mas somente exterior, não pelo esvaziamento do amor.
As notas do retiro impressionam pela clareza de juízo logo nos primeiros dias. O Santo percebe que se obstinou nas obras exteriores querendo triunfar a qualquer custo, muito mais pelo ganho que obteria para si do que pelo interesse em se conformar à vontade de Deus. Era um amor de glória, de zelo exterior, de triunfo, de sucesso, no qual o fundador agia como servo e não como amigo, ou melhor, no qual a virtude moral da religião tinha a primazia no lugar da virtude teologal da caridade. Ao invés de se dar a si mesmo pelas obras, o Santo cumpria as obras para não ter que dar a si mesmo. Ele cumpria as obras que escolhia, para não ter que cumprir aquelas enviadas pela Providência. Ele queria triunfar em sua vontade própria sob a escusa de servir a Deus, ao invés de fazer a vontade de Deus triunfar sobre sua vontade própria, a fim de finalmente servir a Deus como Ele quer ser servido. Em suma, o Padre Eymard identificava uma boa obra lícita como o Cenáculo com a vontade mesma de Deus, porque Deus não poderia desejar nada de melhor para a santificação do que o triunfo e o sucesso das obras - e nenhuma obra traria mais triunfo do que o Cenáculo.
Ora, a santificação não consiste num triunfo exterior, pois neste caso a Fé católica estaria fundada sobre um fracasso: a crucifixão de Nosso Senhor. Pelo contrário, o hino das Vésperas do Tempo da Paixão declara que Deus reinou do madeiro da cruz, ornado com a púrpura do Seu Sangue. Como ensina o Padre Lorenzo Scupoli10:
[...] a santidade não consiste em outra coisa além do conhecimento da bondade e grandeza de Deus e da nossa nulidade e inclinação a toda espécie de mal; do amor por Ele e da indiferença por nós mesmos; da submissão não só a Ele, mas a toda a criatura por causa dEle; da renúncia total à nossa vontade, da total resignação à providência e do fazer tudo isso simplesmente pela glória de Deus e pelo puro desejo de agradá-lo […]
A santidade consiste propriamente na conformidade da nossa vontade à vontade de Deus, o Sumo Bem. Sem Ele, como se lê na Coleta do III domingo após Pentecostes, “nihil est validum, nihil est sanctum”: nada se sustenta, nada é santo. Se o Autor da santidade não ensinar a criatura a servi-Lo e amá-Lo, o homem, inclinado pelo pecado original, substituirá a caridade pelo amor próprio, iludindo-se com as aparências e servindo a Deus apenas no exterior. Se a conformidade à vontade divina não for o fim da vida espiritual, então as obras, de meios, passam a ser o fim. Contra este erro também adverte o Padre Scupoli11:
[…] a algumas almas fracas acontece o contrário, pois se apoiam totalmente em obras exteriores, e isso pode ser uma causa de grande ruína e desespero; não porque a prática de tais obras não seja boa em si (pois são coisas muito santas), mas sim por serem consideradas como fins e não meios, enquanto o coração é esquecido e abandonado às inclinações do demônio oculto. Este, vendo a ilusão dos que saem do verdadeiro caminho, não só os deixa continuar com seus exercícios e obras, mas até lhes proporciona praticá-los com gosto e deleite, para que creiam estar muito avançados na vida espiritual […].
Em resumo, praticar as obras exteriores como um fim em si mesmo, e não meios, significa se esquecer do coração, isto é, da união com Deus e da conformidade à Sua santíssima vontade. Mais do que isso: é abandonar-se às seduções do “demônio piedoso”, que proporciona sucesso e deleite às obras exteriores em substituição da frequentação do próprio interior. O mesmo adverte Dom Chautard na sua obra fundamental, A alma de todo apostolado12: “[...] Satanás, por seu turno, não hesita em favorecer êxitos inteiramente superficiais, caso possa, mediante esse resultado, impedir que o apóstolo progrida na vida interior, tanto sua raiva advinha onde estão os verdadeiros tesouros aos olhos de Jesus Cristo.” Mesmo a consagração à Santíssima Virgem, cujo fim é formar o interior13, pode ser desvirtuada por uma falsa devoção14, razão pela qual ninguém está seguro de suas obras se não fazer que nasçam e se nutrirem da vida interior. A união com Deus é um fim inegociável, contra todas as aparências de triunfo e de grandeza.
