Religião-Filosofia-História
Jean Guitton e o Modernismo no Concílio Vaticano II: Resposta ao parecer de Brescia
Orlando Fedeli
(Versão em português do original italiano - “Risposta al Parere del’Istituto Paolo VI di Brescia” – Itália)
Problema proposto:
Jean Guitton confessa: o Concílio Vaticano II proclamou o que foi condenado como heresia [Modernista] por São Pio X, em 1906:
'Quando leio os documentos concernentes ao Modernismo, tal como ele foi definido por São Pio X, e quando os comparo com os documentos do Concílio Vaticano II, não posso deixar de ficar desconcertado. Porque, o que foi condenado como uma heresia em 1906, foi proclamado como sendo e devendo ser doravante a doutrina e o método da Igreja. Dito de outro modo, os modernistas em 1906 me aparecem como precursores. Meus mestres faziam parte deles [os modernistas]. Meus pais me ensinavam o Modernismo. Como São Pio X pode repelir os que agora me aparecem como precursores?' (Jean Guitton, Portrait du Père Lagrange, Éditions Robert Laffont, Paris, 1992, p.55-56).
I - Introdução
II - Modernidade e Modernismo
III - O nome Modernismo foi inventado pela Pascendi?
IV - Quem foi condenado por Modernismo?
V - Um pequeno desvio de rumo: o caso Lagrange
VI - Problemas preliminares referentes ao Vaticano II
VII - A Religião do Homem no Modernismo e no Vaticano II
VIII - Conceito de Revelação Renovado ou Novo?
IX - A Revelação Segundo a Doutrina Católica
X - A Revelação segundo o Modernismo
XI - A Nova Teologia
XII - O problema da Kenosis
XIII - A Kenosis em Hegel, em Bulgakov e em von Balthasar
XIV - A Revelação conforme o Vaticano II
XV - Conclusões
Ilmo. Sr. Dr. Renato Papetti,
Instituto Paulo VI de Brescia.
Laudetur Jesus Christus.
'O voi ch'avete l'intelletti sani,
mirate la dottrina che s'asconde
sotto il velame delli testi strani'
(Dante, Inferno, IX, 61-63).
['Ó vós que tendes inteligência sadia,
olhai a doutrina que se esconde
sob o véu dos textos estranhos']
Antes de tudo agradeço a tão gentil atenção que o Sr. deu à pergunta que lhe foi enviada por meu irmão, Marcelo Fedeli, e lhe peço desculpas por meus erros de ortografia e de gramática, porque aprendi o italiano apenas em casa.
Quero ainda agradecer ao Instituto Paulo VI de Brescia pelo trabalho que se deu de responder e 'adequadamente aprofundar a delicada questão' submetida, encarregando um teólogo para elaborar um douto parecer, tratando da afirmação de Jean Guitton sobre o caráter modernista do Concílio Vaticano II.
De todos os modos, a gratidão por sua gentileza e pelo trabalho do Instituto Paulo VI não pode impedir-me de dizer-lhe, com respeitosa sinceridade cristã, que a sua resposta, isto é, o parecer teológico assumido pelo Instituto Paulo VI — que tanto me agradou por sua gentil atenção — realmente não me satisfez intelectualmente.
Meu irmão tinha submetido ao seu juízo, assim como ao de outros, a frase de Jean Guitton, que afirma — com todas as letras — que 'o que foi condenado como uma heresia em 1906, foi proclamado como sendo e devendo ser doravante a doutrina e o método da Igreja'. Portanto, que a doutrina condenada do Modernismo foi retomada e defendida pelo Concílio Vaticano II.
Guitton, amigo queridíssimo e da confiança de Paulo VI, e convidado por esse Papa a participar do Concílio, tinha autoridade para confessar aquilo que se compreende muito bem, mas que muitos querem colocar 'sob o véu': a doutrina que o Papa São Pio X tinha condenado no Modernismo foi proposta, por vezes de modo um tanto brumoso e ambigüamente, como doutrina católica, nos documentos do Vaticano II.
O Sr. me responde, através do parecer teológico que me enviou: 'Há patente ignorância e má fé em quem vê conivência entre a doutrina do Vaticano II, acerca da Revelação, e a tese que se torna o fundamento do Modernismo, que é a teoria histórico-crítica' (o sublinhado é meu).
Desculpe-me, mas Guitton não restringiu sua afirmação à 'Revelação'. Ele disse, genericamente, que o Vaticano II 'proclamou' a doutrina do Modernismo. Mas não fez referência à Revelação conforme o Modernismo e conforme o Vaticano II. O Instituto Paulo VI restringiu, por sua conta, a questão submetida.
Entretanto, o próprio parecer teológico que nos foi enviado nos diz que a própria 'constituição pastoral Gaudium et Spes de estilo eminentemente evangélico (...) foi acusada frequentemente de ser modernista'.
E quem, além de Guitton, acusou a Gaudium et Spes de Modernismo?
E houve, portanto, outros que viram o Modernismo triunfante nas doutrinas e nos documentos do Vaticano II?
É a Guitton que se atribui 'patente ignorância e má fé'?
Ou a quem?
A indefinição da acusação não favorece o famoso 'diálogo'.
Se o autor do sábio parecer teológico julgasse que Guitton foi movido por 'patente ignorância e má fé', devia dizê-lo claramente. E como dizer que Guitton ignorava o Vaticano II, do qual ele participou profundamente? E como se explicaria a confiança e amizade do Papa Paulo VI por ele durante toda a vida, se Guitton tinha 'patente má fé'?
E depois: a frase de Guitton foi publicada na biografia que ele escreveu do Padre Lagrange, a pedido e encomenda do Papa João Paulo II. Mas não consta que João Paulo II tenha negado, ou ao menos criticado, a terrível declaração de Guitton sobre o Vaticano II, existente nesse livro...
Peço-lhe que me desculpe muito, mas há alguma coisa que não vai bem na atribuição indireta de 'patente ignorância e má fé' a Guitton. Se a ele é quem se visa com esse juízo.
E não é correto dar uma resposta sobre a opinião expressa por Jean Guitton, sem sequer nomeá-lo uma vez que seja, no parecer que o Instituto Paulo VI nos enviou, e sem citar, uma vez que fosse, a sua terrível afirmação: 'Porque o que foi condenado como uma heresia em 1906, foi proclamado como sendo e devendo ser doravante a doutrina e o método da Igreja'
Se uma pessoa não conhecesse a frase de Guitton, que causou a pergunta de meu irmão, lendo apenas o sábio parecer teológico do Instituto Paulo VI de Brescia, essa pessoa não saberia do que ou de quem se tratava. O autor — muito habilmente — procurou responder a pergunta sobre a afirmação de Guitton sem dizer o nome dele uma vez que fosse, e sem nem mesmo analisar o que ele disse sobre o Concílio, isto é, que o Vaticano II ensinou as teses Modernistas condenadas por São Pio X na Pascendi.
Por que o silêncio completo, absoluto, sobre a frase de Guitton?
Depois dessas primeiras considerações, permita-me analisar um pouco mais a fundo o parecer teológico que o Instituto Paulo VI nos enviou como seu.
Fá-lo-ei, seguindo o seu esquema, em duas partes:
I - Analisarei as suas afirmações iniciais e gerais;
II - Criticarei, se o Sr. me permitir a audácia, as notas teológicas que o Sr. aponta para afirmar que o Vaticano II não ensinou as teses do Modernismo.
É verdade que eu não sou teólogo, mas se o Sr. me permitir raciocinar um pouco — como um leigo e não como um expert na matéria — dir-lhe-ei porque não fiquei satisfeito com seus comentários.
O sábio parecer do Instituto Paulo VI parte de uma distinção entre o conceito de Modernidade e a teoria do Modernismo, (como 'teoria filosófica e teológico-bíblica'). E discorre como se o conceito de Modernidade não tivesse sido condenado tanto quanto o Modernismo.
Todavia, o conceito de Modernidade, ele mesmo foi condenado por Pio IX no Syllabus, documento doutrinário tão odiado pelos modernistas.
Ensinou Pio IX no Syllabus que é um erro afirmar:
'O Romano Pontífice pode e deve reconciliar-se e transigir com o progresso, com o liberalismo e com a civilização moderna' (800 erro condenado nos Syllabus, Denzinger, 1780).
Que significa Modernidade?
A Modernidade é a 'civilização' nascida dos princípios do Humanismo e da Reforma. A Modernidade é que produziu esse mundo no qual vivemos agora, se se pode dizer que hoje se viva. Porque o agonizar ainda é viver, mas é um modo de viver... 'terminal'. E só não é efetivamente terminal, porque Deus prometeu que as portas do inferno 'non praevalebunt' — não prevalecerão.
A Modernidade é contrária e inimiga da fé católica e foi isto que nos ensinou Pio IX nos Syllabus.
Porém, 'conforme o sociólogo Joan Estruch y Gilbert, Diretor do Centro de Investigações em Sociologia da Religião, da Universidade Autônoma de Barcelona, 'por meio do Concílio Vaticano II, a Igreja Católica se incorporou à Modernidade e fez as pazes com ela'' (Apud. Paulo Daniel Farah, Igreja Cogita convocar Concílio Vaticano III, artigo na Folha de São Paulo, 25 de dezembro de 2002, p. A-9).
Verdadeiramente, é possível fazer uma distinção entre Modernidade e Modernismo, que, certamente, não são a mesma coisa. Mas o Modernismo tem afinidade com a Modernidade, não somente na raiz da palavra, mas também, e muito mais, no princípio do 'progresso' contínuo, e da evolução.
A idéia de progresso contínuo é inerente à Modernidade. E o Modernismo aceitou esse princípio, ao defender o progresso contínuo do pensamento, idéia que causou a doutrina da evolução do dogma, condenada na Encíclica Pascendi de São Pio X.
Conforme o próprio Tyrrel, ele também condenado por São Pio X — e que pena que se esqueceu de Tyrrel na tão pequena lista de modernistas citada em seu parecer — segundo o modernista Tyrrel: 'Modernista' oposto a 'Moderno' subentende que se insiste sobre a Modernidade como princípio. Isto significa o reconhecimento, por parte da religião dos direitos do pensamento moderno, a necessidade de fazer uma síntese, não entre aquilo que é antigo e aquilo que é novo, sem distinção, mas entre aquilo que, depois de ter passado no crivo da crítica, foi reconhecido como bom, tanto naquilo que é antigo, como naquilo que é novo'. (G. Tyrrel, Mediaevalism, p. 143, Apud. J. Rivière, Le Modernisme dans l'Église, Librairie Letouzey et Ané, Paris, 1929, p. 6 - O negrito e o sublinhado são meus).
E veja o Sr. que a preocupação de respeitar 'Os direitos do pensamento Moderno' foi assumida pelo Vaticano II. O que é um argumento favorável à sentença de Guitton sobre o Modernismo do Vaticano II.
A distinção que se faz entre Modernidade e Modernismo foi feita já no tempo da polêmica sobre o Modernismo, na primeira década do século XX.
Monsenhor Baudrillart, então Reitor do Instituto Católico de Paris, fez um discurso, em 4 de novembro de 1907, tratando exatamente desse ponto: pode-se dizer que o Modernismo é algo que nada tem a ver com a Modernidade?
Declarou, naquele tempo, o futuro Cardeal Baudrillart:
'Modernismo vem de moderno. Haveria, portanto, alguma coisa entre o espírito moderno e o espírito cristão, entre o homem moderno e o homem cristão, alguma coisa que fosse radicalmente incompatível, alguma coisa que a Igreja, para manter-se fiel à sua missão, deveria necessariamente condenar?' (Monsenhor Baudrillart, Discurso na Missa do Espírito Santo, 4 de novembro de 1907, Apud. Pierre Collin, L'Audace et le Soupçon - La Crise du Modernisme dans le Catolicisme Français, Desclée de Brouwer, Paris, 1997, p. 45).
A resposta do parecer teológico, Ilmo. Dr. Papetti, é que entre Modernidade e Modernismo não há nada em comum.
A resposta do Cardeal Baudrillart é que há, que existe alguma coisa em comum, e o ponto comum é incompatível com a doutrina católica.
Veja o Sr. aquilo que disse Monsenhor Baudrillart:
'No fundo, o homem moderno é o homem antigo, o homem anterior ao cristianismo, que pretende não depender senão da natureza e da razão'. 'Pois bem, no mesmo momento em que o Renascimento proclamava esta soberania dos direitos da natureza e da razão, o Protestantismo, de seu lado, estabelecia o princípio da livre interpretação das Sagradas Escrituras, e o substituía, em matéria de doutrina, ao dogma da autoridade da Igreja' (idem, apud op. cit. p. 46).
E comentando essas palavras, assevera Pierre Collin:
'O espírito protestante contribui assim para a formação do espírito moderno, caracterizado pelo individualismo, pelo subjetivismo religioso. Todas aquelas tendências, no fim do século XVIII encontram uma expressão particularmente forte em Kant, que merece ser chamado 'o filósofo do Protestantismo e o pai do espírito moderno'. A oposição é geral e completa entre o espírito moderno, assim definido, e o espírito cristão' (Pierre Collin, op. cit. p. 46. O negrito é meu).
E diz ainda Monsenhor Baudrillart:
'O Protestantismo é o homem que não reconhece outra autoridade religiosa sobre ou fora dele mesmo, que retira da sua própria consciência a verdade religiosa da qual ele vive: o homem moderno é aquele que entende não depender senão de si mesmo, dito de outro modo, aquele que é Deus por si mesmo. De um lado e do outro, Vós o vedes, chega-se à doutrina da autonomia e da glorificação pessoal do homem. Este é o espírito moderno, tal qual ele,hoje, nos aparece constituído, e ele é radicalmente contrário ao espírito cristão' (Monsenhor Baudrillart, discurso citado, apud. Pierre Collin, op. cit., p. 46. O negrito é meu).
Portanto, a Modernidade nasceu do Humanismo e do Protestantismo, que criaram o mundo moderno, antropocêntrico e oposto à cosmovisão teocêntrica cristã. No mundo Moderno, o homem se reconhece como Deus. A Revelação seria algo que nasceria no interior do homem. Exatamente como a definiu o Modernismo, que é filho do Protestantismo e de Kant.
Veremos, depois, Ilmo. Dr., como a Revelação é concebida pelo Vaticano II, e conforme o parecer do Instituto Paulo VI.
Citei o Syllabus e a Pascendi...
Receio que os nomes desses documentos papais lhe causem arrepios... e lhe levem a dar um empurrão desprezador a esta minha carta com o comentário definitivo: 'É um integrista...'.
Desculpe-me, se pensei e escrevi este receio que o Sr. poderia repelir meu texto como... 'integrista'. Mas hoje é tão comum, por causa da Modernidade e do Modernismo, que se considerem esses documentos como ultrapassados... Hoje, tantos teólogos têm arrepios ao ler os nomes dos documentos papais de outros tempos... querem novidades... existenciais e personalísticas. Acreditam na Evolução, e tudo aquilo que vem do passado, isto é, de antes do Vaticano II, não deveria mais ser considerado como válido. O passado deveria ser 'aggiornatto'.
Entretanto, o Vaticano II já não é mais um bebezinho: ele já fez 40 anos.
Talvez por isso haja supermodernistas que querem atualizá-lo num futuro Vaticano III (Libera nos Domine!).
No Brasil, ainda ontem, 9-2-2003, se noticiava num grande jornal, que 34 bispos e cerca de 2000 sacerdotes liderados pelo Cardeal Paulo Evaristo Arns, pediram ao Papa a convocação do Vaticano III, que um abade beneditino sugere que seja feito... na África (sic!).
Porque, os defensores apaixonados do Vaticano II recusam praticamente todos os antigos documentos da Igreja como sendo ultrapassados, como sendo sem valor. Como se a verdade fosse mutável. Como se a verdade tivesse a necessidade de ser 'aggiornatta'.
E também este é um princípio nitidamente Modernista que o Vaticano II assumiu para agradar à Modernidade e aos seus famosos 'homens de boa vontade'...
Portanto, a distinção entre Modernidade e Modernismo absolutamente não me satisfez. Antes pelo contrário.
E lhe pergunto, se me permite: que tem a ver essa distinção com a frase de Jean Guitton?
Não tem nada a ver com ela.
O douto parecer de seu Instituto foi bem escrito, mas permita-me dizer-lhe que ele não responde com provas sérias ao problema que foi colocado com a terrível frase de Jean Guitton: o Vaticano II defendeu e ensinou — sim ou não — as idéias da heresia Modernista condenadas por São Pio X na Pascendi?
Qualifiquei de terrível a frase de Guitton porque essa afirmação dele é uma confissão que causa espanto e medo, que põe a descoberto aquilo que os Modernistas não querem que se saiba.
Tendo a atenção despertada pela afirmação de Guitton, quem tem o intelecto sadio vê bem a doutrina que se esconde sob o véu dos textos e dos termos estranhos... do Vaticano II.
E isto não foi respondido de modo nenhum, pelo parecer do Instituto Paulo VI.
III - O nome Modernismo foi inventado pela Pascendi?
No documento que nos enviou o Instituto Paulo VI, se diz que o termo Modernismo foi cunhado pelo documento de São Pio X, a Pascendi.
E também isso não é verdade.
Antes de tudo, é necessário repudiar a afirmação que o termo Modernista foi inventado pela Pascendi, pois que isto contraria o texto do documento papal que diz ipsis litteris:
'Como é tática muito astuciosa dos Modernistas (com esse nome, e com razão, vulgarmente eles são chamados... São Pio X, Pascendi, n. 4, cfr. Denzinger, 2071).
O termo Modernista foi usado, antes que todos, por Lutero. É aquilo que nos informa Rivière (cfr. J. Rivière, op. cit., p. 14, nota 1).
O próprio Rivière informa que também Rousseau usava o termo Modernista como sinônimo de materialista (cfr. Rivière, op. cit., p. 15). E Rivière nos diz ainda que, segundo o dicionário Littré, Modernista 'É aquele que considera os tempos modernos superiores à antigüidade' (J. Rivière, op. cit., p. 16).
Que bela e clara definição, e como ela coloca bem em luz a mentalidade de certos teólogos do Vaticano II e daqueles que o seguem como se ele fosse o 'Super Concílio'!
A Enciclopédia Católica diz sobre esse problema:
'O publicista católico Périn (1815-1905), professor da Universidade de Louvain, 1844-1889, (...) ao mesmo tempo em que se desculpa pela cunhagem do termo, descreve as 'tendências humanitárias da sociedade contemporânea como modernismo. Este termo é por ele definido como 'ambição de eliminar Deus de toda vida social'. A este Modernismo absoluto, ele associa uma forma mais moderada, que ele declara ser nada menos que o 'liberalismo de todos os níveis e tonalidades' (Le Modernisme dans l'Église d'après les Lettres Inédites de Lamennais, Paris, 1881). (A. Vermeersch, Modernisme, De Catholic Encyclopedia, 1911, (http://www.newadvent.org/cathen/10415a.htm).
