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De Rationibus Fidei
Santo Tomás de Aquino
Pe. Elílio Júnior
DE RATIONIBUS FIDEI
Capítulo I
O plano do autor:
O bem-aventurado apóstolo Pedro recebeu do Senhor a promessa de que, sobre sua confissão, seria fundada a Igreja, contra a qual as portas do inferno não podem prevalecer. Para que a fé da Igreja a ele entregue permanecesse inviolada contra as portas do inferno, diz aos fiéis de Cristo: venerai o Senhor Jesus em vossos corações, isto é, pela firmeza da fé, por cujo fundamento, colocado no coração, poderemos permanecer seguros contra todas as impugnações ou irrisões dos infiéis. Donde também diz em seguida: estai sempre preparados a dar satisfação a todo aquele que vos pede a razão das coisas da vossa esperança e fé.
Ora, a fé cristã consiste principalmente na confissão da Santíssima Trindade, e especialmente em que se glorie da cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Pois a sabedoria da cruz, como Paulo diz, embora seja estultícia para os que se perdem, para os que se salvam, isto é, para nós, é força de Deus.
Também a nossa esperança em duas coisas consiste: evidentemente naquilo que se espera depois da morte, e no auxílio de Deus, pelo qual somos ajudados nesta vida para alcançar, através das obras do livre arbítrio, a futura bem-aventurança prometida.
Estas, portanto, são as coisas, como afirmas, que são impugnadas e escarnecidas pelos infiéis. Zombam, pois, os sarracenos de que, como dizes, sustentamos que Cristo é Filho de Deus, sendo que Deus não tem esposa; e julgam-nos insanos porque confessamos haver três pessoas em Deus, estimando, por isso, que professamos três deuses. Zombam ainda por que dizemos que Cristo, Filho de Deus, foi crucificado pela salvação do gênero humano: porque se Deus é onipotente, teria podido salvar o gênero humano sem a paixão de seu Filho, teria podido também constituir de tal modo o homem que não pudesse pecar. Censuram também os cristãos porque cotidianamente manducam seu Deus e porque o Corpo de Cristo, mesmo se fosse tão grande como um monte, deveria já estar consumido. Em relação ao estado das almas depois da morte, afirmas que os gregos e os armênios erram, dizendo que as almas até o dia do juízo nem são punidas nem premiadas, mas estão como que em um depósito, porque nem pena nem prêmio devem ter sem o corpo. E, em conformidade com a afirmação de seu erro, alegam que o Senhor no Evangelho diz: Na casa de meu Pai há muitas moradas. Acerca do mérito que depende do livre-arbítrio, afirmas que tanto os sarracenos quanto outros povos atribuem necessidade aos atos humanos em virtude da presciência ou ordenação divina, dizendo que o homem não pode morrer nem pecar a não ser que Deus assim tenha ordenado a respeito do homem, e que qualquer pessoa tem seu destino escrito na fronte.
Sobre isso, pedes razões morais ou filosóficas que os sarracenos aceitam. Em vão, pois, seria contrapor autoridades aos que não aceitam autoridades. Querendo satisfazer, então, tua petição, que parece proceder de um pio desejo, e para que estejas, de acordo com a doutrina apostólica, preparado a dar satisfação a todo aquele que te pede razões, expor-te-ei algumas coisas fáceis, conforme a matéria exige, sobre premissas de que, todavia, tratei mais amplamente alhures.
Capítulo II
Como se deve disputar com os infiéis:
Quero advertir-te primeiramente de que, nas disputas sobre os artigos de fé contra os infiéis, não te deves esforçar para provar a fé por meio de razões necessárias. Isso derrogaria a sublimidade da fé, cuja verdade não só excede as mentes humanas como também as dos anjos; a verdade da fé é crida por nós como revelada por Deus. Ademais, uma vez que aquilo que procede da Suma Verdade não pode ser falso, algo que não é falso não pode ser impugnado por alguma razão necessária; assim como a nossa fé não pode ser provada por razões necessárias, já que excede a mente humana, de igual modo, por causa de sua verdade, não pode ser refutada por razão necessária. A isto, portanto, deve tender a intenção do disputador cristão: não prove ele a fé, mas a defenda; donde o bem-aventurado Pedro não diz: estai preparados para provar, mas para dar satisfação, de modo que se mostre racionalmente não ser falso o que a fé católica confessa.