Quando São Pedro Julião percebeu seu apego à vontade própria e às obras exteriores, o diário do retiro recebe a seguinte confissão: “Nosso Senhor... não diz nenhuma palavra de si mesmo, ele escuta o Pai, ele o consulta, e depois ele repete esta palavra divina com fidelidade, sem nada acrescentar nem modificar, ele é a palavra do Pai, Verbum Patris.”15 O Cristo não tinha vontade própria, mas cumpria a vontade do Seu Pai. Mas para ser Verbum Christi para o próximo, na própria fundação religiosa, como proceder? Fazendo como Cristo, que Se dirigia ao Pai e dEle tudo ouvia. Não apenas se dirigir, mas se dar, sacrificando em tudo o amor próprio, fazendo o holocausto da vida, a fim de não querer outra recompensa senão a caridade, não descansar em qualquer bem senão no Sumo Bem. A partir deste princípio, as próprias obras não passam de um meio para se dar a Deus, como bem descobriu o Santo: “Nosso Senhor me fez compreender que ele prefere o dom do meu coração a todos os dons exteriores que eu poderia lhe fazer – mesmo que eu lhe desse o coração de todos os homens sem lhe dar o meu : præbe, fili, cor tuum mihi... [filho, dá-me o teu coração]”16
Quanto mais um ato sobrenatural implica o dom de si, quanto mais ele mortifica o amor próprio e o conforma à santíssima vontade de Deus, mais ele é meritório e consequentemente mais santificante. Nas palavras do Padre Eymard: “O que me fez bem foi compreender que um ato de desprezo de mim renderia mais glória a Deus do que o sucesso da Sociedade por mim, ou mesmo do Cenáculo, porque seria o Cenáculo em mim, e a glória de Deus em mim.”17 A “revolução” do retiro de São Pedro Julião consistiu em substituir a necessidade do triunfo e do sucesso pela conformidade à vontade de Deus, a qual pode santificar e frutificar mais na humilhação e no fracasso exterior. Não é possível que a Religião da cruz, cujo Cabeça e Fundador morreu crucificado, seja a Religião cujos membros se santificam por obras triunfais nas quais o amor próprio não é purificado pelo sofrimento. Afinal, ninguém pode ressuscitar com Cristo sem antes ter morrido com o Cristo. Neste sentido, melhor do que o Cenáculo de Jerusalém é o “Cenáculo em mim”; antes de se investir no Cenáculo exterior é preciso edificar, pelo exercício da vida espiritual, o Cenáculo interior. Após ter compreendido a prioridade do “Cenáculo interior”, o fundador revela em seu diário que passou a duvidar de suas presumidas virtudes e se considerava um mercenário no serviço de Deus. Sem vida interior e sem fazer da vida interior o coração da Religião, a grandeza ou o sucesso das obras se revelam uma verdadeira miragem, capaz de enganar mesmo um Santo da Igreja.
É preciso dizer, porém, que o “Cenáculo interior” não exclui o Cenáculo exterior; como a vida interior não exclui a vida apostólica nem a grandeza das obras. Não obstante, esta deve emanar daquela, enquanto é tão fácil se contentar com os resultados exteriores em detrimento da união com Deus ou do seu crescimento. Ao fim do retiro, o Padre Eymard escreveu: “Há bons servos apostólicos, alguns devotos adoradores de ofício, mas como há poucas esposas! E mesmo poucos amigos... que tratam pelo coração...”18 Se há poucas almas esposas e amigas de Nosso Senhor, então as grandes multidões ou o sucesso exterior das obras não passa de uma “casca” que esconde um vazio interior.