E diz ainda essa Enciclopédia:
'Nos primeiros anos do século XX, especialmente por volta dos anos 1905-1906, a tendência para inovação, que perturbou as dioceses italianas, e principalmente as fileiras do jovem clero, foram tachadas como Modernismo. Assim, no Natal de 1905, os Bispos das dioceses de Turim e de Vercelli, numa carta circular com aquela data, fizeram graves advertências contra aquilo que chamavam de 'Modernismo no Clero”.
'Muitas cartas pastorais do ano de 1906 empregaram o mesmo termo, entre outras podemos mencionar o ataque que o Cardeal Nava, Arcebispo de Catânia, dirigiu ao seu clero na quaresma; uma carta do Cardeal Bacilieri, Bispo de Verona, datada de 22 de julho de 1906, e uma carta de Monsenhor Rossi, Arcebispo de Acerenza e Matera. 'Modernismo e Modernisti', uma obra do Abade Cavallanti que foi publicada pelo fim de 1906, cita longamente essas cartas. O nome 'Modernismo' não era agradável aos reformadores. A propriedade do novo termo foi discutida mesmo entre os bons católicos. Quando o decreto 'Lamentabili' apareceu, Monsenhor Baudrillart expressou o seu prazer pelo fato de que não achou a palavra 'Modernismo' mencionada no Decreto. (Revue Pratique d'Apologetique, IV, p. 578). Baudrillart considerava o termo 'vago demais'. De outro lado, o termo lhe parecia insinuar que 'a Igreja condenasse tudo o que era moderno'. A Encíclica 'Pascendi' (8 de setembro de 1907) pôs fim à discussão. Levava o título oficial: 'De Modernistarum Doctrinis'. A introdução declarava que o nome dado comumente aos propagadores dos novos erros não era inadequado. Depois disso, os próprios modernistas concordaram com o uso do nome, ainda que não tivessem admitido sua propriedade. (Loisy, Simples Réflections sur le Decret 'Lamentabili' et sur l'Encyclique Pascendi, de 08 de setembro de 1907, p. 14; 'O programa dos Modernistas': nota no início)'. (A. Vermeersch, Modernisme, De Catholic Encyclopedia, 1911, (http://www.newadvent.org/cathen/10415a.htm).
Portanto, o termo Modernista não foi inventado pelo documento de São Pio X. E, ainda que o tivesse sido, que bem achado seria esse termo!
Os Modernistas de ontem e de hoje defendem a tese de origem moderna - Hegel a expressou claramente - de que 'o presente, a atualidade deve ser sempre melhor; portanto, o mundo moderno é absolutamente melhor do que a Idade Média' (cfr. Sthal, apud Domenico Lossurdo, Hegel, Marx e a Tradição Liberal, Ed. Unesp, São Paulo, Brasil, 1998, p. 62).
É a aceitação da idéia do progresso contínuo que obriga os teólogos modernistas a defenderem o 'aggiornamento' contínuo da Igreja.
Loisy dizia que:
'O Evangelho não era uma doutrina absoluta e abstrata, por sua própria virtude diretamente aplicável a todos os tempos e a todos os homens. Era, em vez disso, uma fé engajada por todas as partes no tempo e no meio em que ela nasceu. Um trabalho de adaptação foi feito e será sempre perpetuamente necessário a fim de que esta fé se conserve no mundo' (Alfred Loisy, L' Évangile et L'Église, p. 124, apud J. Rivière, Le Modernisme dans l'Église, ed. cit., p. 62).
Adaptação perpétua quer dizer a mesma coisa que aggiornamento. E aggiornamento quer dizer, quase, Modernismo.
Desculpe-me, mas não sou somente eu que afirmo isto: apenas o repito. Aceito a idéia expressa em um livro modernista e favorável ao Vaticano II e que é obvia:
'A palavra aggiornamento, que foi escolhida [por João XXIII] como palavra de ordem para a colocação da Igreja em dia, não pode deixar de provocar uma certa comichão se se pensa no pouco que ela se distingue do sentido da palavra tabu Modernismo' (Padre T. M. Schoof, La Nueva Teologia catolica, Ediciones Caros Lohlé, Buenos Aires, 1971, p. 279. O negrito é meu).
E o aggiornamento, que desgraçadamente foi apresentado pelo Papa João XXIII no início do Concílio, foi a raiz má de todos os modernismos que Guitton reconheceu no Vaticano II.
Peço-lhe que o senhor não se rasgue as vestes pela enunciação deste fato. Não se esqueça que o Vaticano II ordena que tudo deve ser tolerado, e que se deve sempre dialogar.
Dialoguemos, pois.
E vamos adiante.
IV - Quem foi condenado por Modernismo?
Na comunicação do Instituto Paulo VI se diz que:
'As teses que foram condenadas foram as de Loisy, expressadas quer no 'petit livre rouge', isto é, 'O Evangelho e a Igreja' de 1902 e no segundo “petit livre rouge'.
Permita-me que eu concorde com o senhor... em parte.
É bem verdade que a Pascendi e o Decreto Lamentabili condenaram especialmente as teses de Loisy. Mas não condenaram apenas as suas teses. O 'Princípio de Imanência', tão querido por Blondel, um dos pais do Modernismo, esse princípio também foi condenado pela Pascendi, que fala diretamente desse princípio de odor gnóstico. Tanto isso é verdade que Blondel se sentiu visado pelo texto da Pascendi e ficou muitíssimo perturbado.
Que trabalho foi realizado para evitar a condenação de Blondel!
Maurice Blondel estava envolvido no movimento modernista, e por isso ele disse depois de ter lido a Pascendi:
'Eu sofro. Felizes aqueles que morreram no Senhor'. 'Li a encíclica — [a Pascendi] — e eu permaneço no espanto. Será possível? Que atitude interior, exterior tomar? Sobretudo como impedir que tantas almas sucumbam e duvidem da bondade da Igreja?' (Maurice Blondel, carta a Mourret, em 17 de setembro de 1907, apud René Virgoulay, Blondel et le Modernisme, Cerf, paris, 1980, p. 230).
E ao Padre Wehrlé, Blondel escreveu nessa mesma data de 17 de setembro de 1907:
'Eu sucumbo sob a encíclica [Pascendi]' (Apud Virgoulay, op. cit., p. 231).
E em 20 de setembro, Blondel escreveu ao modernista Laberthonnière, que, a seu tempo, também será condenado por São Pio X:
'O que foi condenado, é justamente a tese da eferência, a religião que surge do fundo da consciência. Fazendo isso, se nos quis visar. Subsidiariamente se acreditou realmente golpear-nos (...)' (M. Blondel, apud Virgoulay, op. cit. p. 232).
E de seu lado, comenta Virgoulay:
'Blondel reconhece que foi 'visado'. Ele reconhece que se acreditou atingi-lo (assim como a Laberthonnière), mas ele não reconhece, de fato, ter sido atingido' (Virgoulay, op. cit.p.232).
E Wehrlé, respondendo a Blondel, lhe escreveu:
'O senhor foi visado e com uma precisão que afasta qualquer dúvida. Tomaram-se cuidados para não condená-lo [nominalmente], mas o senhor é condenado sem remissão' (Wehrlé a Blondel, carta em 18 de setembro de 1907).
Portanto, não há dúvida de que o filósofo modernista, do qual fala a Pascendi, é Maurice Blondel, ainda que ele não seja pessoalmente citado na encíclica.
No parecer teológico do Instituto Paulo VI, Ilmo. Dr. Papetti, fala-se como se só as doutrinas de Loisy e de Buonaiuti tivessem sido condenadas como modernistas. E esta é uma simplificação que distorce a verdade histórica.
Outros, ainda, foram condenados por São Pio X como modernistas, como o Padre Laberthonnière, o Padre Georges Tyrrel, o Padre Turmel, Edouard Le Roy, o Padre Romolo Murri, o Senador Antonio Fogazzarro por seu tedioso romance 'O Santo', para citar apenas alguns nomes dos mais famosos modernistas condenados. (E tantos outros escaparam por pouco, e muito astuciosamente, da condenação...)
V - Um pequeno desvio de rumo: o caso Lagrange
No documento do Instituto Paulo VI, depois, se faz a defesa do Padre Lagrange, para contrapô-lo a Loisy.
Também esta contraposição é um tanto simplificadora da realidade.
O Padre Lagrange era um amigo de todos esses modernistas condenados, ou que escaparam por pouco da condenação como hereges modernistas. Guitton escreveu a sua biografia do Padre Lagrange a pedido de João Paulo II. Aliás, foi nesse mesmo livro sobre o Padre Lagrange que Guitton disse que as doutrinas condenadas como Modernistas por São Pio X foram aprovadas e ensinadas — proclamadas — pelo Concílio Vaticano II. E o Papa João Paulo II, que havia encomendado essa biografia a Guitton, não criticou a afirmação terrível do autor sobre o modernismo do Vaticano II.
Vejamos, pois, agora, o Padre Lagrange.
O Padre Lagrange é considerado por muitos como um dos chefes do movimento modernista, se bem que ele fosse muito mais hábil e insinuante do que Loisy.
Pierre Collin, falando do começo do Modernismo nos diz:
'Todavia, toda a história do Modernismo não começa em 1902 [com a publicação do livro de Loisy [L'Évangile et L 'Église]. Um dos objetivos de nosso estudo é o de insistir sobre as causas filosóficas da crise modernista. Ora, desde a sua publicação em 1893, a tese de Maurice Blondel sobre L'Action já causou controvérsias apaixonadas. O mesmo aconteceu com a nova exegese bíblica praticada na França pelo Padre Loisy, como também pelo Padre Lagrange' (Pierre Collin, op. cit., p. 12. O negrito é meu).
Esse autor distingue o Padre Lagrange de Loisy, mas diz ainda:
'Lagrange não é Loisy, Blondel não é Hébert, mas tanto uns quanto os outros adotam os métodos comuns da critica e da filosofia' (P. Collin, op. cit., p. 70).
'Monsenhor Batiffol [Arcebispo de Toulouse] fez uma certo 'mapa ideológico', segundo o qual Monsenhor Duchêsne 'teria provocado uma cisão entre os seus discípulos: um grupo de esquerda, que buscava reinterpretar o Catolicismo em função de uma exegese radical e de uma não menos radical filosofia da religião, e um outro grupo moderado, à direita, que tentava reconciliar os resultados da crítica e da teologia, respeitando sempre os seus métodos próprios’” [Exatamente aquilo que quis fazer o Vaticano II, conforme juízo do cardeal ratzinger.(cfr. Cardeal J. Ratzinger, Problemi del Fondamento ed Orientamento dell'Esegesi Contemporanea, [http://www.ratzinger.it/miscellanea/interbiblconflitto.htm] (P. Collin, op. cit., pp. 134-135. O negrito é meu).
Pertencia ao primeiro grupo — [o da esquerda] — Loisy; e ao segundo, Lagrange e o próprio Batiffol' (P. Collin, op. cit., pp. 134-135).
Essa divisão em dois grupos, um mais radical, e outro mais moderado, e por isso, mais perigoso, porque sempre consegue infiltrar as teses da heresia onde o grupo radical é repelido, foi sempre utilizada pelos movimentos heréticos.
Qual seria então a diferença entre Loisy e Lagrange?
Loisy considerava as histórias relatadas nos Evangelhos como mitos. O Padre Lagrange não aceitava esta concepção. Para ele, as histórias contadas no Evangelho não eram mitos. Eram lendas históricas:
'Lagrange recusa o termo mito, e, pois, recusa a alternativa História ou Mito. Ele prefere falar em 'história primitiva lendária'(cfr. P. Collin, op. cit., p.146).
Mas que moderação!...
O próprio documento enviado pelo Instituto Paulo VI, Ilmo Dr. Papetti, lembra que o Padre Lagrange, embora Leão XIII lhe tivesse dado apoio, por parte de São Pio X, era suspeito de ser modernista:
'O P. Lagrange, por sua vez, em 1907, por meio de uma Carta da Congregação Consistorial, se verá suspeito a São Pio X, pela sua posição sobre a origem mosaica do Pentatêuco, tal qual fora expressa e sustentada por Lagrange no IV Congresso Científico Internacional dos Católicos de Friburgo, em agosto de 1897' (Documento do Instituto Paulo VI).
Desde 1897, pela conferência que o Padre Lagrange fez no Congresso Científico Internacional, em Friburgo, sobre o valor histórico do Pentatêuco, se abrira um dossier no Santo Ofício, referente ao Padre Lagrange' (P. Collin, op. cit., p.145).
Mais tarde, o Cardeal Merry del Val proibirá a publicação do livro de Lagrange sobre o Gênesis (P. Collin, op. cit., p.145). O Santo Ofício já tinha decidido que Moisés era o verdadeiro autor do Pentateuco (Cfr. Denzinger, 1997, ss.) e ainda em 1909 foi condenada a afirmação sobre o caráter lendário do Pentatêuco (Cfr. Denzinger, 2122).
Em 1912, o Padre Lagrange, por decisão de Roma, teve que partir de Jerusalém (Cfr. P. Collin, op. cit., p. 495).
VI - Problemas preliminares referentes ao Vaticano II
Finalmente, o sábio parecer teológico que o senhor nos envia, Ilmo. Dr. Papetti, entra na demonstração que o Vaticano II — ao contrário do que afirmou Jean Guitton sem correção de João Paulo II — não teria sido Modernista.
No documento do Instituto Paulo VI está escrito:
'Certamente o Concílio Vaticano II se ocupou, como podia não fazê-lo, dos graves e grandes problemas da humanidade que empobrecem e ameaçam a reta consciência que permite às pessoas reconhecerem o bem e o mal, e agir em conseqüência, conforme os ditames da fé e da dignidade do homem, imagem e semelhança de Deus por identidade e vocação' (Os sublinhados são de minha responsabilidade).
Portanto, o senhor nos assegura que 'o Concílio Vaticano II se ocupou, como podia não fazê-lo, dos graves e grandes problemas da humanidade'.
Mas o senhor crê — de verdade — que 'o Concílio Vaticano II se ocupou, como podia não fazê-lo, dos graves e grandes problemas da humanidade'?
E como então, o Vaticano II não condenou o comunismo e o marxismo que tanto mal faziam — e fazem — à humanidade?
O Concílio Vaticano II conscientemente não quis nem sequer citar o maior problema da humanidade no século XX: o Comunismo. O Vaticano II não condenou o maior erro da História. Essa omissão gravíssima pesará para sempre sobre o Pastoral Vaticano II e sobre os seus responsáveis.
E por que o Vaticano II não disse uma só palavra contra a mais grave ameaça à Igreja, na História?
Porque havia sido firmado um acordo entre o Vaticano e a URSS, em Metz, acordo pelo qual o Papa João XXIII se comprometia a não condenar o Comunismo e nem a URSS, no Vaticano II, contanto que a União Soviética permitisse a vinda de representantes da Igreja Cismática russa para assistir o Concílio. Foi o famoso Pacto de Metz, assinado, em nome do Vaticano, pelo Cardeal Tisserand, e, em nome da URSS, por Nikodin, que, dizia-se, era Coronel do Serviço Secreto bolchevista.
Como se diz, então, que 'o Concílio Vaticano II se ocupou, como podia não fazê-lo, dos graves e grandes problemas da humanidade'?
Também isso não é verdade.
E como se diz ainda que o Vaticano II procurou fazer 'reconhecer o bem do mal' no mundo moderno, se os documentos do Vaticano II não apontam nenhum erro em nosso tempo e em Nostra Aetate?
Como distinguir o bem do mal, se o Vaticano II vê o mundo com Gadium et Spes?
Como poderia jamais o Vaticano II distinguir o bem do mal, se o Vaticano II, seguindo a orientação de João XXIII, se recusou a ouvir, os 'profetas de desgraças', incluídas aí as profecias de Fátima?
Não. O Vaticano II não ajudou a consciência a distinguir entre o bem e o mal, porque o Concílio recusou condenar o mal. Recusou condenar quem quer que seja. Não houve anatematismos no Vaticano II. O Papa João XXIII não os quis. Paulo VI não os fez. O Vaticano II foi 'pastoral' como os Papas João XXIII e Paulo VI decidiram. O Vaticano II decidiu falar com misericórdia, sem condenar nada e ninguém. Como se a misericórdia não impusesse condenar os erros e os errantes.
Na frase do Instituto Paulo VI, que estamos analisando, há um outro ponto que gostaríamos de focalizar.
Que significa dizer que o homem é 'imagem e semelhança de Deus por identidade e vocação'?
O que é imagem não é idêntico.
Que identidade há entre Deus e o homem?
Nenhuma.
A criatura não pode ser idêntica ao Criador
Admitir identidade entre Deus e o homem é panteísmo ou Gnose.
Admitir isso seria já admitir uma tese Modernista: a do Pancristismo esotérico de Blondel, ou a do panteísmo explícito de Teilhard de Chardin.
E também essa identidade entre o homem e Deus, admitida no documento do Instituto Paulo VI, não é verdadeira e nem admissível.
Vê o senhor, prezado Doutor Papetti, que lhe falo com franqueza, porque sem franqueza todo diálogo é apenas...'ecumênico', isto é, relativista. O que também é inadmissível, porque seria fundamentar-se no equívoco.
E esta questão nos leva à famosa 'dignidade do homem' de que tanto falam de modo escorregadio os democratas cristãos modernistas ou filo modernistas.
VII - A Religião do Homem no Modernismo e no Vaticano II
E ainda, o senhor, Doutor, nos diz por meio de seu parecer que nos enviou, que o Vaticano II decidiu 'agir conseqüentemente conforme os ditames da fé e da dignidade do homem'.
Que o Concílio agisse conforme os ditames da fé era absolutamente necessário. Faltaria só que ele fizesse o contrário!
Mas que o Concílio tivesse querido atuar de acordo com os ditames da 'dignidade do homem', este é um princípio da Modernidade, que está no fundo da heresia modernista.
A famosa dignidade do homem da qual tanto se fala de modo escorregadio, consiste, como ensina a Santa Igreja pela boca de Leão XIII, que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, e que foi chamado a ser filho adotivo de Deus pelo Batismo. Não por outra razão humanista ou modernista acerca da dignidade do homem, e, muito menos, por uma pseudo identidade com Deus. Imagem, repito, não é identidade. Mas, para a Modernidade e para o Modernismo, a dignidade do homem quer dizer que o homem é Deus.
O Humanismo, um dos fundamentos da Modernidade anticristã, o Idealismo e o materialismo histórico colocaram o homem no lugar de Deus.
Também o Modernsimo procurou colocar o Homem no lugar de Deus.