Capítulo III
Como a geração em Deus deve ser entendida:
Primeiramente, deve-se considerar que o motivo por que zombam de nós, segundo o qual colocamos Cristo como Filho de Deus como se Deus tivesse esposa, é irrisório. Sendo, pois, carnais, não podem pensar senão nas coisas que são da carne e do sangue. Ora, qualquer sábio pode considerar que não há um só e mesmo modo de geração em todas as coisas, mas que em cada coisa encontra-se a geração segundo a propriedade de sua natureza. Em certos animais, por exemplo, através do acasalamento do macho e da fêmea; nas plantas, pelo crescimento ou germinação, e em outras coisas de outro modo.
Deus, porém, não é de natureza carnal para que exija uma fêmea com quem se unir para a geração da prole, mas é de natureza espiritual ou intelectual, natureza intelectual esta que está acima de todo intelecto.
Deve-se, portanto, entender a geração n’Ele segundo o que convém à natureza intelectual. E por mais que nosso intelecto seja inferior ao Intelecto divino, não podemos todavia falar de outro modo do Intelecto divino senão segundo a semelhança das coisas que encontramos em nosso intelecto. Nosso intelecto, na verdade, ora está em potência, ora em ato. Quando intelige em ato, forma determinado inteligível, que é como que a sua prole, donde é também denominado conceito (concebido - conceptus) da mente. E o conceito, na verdade, é aquilo que é significado pela voz exterior: donde, assim como a voz significante é dita verbo exterior, de igual modo o conceito interior da mente, significado pelo verbo exterior, é dito verbo do intelecto ou da mente. Este conceito de nossa mente, porém, não é a própria essência de nossa mente, mas é certo acidente dela, visto que o nosso inteligir não é o próprio ser de nosso intelecto; de outro modo, o nosso intelecto seria o que inteligisse em ato. O verbo de nosso intelecto, portanto, pode ser dito, segundo certa semelhança, ou conceito ou filho, principalmente quando nosso intelecto intelige a si mesmo, quando, evidentemente, o verbo é certa semelhança do intelecto, a qual procede de sua virtude intelectual, assim como o filho tem a semelhança do pai, procedendo de sua virtude generativa. Todavia, o verbo de nosso intelecto não pode ser dito propriamente filho ou prole, visto que não é da mesma natureza de nosso intelecto. Nem tudo que procede de algo, embora lhe seja semelhante, é dito filho; de outro modo, a imagem de si, que alguém pinta, seria propriamente dita filha. Mas, para que algo seja filho, requer-se que não somente tenha a semelhança daquele de que procede, mas também seja da mesma natureza dele. Visto que em Deus o inteligir não é outra coisa que o seu ser, consequentemente o Verbo que é concebido em seu Intelecto não é algum acidente ou um outro distinto de sua natureza; todavia, tem a relação de procedente de outro referente Àquele a partir de quem existe: isso se dá em nosso verbo.
Mas aquele Verbo divino, além de não ser algum acidente nem alguma parte de Deus, que é simples, nem um outro distinto da divina natureza, é subsistente completo na natureza divina, relacionando-se com outro como dele procedente. Sem isso, pois, o Verbo não pode ser entendido. O que procede assim, segundo o costume da linguagem humana, é denominado filho, porque, procedendo de outro, é-lhe semelhante, subsistindo na mesma natureza com ele. Na medida em que as coisas divinas podem ser denominadas com palavras humanas, denominamos Filho o Verbo do Intelecto divino; Deus, de quem é o Verbo, chamamos de Pai; e a processão do Verbo dizemos que é a geração do Filho imaterial, não carnal como os homens carnais supõem.