A título de exemplo, que se pense especialmente no terremoto de Lisboa de 1755. Na manhã do dia 1º de novembro, festa de Todos os Santos, entre 9h30 e 9h40, quando as igrejas da capital estavam cheias de fiéis, um violento terremoto, seguido de um maremoto e de múltiplos incêndios levaram à morte mais de dez mil pessoas. Mesmo sem se conhecer os detalhes históricos, é de se presumir a suntuosidade das igrejas, a qualidade das cerimônias, a ortodoxia dos pregadores, os bons costumes da sociedade - pelo menos superiores aos da sociedade atual -, a modéstia dos trajes e o alto índice de prática religiosa. Não obstante, somente Deus, que prescruta os corações, sabe quantos destes milhares se salvaram. Se foram poucos, então isso prova que é possível se perder apesar das aparências de “sociedade católica”. Mas se foram muitos - as pessoas se confessavam mais naquele tempo -, ainda que os inimigos da Igreja tenham visto neste terremoto o “fracasso da Religião”, a luz da Fé reconhece na tragédia o meio escolhido pela Providência para realizar algum bem sobrenatural considerável, mesmo à custa do bem natural dos cidadãos e da sociedade. Isso significa que o triunfo de Deus não implica necessariamente na salvação do patrimônio da cidade, da vida dos cidadãos, da sua cultura e bons costumes. O que as almas exteriores não compreendem é que Deus pode triunfar no terremoto, como Deus triunfou na cruz. Na verdade, enquanto as obras passam, o que permanecerá para a eternidade é o amor de Deus, o triunfo interior de Deus no coração dos Seus amigos, ainda que em meio a terremotos.
CONCLUSÃO
A partir da conversão de São Pedro Julião Eymard durante o retiro em Roma, o problema do “triunfo litúrgico” não alcançado após a publicação do Motu Proprio “Summorum Pontificum” se resolve facilmente. Com efeito, não se contesta neste artigo que a celebração do Rito Romano tradicional tenha atraído e santificado muitas almas desde então, porém numa proporção muito menor do que o esperado e tendo que sobreviver a inúmeras dificuldades e resistências. Enquanto isso, a sociedade continua bastante pagã e a ignorância da Tradição da Igreja ainda é vasta.
Ora, pretender que a celebração do Rito Romano tradicional converta a sociedade por causa do seu aparato exterior é esquecer-se de que a conversão é um ato sobrenatural e interior. Ao longo dos séculos este mesmo Rito Romano não impediu a proliferação de heresias, cismas e pecados, pois, se as cerimônias são santas e fonte de santificação, no entanto elas não tolhem o livre arbítrio de quem preferiu não se santificar por elas.
Ensina a Teologia que a eficácia dos Sacramentos não depende da Fé do sacerdote que administra ou do sujeito que os recebe: se administrados conforme as condições da Igreja, é pela virtude do próprio Cristo que eles produzem a graça. Não obstante, para que a recepção do Sacramento seja frutuosa isto depende das disposições do sujeito. Em síntese, enquanto Sacramento produz a graça ex opere operato; a quantidade de graça se mede ex opere operantis. E o que vale para a recepção dos Sacramentos também se aplica aos sacramentais, (ex opere operantis Ecclsiae) dentre os quais estão as cerimônias litúrgicas: a eficácia da sua santificação depende do fervor daqueles que delas participam. Como ensina Dom António Coelho19:
Neste Sacrifício [da Missa], os fiéis oferecem e oferecem-se pelo simples facto da sua incorporação e permanência no corpo místico de Jesus. É esta uma participação habitual implícita, em troca da qual os fiéis recebem os frutos que emanam de todas as Missas: ex opere operato — em virtude da dignidade do principal oferente e da principal vítima, Jesus Cristo, para todas as almas em geral; e ex opere operantis — em virtude da santidade da Igreja que ora por todos os fiéis, para todas as almas que vivem na comunhão da graça — fruto geral.
A cada Missa celebrada as graças são aplicadas a todo o Corpo Místico, uma vez que a Missa faz parte do culto público e oficial da Igreja e em virtude da comunhão dos Santos. Contudo, a intensidade da aplicação dependerá da santidade dos membros da Igreja: quanto mais íntima é a união das almas com Nosso Senhor, Cabeça da Igreja, maiores os frutos que serão produzidos no Corpo Místico pelo Sacrifício da Missa. Se, por um lado, o aparato exterior das cerimônias não pode produzir, por si só, a conversão das almas, por outro, ele serve para conduzir as almas à piedade e ao fervor. A partir deste princípio, o “triunfalismo” não passa de uma degeneração da Teologia dos Sacramentos. Afinal, a mais suntuosa das igrejas, a mais perfeita cerimônia, o mais belo dos corais, os mais ricos paramentos e a mais elegante das prédicas, em si mesmas, não santificam, se a estes meios exteriores não estiver unida a graça.