Certamente o senhor se recorda do que disse Loisy:
'Em Cristo, a Humanidade se eleva até a Divindade. Poder-se-ia dizer, se se quiser, que a humanidade adora a si mesma em Jesus, mas se deve crer que, fazendo isto, ela não se esquece nem de sua própria condição, nem daquela de Deus' (A. Loisy, L' Évangile et l' Église, p. 263).
E raciocinando sobre as perspectivas do Modernismo inaugurado por Loisy, Émile Poulat escreveu:
'De fato, [na obra de Loisy] por qualquer lado que se voltasse o olhar, não encontraria jamais um ponto no qual poderia deter-se ou chegar. Diante de si, o futuro ilimitado do catolicismo suporia a sua transformação, uma transformação a respeito da qual a religião da humanidade se deixa advinhar como um prolongamento possível' (Émile Poulat, Histoire, Dogme et Critique dans la Crise Moderniste, Albin, Paris, 1996, p. 98. O negrito é meu).
Pois bem, o Cardeal Montini, quando ainda era Arcebispo de Milão, Montini, o amigo de Guitton, escreveu um documento sobre O Trabalho e o Cristianismo, no qual diz, com todas as letras, que a religião do amanhã será talvez a religião do homem.
'O homem moderno não chegará, um dia, à medida que seus estudos científicos progredirem e descobrirem realidades escondidas atrás do rosto mudo da matéria, a prestar atenção à voz maravilhosa do Espírito que palpita nela? [Sic!] Não será a religião do amanhã? O próprio Einstein entreviu a expontaneidade de uma religião de hoje?...' (Paulo VI, Discurso em 27 de Março 1960, apud Documentation Catholique, nº 133, 19 de junho de1960. O negrito é meu).
E o filósofo tão estimado pelos Modernistas, os de ontem e os de hoje, Maurice Blondel, disse, ele também, que o homem quer, de qualquer modo, tornar-se Deus.
Pierre Collin, autor insuspeito do integrismo, escreveu:
'Segundo Blondel, o objetivo do querer transcende o direito, a arte, a moral, mas também a metafísica e a religião. Para dizê-lo com uma só palavra, o primeiro e último princípio do dinamismo espiritual, é a idéia de Deus, enquanto 'nós não podemos conhecer Deus sem querer, de algum modo, tornar-nos Deus' (p. 388). Definitivamente, nós querermos 'ser Deus', mas o homem, ao agir, se acha confrontado com uma alternativa que impõe uma opção: ser deus sem Deus e contra Deus, ou ser Deus por Deus e com Deus' (Pierre Collin, L`Audace et le Souçon, Desclée de Brouwer, Paris, 1997, pp 193-194).
Com certeza, essa frase pode ter um bom sentido. Mas... há no pensamento de Blondel um 'quê' de complacência para com a tentação de ser Deus, tentação que está no centro do Humanismo.
E Blondel, que normalmente escrevia para o público em 'trobar clus', em cartas particulares, falava, por vezes, menos obscuramente, em 'trobar leu' ainda que não claro demais:
'Mas todos nós devemos persuadir-nos repetidamente de que a efusão assimiladora da bondade divina somente pode operar e triunfar em nós através de um pesado tributo e de uma dilatação crucificante. É sempre o mistério do Verbo caro factum est e do caro verbum facta. Um só é possível através do outro.O mundo sem dúvida está divinizado: em todas as partes podemos, devemos fazer, a peregrinação aos Lugares Santos. Nós respiramos o ar que Ele respirou, e há alguma coisa dEle que circula em nós: tudo isso, porém, somente tem sentido e eficácia em função da vocação sobrenatural, da graça oferecida e consentida, sem que todo esse divino inscrito na criatura, não só não aproveita (Caro nihil proficit), como é privativo e endevidador 'no vazio' e em condenação (...)” (Maurice Blondel, Carta ao Padre Auguste Valensin, 5 de Dezembro de 1919, in Blondel e Teilhard de Chardin - Correspondência comentada por Henri de Lubac, Moraes Editora, Lisboa, 1988, pp. 21-22. Os negritos são meus).
'O mundo está, sem dúvida, divinizado'?
O 'divino [está] inserido na criatura'?
Os 'homens de boa vontade' quererão interpretar de modo otimista também essas afirmações de Blondel, que nelas deixa o véu talvez fino demais...
'Aguzza qui, Dottor, ben li occhi al vero,
chè 'l velo è ora ben tanto sotile,
certo che 'l trapassar dentro è leggero'
(Dante, Purg. VIII, 19-21).[Aguça aqui, Doutor, os olhos à verdade,
porque o véu ficou agora muito fino,
certamente, porque o transpassá-lo ficou fácil']
E, se se olha um pouco que seja mais atentamente o véu, se acha o próprio Blondel a confessar que...
'Esse tema [o do pancristismo] é um dos 'temas mais antigos, mais esotéricos ( Sic!!!) de meu pensamento pessoal e daquilo que denomino o meu pancristismo' (Carta de Maurice Blondel ao Padre Auguste Valensin, 5 de Dezembro de 1919, in Blondel e Teilhard de Chardin, correspondência comentada por Henri de Lubac, Moraes Editora, Lisboa - São Paulo, 1968, p, 22. O negrito estupefato é meu).
Portanto, é verdade!
Há algo de esotérico nos brumoso escritos de Blondel! Ele o disse! Alguma coisa que ele recomendava que não fosse divulgado para a 'Gente grossolana' [Pessoas de entendimento grosseiro, isto é, não iniciadas].
'Sou de opinião que não se ofereça aos seus revisores, e nem mesmo aos seus leitores, a expressão inusitada e ambígua de pancristismo. Sem preparação e sem ser explicada, se corre o risco de, por analogia com a palavra panteísmo, de sugerir física ou metafisicamente etc.' ( Primeira nota de Maurice Blondel ao Padre Auguste Valensin, in Blondel e Teilhard de Chardin, correspondência comentada por Henri de Lubac, Moraes Editora, Lisboa-São Paulo, 1968, p. 57).
Não só confessa Blondel que ele tinha uma doutrina esotérica, mas ele exige que não se a conte à 'gente grossolana': os leitores de Valensin e de Blondel!
No mesmo livro que nos dá essa informação preciosa, se lê pouco depois:
'Jamais se impedirá o esforço da humanidade para integrar Cristo em uma Cosmologia: de outro modo Jesus não seria o Verbo' (Cfr. Carta de Maurice Blondel a J. Wehrlé, il 9 di Maio de 1904, in Blondel e Teilhard de Chardin -Correspondência comentada por Henri de Lubac, Moraes Editores, Lisboa - São Paulo, 1968, p.59).
Teilhard escrevia, desde Jersey, à sua prima Margareth Teilard, em 8 de Abril de 1919:
'Ele [Auguste Valensin] me disse que, a respeito da consistência do univreso in Christo, Blondel tem perspectivas tão audaciosas que ele não ousa seguí-lo até aí — não obstante, ele me disse ainda que Rousselot não hesita fazê-lo... Eu ignorava este aspeto do pensamento de Blondel e vou pedir que me expliquem isso' (Teilhard de Chardin, Gênesis de um Pensamento, p. 347 in Blondel e Teilhard de Chardin -Correspondência comentada por Henri de Lubac, Moraes Editores, Lisboa - São Paulo, 1968, pp.59-60).
Que pensava, de fato, Blondel, que ele não ousava escrever, e que ensinava esotericamente, e que, por isso mesmo, proibia que fosse publicado?
Talvez ele poderia dizer que tinha encontrado 'em todos os caminhos lógicos, metafísicos, morais, e religiosos' de seu pensamento 'aquele Pancristismo ontogênico e filogênico do qual falamos tantas vezes em comum'(Carta de Blondel ao Padre Auguste Valensin, 19 de Dezembro de 1919, in Blondel e Teilhard de Chardin -Correspondência comentada por Henri de Lubac, Moraes Editores, Lisboa - São Paulo, 1968, p. 38).
E o véu, agora, quase que desapareceu, não é verdade, Ilmo. Doutor Papetti?
Blondel coloca na vontade do homem, isto é, na natureza humana, um desejo de sobrenatural que será retomado pelo Padre de Lubac. E o Padre de Lubac foi formado pelo modernista Padre Auguste Valensin, o qual foi um admirador e um discípulo de Blondel. E o Padre de Lubac foi um dos principais teólogos do Vaticano II...
E o que Blondel colocava sob o véu brumoso e esotérico, Teilhard o dizia de modo claro:
'Como o espírito surgiu no Homem utilizando de algum modo os esboços dos instintos, assim também o Sobrenatural se forma continuamente por meio de sobre criação da nossa natureza' (Primeira Nota do Padre Teilhard de Chardin ao Padre Auguste Valensin, in Blondel e Teilhard de Chardin-Correspondência comentada por Henri de Lubac, Moraes Editores, Lisboa - São Paulo, 1968, p. 34).
Teilhard de Chardin admitia que o pancristismo de Blondel o tinha influenciado:
'Com Blondel tive relações (através de Auguste Valensin) por cerca de um ano (exatamente depois da primeira guerra mundial, lá por 1920). Certos pontos do seu pensamento atuaram muito sobre mim: o valor da Ação (que se tornou no meu pensamento uma Energética quase experimental das potências biológicas da evolução), e a noção do 'pancristismo' (à qual eu tinha chegado independentemente dele, mas sem ousar, naquele tempo, nomeá-la tão bem) (Teilhard de Chardin, carta em 15 de Fevereiro de 1955, in Claude Cuénot, Pierre Teilhard de Chardin, Plon, Paris, 1958, pp. 55-56).
Cuénot admite que o conhecimento de Teilhard de Chardin ele o herdara do pensamento de Blondel, transpondo o 'cristicismo' para o plano da ação (Cfr. Claude Cuénot, Aventura e Visão de Teilhard de Chardin, Livraria Moraes Editora, Lisboa, 1966, p.133).
Em um escrito enviado ao Padre Assistente do Superior Geral da Companhia de Jesus, o Padre Teilhard de Chardin escreveu em 1948:
'Necessidade urgente para a fé cristã naquEle que está Lá-em-Cima de incorporar a Neo-Fé humana em um Lá-Adiante nascido (já nasceu, e para sempre...) da aparição objetiva diante de nós de um Ultra-Humano (desencadeamento de um neo-Humanismo, que arrasta automaticamente um neo- Cristianismo)(Claude Cuénot, op, cit. pp. 327-328).
E em uma carta a Leontine Zante, em 1936, Teilhard escreveu:
'Aquilo que domina crescentemente o meu interesse é o esforço para estabelercer dentro de mim mesmo e para difundir em torno de mim uma nova religião (chamemo-la, se você quiser, uma cristandade desenvolvida) na qual o Deus pessoal não seria mais o neolítico grande proprietário de terras dos tempos ultrapassados, mas a alma do mundo' (Apud Padre G.H. Duggan, S. M., The Collapse of the Church in the West - 1960-2000. O negrito é meu).
E que Teilhard de Chardin era um gnóstico até mesmo os neo modernistas o reconheciam: '...apesar de algumas críticas que dizem respeito mais à forma que ao conteúdo, De Lubac concorda plenamente com Teilhard. Contra ele[ Teilhard], não são válidas [para De Lubac] as acusações de atualizar a antiga Gnose, acusações formuladas por Ëtienn e Gilson, Jacques Maritain e Hans Urs von Balthasar. Teilhard é um 'místico' que se coloca na trilha de Orígenes e se encontra pelnamente com Blondel. Todos os caminhos levam a Blondel. Ele é o ponto d eaprtida e de chegada. De fato, a 'cristologia cósmica' [de Teilhard] já está em Blondel, bem como o eclípse, na Enacranação, do tema da redenção' (Massimo Borghesi, O Itinerário de Henri de Lubac — A História como Mística, in 30 Giorni, ano VII, n o 1, Janeiro de 1993).
Até o gnóstico Urs von Balthasar reconhece que Teilhard de Chardin era um gnóstico! E o Padre de Lubac, apesar de tudo, procura justificá-lo!
Portanto, não há dúvida de que esta Nova Religião de Teilhard de Chardin é a velha Gnose.
E esta nova fé humanística preconizada por Teilhard de Chardin foi admitida pelo Concílio Vaticano II, quando Paulo VI proclamou que a Igreja tem o culto do homem.
E o antropocentrismo da Modernidade e do Modernismo — divinizador do homem — foi aceito pelo Vaticano II. Também o Vaticano II, assim como a filosofia da Modernidade, colocou o Homem no lugar de Deus, tanto que, no término do Concílio, o Papa Paulo VI declarou:
'Neste Concílio [Vaticano II] a Igreja quase se fez escrava da humanidade'.
E ainda:
'Humanistas do século XX, reconhecei que também Nós temos o culto do Homem'.
Sei muito bem que o senhor, Ilmo. Dr. Papetti, conhece o discurso de Paulo VI no final do Concílio. Mas, se o conhece, — e o senhor não pode desconhecê-lo — o senhor deve admitir que a religião do homem, querida como meta pelos Modernistas — no início do século XX, tornou-se louvada, e de algum modo, aceita no Vaticano II.
Portanto, Jean Guitton não demonstrou nem ignorância, nem mesmo má fé ao dizer que o Vaticano II proclamou as teses que São Pio X tinha condenado no Modernismo.
Neste mesmo Discurso de encerramento do Vaticano II, Paulo VI declarou:
'A Igreja do Concílio [Vaticano II] se ocupou bastante do homem, do homem tal qual ele se apresenta em nossa época, o homem vivo, o homem todo ocupado consigo mesmo, o homem que se faz centro de tudo aquilo que o interessa, mas que ousa ser o princípio e a razão última de toda a realidade... O humanismo laico e profano, enfim, apareceu na sua terrível estatura, e, em certo sentido, desafiou o Concílio. A religião de Deus que se fez homem encontrou-se com a religião do homem que se fez Deus.
'Que aconteceu? Um choque, uma luta, um anátema? Isso poderia ter acontecido, mas isso não aconteceu. A antiga história do samaritano foi o modelo da espiritualidade do Concílio. Uma imensa simpatia o [o Concílio] investiu inteiramente. A descoberta das necessidades humanas absorveu a atenção deste Concílio. Reconhecei-lhe ao menos este mérito, o vós humanistas modernos, que haveis renunciado à transcendência das coisas supremas, que saibais reconhecer o nosso novo humanismo: também nós, Nós, mais que qualquer outro, nós temos o culto do homem' (Paulo VI, Discurso de Encerramento do Vaticano II, 7 de Dezembro de 1965. O negrito é meu).
Essa foi uma proclamação de concórdia inaudita entre a Igreja — a Civitas Dei por excelência — e o Mundo Moderno, com o Humanismo, fundamento da Cidade do Homem.
E desta conciliação impossível só poderia nascer a submissão, a servidão da Igreja ao homem.
'Ainda há um outro ponto que Nós devemos destacar: toda esta riqueza doutrinária [do Concílio Vaticano II] visa somente uma coisa: servir o Homem' (Paulo VI, Discurso citado).
'Tudo isto, e tudo aquilo que Nós podemos ainda dizer do valor humano do Concílio [Vaticano II], talvez tenha desviado o pensamento da Igreja do Concílio em direção de posicionamentos antropocentricos, tomados da cultura Moderna? Não, a Igreja não se desviou, mas Ela se voltou em direção ao homem...
'A mentalidade moderna, habituada a julgar todas as coisas pelo seu valor, pela sua utilidade, quereria bem admitir que o valor do Concílio é grande pelo menos por esta razão: tudo foi orientado para a utilidade do homem! Portanto, não se declare mais inútil uma religião, como a religião Católica que, na sua forma, a mais consistente e eficaz, como esta do Concílio, proclama que Ela está toda inteira a serviço do homem...' (idem).
'Neste Concílio [Vaticano II] a Igreja quase se fez escrava da humanidade' (Paulo VI, Discurso de Encerramento do Concílio Vaticano II).
Na Sagrada Escritura se proclamou: Isto diz o Senhor: maldito o homem que confia no homem' (Jer. XVII, 5).
Mas, desgraçadamente, Paulo VI escreveu: 'Nós temos fé no homem'. (Paulo VI, Entrevista em Sidney, 2 de Dezembro de 1970).
Finalmente, depois de um texto que recorda Rousseau, o hino de glória ao homem, feito por Paulo VI, por motivo da primeira viagem espacial, em 1971:
'Honra ao homem! Honra ao pensamento! Honra à Ciência! Honra à síntese da atividade científica e organizativa do homem, do homem que diferentemente de todos os outros animais, sabe dar-se instrumentos de conquista à sua mente e à sua mão!
'Honra ao homem Rei da Terra, e também, agora, Príncipe do céu! Honra ao ser vivo que nós somos, o qual espelha em si a Deus, e, dominando as coisas, obedece à ordem bíblica: crescei e dominai'! (—Paulo VI, Discurso, na hora do Angelus, a 7 de Fevereiro de 1971).
Parece uma paráfrase do Gloria in eccelsis Deo!
Parece uma exaltação do homem, como um ídolo!
Como era diversa a posição de são Pio X a respeito do homem.
'É necessário que com todos os meios e trabalhos nós façamos desaparecer radicalmente a enorme e detestável maldade própria do nosso tempo, que substitui Deus pelo homem' (S. Pio X, Supremi Apostolatus, 14).
Que se entende, então, por dignidade do homem?
Por dignidade do homem se entende o que dela disse Leão XIII, isto é, que o homem foi chamado à eminente dignidade de filho adotivo de Deus, ou se entende que o homem é 'idêntico a Deus', que o homem é Deus, como diziam certos modernistas?
VIII - Conceito de Revelação Renovado ou Novo?
No início do parecer teológico do Instituto Paulo VI, Ilmo. Dr. Papetti, se põe como tese fundamental que o Vaticano II estabeleceu um 'conceito renovado de revelação'.
Sublinhado o termo 'renovado'.
No parecer, lê-se:
'Para compreender o renovado conceito de revelação do Vaticano II, é necessário confrontar brevemente a perspectiva do Vaticano I e a do Vaticano II do ponto de vista histórico e teólogico'(O negrito e o sublinhado são de minha responsabilidade).
Admite-se, portanto, que o Vaticano II tem um renovado conceito de revelção.
Renovado não quer dizer novo. Antes, pelo contrário, quer dizer que uma coisa, que já existia, foi refeita, sem, porém, modificá-la fundamentalmente. Pois bem, no final de seu parecer, está escrito que o conceito de revelação do Vaticano II é 'novo'. E novo quer dizer diverso do antigo.
É esta a conclusão de seu Parecer:
'Em consequência, o novo conceito de revelação desbloqueia a indiferença da teologia para diversas visões da cultura, e lhes comunica um interesse tanto mais apaixonado e quase ansioso, quanto mais tinha ficado inerte a precedente indiferença da parte da teologia manualística e neo-escolástica'. (O negrito e o sublinhado são meus).