Há, porém, ainda outra coisa por que a predita geração do Filho de Deus ultrapassa toda geração humana, seja material, segundo a qual o homem nasce do homem, seja inteligível, segundo a qual um verbo é concebido na mente humana. Em ambos os casos, aquilo que procede por geração encontra-se depois no tempo daquele do qual procedeu. O pai, na verdade, não gera imediatamente desde o princípio de sua existência, mas é preciso que vá do estado imperfeito ao perfeito, no qual pode gerar. Nem, em segundo lugar, o ato de geração se dá de uma só vez; o filho nasce de tal modo que a geração carnal consiste em certa mutação e sucessão. Também, segundo o intelecto, o homem não está apto logo desde o princípio para formar os conceitos inteligíveis, vindo ao estado de perfeição posteriormente. Nem sempre intelige em ato, mas antes está somente em potência e só depois se faz inteligente em ato, e de quando em quando deixa de inteligir em ato, permanecendo o intelecto em potência ou em hábito apenas. Assim, o verbo do homem se encontra depois do homem no tempo e cessa de existir antes do homem. Mas isso é impossível convir a Deus, no qual nem imperfeição nem mutação alguma tem lugar, nem ainda qualquer passagem da potência ao ato, uma vez que Ele é o ato puro e primeiro. O Verbo de Deus é, portanto, coeterno ao próprio Deus.
Há ainda outra coisa pela qual nosso verbo difere do Verbo divino. O nosso intelecto não intelige todas as coisas simultaneamente nem em um único ato, mas por muitos, e por isso são muitos os verbos de nosso intelecto; Deus, porém, intelige todas as coisas simultaneamente e em um único ato, porque seu inteligir não pode ser senão um só, uma vez que é o seu ser: donde se segue que em Deus há somente um só Verbo.
Ademais, outras diferenças devem ser consideradas: o verbo de nosso intelecto não é proporcional à capacidade do intelecto, porque, quando concebemos algo na mente, muitas outras coisas ainda podemos conceber; segue-se que o verbo de nosso intelecto é também imperfeito, podendo nele haver composição, como quando de muitos verbos se faz um verbo mais perfeito, como no caso em que o intelecto concebe uma enunciação ou uma definição de alguma coisa. Mas o Verbo divino é proporcional à virtude de Deus, já que Deus, por sua essência, intelige-se a si mesmo e todas as outras coisas, donde seguir-se que o Verbo que concebe por sua essência, inteligindo a si mesmo e todas as coisas, seja tão imenso quanto a sua própria essência. É perfeito, simples e igual a Deus: tal Verbo denomina-se, pela sobredita razão, Filho de Deus, que confessamos ser da mesma natureza do Pai, coeterno a ele, unigênito e perfeito.
Como se deve entender a processão do Espírito Santo a partir do Pai e do Filho:
Deve-se considerar, ademais, que a todo conhecimento segue-se alguma operação apetitiva. De todas as operações apetitivas, o amor é o princípio. Se o amor for subtraído, não haverá gozo nem tristeza, e, consequentemente, serão também subtraídas todas as outras operações apetitivas, que, de certo modo, referem-se ao gozo e à tristeza. Existindo, pois, em Deus perfeitíssimo conhecimento, importa que nele haja também perfeito Amor, cuja processão se exprime por operação apetitiva, ao passo que a do Verbo, por operação do intelecto.
Deve-se, contudo, considerar certas diferenças entre a operação intelectual e a apetitiva, pois a operação intelectual, e absolutamente toda operação cognitiva, completa-se pelo fato de o cognoscível existir de certo modo no cognoscente, a saber, o sensível nos sentidos e o inteligível no intelecto. Já a operação apetitiva completa-se segundo certa ordem ou movimento do apetente ao objeto do apetite. Aquilo cujo princípio do próprio movimento é oculto recebe o nome de espírito, assim como o vento é dito espírito, uma vez que o sopro não aparece. Também a respiração e o movimento das artérias, procedendo de um princípio intrínseco oculto, recebem o nome de espírito. Daí que, convenientemente, na medida em que as coisas divinas podem ser significadas por palavras humanas, o Amor divino procedente recebe o nome de Espírito.