Consequentemente, as tribulações que a celebração do Rito Romano tradicional impõe aos sacerdotes e aos fiéis não são a prova de que mais vale abandoná-la ou preteri-la para procurar outros meios, aparentemente mais eficazes, mais rápidos ou mais urgentes. Se Nosso Senhor salvou o mundo pela cruz, e se a Missa é a renovação do Sacrifício da cruz, então não podemos superar a crise por outro meio que não seja a Missa. Nenhuma militância católica política poderá salvar o mundo se esta militância faz silêncio sobre a questão litúrgica, o que é um erro gravíssimo. Ademais, se a Providência não quer que a conversão do mundo seja súbita e fácil é porque os primeiros que devem se converter são aqueles que pretendem causar a conversão ao mundo. Assim, todas as dificuldades presentes no apostolado tradicional devem ser suportadas com paciência e humildade, a fim de se purificar o amor a Deus, como São Pedro Julião Eymard durante o retiro, preferindo a humilhação ao sucesso, ou melhor, preferindo a glória de Deus à própria glória. O sacerdote deve se crucificar com o Cristo, deve procurar se unir o tanto quanto possível ao Sacerdote e à Vítima do Santo Sacrifício, deve morrer aos seus próprios interesses, caso queira atrair as almas e santificá-las. Eis a verdade que o Santo tanto meditou em Roma: “Permanecei em mim e eu permanecerei em vós. O ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira. Assim também vós: não podeis tampouco dar fruto, se não permanecerdes em mim.” (Jo. XV, 4)
Caso contrário, se o sacerdote não se unir ao Cristo por uma profunda e verdadeira vida interior, o Rito Romano tradicional não passará, aos olhos dos observadores, de uma “moda”. E não estarão enganados, se a vida do sacerdote não for, de fato, morte para si.
[01] Homilia na ocasião do décimo ano do seu Pontificado, em 29 de julho de 1972.
[02] SAINT-PIERRE, SSS, Lauréat. « L'heure » du Cénacle dans la vie et les œuvres de Pierre-Julien Eymard. Lyon: Lescuyer, 1968 p. 255 (tradução nossa).
[03] GUITON, SSS, André. Le Père Eymard, Profète de 'Eucharistie. Disponível em: http://fr.ssseu.net/index.php?option=com_content&view=article&id=15&Itemid=36 (tradução nossa)
[04] [sem autor] Pierre-Julien Eymard (1811-1868). Disponível em: http://www.eymard.org/pje_fr.html.
[05] Idem.
[06] SAINT-PIERRE, SSS, Lauréat. op. cit., p. 256.
[07] Idem, p. 257.
[08] Idem, p. 258.
[09] Idem, pp. 268-269.
[10] SCUPOLI, Padre Lorenzo. O combate espiritual. Cléofas, p. 19.
[11] Idem, pp. 17-18.
[12] CHAUTARD, Dom João Batista. A alma de todo apostolado. São Paulo: Coleção, 1962, p. 60.
[13] “O essencial desta devoção consiste no interior que ela deve formar, e, por este motivo, não será compreendida igualmente por todo o mundo. Alguns hão de deter-se no que ela tem de exterior, e não passarão avante […].” (MONTFORT, São Luís Maria Grignon. Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. Petrópolis: Vozes, 39a ed., 2009, p. 118)
[14] “[...] como jamais, pupulam falsas devoções a Maria Santíssima, as quais passam facilmente por devoções verdadeiras.” (Idem, p. 95)
[15] SAINT-PIERRE, SSS, Lauréat. op. cit., p. 271.
[16] Idem, p. 272.
[17] Idem, p. 273.
[18] Idem, p. 303.
[19] COELHO, OSB, Dom António. Curso de Liturgia Romana. t. I, Braga: Livraria Litúrgica, 1941, p. 146.
São Paulo, 27 de maio de 2020
Para citar este texto:
"O TRIUNFO DA MISSA É PRIMEIRAMENTE INTERIOR: O CASO DE SÃO PEDRO JULIÃO EYMARD"
MONTFORT Associação Cultural
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Online, 21/12/2024 às 14:05:02h