Então, o conceito de revelação do Vaticano II é diferente daquele que era aceito anteriormente pela Igreja?
Que mudou?
E se o conceito de revelação é novo, por que antes foi dito que era somente um renovamento?
Parece-me, que neste ponto, há uma contradição no seu parecer teológico.
Engano-me eu?
O Padre Schoof admite ele também que o Vaticano II abandonou o antigo conceito de revelação escolástico para adotar um novo conceito de revelação fundamentado nas doutrinas da Nova Teologia.
'A gota sobre a rocha conseguiu fazer algo. Porém também neste caso, a mudança proveio do magistério eclesiástico, ao sustentar finalmente a orientação dos teólogos renovadores, e ao renunciar, durante o Concilio Vaticano II ao seu contrato exclusivo com a escolástica' (PadreT.M. Schoof, La Nueva Teologia Catolica, Ediciones Carlos Lohlé, Buenos Aires, 1971, p. 185).
Em seguida, se faz um paralelo entre as circunstâncias do Concílio Vaticano I, em 1870, e o Concílio Vaticano II, em 1962-1965.
Afirma-se que 'Sob o perfil histórico-cultural,... 'O contexto histórico-cultural no qual brota a formulação da doutrina da revelação no Vaticano I foi determinado por uma profunda fratura entre o pensamento cristão e o pensamento moderno'
Daí, o Vaticano I ter colocado em primeiro plano a relação entre a fé e a razão, preocupando-se em condenar os erros que nasciam, seja do racionalismo, seja do fideísmo tradicionalista.
Em segundo lugar, a diversidade viria do fato que, em 1870, ' a Igreja se sentia ameçada pelos adversários'.
De onde vinha a preocupação da defesa da fé cristalizada em formas teológicas, no dogma.
No Vaticano II, a Igreja quis sair ao descoberto, não para condenar erros, mas para apresentar a fé 'de um modo acessível à civilização contemporânea e de uma maneira que interpelasse eficazmente a condição existencial do homem de hoje'. 'O Vaticano II nasce de um período de reflexão teológica e de repensamento eclesial mais tranqüilo, e sobretudo mais criativo, e se propõe não tanto defender [a Fé], quanto em expôr a doutrina da Igreja, mostrando a sua organicidade, a sua relevância existencial e a sua atualidade pastoral'.
Portanto, dois seriam os pontos principais de diversidade entre o Vaticano I e o Vaticano II:
1) um conceito de fé e de revelação fundamentado sobre verdades das quais surge 'uma concepção intelectualística' da fé e da revelação (Vaticano I); e 'uma concepção histórica-salvífica personalística da revelação', no Vaticano II.
2) uma situação histórica de assédio da Igreja no tempo do Vaticano I, e uma situação de abertura no Vaticano II.
Começando pelo contexto histórico, permita-me recusar essa apresentação.
Não é verdade que somente em 1870 a Santa Igreja estava assediada por seus adversários. No tempo do Vaticano II, a situação era muito pior.
No tempo do Vaticano I, a Igreja sofria o ataque das forças secretas, sobretudo na França e na Alemanha. Havia a Guerra do Piemonte contra os Estados Pontifícios. Houve a guerra Franco-Prusiana.
Mas, no século XX, a guerra contra a Igreja tinha se tornado universal, e com uma profundidade jamais vista. O Comunismo fazia guerra à Igreja por toda a parte. A Europa estava sob a ameaça de uma invasão bolchevista, ou de uma guerra atômica. O mundo inteiro estava submetido ao perigo marxista por meio da guerra, da guerrilha ou da propaganda revolucionária. A ameaça e a guerra eram tão graves que diversos Cardeais e Patriarcas estavam em prisões comunistas. Tanto que João XXIII decidiu capitular frente à URSS ordenando que fosse assinado o Pacto de Metz. E exatamente durante o Concílio surgiu a crise dos mísseis de Cuba.
Portanto, as circunstâncias histórico culturais eram piores no tempo do Vaticano II.
Também do ponto de vista doutrinário não se havia visto jamais um perigo de erros tão graves como no tempo do Vaticano II. Não só o Marxismo, o Freudismo, o Existencialismo, o Liberalismo, o Relativismo e o Subjetivismo, a Fenomenologia, o Estruturalismo, insinuavam-se por toda a parte, infiltrando-se até nos seminários. Pior do que todas essas filosofias era a expansão dos erros modernistas propagados pela assim chamada Nova Teologia, já censurada — mas não esmagada — por Pio XII na encíclica Humani Generis. .
E não se deve esquecer os erros litúrgicos propagados no século XX pelo Padre Lambert Bauduin, pelo Padre Louis Bouyer, e pelas heresias do Padre Maurice Zundel, amigo e protegido de Paulo VI.
Como afirma, então, o Instituto Paulo VI que o contexto histórico cultural do Vaticano II não era de assédio contra a Igreja?
Essa afirmação é absurda e contrária à realidade histórica.
Curioso é que os teólogos e exegetas modernistas e progressistas, que pretendem ser tão rigorosos na reconstrução histórica dos tempos do Evangelho, sejam tão pouco rigoristas, e mesmo tão pouco objetivos, ao expor a realidade histórica mais recente, e mesmo atual.
Curioso, também, que o parecer teológico do Instituto Paulo VI nos mandou, análise tão somente o novo conceito de revelação conforme o Vaticano II, quando a afirmação de Jean Guitton era muito mais genérica.
Mas é já alguma coisa.
Vejamos, pois, agora, o primeiro ponto que é aquele que trata do conceito de revelação do Vaticano I e o conceito 'renovado' — seria melhor dizer novo, como se admite na conclusão do seu parecer — do Vaticano II.
Para maior clareza de exposição, examinarei as diversas posições sobre a revelação:
1- A revelação segundo a doutrina Católica;
2- A revelação de acordo com o Modernismo;
3- O conceito de revelação segundo a assim chamada Nova Teologia;
4- O novo conceito de revelação do Vaticano II, conforem o Perecr do Instituto Paulo VI de Brescia.
O quanto possível, darei as citações, empregando as próprias palavras do parecer teológico do Instituto Paulo VI, para tornar mais clara a visão do problema — como foi respondido, e não como foi colocado — que é: o Vaticano II aceitou, sim ou não, a doutrina modernista da revelação?
IX - A Revelação Segundo a Doutrina Católica
Conforme o sábio Parecer do Instituto Paulo VI, Ilmo. Doutor Papetti, o conceito de de revelação de acordo com o Vaticano I, comparado com o novo conceito de revelação do Vaticano II, poderia ser resumido nestas notas:
A revelação seria intelectualística. O seu conteúdo seria de verdades comunicadas por Deus mesmo ao intelecto humano. Daí a importância que era dada ao dogma e às condenações das heresias. Como diz o Parecer teológico que o senhor nos enviou: 'Na Constituição Dogmática Dei Filius do Vaticano I, a finalidade da Revelação é a participação na consciência divina e, em conseqüência, a priroridade é dada à sabedoria'.
Em contraposição, a revelação, segundo o Vaticano II, seria mais histórico -salvífica do que de verdades.
Permita-me fazer um esquema da revelação segundo a doutrina do Vaticano I e de sempre. Creio que, quanto a esse ponto, não temos divergências:
1) A revelação é o conjunto de verdades ensinadas por Deus transcendente por meio de certos homens eleitos, inspirados pelo Espírito Santo; verdades que foram ensinadas a eles de modo sobrenatural; verdades reveladas especialmente por Cristo e através do Espírito Santo que inspirou os Evangelistas e os Apóstolos, verdades consignadas à Igreja, que as deve ensinar a todos os homens, como necessárais à sua salvação.
2) A revelação é um fato extrínseco ao homem, e que é concedida gratuitamente por meio de iluminação intelectual.
Se a revelação não fosse extrínseca, como se explicaria que a mula de Balaão falou?
3) A revelação foi consignada à Igreja como um depósito de verdades (Depositum fidei).
4) As fontes da revelação são duas: a Sagrada Escritura e a Tradição Apostólica, confiadas à Igreja para ensinar a verdade revelada por Deus, para a salvação das almas.
Por isso, na infalível Profissão de Fé do Concílio de Trento se diz:
'Admito e abraço firmissimamente as tradições dos Apóstolos e da Igreja e as restantes observâncias e constituições da mesma Igreja. Admito igualmente a Sagrada Escritura conforme o sentido que sustentou e que sustenta a Santa Igreja, a quem compete julgar do verdadeiro sentido e interpretação das Sagradas Escrituras, e jamais as tomarei e interpretarei senão segundo o sentir unânime dos Padres' (Profissão de Fé do Concílio de Trento, Denzinger, 995).
E, por isto, definiu infalivelmente o Concílio Vaticano I:
'Esta revelação sobrenatural, segundo a Fé da Igreja universal declarada pelo Santo Concílio de Trento, 'se contém nos livros escritos e nas tradições não escritas, que, recebidas pelos Apóstolos da boca do próprio Cristo, e por meio dos mesmos Apóstolos sob inspiração do Espírito Santo, foram como que transmitidas de mão em mão, e chegaram até nós' (Concílio de Trento, Cap. II, Da Revelação, Denzinger, 1787).
5) O conhecimento destas verdades reveladas e transmitidas pela Sagrada Escritura e pela Tradição Apostólica, foram confiadas à Santa Igreja Católica Apostólica Romana que as ensina de modo dogmático, com autoridade divina, infalivelmente, e estas verdades devem ser cridas com fé pelos homens. E estas verdades devem ser consideradas atemporais e universais, imutáveis em seu sentido e em sua doutrina.
6) As verdades reveladas por Deus e ensinadas pela Igreja são infalíveis e imutáveis. É possível aprofundar o seu conhecimento de modo dedutivo, por meio da Teologia, mas mantendo sempre a mesma sentença e o mesmo significado. Portanto, essas verdades reveladas não devem ser adpatadas, e não podem ser adaptadas, de modo relativístico e variável, segundo os tempos e os lugares.
7) A Igreja deve guardar o Depósito da Fé e ensiná-lo fielmente. O ensinamento Ela o faz, positivamente, por meio dos dogmas; e a defesa do Depositum Fidei Ela a faz, negativamente, por meio das condenações dos erros e das excomunhões. A Igreja transmite a verdade da revelação sem jamais mudar o seu sentido.
Não se pode ensinar a verdade sem condenar o erro oposto.
8) Deus se faz conhecer a nós:
a) Imperfeitamente, através da criação, por meio da luz da razão, que nos dá uma sabedoria natural, com a qual se pode conhecer a existência de Deus e alguns de seus atributos. Neste modo, é o Verbo de Deus criador que ilumina a nossa mente.
b) Por meio da 'Locutio Dei' — isto é, por meio da revelação propriamente dita —através da Tradição e da Sagrada Escrirtura, especialmente por meio da revelação sobrenatural feita por Cristo, Verbo de Deus encarnado, Divino Mestre ( Mt. VIII, 28, e Jo. VIII, 13), que nos ensina e nos dá a Luz da Fé, pudemos conhecer principalmente que Deus é uno em sua substância e trino em suas Pessoas, e que o Filho de Deus se fez homem para nossa salvação.
c) Depois da morte, no Céu, teremos a Revelação de Deus por meio da visão beatífica, quando Cristo glorioso nos iluminará com a luz da glória.
A revelação pela graça de Cristo, e através da Igreja, é intermédia entre a revelação indireta, por meio da criação — revelação imperfeita e natural conhecida pela luz da razão — e a visão beatífica, direta e sobrenatural. A revelação, reconhecida pela Fé, para quem não está em situação de ignorância invencível, é preparatória e absolutamente necessária para ter a visão beatífica.
X - A Revelação segundo o Modernismo
Para o Modernismo, a revelação é pessoal, feita no interior de todo homem, por meio de um sentimento inefável, por meio do qual Deus se auto manifesta a cada um. A revelação não consisteria em comunicação de verdades, mas sim uma experiência pessoal, existencial, impossível de ser traduzida em palavras, que revelaria não verdades a respeito de Deus, mas o próprio Deus, a própria natureza de Deus, a prórpria res divina.
Para os modernistas, 'a revelação, para ser verdadeiramente tal, exigiria uma clara aparição de Deus na consciência' (Pio X, Pascendi, 31).
'Enfim, dizem os modernistas (...) no sentimento religioso se deve reconhecer uma espécie de intuição do coração, que coloca o homem em contato imediato com a própria realidade de Deus(...)' (Pio X, Pascendi, 37).
'Mais ainda, se bem que se tenha dito que somente Deus é objeto da fé, isto todavia não se deve entender senão como da realidade de Deus e não da idéia de Deus' (Pio X, Pascendi, 42).
[E este ponto da doutrina modernista sobre a revelação da própria res divina, mais do que de verdades a respeito de Deus, será admitido pelo novo conceito de revelação do Vaticano II, e o parecer do Instituto Paulo VI vai admitir isso].
Este sentimento revelador se daria no coração, e não num recebimento de verdades ensinadas pelo próprio Deus ao intelecto humano.
Repito: a revelação não teria como objeto um conjunto de verdades. Como ela não é recebida por meio do intelecto, a revelação não teria um caráter conceitual. Ela seria recebida como uma intuição do coração, por meio de uma experiência mística geradora da fé pessoalmente, ou melhor, personalisticamente. Não se receberiam, por meio da revelação propriamente verdades sobre a natureza divina, mas receber-se-ia a própria res divina, Deus mesmo.
Insisti sobre esse ponto, porque ele vai ser o centro do novo conceito de revelação do Vatricano II, como o parecer do Instituto Paulo VI o admite e confessa.
Pois bem, escreve Gusdorff:
'A doutrina gnóstica da revelação como uma experiência íntima de uma verdade transformante, que conduz à salvação por meios que fogem ao controle do entendimento, é um elemento da ontologia romântica' (G. Gusdorff, Le Romantisme, Payot, Paris, 1983, I Vol., p. 635).
Com efeito, para a Gnose, diz Hans Jonas, o conhecimento 'está estreitamente ligado a uma experiência de revelação, de modo que a recepção da verdade, por tradição sagrada e secreta, ou por iluminação interior, substitui a teoria e o argumento de razão(...) de outro lado, o 'conhecimento', que tem por objeto os segredos da salvação, não é uma instrução teórica, sem mais: pelo fato de que modifica a condição humana, ela é, ela mesma, encarregada de cumprir uma função na consumação da salvação.Assim o 'conhecimento' gnóstico é dos mais práticos por uma de suas faces. O 'objeto' último da Gnose é Deus: seu advento na alma transforma o conhecimento, fazendo dele um participante da vida divina' (Hans Jonas, La Religion Gnostique, Flammarion, Paris,1978, p. 56. O Negrito é meu).
Por esse texto vemos que a revelação, segndo a Gnose, é:
1) Fruto de uma 'experiência de revelação' íntima, não racional. (Exatamente como dizia o Modernismo).
2) O objeto da revelação é o próprio Deus, a res divina, e não verdades a respeito de Deus (Exatamente como dizia o Modernismo e como foi aceito pelo novo conceito de revelação do Vaticano II).
Logo, o Modernismo é uma forma de Gnose.
A doutrina modernista da revelação por meio de uma experiência íntima personalística, é gnóstica. E este conceito de revelação por experiência íntima, personalística, que deixa a verdade em segundo plano, como veremos, foi admitido no Vaticano II. E o douto parecer teológico do Instituto Paulo VI de Brescia confirma isto.
E como o Vaticano II aceitou esse conceito de revelação modernista e gnóstico?
Portanto, também a doutrina modernista da revelação por meio de uma experiência íntima personalística é gnóstica. E este conceito de revelação por experiência íntima, personalística, como veremos, foi admitida no Vaticano II
Este sentimento interior é fruto da imanência divina no homem, no qual existiria uma semente ou um germe divino. (O que, de novo, aproxima claramente o Modernismo da Gnose).
Evidentemente, os modernistas procuram fazer para si um escudo do texto de São João que diz: 'Todo aquele que nasce de Deus não comete pecado, porque a semente de Deus permanece nele, e não pode pecar porque nasceu de Deus. Nisto, se distinguem os filhos de Deus dos filhos do demônio' (I Jo. III, 9).
Nesse texto de São João, não se pode entender semente de Deus como a comprendem os gnósticos, isto é, como alguma coisa da substância de Deus, que teria sido posta em certos homens, e que os divinizaria. Mas esta semente deve ser entendida como a graça santificante de Deus. Se os gnósticos tivessem razão em sua interpretação, haveria uma distinção substancial entre os filhos de Deus e os filhos do demônio, dos quais fala São João, e haveria alguns homens divinos, e outros nascidos para o mal, o que é evidentemente herético.
Por isto Santo Agostinho, ao comentar este texto di São João, o relaciona com o estado de graça, e com o estado de pecado (Cfr. Santo Agostinho, Comentário da Primeira Epístola de São João, Paulinas, São Paulo, 1989, p. 105-106).
Se esta semente fosse algo substancial — entendida como alguma coisa da substância divina, o germe divino — causaria no homem — em todos os homens — a necessidade natural do divino. Deste modo, a revelação não seria um ato sobrenatural gratuito, mas, pelo contrário, um movimento puramente natural. Deste modo, desapareceria a distinção entre a ordem natural e a ordem sobrenatural.
Sobre este ponto, a encíclica Pascendi explica que existiam dois tipos de modernistas: os 'moderados' e os 'integralistas':
'Para os 'moderados', a imanência divina causaria na natureza humana não apenas uma 'certa capacidade, ou conveniência, para com a ordem sobrenatural (o que os apologetas católicos, com as necessárias restrições, sempre demonstraram), mas que haveria também uma estrita e verdadeira exigência. Para dizê-lo em modo mais exato, diremos ainda que esta exigência da religião católica é sustentada pelos modernistas mais moderados. Porque aqueles que podem ser chamados de integralistas pretendem que se deve mostrar, ao homem que ainda não crê, como se acha latente dentro dele o germe que estava na cosnciência de Cristo, e que Cristo transmitiu aos homens' (Pio X, Pascendi, 37. O negrito é meu).
Para Jacob Boehme, a Divindade teria colocado no homem alguma coisa divina, que faz com que ele deseje Deus e a eternidade (Cfr. Alexander Koyré, La Philosophie de Jacob Boehme, Vrin, Paris, 1971, p. 454).
Moehller, autor tão estimado pelos modernistas, diz, ele também, que Deus colocou um germe divino no homem:
'A Tradição católica se vê, por um ato de intuição imediata, na identidade de seus estados sucessivos.Germe divino colocado primitivamente por Deus no seio da humanidade, ele, pouco a pouco, desenvolve as suas virtualidades. Assim, o catolicismo nos torna 'presente' o cristianismo original. Todo o resto é heresia, e se acha fora desta corrente vital de onde ele saiu' (Edmond Vermeil, A . Moehller et l'École Catholique de Tubingen, A .Collin, 1913, p. 35. Apud Gusdorff, op. cit., Vol. I, p. 712).