Entretanto, em nós o amor procede de dupla causa: ora da natureza corporal e material, o qual muitas vezes é amor imundo, já que por ele a pureza de nossa mente é contaminada; ora da propriedade natural do espírito, como quando amamos as boas coisas inteligíveis, que convêm à razão: tal amor é puro. Já em Deus não há lugar para o amor material. Convenientemente, portanto, denominamos o seu Amor não só Espírito, mas Espírito Santo, sendo que santo denota a sua pureza. É manifesto, contudo, que nada podemos amar com amor inteligível e santo a não ser aquilo que conhecemos em ato pelo intelecto. A concepção do intelecto é o verbo, donde ser necessário que o amor tenha origem do verbo. O Verbo de Deus dizemos ser o Filho, por onde fica claro que o Espírito Santo existe a partir do Filho.
Como, no entanto, o divino inteligir é o seu próprio ser, assim também o amor de Deus é o seu ser; e como Deus sempre intelige em ato, e, inteligindo-se a si mesmo, todas as coisas intelige, assim também sempre ama em ato e ama todas as coisas amando a sua própria bondade. E como o Filho de Deus, que é o seu Verbo, é subsistente na divina natureza, coeterno ao Pai, perfeito e único, assim também é preciso que todas essas coisas sejam afirmadas do Espírito Santo.
Dito isso, podemos considerar que, uma vez que tudo o que subsiste em natureza inteligente é dito pessoa (de acordo com os latinos) e hypóstase (de acordo com os gregos), é necessário dizer que o Verbo de Deus, que denominamos Filho de Deus, é hypóstase ou pessoa; e o mesmo é preciso dizer a respeito do Espírito Santo. A ninguém é duvidoso que Deus, de quem o Verbo e o Amor procedem, seja também subsistente, de modo que possa ser dito hypóstase ou pessoa. Assim, convenientemente, dizemos haver em Deus três pessoas, a saber, a pessoa do Pai, a pessoa do Filho e a pessoa do Espírito Santo. Não dizemos que essas três pessoas são diversas em essência, já que, como foi dito acima, assim como o inteligir e o amar de Deus são o seu próprio ser, assim também o seu Verbo e o seu Amor são a sua própria essência.
Tudo o que se diz absolutamente de Deus outra coisa não é que sua própria essência. Deus não é ou grande ou poderoso ou bom acidentalmente, mas essencialmente; donde não dizemos que as três pessoas ou hypóstases são distintas em Deus por algo absoluto, mas tão somente pelas relações que provêm da processão do Verbo e do Amor. E porque chamamos a processão do Verbo de geração, da geração provêm as relações de paternidade e filiação; a pessoa do Filho distingue-se da pessoa do Pai somente pela paternidade e filiação: todas as outras coisas são predicadas comum e indiferentemente de ambos. Assim como afirmamos que o Pai é verdadeiro Deus, onipotente, eterno e outras coisas semelhantes, assim também é o Filho, e o mesmo deve-se afirmar a respeito do Espírito Santo. Já que o Pai e o Filho e o Espírito Santo não se distinguem na natureza da divindade a não ser tão somente pelas relações, convenientemente não afirmamos que as três pessoas são três deuses, mas professamos existir um só verdadeiro e perfeito Deus.
Nos homens, porém, três pessoas são ditas três homens, não um só homem, porque a natureza da humanidade, que é comum aos três, diferentemente lhes convém segundo a divisão material, que em Deus absolutamente não existe. Segue-se daí que existindo em três homens três humanidades diferentes em número, só uma essência da humanidade se encontra neles. Entretanto, nas três pessoas divinas não existem três divindades diferentes em número, mas é necessário que haja uma única e simples divindade, já que a essência do Verbo e do Amor não é outra que a essência de Deus; e, assim, confessamos, não três deuses, mas um único Deus, por causa da única e simples divindade em três pessoas.
[ Este artigo ainda terá novas atualizações pois está sendo traduzido por partes pelo Pe Elilio em seu blog: padreelilio.blogspot.com ]
Para citar este texto:
"De Rationibus Fidei"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/documentos/citacoes/de-rationibus-fidei/
Online, 21/11/2024 às 08:35:55h