Não diz coisa muito diferente o Padre Henri de Lubac no seu famoso livro Le Mystère du Surnaturel, onde ele dá uma citação reveladora de Rahner:
'O Padre Karl Rahner (...) escreveu que o espírito possui uma 'transcendência ilimitada', que dá ao horizonte humano 'um caráter infinito', e esta espécie de infinitude constitui precisamente a definição de homem e a sua 'fronteira' (H. deLubac, Le Mystère du Surnaturel, Aubier, Paris, 1965, p. 141).
Isto quer dizer — sem dizê-lo claramente — exatamente em modo 'neo-teológico', que o homem é, de fato, Deus.
Diante disso, causa perplexidade o texto da Gaudium et Spes que diz:
'Por isto, proclamando a vocação altíssima do homem e afirmando existir nele uma semente divina, o Sacrossanto Concílio oferece ao gênero humano a colaboração sincera da Igreja para o estabelecimento de uma fraternidade universal que corresponda a essa vocação' (Vaticano II, Gaudium et Spes, n 0 3. O negrito é meu).
Quem não vê que esta afirmação ambígua sobre a 'semente divina' pode ser bem aceita pela Gnose de todos os gêneros e especialmente pela Gnose maçônica já que se faz referência à 'Fraternidade Universal'? Que teósofo, que brâmane, que esotérico diria que recusa esta doutrina da Gaudium et Spes sobre a 'semente divina' no homem?
Um Concílio pode exprimir-se desse modo tão ambíguo?
Tyrrell, o bem conhecido filósofo modernista, sublinhava que 'a revelação não é uma afirmação, mas uma experiência'( G. Tyrrell, Through Scylla and Charybdis, p. 285). E ainda: 'A revelação pertence mais à categoria da impressão do que da expressão' (G. Tyrrell, idem, p. 280).
Contra tudo isso, o senhor o sabe muito bem, se pronunciou a Santa Igreja exigindo, no Juramento Anti Modernista, que se pensasse o contrário:
'Quinto: eu mantenho com certeza e confesso sinceramente que a fé não é um sentimento cego da religião que se levanta do profundo do sub consciente por um impulso do coração e pela moção da vontade acostumada à moralidade, mas um genuino assentimento da inteligência à Verdade recebida oralmente de uma fonte externa. Por meio deste assentimento, graças à autoridade de Deus supremamente verdadeiro, cremos ser verdade tudo aquilo que foi revelado e atestado por um Deus pessoal, nosso Criador e Senhor' (Pio X, Sacrorum Antistitum, Juramento Anti Modernista, 1907).
E esta doutrina anti modernista era aquela que Blondel condenava, chamando-a de 'extrinsecismo monoforista'...
Conforme o Modernismo, 'por natureza, a revelação é individual, incomunicável: é uma certa experiência que cada profeta traduz como pode, segundo a sua riqueza mental e formação pelo jogo de imagens e conceitos' (René Latourelle, Teologia da Revelação, Paulinas, São Paulo, Brasil, 1981, p. 327).
Para o Modernismo, a revelação não é uma 'experiência' reservada apenas a certos homens escolhidos — Profetas e Apóstolos — que seria confiada, depois, à Igreja como um Depósito para ser guardado, e para ser ensinado.
'Conforme Tyrrell, é preciso supor em cada indivíduo uma capacidade de ter uma experiência semelhante àquela do profeta o dos apóstolos. A revelação é uma experiência que se repete analogicamente em cada alma individual. Nosso espírito responde ao Espírito, e a experiência do profeta se torna a nossa experiência. A assimilação da revelação não é apenas a apreensão mental e a aceitação de afirmações e de pensamentos... o ensinamento exterior deve evocar uma revelação em nós mesmos; a experiência do profeta deve se tornar experiência para nós,. E a esta revelação evocada que nós devemos corresponder por meio do ato de fé, reconhecendo-a como palavra de Deus em nós e para nós. ... A revelação não pode vir a nós de fora; ela pode ser não causada mas ocasionada pelo ensinamento' (G. Tyrrell, op. cit., pp. 305-306).
Para o Modernista Tyrrell, sem revelação pessoal, não pode existir fé, mas somente um assentimento teológico ou histórico'(G. Tyrrell, Revelation as Experience, pp 305-306, apud Mons. Maggiollini, Magisterial Teaching on Experience in the Twentieth Century, http://www.ewtn.com/library/THEOLOGY/MT20THCN.htm)
E um outro autor atual, John F. Haught, muito simpatico ao Modernismo, escreveu:
'Todavia, a verdadeira noção de revelação jamais teria surgido se não fosse o fato que a sua substância é experimentada íntima e palpavelmente por indivíduos especialmente sensíveis' (John F. Haught, Mistery and Promise: a Theology of Revelation, Parte I, cap. I p. 8 http://www.religion-online.org/cgi-bin/relsearchd.dll/showbook?item_id=1947).
Por causa dessa noção de revelação como experiência interior do coração, o Modernismo tem um caráter profundamente anti intelectual, anti racional, anti conceitual. O Modernismo exalta, no lugar da nota intelectual ou essencial da revelação, uma presumida nota existencial. Nesse sentido, o Modernismo é anti metafísico, e substitui a Metafísica pela História, a estabilidade pelo movimento, o ser pelo devir. Daí, o Modernismo se mostrar anti doutrinário, anti dogmático. Os modernistas promovem uma religiosidade que eles chamam de 'viva' e intelectualmente incomunicável.
É de estranhar, com todas essas características anti intelectuais, que o Modernismo fosse anti tomista e anti escolástico?
A inspiração do coração teria algo da inspiração poética...
Ensinou a Pascendi:
'Perguntaríamos, pois, aos modernistas: que é feito da inspiração?
'Respondem-nos que ela, a não ser talvez por certa veemência, não se distingue da necessidade que o crente experimenta de manifestar vocalmente ou por escrito a própria fé. Nota-se aqui certa semelhança com a inspiração poética; e nesse sentido um deles dizia: Deus está dentro de nós, e agitados por Ele nós nos inflamamos. Desse modo é que se deve explicar a origem da inspiração dos livros sagrados. Sustentam ainda os modernistas que a nenhuma passagem desses livros falta essa inspiração. Neste ponto, alguém poderia julgá-los mais ortodoxos do que certos exegetas recentes, que em parte restringem a inspiração, como, por exemplo, nas tais citações tácitas. Mas isto não passa de aparências e palavras' (São Pio X, Pascendi, nº 22. O negrito é meu) .
Conseqüência prática destas notas, o Modernismo era contrário às missões e ao doutrinamento catequético, e contra a apologética tradicional. Evidentemente, se cada homem tem a capacidade de ter a experiência interior da revelação, é dispensável a catequese e a missão
Sendo a revelação possível em qualquer pessoa, nenhuma religião poderia gabar-se de possuir a verdade integralmente, monopolizada por ela. Deus não deu a revelação somente a uma religião. Portanto, todas as religiões teriam uma certa parcela da verdade, que todos devem aceitar.
Conseqüentemente, todas as religiões têm verdades e podem ser veículos de salvação. Daí, vinha a defesa do ecumenismo por parte dos modernistas.
'E os modernistas, de fato, não negam, ao contrário, concedem, alguns confusamente, e outros manifestamente, que todas as religiões são verdadeiras' (São Pio X, Pascendi, n0 14).
Não é parecido — ou igual — aos documentos sobre o ecumenismo do Vaticano II?
'Quando muito, no conflito entre as diversas religiões, os modernistas poderão sustentar que a católica tem mais verdade, porque é mais viva, e merece mais o título de cristã, porque mais perfeitamente corresponde às origens do cristianismo' (São Pio X, Pascendi, nº 14).
Hoje, no máximo, se concede que a Igreja Católica tem a 'plenitude da verdade', e portanto, que as outras religiões têm a verdade, mas não plenamente.
'O viver, para os modernistas, é prova de verdade, e a razão disto é que a verdade é vida, para eles, são uma só e a mesma coisa. E daí uma vez mais se infere que todas as religiões existentes são verdadeiras, caso contrário, elas não existiriam' (São Pio X, Pascendi, nº 15).
Impossível não ver que se descreve aqui, na Pascendi, aquilo que se faz, na Igreja, desde o Vaticano II. Portanto, o Vaticano II, também quanto ao ecumenismo, copiou e aprovou os erros do Modernismo.
Jean Guitton não mentiu quando fez a sua terrível afirmação.
Já recordamos que, para o Modernismo, o sentimento religioso do coração seria inefável, impossível de ser traduzido em palavras. A experiência religiosa seria não traduzível em discurso lógico. Daí, todo credo seria uma coisa absolutamente inútil, e antes errôneo e enganador . E isto valeria para todas as religiões, e não só para a religião católica. Todas as crenças seriam traduções mal feitas deste sentimento interior. O máximo que se poderia conceder seria que as fórmulas doutrinárias teriam um valor muito relativo e aproximativo, e jamais um valor absoluto. Portanto, nenhuma religião pode apresentar-se como dona da verdade completa e absoluta. Nenhum credo sendo inteiramente verdadeiro, nenhuma religião teria o monopólio da verdade.. As religiões deveriam ser abertas umas às outras, a fim de que se enriquecessem com suas mútuas experiências, por meio do diálogo ecumênico, que permitiria um intercâmbio da experiência de cada uma.
E mais. O Modernismo estava todo impregnado de uma 'metafísica' evolucionista.
Influenciado pela Filosofia Moderna que negava o ser, o Modernismo via toda a realidade — inclusive a divina — como fluxo, como devir. Conseqüentemente, nada seria fixo. Não existiria a Verdade. O dinamismo da realidade exigiria que as fórmulas dogmáticas fossem tidas como provisórias, aproximativas da 'verdade' real, impossível de ser conhecida.
A revelação sempre imperfeitamente expressa, deveria ser constantemente aperfeiçoada com fómulas novas. A atualização da expressão da fé seria uma exigência absolutamente necessária. [Para o Modernismo, a religião teria necessidade de ser continuamente... aggiornata, para utilizar o termo tão querido do Vaticano II, e colocado em moda por João XXIII, o amigo do modernista Ernesto Buonaiuti. E a religião e a Igreja deveriam ser perpetuamente 'reformandas', como dizia Lutero.
Cristalizar a revelação em fórmulas dogmáticas eqüivaleria a matar a religião. Era preciso que a revelação fosse continuamente mudada em fórmulas novas e sempre provisórias.
A revelação deveria ter um caráter histórico, e, portanto, um valor relativo, conforme os tempos. Em conseqüência, não existiria um 'depositum fidei', que valesse para sempre, confiado por Desu à Igreja. Não existiria uma verdade dogmática com valor absoluto, para toda a História.
Portanto, tanto os dogmas quanto as excomunhões do passado seriam erros, frutos da incompreensão da natureza progressiva da revelação.
Contra todos esses erros, São Pio X fez inscrever no Juramento Anti Modernista, já agora abolido, a seguinte cláusula:
'Quarto: eu mantenho sinceramente que a doutrina da Fé nos foi transmitida pelos Apóstolos até hoje por meio dos Padres ortodoxos exatamente com o mesmo significado e sempre com o mesmo propósito. Assim, rejeito inteiramente a falsa representação herética de que os dogmas evoluem e se modificam de um significado para outro diferente daquele que a Igreja antes havia mantido. Condeno também o erro segundo o qual, em lugar do divino Depósito que foi confiado à esposa de Cristo para que o guardasse, há apenas uma invenção filosófica ou um produto da consciência humana que gradualmente foi desenvolvido pelo esforço humano e que continuará a desenvolver-se indefinidamente. Além disso tudo, submeto-me e dou a minha adesão, de todo o coração, às condenações, declarações, a todas as proibições contidas na encíclica Pascendi e no Decreto Lamentabili, especialmente aquelas que dizem respeito àquilo que é conhecido como a História dos dogmas.
'Repudio ainda o erro daqueles que dizem que a Fé defendida pela Igeja pode contradizer a História, e que os dogmas católicos, no sentido em que são compreendidos agora, são inconciliáveis com uma visão realista das origens da religião cristã' (Pio X, Sacrorum Antistitum, Juramento anti Modernista).
A transmissão da experiência religiosa de uma geração a outra, na História, seria a Tradição.
Para os Modernistas, o conceito de Tradição era totalmente diferente daquele que a Igreja sempre ensinou.
A Tradição católica foi sempre entendida como o conjunto de verdades reveladas por Cristo aos Apóstolos, transmitidas pelos Apóstolos de geração em geração, sob a guarda infalível da Igreja. Tradição era aquilo em que todos os católicos, universalmente, e em todos os tempos, sempre acreditaram. Sempre se acreditou que existiam duas fontes da revelação: a Escritura e a Tradição (Cfr. Denzinger, I,b).
Mas, para os Modernistas, o conceito de Tradição era totalmente contrário ao conceito da Santa Igreja:
'Há um outro ponto, neste capítulo da doutrina Modernista totalmente contrário à verdade católica. Porque esta teoria da experiência [religiosa] se transfere também à tradição, que a Igreja afrmou até o presente, e a destrói totalmente.
'Efetivamente, os Modernistas entendem a Tradição de modo que seja uma certa comunicação com os outros de uma experiência original por meio da pregação e com a ajuda da fórmula intelectiva (...) Esta comunicação da experiência, por vezes produz raízes e floresce, outras vezes se debilita imediatamente e morre. Ora, o florescimento é, para os Modernsitas, argumento da verdade, porque eles tomam verdade e vida promiscuamente [como sinônimos]. Pelo que, seria lícito inferir que todas as religiões que existem são verdadeiras, senão, pelo contrário, elas não poderiam estar vivas' (São Pio X, Pascendi, Denzinger, 2083).
E no Juramento Anti Modernista se lê:
'(...) os Modernistas sustentam ainda que, na sagrada Tradição, não há nada de divino, ou, o que é pior ainda, a admitem em sentido panteísta, de modo que já não resta senão o fato claro e simples, que se a deve colocar ao nível dos fatos comuns da História, ou seja, certos homens que pela sua indústria, engenho ou diligência prosseguiram nas idades seguintes a escola iniciada por Cristo e seus Apóstolos. Portanto, mantenho e manterei firmissimamente a fé dos Padres, e a manterei, até o último suspiro de minha vida sobre o carisma certo da verdade, que existiu, e que existirá sempre, na sucessão do Episcopado, desde o tempo dos Apóstolos, não para que se mantenha o que é melhor e mais apto que possa parecer conforme a cultura de cada idade, mas para que jamais se creia de outro modo, jamais de outro modo se pense a verdade absoluta e imutável pregada, desde o princípio, pelos Apóstolos' (São Pio X, Juramento Anti Modernista, Denzinger, 2147).
Também Monsenhor Maggiolini, criticando os Modernistas, ensina que, para eles, 'tradição seria a comunicação da experiência original através de afirmações intelectuais'. (Mons. Alessandro Maggiolini, Magisterial Teaching on Experience in the Twentieth Century, from the Modernist Crisis to the Second Vatican Council, p.5).
Para os Modernistas, a Tradição, entendida como transmissão de uma experiência religiosa, seria o resultado de uma contradição dialética entre uma força conservadora — a doutrina ensinada pela autoridade — e a força que incita ao progresso, que nasce da vida. Deste confronto nasceria a Tradição Viva, que seria mais uma evolução do que uma verdadeira Tradição. E, se a Tradição viva nasce deste confronto, a sua guarda não é um direito da autoridade conservadora, mas é também a dos leigos por meio de sua experiência religiosa, [e principalmente como esta experiência vital e existencial é interpretada pelos teólogos] (Cfr. São Pio X, Pascendi, Denzinger, 2095).
Desse modo, o controle do que ensina a Tradição passaria da Igreja para os 'teólogos', ou a qualquer simples fiel...
Por isso, Blondel asseverava que 'a tradição mantém essa mesma liberdade com relação às fórmulas dogmáticas, porque a tradição preserva o sentido do Mistério transcendente de qualquer formulação dogmática, e que ela preside ao desenvolvimento do dogma' (Pierre Gauthier, Newman et Blondel, Cerf, Parigi 1988, p.400).
E nessa frase de Gauthier fica comprometida toda a doutrina de Blondel com o Modernismo.
A tradição seria 'o elemento dinâmico, o motor do progresso dos dogmas' (P. Gauthier, op. cit. p. 269). Melhor seria ter dito da evolução do dogma.
Portanto, a Tradição no sentido Modernista permitiria que a revelação se desenvolvesse, crescesse na História, e pela História. Isto é, que o dogma 'evoluisse', mudasse.
'Em seus artigos [Blondel] apresentou uma nova definição de Tradição eclesiástica, inspirada na sua filosofia da Ação. O Evangelho é mais do que uma mensagem depositada nos documentos da Escritura ou na pregação eclesiástica; é uma realidade vivente que adquiriu forma em toda a vida e a experiência da comunidade da Igreja. Esta realidade è trasmitida principalmente pela tradição que a converte em atos, em uma ação na qual — segundo uma das idéias fundamentais de Blondel— a graça de Deus e a intenção humana são concretamente reunidas. Desde o princípio se dá pois, na Igreja, uma unidade vital do dogma (divino) e da história (humana); uma consciência coletiva, mais que intelectual. Esta que contém toda a verdade da revelação — entre outros, nos seus testemunhos escriturísticos e instituições objetivas — e os conserva' (Padre T. M. Schoof, La Nueva Teologia Catolica, Ediciones Carlos Lohlé, Buenos Aires, 1971, p. 223).
Por tudo isso, se compreende como erram os que pretendem interpretar o Concílio Vaticano II 'à luz daTradição'. E erram, porque o termo Tradição é entendido diversamente pelos Católicos e pelos Modernistas.
E se a Tradição é o motor que faz desenvolver a revelação interior, então, a revelação jamais estaria concluída.
Urs von Balthasar reconhece que a doutrina da evolução do século XIX, isto é, a doutrina de Darwin, de Spencer e de Bergson penetrou também na Teologia:
'De fato, no curso do século XIX, e no conjunto do movimento de pensamento relativo à idéia de evolução, o conceito de evolução fez sua entrada — como um 'rejeton' ortodoxo de Joaquim de Fiore — na própria Teologia. Fala-se, hoje, correntemente de evolução dos dogmas e designa-se por isso o desdobramento de 'todos os tesouros escondidos da sabedoria e da ciência' (Col. II, 3) contidos no depósito da revelação confiado à Igreja' (Urs von Balthasar, La Théologie de l'Histoire, Fayard, Paris, 1970, p. 165).
Desse modo, seria inaceitável dizer que a revelação acabou com a morte do último Apóstolo, como seria absurdo afirmar que os Apóstolos já tinham toda a revelação completa. Como já vimos, esta é uma tese condenada como modernista no Decreto Lamentabili. A revelação na história e através da história seria sempre provisória e incompleta, enquanto não chegasse o próprio fim da História (Cfr. John F. Haught, Mystery and Promise: A Theology of Revelation, Parte III Capítulo 9, http://www.religion-online.org/cgi-bin/relsearchd.dll/showbook?item_id=1947
E von Balthasar tem também uma reserva contra a doutrina do encerramento da revelação:
'Com a morte do último Apóstolo, a Revelação foi 'concluída', somente no sentido que a plenitude infinita não pode mais crescer. A revelação pode porém irradiar a sua plenitude até o infinito e, sob o seu sol, tudo pode desenvolver-se até a última maturidade' (Urs von Balthasar, Abater os Bastiões, Borla, Turim, 1966, p. 48).
Evidentemente, essa doutrina da revelação de Deus na História tinha suas raízes na doutrina gnóstica de Jacob Boehme, repetida depois pelos pietistas que diziam que se deviam prescrutar e ler os sinais de Deus na História, — os sinais dos tempos — e finalmente por Hegel, que se tornou o grande responsável pela sua difusão no pensamento ocidental e oriental, principalmente russo.
Mas esta revelação seria não de verdades acerca de Deus, mas o próprio Deus que se liberta na história, e promove a divinização de todos os homens e do cosmos.
Teilhard de Chardin não disse coisas muito diferentes dessas...
Esta nefasta doutrina sobre a Tradição, já condenada por São Pio X, continuou a ser transmitida, por vias subterrâneas, até hoje. Ainda no tempo de Pio XII, a Santa Sé sentiu o dever de condenar, ainda mais uma vez, essa concepção da Tradição modernista:
'Também os teólogos deverão retornar às fontes da revelação, pois que cabe a eles indicar de que modo se encontra nas Sagradas Escrituras e na 'tradição', de modo explícito ou implícito, aquilo que foi ensinado pelo magistério vivo. Acrescente-se a isso que ambas as fontes da doutrina divinamente revelada possuem tantos e tão grandes tesouros de verdade que realmente jamais se esgotam' (Carta do Secretário da Comissão Blíblica ao Cardeal Suhard, 10 - XI 1948. Denzinger, 2314).
E deste ensinamento do tempo de Pio XII se vê que ainda nos nossos tempos a Santa Sé ensinou que as fontes da revelação são duas — a Sagrada Escritura e a Tradição — e que estas duas fontes contêm verdades, e não experiências, como diziam os Modernistas.
E prossegue o documento supracitado:
'O Divino Redentor não incumbiu que a autêntica interpretação deste depósito seja feita por cada um dos fiéis, e nem pelos próprios teólogos, mas somente pelo magistério da Igreja' (Idem, Denzinger, 2314).
Que grande verdade, hoje tão esquecida, a tal ponto que parece que sobre a cátedra de São Pedro se sentaram os famosos 'Teólogos'...
Hoje se discute, fundando-se mais nas doutrinas abstrusas — e mesmo esotéricas como confessou Blondel — desses teólogos modernistas, mais do que nas definições dos concílios ou nos ensinamentos do magistério pontifício.
Segundo Xavier Tillette: 'Há quase um século de distância, certas teses, as mais audaciosas do Modernismo, com relação a Jesus Cristo, vigorosamente repudiadas pelo Magistério, aparentemente causam menos medo hoje em dia. Elas retornam em nome da livre análise e por meio da discussão entre os teólogos católicos, na verdade contaminados pelos seus colegas protestantes' (Xavier Tillette, Maurice Blondel et la controverse christologique, in Le Modernisme, Cerf, Parigi, 1980, p.129).
Que franca confissão!
A teologia católica ficou contaminada pela teologia protestante.
E confessa ainda Xavier Tillette:
'Os ressurgimentos modernistas são todavia incontestáveis. A verdade é que depois das condenações e das directivas autoritárias (justificadas ao mais alto grau) subsistem ainda entre os modernos e os crentes, seqüelas não reabsorvidas, um pesado contencioso exegético e teológico.(...) Hoje os exegetas católicos rivalizam impunemente em audácia e refinamento com os mestres luteranos e anglicanos' (X. Tillette, op, cit. p. 130).
E Tillette não é o único a dizer isto. E o senhor vê, e verá um pouco adiante, Ilmo. Doutor Pappetti, que Tillette concorda exatamente com a terrível afirmação de Guiton.
Por exemplo, o famoso modernista Yves Congar, que teve tanta responsabilidade no pensamento do Vaticano II, comentando a recusa do Concílio de aceitar a doutrina das duas fontes da revelação, com o apoio do Papa João XXIII, decisão que conduziu à Dei Verbum, disse:
'O dia 20 de novembro de 1962 — dia em que João XXIII decidiu que se faria um outro documento conciliar sobre a revelação — será reconhecido na História da Igreja, como determinando o encerramento definitivo da Contra Reforma' (René Virgoulay, Blondel et le Modernisme, Cerf, Parigi, p. 449).
Congar saúda a vitória da Reforma sobre a Contra Reforma e a recusa do Vaticano II da doutrina tradicional das duas fontes da Revelação na Dei Verbum, como se fosse a vitória de Lutero sobre Trento.
Portanto, são teólogos famosos e favoráveis ao Vaticano II que reconhecem que no Concílio, particularmente na Dei Verbum, documento que tratou da revelação, único ponto focalizado pelo Parecer do Instituto Paulo VI de Brescia, aceitaram-se as posições do Modernismo, e também do Protestantismo...
E sobre o papel dos teólogos, o Cardeal Ratzinger escreveu:
[Antes] 'era o Credo que fornecia o padrão para a teologia. Agora, na Igreja Católica, tudo isso — ao menos na cosciência popular — estava submetido a revizsão, e até mesmo o Credo não parecia mais intocável, mas antes subemetido ao controle dos teólogos. Por trás dessa tendência de domínio dos especialistas podia-se já dectetar algo mais: a idéia de uma soberania eclesial do povo, na qual o próprio povo determina o que quer que seja entendido pela Igreja, pois 'Igreja' já parecia muito claramente definida como 'Povo de Deus' (Cardeal Joseph Ratzinger, Memories ( 1927-1977, Milestones, Ignatius Press, San Francisco, 1988 p. 134).
Hoje, depois do Vaticano II, os teólogos têm a última palavra. É aos teólogos que se dão ouvidos, e não mais àquilo que ensina o Papa. E quando o Papa faz a declaração Dominus Jesus, se resgistram protestos dos teólogos e dos Bispos. E quando o Papa ordena o retorno ao confessionário e à confissão particular, praticamente nenhum bispo o obedece, e muitos padres nem ao menos sabem o que o Sumo Pontífice determinou. E, se o soubessem, nada seria mudado. Louva-se o Papa e fala-se de obediência. Na prática, cada um faz o que quer. A Igreja está num processo de atomização. Foi o próprio Paulo VI que reconheceu que, depois do Vaticano II, a Igreja conheceu um misterioso processo de auto demolição, e que a fumaça de Satanás entrou no templo de Deus. E esta fumaça se encontra nos livros heréticos de tantos teólogos famosos.
Porém, os teólogos da Nova Teologia, que triunfou no Vaticano II, queriam exatamente isso: a demolição da consciência histórica do cristão que imediatamente se transformaria em velhice da própria Igreja.
'Aquilo que deve ser varrido a qualquer custo é a consciência histórica do cristão, que envelheceu, porque era sustentada por uma fé insuficiente. No corpo da Igreja aparecem sinais de velhice, na realidade de decadência, quais foram a Reforma e todas as suas conseqüências. Já Santo Agostinho e São Gregório Magno viram a Igreja coberta de tais ulcerações e, por isso, se consideraram chegados os últimos tempos.
'Sobre o plano histórico-filosófico a Igreja já passou de seu tempo, está superada, e desde há muito tempo' (Urs von Balthasar, Abbatere i Bastioni, Borla, Torino, 1966, pp. 54-5. O negrito é meu).
Esses teólogos Neo Modernistas querem abater a Igreja e construir uma Nova Igreja, uma Nova Religião: a Religião e a Igreja do Homem, como disseram Loisy e o Padre Teilhard de Chardin.
Malditos sejais vós, teólogos modernistas, que elaborastes uma doutrina diversa daquela que a Santa Igreja ensinou sempre e em toda parte!
Malditos sejais vós, teólogos modernistas que falais em termos próprios das antigas heresias gnósticas e cabalísticas!
Malditos sejais vós, teólogos modernistas, porque destruístes ao máximo aquilo que era possível destruir na Santa Igreja!
Malditos sejais vós, teólogos modernistas, que absorvestes, como por osmose, o veneno de todas as heresias!
Malditos sejais vós, teólogos modernistas, que na luz da verdade procurais sempre sombras, e nas trevas da heresia procurais sempre por qualquer luz fraca para a louvar!
Malditos sejais vós, teólogos modernistas, 'doutores de dúvidas', que negais toda a certeza!
Malditos sejais vós, teólogos modernistas, que conspirais nas trevas, para defender a mentira evolutiva gnóstica contra a verdade imutável ensinada pelo Magistério da Igreja de Pedro!
E haveria tantas maldições a dizer!...
'O tuo parlar m' inganna, o il mi tenta'
(Dante, Purg., XVI, 136).
['Ou o teu falar me engana, ou ele me tenta']
1) O Modernismo sobreviveu na Nova Teologia
Sempre que surgiu, na História da Igreja, uma grave heresia, imediatamente germinou, a seu lado, o mesmo erro, porém mais ou menos camuflado. Foi assim com o Arianismo, com o Pelagianismo, com o Jansenismo, com o Liberalismo, com o Comunismo. Todas essas heresias tiveram, ao seu lado, como aliado disfarçado, moderado e 'equilibrado', uma semi-heresia que procurava justificar a heresia com aquilo que havia de verdade na heresia declarada. E como é impossível existir uma heresia absoluta, sem nenhuma verdade, sempre sempre haverá aqueles que procuram justificar qualquer erro, com o que ele tem de verdade. Os neo modernistas estão entre aqueles que em todas as heresias querem procurar uma verdade qualquer, esquecendo que uma mentira é tanto pior quanto mais parece verdade.
O que imediatamente atraía a simpatia dos irênicos, dos pacifistas e otimistas de todos os graus, 'que dans toute herésie trouvent des charmes' [que em toda heresia acham um encanto]...isto é, as famosas 'sementes do Verbo'...
Como se fosse possível existir um erro absoluto.
Os semi hereges são aqueles que procuram sempre um ponto louvável em todas as mentiras. Procuram sempre as 'sementes do Verbo'... para traírem o Verbo!
Condenado o Modernismo, excomungados vários de seus chefes, que também deixaram a Igreja, a heresia explícita tornou-se menos perigosa.
'Loisy e Tyrrell se perderam imediatamente. Os que permaneceram [na Igreja], Blondel, e os exegetas Batiffol, o Padre Garndmaison, o Padre Lagrange, por exemplo, se acharam, assim como os restantes da intelligentsia teológica, diante dos inícios de tempos muito difíceis' (T. M. Schoof, La Nueva Teologia Catolica, Edicções Carlos Lohlé, Buenos Aires - México, 1971, p. 90).
E note, Ilmo. Doutor, que o Padre Schoof coloca o Padre Lagrange entre os modernistas ... moderados.
Outros epígonos da heresia modernista, mais astutos e mais malígnos, permaneceram, para perpetuá-la e fazê-la triunfar 'sob o véu dos textos estranhos'. Por isso, Teilhard de Chardin explicava a um Padre dominicano que deixara a Igreja, que respeitava a sua decisão, mas que ele permaneceria na Igreja, para continuar a luta desde o interior da própria Igreja.
'Essencialmente, como o senhor, eu considero que a Igreja (como toda e qualquer realidade viva, depois de certo tempo) chega a um período de 'mutação' ou de 'reformas necessárias'. Após mais de dois mil anos, isso é inevitável.. A humanidade está em via de mudanças. Como o cristianismo poderia não fazê-lo? Mais precisamente, eu considero que a Reforma em pauta não é uma simples questão de instituições ou de costumes, mas de Fé. Pois bem, esse gesto fundamental de gestação de uma nova Fé para a terra, creio eu, ( e imagino que o senhor também seja da minha opinião) somente o cristianismo pode fazê-la. Eu estou convencido disso: é de uma nova cristologia, extendida às dimensões orgânicas de nosso novo universo, que se prepara para sair a religião de amanhã. Afirmado isto, (e nisto é que nós divergimos: mas a vida não procede por vias de tateamentos?) isto posto, eu não vejo ainda um modo melhor para mim de promover aquilo que eu antecipo senão o de trabalhar para a reforma a partir do interior [da Igreja]. Muito sinceramente (e sem querer criticar o seu gesto), eu não vejo senão no tronco romano o sustentáculo biológico suficientemente vasto e suficientemente diferenciado para operar e suportar a esperada transfromação. Trabalhemos cada um em seu lugar. Tudo aquilo que sobe, converge. Muito cordialmente seu' (Teilhard de Chardin, Carta, apud Itinéraires, n0 91, pp. 114-143, e apud Savoir et Servir, n0 56, p. 75. O negrito é meu. E lhe peço que não me julgue partidário dessas revistas que citei).
Esta tática, de permanecer na Igreja, tinha sido recomendada por Monsenhor Duchesne que disse, ele também, numa carta ao modernista e apóstata Padre Marcel Hébert:
'Quem será tão sincero a ponto de confessar preocupações como as suas? (...) Estamos numa reviravolta (...) Ensinemos, então, aquilo que ensina a Igreja, e em seu nome, e sob a sua responsabilidade.
'Não dissimulemos que, em tudo isso, há uma grande parte de simbolismo que exige uma exegese. Mas, deixemos essa exegese ser feita no interior e por indivíduos (...) Poderá acontecer que, apesar de todas as aparências, o velho edifício eclesiástico venha um dia a desmoronar... Se isto vier a ocorrer, ninguém nos criticará porque sustentamos a velha casa o mais possível. Dir-se-á que, no fim das contas, não tínhamos outra casa para nós e para aqueles que estavam ao nosso redor' (Monsenhor Duchesne ao abade Marcel Hébert, 18- de janeiro de 1900. Apud Jean Rivière, op cit. p. 151-152).
E foi aquilo que aconselhava fazer o modernista Tyrrell:
'Permanecer [na Igreja] e fazer todo o possível para desenvolver idéias mais sadias.
'Se os reformadores do século XVI tivessem ficado na Igreja, talvez tivessem chegado a uma solução mais tardia, mas seguramente mais sadia, que aquela que foi realizada por Trento' (Hilaire Bourdon, pseudônimo de G. Tyrrell, in The Church and the Future, apud Jean Rivière, Le Modernisme dans l'Église, Lib, Letouzey et Ané, Paris, 1929, p. 8).
E um que fez todo o possível — e quase o impossível — para permanecer na Igreja, foi Maurice Blondel, cuja doutrina inspirou a Nova Teologia, triunfante no Vaticano II..
Esse trabalho de propagação das doutrinas modernistas foi realizado de modo quase secreto. Na Sacrorum Antistitum, São Pio X afirma que os Modernistas estavam organizados de modo secreto, — em uma verdadeira sociedade secreta, — para prosseguir a sua ação.
Diversos teólogos que defenderam idéias modernistas, declararam como tinham aprendido a doutrina condenada, nos seminários onde tinham estudado.
Nos seminários dos Jesuítas, na França, havia mestres, como o Pe. Auguste Valensin que desenvolveram um papel lamentável, defendendo as doutrinas do Modernismo, sobretudo as doutrinas de Blondel. Entre os alunos desses mestres modernistas devem ser mencionados Henri de Lubac, Jean Daniélou, e Hans Urs von Balthasar.
Esses contaram que alguns dos seus mestres ensinavam a doutrina tradicional nas aulas, mas que, depois, forneciam a certos alunos cópias manuscritas da tese de Blondel, L`Action, por vezes, com um conteúdo mais explícito do que aquele que tinha sido impresso e publicado...
Henri de Lubac dirá que havia mestres que, por uma louvável exceção, permitiam que alguns de seus alunos lessem as obras de Blondel. Tanto que ele escreveu a Blondel que tinham sido os livros dele que lhe tinham preparado os caminhos para elaborar a sua Nova Teologia (H. de Lubac, Carta a Maurice Blondel, 8 abril de 1932. Apud, Les Pionniers du Vatican II, in Savoir et Servir, número 56, tomo I, p. 55). De Lubac reconheceu ainda, em outra carta a Maurice Blondel, que a obra dele [Blondel] 'teve uma influência capital e profundamente benéfica sobre a orientação do seu pensamento' (Carta de Henri de Lubac a Maurice Blondel, 5 março de 1930, in Savoir et Servir, número 56, tomo I, p. 60).
Von Balthasar conta que tapava os ouvidos com algodão, para não ouvir aquilo que lhe dizia o seu professor de Teologia Escolástica, enquanto lia, às escondidas, as obras de de Santo Agostinho.
Que devoção por Santo Agostinho! Ou que desprezo pela escolástica!
E além de devotos leitores secretos de Santo Agostinho, não haveria aqueles que, como de Lubac, liam às escondidas as obras de Blondel?
E além de Blondel, não se liam também os livros de Loisy, de Tyrrel e de outros modernistas mais considerados?
Foi deste modo que os modernistas prosseguiram sua ação.
No Saulchoir dominicano, o Pe. Chenu, por sua vez, fazia a difusão da idéias e doutrinas do Modernismo. O antigo discípulo de Maurras, Yves Congar, depois da condenação da Ação Francesa, em 1926, mudou da direita para a esquerda, e aprendeu com Chenu o Modernismo do qual se tornou um líder e propugnador, até o Vaticano II. Enquanto isso, o Abbé Bauduin fazia o mesmo trabalho de difusão do Modernismo cautelosa, para não dizer secretamente, no campo litúrgico, onde Bouyer e Zundel o seguiram e desenvolveram as suas idéias destrutivas da sagrada Liturgia, coisa que aconteceu, enfim, com a obra do Monsenhor Bugnini, aprovada por Paulo VI (Peço-lhe que não pense, Ilmo. Doutor Papetti, que eu seja um seguidor do Monsenhor Lefebvre, ou um membro da Fraternidade São Pio X, que o senhor se enganaria).
É deste trabalho subterrâneo, para não dizer secreto, que nasceu a assim chamada Nova Teologia. E enquanto nos seminários se fazia essa difusão secreta, no Vaticano maquinavam-se conjurações para proteger os defensores da Nova Teologia.
Que a chamada Nova Teologia resultou de um longo trabalho subterrâneo — talvez teria sido mais exato dizer secreto — foi reconhecido por um autor muito favorável ao Modernismo, à Nova Teologia, assim como ao Vaticano II. Refiro-me ao dominicano holandês T. M. Schoof que, em obra com Introdução escrita por E. Schillebeeckx, afirmou:
'(...) nossa intenção representa uma indagação 'atrás das novidades teológicas', a fim de demonstrar que a situação atual, ainda confusa, tem uma história anterior— algo subterrânea — um contexto que pode esclarecer muitas coisas' (T. M. Schoof, O .P. La Nueva Teologia Catolica, Ediciones Carlos Lohlé, Buenos Aires- México, 1971, p. 24).
E por que esse trabalho foi subterrâneo?
Porque era necessário não confessar as suas raízes heréticas modernistas.
'A siuação atual da teologia católica tem raízes facilmente reconhecíveis aproximadamente no começo deste século [o século XX] : o episódio breve e pouco estimulante do Modernismo; um termo que, desde então, tem uma carga emocional tão marcada que os sustentadores da renovação [teológica] o evitam instintivamente, porque seus esforços são denominados imediatamente de (neo)- modernistas' (T.M. Schoof, La Nueva Teologia Catolica, Ediciones Carlos Lohlé, Buenos Aires- México, 1971, p. 29)
Esse mesmo autor coloca na raiz do Modernismo a questão exegética e a 'nova apologética de Maurice Blondel (Cfr. T. M. Schoof, O .P. La Nueva Teologia Catolica, Ediciones Carlos Lohlé, Buenos Aires- México, 1971, p.31).
Após o final de Segunda Guerra Mundial, o Padre Daniélou, um dos líderes da Nova Teologia, proclamou que 'havia chegado o momento de reparar a ruptura que se produzira entre a teologia e a vida' (..) Daniélou (...) esboça de maneira sugestiva as três perspectivas que se davam aí: retorno às fontes bíblicas, patrísticas e litúrgicas; contato com o marxismo e com o existencialismo, que oferecem as noções fundamentais da historicidade e da subjetividade; e uma dedicação apostólica à vida cristã, tanto individual quanto social' (T. M. Schoof, O .P. La Nueva Teologia Catolica, Ediciones Carlos Lohlé, Buenos Aires- México, 1971, p.138).
Foi o Pe.Garrigou-Lagrange que criou a fórmula 'Nova Teologia' para designar o pensamento que, nascido da obra de Blondel, se desenvolveu depois nos livros de Henri du Lubac, do Pe. Daniélou, de Urs von Balthasar, de Chenu, de Congar e semelhantes.
Em 1946, o Pe. Garrigou-Lagrage publicou um artigo na revista Angelicum, artigo no qual perguntava:
'Onde vai a Nova Teologia? Ela nos leva diretamente ao Modernismo' (R. Garrigou-Lagrange, O.P.. 'La nouvelle théologie, où va-t-elle?' Angelicum, nº 23, 1946, p. 136.).
Daí nasceram importantes polêmicas sobre o caráter Neo Modernista da Nova Teologia, originada das obras de Maurice Blondel.
Essas polêmicas são muito importantes, porque foram os teólogos da Nova Teologia que triunfaram no Vaticano II. Se a Nova Teologia é modernista, então o Vaticano II aprovou as teses do Modernismo, assim como disse Jean Guitton.
O Padre Schillebeeckx, famoso teólogo modernista e perito dos mais influentes no Vaticano II, escreveu:
'O Vaticano II foi uma espécie de confirmação daquilo que os teólogos tnham feito antes do Concílio: Rahner, Chenu, Congar e os outros (...) os teólogos que tinham sido condenados, afastados das cátedras de ensino, mandados para o exílio, [foi] a sua teologia que triunfou no Vaticano II'. (Padre Schillebeeckx, in 'Jesus', Maio de 1993).
Portanto, se a nova teologia é modernista, o Vaticano II aprovou as teses do Modernismo, assim como disse Jean Guitton.
Na polêmica iniciada pelo Pe. Garrigou-Lagrange se acusava, em primeiro lugar, que a definição de verdade de Blondel favoreceria o Modernismo e o Relativismo. De fato Blondel dizia que a verdade era a adequeção real da mente e da vida.
Esta definição, ao contrário da definição escolástica — que diz que a verdade é a adequação do intelecto à coisa (adequatio rei et intellectus) — destruía a metafísica tomista, porque, na definição de verdade, introduzia a vida — com as suas mudanças contínuas [ainda que não se aceitasse a evolução biológica] — no lugar da coisa, causando uma concepção evolutiva da realidade e da verdade. E isto era Modernismo.
Comentava o Pe. Garrigou-Lagrange, no supracitado artigo:
'A verdade é, portanto, a conformidade do intelecto com a realidade. Qualquer mudança nesta noção universal de verdade leva consigo uma mudança total na esfera do conhecimento. Os modernistas, diz São Pio X, abandonaram a eterna noção de verdade'.
Para Blondel a verdade seria a correspondência entre o intelecto e a vida.
Esta mudança da noção de verdade carregava consigo uma grande responsabilidade, porque punha de lado uma definição aprovada pela Santa Igreja por séculos, para favorecer uma definição que relacionava o pensamento com a vida, que é móvel. Tanto mais que Blondel, como tantos outros do seu tempo, era influenciado por uma concepção evolutiva do mundo e da realidade, por meio do pensamento não só de Darwin e de Spencer, mas sobretudo pelo pensamento gnóstico e evolutivo de Bergson.
A vida era a vida humana. Mas São Pio X já tinha condenado a concepção de que 'A verdade não é mais imutável que o próprio homem, pois se desenvolve com ele, nele e por ele' (São Pio X. Decreto Lamentabili, erro 58. Denzinger, 2038). (Cfr. Padre Reginald Garrigou-Lagrange, O.P., Reality - A Synthesis of Thomistic Thought, Cap. 57; Realism and Pragmatism, http://www.ewtn.con/library/THEOLOGY/REALITY.htm)
O Padre Garrigou-Lagrange tinha razão em sua acusação de relativismo doutrinário infundido na definição de verdade de Blondel, que, em 1906 escrevia:
'Pois que há sempre algo de novo no mundo, não é possível colher o ser em repouso, em uma definição puramente estática'(...) 'A filosofia, desde o seu início, tende ao movimento incessante e não busca fixidez senão na orientação de seu caminho' (DP, p. 233).
“Nem em nós, nem fora de nós, senão por uma simulação praticamente indispensável, mas filosoficamente ilegítima, não se alcança, por via especulativa, objetos fixos, distintos e irredutíveis, a átomos de consciência e de substância” (DP p. 232, apud Francesco Bertoldi, Il Dibattito sulla verità tra Blondel e Garrigou-Lagrange, in Sapienza, vol. XLIII, fasc. 3, pp. 293-310; http://www.culturanuova.net/accademia/dibattitoBlondel-GL.php)
Se bem que este autor [Bertoldi] seja muito favorável a Blondel, procurando entendê-lo e desculpá-lo, ele mesmo confessa que “talvez tenha faltado, em Blondel, um esforço suficiente para evidenciar uma sua clara diferenciação do Modernismo” (Francesco Bertoldi, art. cit. Conclusione).
É verdade que até hoje se discute sobre o que Blondel quis dizer, tanto ele é obscuro e hermético. Antes, como ele mesmo admite, que, em um certo sentido ele é 'esotérico'.
Muitos o defendem como ortodoxo. Outros o acham modernista. Como resolver o problema?
Ninguém tem maior autoridade sobre a verdadeira interpretação da filosofia de Blondel do que ele próprio. Certamente Blondel sabia o que significava a sua complicada e 'esotérica' filosofia.
E Blondel escreveu, em carta a Loisy, que a sua filosofia estava em harmonia com a doutrina do exegeta modernista:
“Vossos pensamentos só poderão triunfar, se a obra prévia à qual eu me dedico tiver êxito” (Maurice Blondel, Carta a Alfred Loisy, 15 de fevereiro, 1903, in R. Marlé, Au Coeur della Crise moderniste, Aubier, Paris, 1959, Vol. I, p. 88).
A esta quase proposta de cooperação, Loisy respondeu ironicamente: “ O senhor nasceu para escrever encíclicas, e se eu for admitido no próximo Conclave, eu proporei a sua candidatura (...). Se eu quisesse ser um pouco maldoso, eu lhe diria que o senhor me recrimina principalmente por não ter colocado sua filosofia na minha história” (Alfred Loisy, Carta a Blondel, 22 de fevereiro de 1903, in R. Marlé, Au Coeur de la Crise Moderniste, ed cit., Vol. I, p. 96).
Portanto, o próprio Blondel reconhecia a afinidade da sua filosofia com o sistema modernista, e queria colocá-la ao serviço da causa modernista.
Da polêmica de Garrigou-Lagrange com os Neo Modernistas se chega, finalmente, à publicação da Encíclica Humani Generis, de Pio XII, em 1950, e à punição de alguns líderes da Nova Teologia, como Lubac e Congar, que foram colocados “em dormição”, por um certo tempo.
Quando Pio XII morreu, e com a eleição de João XXIII ao Sumo Pontificado — Roncalli, que era amigo de Buonaiuti, de Turchi, e do Abbé Bauduin — então, os teólogos da Nova Liturgia foram “despertados” e, bem mais tarde, Lubac, Daniélou e von Balthasar, foram elevados ao cardinalato. Foram eles que triunfaram no Concílio Vaticano II.
Que a Nova Teologia se originou da filosofia da Ação de Blondel é reconhecido pelos teólogos modernistas, como o famoso Padre Comblin, favorável à Teologia da Libertação, e que escreveu no seu livro sobre a Nova Teologia:
'Pareceu-nos que o que se vai formando poderia chamar-se uma teologia da ação. (...) O que se deve entender por ação no-lo mostrará o exame das orientações presentes da teologia. Desde o primeiro momento, sem embargo, o termo 'ação' parece invocar o patrocínio de M. Blondel, e este patrocínio é significativo. Não carece de sentido o fato de estar presente a sombra de Blondel e de ser ela o cerne de muitos trabalhos e orientações da hora atual. Se nem sempre os inspira, sem embargo a obra e inspiração de Blondel ao menos podem simbolizar seu sentido profundo.'(José Comblin, Teologia da Ação. 30 Anos de Investigação, São Paulo, Herder, 1967, pp.8-9; cf. ibid., p. 61 e p. 13).
Conforme Latourelle, a Nova Teologia nasceu do Modernismo, porém também influenciada pelo Existencialismo e pelo Personalismo de Nedoncelles e de Mounier. Não é preciso dizer que a teologia crítica protestante de Moltman, Bultmann, e de outros, era vista com simpatia pelos teólogos da Nova Teologia.
Vimos que também Schoof reconhece que a Nova Teologia nasceu do Modernismo.
2) A Revelação conforme a Nova Teologia
Para esta Nova Teologia osmótica à protestante, a revelação nos chega na forma de história, e não por idéias abstratas. O Padre Chenu se opunha muito ao intelectualismo abstrato na revelação.
Para o Padre Charlier, o revelado é, antes de tudo, uma realidade, e não idéias abstratas: “A fé ─ segundo o Padre Charlier ─ supõe que nós, por meio de um conceito e de uma fórmula, atingimos a res, isto é, a mesma realidade divina (L.Charlier, Essai sur le Problème Théologique, Thuillies, 1938, p. 66, apud R. Latourelle, op. cit. p. 253).
Se bem que o Padre Charlier fale em conceitos e fórmulas da revelação, tais conceitos e fórmulas servem apenas como meios para alcançar a res divina, objeto verdadeiro e final da revelação.
Portanto, para a Nova Teologia, os dados iniciais da teologia da religião não são princípios, ou verdades metafísicas, ou físicas, das quais decorrem conclusões, mas, antes de tudo, a própria res divina na história.
'O próprio Padre Charlier afirma, a esse respeito, que a revelação não é uma comunicação de verdades que podem funcionar como princípios de uma ciência comum, dedutiva, mas que é uma realidade: 'Deus que se dá a nós por meio de Cristo no mistério da encarnação, de cujo mistério a Igreja é apenas uma continuação' (L. Charlier, Essai sur le Problème Théologique, Thuilles, Paris, 1938, p. 69). Esta realidade da revelação evolui, desde que foi dada à Igreja, e este crescimento é a fonte da nosso conhecimento progressivo' (Padre T. M. Schoof, La Nueva Teologia Catolica, Ediciones Lohlé, Buenos Aires, 1971, p. 248).
Ora, como vimos, eram os modernistas que afirmavam que na revelação se entraria em contato com a própria res divina, e não que se conheceriam verdades relativas a esta res divina. Quanto a este ponto, pois, a Nova Teologia era, de fato, modernista.
'O Padre de Lubac ensinava que 'o mistério da salvação despedaça todos os nossos conceitos humanos. Por isso, de Lubac descreve, como ponto de partida da evolução dogmática, o ato salvador de Cristo, 'o todo do dogma', que nós alcançamos num conhecimento extremamente concreto e vital que contém as expressões porteriores numa unidade superior; uma idéia que lembra Newman, porém que, de modo notável, não recebeu nenhuma influência direta dele' (PadreT. M. Schoof, O . P. La Nueva Teologia Catolica, Ediciones Lohlé, Buenos Aires, 1971, p. 249).
'No último trabalho de Rahner sobre a evolução do dogma, pouco antes do Concílio,(...) a sua idéia fundamental é que a revelação é uma auto revelação de Deus que se refere expressamente ao espírito do homem. Ela seria, pois, comunicação da própria realidade de Deus, e não só de um determinado número de proposições, porém manifesta como um conteúdo apreensível pelo intelecto por meio de palavras' (PadreT. M. Schoof, O. P., La Nueva Teologia Catolica, Ediciones Lohlé, Buenos Aires, 1971, pp. 261-262).
Chenu praticamente substitui a Metafísica pela História, como base da Teologia, dando à revelação um caráter dinâmico, processivo, móvel. A antiga estabilidade da fé é substituída pelo dinamismo da História.
A Nova Teologia considera, como o Modernismo, que a revelação, e a fé que lhe corresponde, são pessoais, ou melhor, personalísticas. A Revelação seria um diálogo interpessoal entre Deus e o homem, através daquela coisa que a Nova Teologia donominava “a Presença”. Assim mesmo, “Presença”, sem dizer o que seria essa misteriosa “Presença”. Porém, deixa-se entender que é a ‘Presença” da Divindade imanente na criação, no homem e na história.
O uso indefinido do termo “Presença” permitirá aos modernistas, principalmente no campo da liturgia, jogar com as palavras de modo a tratar da “Presença” de Deus na Hóstia consagrada de forma indistinta da Presença de Deus na Escritura, na “comunidade”, etc. Se se quer um exemplo da confusão que se faz com o misterioso termo “Presença”, basta ler um artigo qualquer de Mons. Giussani, onde este termo “Presença” aparece obsessivamente de modo nebuloso, misterioso e indefinido.
É ao Padre Louis Bouyer que devemos agradecer pela revelação do significado dessa misteriosa “Presença”. Em um dos seus livros significativamente intitulado Gnosis – O Conhecimento de Deus na Escritura, há um capítulo inteiro dedicado à 'Schechinah e à mística da Merkabah' no qual ele explica:
“Foi justamente possível dizer que nada é mais exclusivamente característico da noção bíblica de Deus, que a sua transcendência e a sua imanência, que, constantemente, estão juntas. E muito frequentemente se esquece que estas duas noções de imanência e transcendência são invenções de Spinoza, que, por mais herege que se tornou aos olhos da ortodoxia judaica, continua sendo fundamentalmente judeu na sua afirmação da sua inseparabilidade” (L.Bouyer, Gnosis – Gnosis – La Connaissance de Dieu dans l'Écriture, Cerf, Parigi, 1988, p. 51).
S. Thomas explica, na Summa Teológica (I, Q 8, a. 3) que Deus está presente em tudo por essência, por presença e por potência. Por essência, não no sentido imanentístico ou panteísta, ou gnóstico, que Deus seria parte de todas as coisas, mas porque mantém continuamente o ser das criaturas. Por presença, porque Deus tudo conhece. Por potência, porque Deus tudo governa. Por isso S. Pio X, condenando a noção de imanência dos Modernistas, fez uma distinção: embora se possa dizer, de certo modo, secundum quid, que “Deus, atuando no homem, é mais íntimo ao homem que o próprio homem a si mesmo, e esta afirmação, bem entendida, não merece censura, há outros que pretendem que a atuação divina é uma só e a mesma com a ação da natureza, como a ação da causa primeira com a causa segunda; e isto destruiria a ordem sobrenatural. Outros a explicam, enfim, num sentido que tem sabor de panteísmo; e estes, para dizer a verdade, são mais coerentes com o resto da sua doutrina” (Pio X, Pascendi, n 0 19. Denzinger, 2087).
Para a Gnose, Deus é transcendente e imanente, não no sentido católico. A identidade dos termos, usados em sentido diferente, é para enganar os incautos. Para a Gnose, a Divindade desconhecida é absolutamente transcendente, porque não tem nenhuma relação com o mundo criado, obra do demiurgo malígno. Ao mesmo tempo, a Gnose afirma que Deus é imanente ao mundo, porque houve a queda da Sofia – exatamente a Schechinah da Cabala – na criação, quando o demiurgo teria aprisionado a partícula divina da Sofia (Schechinah) nas criaturas.
Que a Schechinah é a mesma Sofia dos Gnósticos, fica claro, indubitavelmente, quando lemos as obras de Gerschon Scholem sobre a Cabala, nas quais ele muitas vezes afirma que a Cabala é a Gnose judaica (Cfr. Gerschom G. Scholem, A Mistica Judaica - Major Trends in Jewish Mysticism - tradução em português, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1972; Kabballah, Keter, Jerusalem, 1974; Les Origines de la Kabbale, Aubier, Paris, 1966; Jewish Gnosticism, Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition, The Jewish Theological Seminary og America, New York, 5725- 1965).
Permita-me, Ilmo. Doutor Papetti, de fazer uma citação de uma destas obras de Scholem que nos dá uma informação muito importante sobre o processo teosófico intra divino.
“Mas, enquanto que em todos os outros exemplos, os cabalistas se abstêm de empregar imagens sensuais ao descrever as relações entre o homem e Deus, eles não mostram nenhuma hesitação similar, quando passam a descrever a relação de Deus consigo mesmo, no mundo sefirótico. O mistério do sexo, como se apresenta ao cabalista, tem um significado terrivelmente profundo. Esse mistério da existência humana não é para ele nada mais que um símbolo do amor entre o “Eu” divino e o “Tu” divino, o Santo, bendito seja Ele, e a Sua Schechinah. O hierós gamos, a “união sagrada” do Rei e da Rainha, do Noivo Celeste e da Noiva Celeste, para mencionar alguns dos símbolos, é o fato central de toda a cadeia das manifestações divinas no mundo oculto. Em Deus há a união do ativo e do passivo, procriação e concepção, das quais derivam toda a vida e felicidade mundanas” (Gerschom G. Scholem, A Mistica Judaica - Major Trends in Jewish Mysticism- tradução portuguesa, ed. Perspectiva, São Paulo, 1972, pp. 228-229).
Não é necessário, penso, explicar como esta noção cabalista, transmitida por Jacob Boheme, foi adotada por Hegel e, depois, por seus discípulos românticos, até chegar à teologia protestante que, por osmose, a passou a diversos teólogos modernistas e gnósticos, como Sergej Bulgakov e Urs von Balthasar.
E, como vimos, o Padre Louis Bouyer ousa identificar a misteriosa “Presença” – tão cara aos modernistas atuais – com o nome de Schechinah, à última emanação da Divindade oculta dos cabalistas na árvore sefirótica, o sexo feminino da Divindade oculta, a Sofia dos gnósticos.
É fácil falar em termos misteriosos, e fazer o público engolir a palavra desconhecida – Schechinah –sem dizer o que é essa misteriosa Schechinah. Esse método é típico dos Modernistas, para fazer aceitar suas doutrinas “sob o véu de palavras estranhas...”.
Assim, a revelação seria religiosa, mística, pessoal, da própria realidade divina, do Mistério divino que se faz “Presença” – Schechinah – Deus imanente no homem e em toda a criação.
Como se poderá negar que essa “Presença” da Schechinah, na doutrina da Nova Teologia, não a torna suspeitíssima de Gnose?
Voltando às notas da revelação segundo a Nova Teologia, como pensava o Padre L. Charlier, tais notas seriam pois:
a) Pela fé nós atingimos a própria res divina;
b) O principal objeto da revelação é Deus em pessoa, e não tanto verdades sobre a natureza divina;
c) Aquilo que se revela é o Cristo total, e com ele, a Trindade, que se desenvolve, cresce, na Igreja e na História;
d) O caráter histórico da revelação lhe dá uma dimensão que obriga a desenvolver o dogma, que seria sempre uma fórmula temporária e imperfeita, como ensinavam os Modernistas.
Os teólogos da Nova Teologia assumiam uma posição contrária à doutrina tradicional que sempre entendeu a revelação como um conjunto de verdades reveladas por Deus e consignadas em depósito da Igreja Católica.
Para os novos teólogos, a revelação — ainda que tivesse verdades dirigidas ao intelecto — era, principalmente, uma experiência pessoal, interior, intuitiva e inefável, exatamente como diziam os Modernistas. A única diferença seria que os novos teólogos admitiam que, além da experiência, haveria nela algumas verdades, mas de menor importância do que a própria experiência pessoal da fé.
Os Padres Chenu, Congar, Charlier, e de Lubac, se posicionavam contra o aspecto “excessivamente intelectualístico” da revelação, como sempre fora ensinada pela Igreja.
O ponto de partida da Nova Teologia consistia em considerar a revelação como um testemunho de Deus sobre Si mesmo. Mas, este testemunho não era propriamente o veículo de um conhecimento real. Era algo mais: o Testemunho da própria realidade divina – a res divina – como objeto de percepção amorosa e intuitiva.
E mais: a revelação seria um lento caminhar das trevas à luz. Esse caminhar seria realizado no processo histórico através de fatos e de palavras interrelacionadas.
A revelação teria, portanto, um caráter claramente interpessoal e dinâmico, entre Deus e a pessoa humana, e não comunicaria verdades imutáveis. Não é preciso dizer que a Nova Teologia considerava a revelação como um fenômeno humano, possível a qualquer homem de qualquer religião, e não de uma exclusiva e específica religião, ou seja, da católica.
O objeto da religião seria a realidade divina enquanto tal, o próprio Deus, recebida na experiência pessoal, que traria com ela verdades ou conceitos que exprimiam de modo imperfeito o testemunho divino.
A fé, não havia dúvida, era um consentimento às proposições que exprimiam o mistério. Mas, através daquelas expressões, a fé teria em vista a própria realidade do mistério, isto é, o próprio Deus.
O progresso do dogma não derivaria do progresso dos estudos, mas principalmente do progresso da realidade divina na Igreja. É esse progresso da realidade divina na Igreja que provocaria o progresso teológico teórico.
Autor insuspeito, René Latourelle, critica o pensamento de Charlier com estas palavras:
“Assim, segundo o Padre Charlier, a revelação é principalmente a comunicação da própria realidade divina: presença misteriosa oferecida à experiência da fé. A revelação doutrinal (mensagem de salvação comunicada ao homem) passa claramente para o segundo plano. O dado-revelado-realidade (o próprio Deus no mistério de Cristo e da Igreja) está em perpétuo processo de crescimento. É todo o mistério que cresce e, conseqüentemente, o conhecimento que temos dele. Tal conceito de revelação, além de contradizer os dados da Escritura e do Magistério, que apresentam o dado da fé como uma mensagem, ou seja, a Boa Nova da salvação, coloca em perigo a verdadeira noção de progresso dogmático. De fato, segundo o Padre Charlier, este progresso dogmático já não pode mais ser concebido como um conhecimento cada vez mais profundo e mais explícito do depósito da fé, histórica e objetivamente construído (deixando bem claro que a Igreja, graças à positiva assistência do Espírito Santo, dispõe, por isso, de um poder de penetração que transcende o da simples razão). O progresso dogmático deveria ser entendido como uma assimilação da própria realidade divina, possuída misticamente, em contato supra conceitual na experiência da fé” (R. Lattourelle, Op. cit., p. 255).
Permita-me dizer-lhe, Ilmo. Doutor, que, para mim, tudo isto é puro Modernismo e Gnose, colocada numa terminologia moderna. A Cabala não diz muito diferentemente.
O próprio Latourelle também considera cinco notas teológicas da revelação, conforme a assim denominada Teologia Kerigmática de Jungman, Rahner, e de outros:
1) A revelação seria histórica, e o seu objeto seria Cristo em pessoa;
2) A revelação teria um caráter econômico, isto é, seria constituída de eventos organicamente coligados entre si;
3) A revelação seria crística, centrada em Cristo;
4) A revelação seria salvífica;
5) E, finalmente, a revelação seria interpessoal.
E não é preciso realçar como estas notas são semelhantes às notas admitidas pelo douto parecer teológico do “Instituto Paulo VI de Brescia”.
O nó do problema, segundo o Padre de Lubac, consistiria em saber o que é propriamente a revelação. Para ele, como para os Modernistas, ela não seria um conjunto de verdades numeráveis, um formulário de crenças fornecidas por Jesus Cristo, no qual se deveria crer.
O Padre de Lubac concordava com os outros teólogos da sua escola que o objeto da revelação era a res divina, e não tanto verdades sobre ela.
“Cristo é, ao mesmo tempo, o mistério e a revelação do mistério, o todo da revelação e o todo do dogma” (Henri de Lubac, Bulletin de Théologie Fondamentale. e Problème du Dogme. Recherches de Sciences Religieuses, 1948, n. 35, pp 156-157).
E tudo isto não seria jamais englobado de modo pleno pelas proposições doutrinais.
“Em Jesus Cristo, tudo nos foi dado e revelado, de uma só vez (...); conseqüentemente, todas as explicações ulteriores, seja qual for o seu teor e o seu modo, não passam de pequenas moedas de um tesouro já possuído como um todo. Tudo já estava contido de modo real e atual num estado superior de conhecimento, e não somente contido nos princípios e premissas' (idem, pp. 157-158).
E Latourelle comenta:
“Se bem entendemos, o Padre de Lubac coloca no primeiro plano, na revelação, a própria realidade do mistério de Cristo. Este “Todo concreto” da fé é o objeto de uma aprensão global, intuitiva, viva: estado superior de conhecimento que 'real e atuante”, precontém o dogma com todas as riquezas do seu desenvolvimento posterior” (R. Latourelle, op. cit. p. 268).
Essa fé seria conhecimento superior, intuitivo, global, vivo, exatamente aquilo que foi sempre chamado de Gnose.
E continua Latourelle:
“Relativamente a esta primeira percepção, a necessária expressão conceitual, com suas noções e proposições, seriam como uma revelação num segundo tempo. Sendo assim, o desenvolvimeto dogmático deveria ser entendido como um “desdobramento infinito de conclusões a partir das suas premissas” (H. de Lubac, idem, p. 139). Ou melhor, seria como uma troca de registro: da intuição para a conceitualização: a percepção inicial, ainda global, vai se detalhando em verdades particulares e em fórmulas cada vez mais precisas; sempre, porém, referindo-se à verdade normativa do mesmo Mistério que é percebido num tipo superior de conhecimento dogmático” (R. Lattourelle, op. cit., p. 268).
XII - O problema da Kenosis
Restaria tratar de um último ponto, importantíssimo da doutrina de certos teólogos da Nova Teologia, que influenciaram as doutrinas do Vaticano II, como Karl Rahner e Urs Von Balthasar: a questão da doutrina kenótica.
A palavra grega 'Kenosis' se encontra na Epístola de S. Paulo aos Filipenses onde se pode ler: “[Cristo] existindo na forma (ou natureza) de Deus, não julgou que fosse uma rapina o ser igual a Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de escravo, tornando-se semelhante aos homens, e sendo reconhecido por condição como homem. Humilhou-se a si mesmo, feito obediente até a morte, e morte de cruz!'(Filip, II, 6-7).
O termo “aniquilado”, em grego, é “ekenosen”, que literalmente quer dizer esvaziar-se, tornar-se nada. Evidentemente, este esvaziar-se ou aniquilar-se de Cristo não pode ser entendido literalmente. A Igreja sempre o explicou de modo análogo, isto é, que Deus se humilhou ao fazer-se homem, com a encarnação do Verbo.
Ao assumir a natureza humana, no seio da Virgem Maria, o Verbo de Deus se rebaixou até nós, seus servos, que somos “nada” se comparados com Ele. Deus assumiu a natureza humana sem perder a natureza divina. Mas, esta suprema humildade de Deus não O fez esvaziar-se, no sentido que Deus teria se tornado literalmente nada, um não ser, um vazio, sem substância.
Já Sto. Irineu tinha condenado a doutrina do esvaziamento de Deus que era defendida pelos gnósticos – os modernistas “avant la lettre” – do seu tempo.
“13, 6. Se, além disto, disserem que [o Intelecto de Deus] não foi emitido fora, mas dentro do próprio Pai, é totalmente supérfluo dizer que Ele foi emitido, pois como poder-se-ia dizer emitido aquilo que estava dentro do Pai? A emissão supõe a manifestação do emitido fora do emitente. (...) Só se disserem que, como um círculo menor está contido num maior, e, dentro dele, um outro menor, ou que à semelhança de esferas ou de quadriláteros que envolvem esferas ou quadriláteros, o Pai contém dentro de Si todos as outras emissões dos Éons. Então, cada um deles estará incluído num outro um pouco maior, que, por sua vez, incluiria um menor, e, por isso, o último, o menor, que está no centro, estaria assim tão distante do Pai que não teria conhecido o Protopater.
'Ao dizer isto, incluem o seu Abísmo na série dos figurados e circunscritos, tornando-os, ao mesmo tempo, includentes e inclusores, e então são obrigados a admitir fora dele alguma coisa que o contenha, e prosseguir assim até o infinito o raciocínio acima sobre o que contém e o que é contido, e ficará claro que todos aqueles Éons são como campos fechados dentro de limites”
“13, 7. Mas, ainda mais: ou declaramos que ele é vazio, ou que tudo que lhe está dentro participa igualmente do Pai. Como os círculos ou as figuras redondas ou quadradas feitas na água todas participam da água, como as coisas construídas no ar ou na luz fazem parte do ar ou da luz, assim também aquelas que estão dentro dele participam do mesmo modo do Pai e não pode haver nelas nenhum lugar para a ignorância.
'Onde está a ação do Pai que tudo preenche? Se ele tudo preencheu, aí não deve haver lugar para a ignorância. Assim fica solucionada toda a teoria das degradações, das emissões da matéria e do restante da criação do mundo, o qual dizem eles, ser originada da paixão e da ignorância. Ao dizer que é vazio caem na pior das blasfêmias porque negam aquilo que n’Ele é espiritual.
'Como seria espiritual se não pudesse ao menos preencher aquilo que está dentro d’Ele?” (Santo Ireneo, Adversus haereses, II, 13,6-7).
Também a Cabala de Isaac Luria de Safed dizia que, para criar o mundo, teria sido necessário que a Divindade fizesse um vazio em si mesma, para que, neste vazio, fosse possível criar o mundo. Portanto, para Luria, a Divindade se recolheu em si mesma criando um vazio em si mesma. Luria chamava este movimento de contração em Deus, de Tzim tzum, uma espécie de pulsação na Divindade.
No vazio assim criado, teriam ficado resquícios da luz divina (o Reschinu), e ainda os dejectos de Deus, as klippoth ('cascas'), porque a Divindade, ao fazer esse vazio em si, aproveitou para fazer a purificação do seu ser, eliminando, como dejectos, tudo aquilo que n’Ela era ruím, aquilo que havia de mau na sua substância. Portanto, para a Cabala, o mal teria raízes na própria Divindade, conceito que faz a Cabala ser um sistema gnóstico típico.
Dos restos da luz divina — o Reschinu — e dos klippoth, dejectos ou cascas da divindade, teria sido feito o mundo, que, por isso, seria um mal pelos dejectos de mal da divindade, e ao mesmo tempo seria divino, pela luz divina do reshinu aprisionada na matéria, má por essência. (Para outras informações sobre esta doutrina de Isaac Luria veja-se particularmente a obra de G. G. Scholem, A Mística Judaica, ed. cit.cap. VII, pp 247-291, bem como o livro desse mesmo autor, intitulado Sabbatai Sevi, the Mystical Messiah, Princeton University Press, New Jersey 1973,cap. I, que trata da Cabala de Isaac Luria).
Scholem demonstra como essa doutrina de Luria teria precedentes nas doutrinas dos gnósticos do segundo século cristão:
“Antes de ir adiante, pode ser interessante sublinhar que essa concepção do Reschinu tem um estreito paralelo no sistema do gnóstico Basílides, que floresceu por volta do ano 124 d.C. Também aqui encontramos a idéia de um bendito espaço primordial que não pode ser concebido, nem caracterizado por nenhuma palavra, não obstante não tenha sido abandonado pela “ Filialidade”, termo com o qual ele designa a mais sublime realização da Potencialidade universal, da Filialidade com o Espírito Santo, ou Pneuma. Basílides afirma que exatamente quando o Pneuma ficou vazio e separado do Filho, mesmo assim, ele reteve, ao mesmo tempo, o seu perfume, que impregnava tudo acima e abaixo, e até a matéria amorfa e a nossa própria forma de existir. Também Basílides emprega o exemplo do vaso no qual a fragância de um unguento docemente aromático persiste, apesar do vaso ter sido esvaziado com o maior cuidado.
'Além disto, temos um protótipo precoce do Tzimtzum no gnóstico “Livro do Grande Logos”, um daqueles assustadores remanescentes da literatura gnóstica preservada pelas tradições coptas. Aí somos informados que todos os espaços primordiais e as suas “paternidades” passaram a existir devido à “ pequena idéia”, o espaço que Deus deixou atrás de Si, como o radiante mundo de luz, quando Ele se recolheu a Si próprio dentro de Si mesmo. Essa retirada, que precede toda emanação, é repetidamente acentuada” (G.G. Scholem, A Mística Judaica, ed. cit., pp. 267-268).
Como dissémos, o mesmo Sto. Irineu, nos primeiros tempos da Igreja, já havia condenado esta idéia do vazio em Deus expresso na Gnose de Valentino:
“Ainda assim, de onde vem esse vazio? Se ele foi emitido por aquele que, segundo eles, é o Pai e o emissor de todas as coisas, então nele haveria a mesma dignidade d’Ele e é parente dos outros Éons, e talvez seja seja ainda mais velho que eles. Se foi emitido pelo próprio Pai, é semelhante àquele que o emitiu e àqueles com os quais foi emitido. Há, portanto, necessidade absoluta que o Abismo e o Silêncio dele sejam semelhantes ao vazio, e por este vazio, é que os Éons restantes, porque são irmãos do vazio, eles também tenham a substância do vazio. Se, porém, não foi produzido, ele nasceu de si mesmo, foi gerado por si mesmo e é igual , no tempo, àquele que para eles é o Abísmo e o Pai de todas as coisas. Assim, o vazio é da mesma natureza, digno da mesma honra que, segundo eles, tem o Pai de todas as coisas. Portanto, é necessário que o vazio tivesse sido produzido por alguém ou por si mesmo ter-se produzido, e de si nascido. Mas se o vazio é o produto, vazio é o produtor, vazio é Valentino, vazios são os seus sequazes” (Santo Ireneu, Adversus Haereses, II, 4,2).
(E, de passagem, registro como os santos utilizavam a ironia como arma de combate contra os hereges).
E continua Santo Irineu contra os gnósticos:
'Cairia também sua doutrina da sombra e do vazio nos quais, dizem, foi produzida a nova criação, se ela fosse feita no âmbito do Pai. Com efeito, se pensam que a luz paterna pode encher e iluminar todas as coisas que estão dentro dele, como poderia haver vazio e trevas nas coisas contidas no Pléroma e na Luz paterna? Eles deveriam indicar dentro do Pléroma ou do Protopai um lugar não iluminado e ocupado por algo, em que os anjos ou o Demiurgo fizeram o que quiseram. E não é lugar pequeno aquele em que foi produzida criação tão grande e extensa. Por isso devem imaginar dentro do Pléroma ou dentro de seu Pai um lugar vazio, informe e tenebroso onde foram criadas as coisas criadas. Então seu lume paterno terá o defeito de não saber iluminar e encher o que está em seu domínio. E mais, chamando essas coisas de produto da degradação e fruto do erro, introduzem o erro e a degradação no Pléroma e no seio do Pai.' (Santo Ireneu, Adversus haereses, II, 4,3).
A doutrina cabalística e gnóstica de Luria sobre o Tzim Tzum foi transmitida à obras de Jacob Boheme, e pelos seus livros, inspirou o movimento pietista e as doutrinas filosóficas do Idealismo germânico, especialmente Fichte, Schelling e Hegel, que adotaram a doutrina kenótica do esvaziamento literal de Deus para criar o mundo e para redimir o homem, na crucificação. Depois, essa doutrina kenótica, influenciou o Romantismo. A teologia protestante do século XIX e XX elaborou toda uma doutrina gnóstica que — como por osmose, como dirá o insuspeito Piero Coda — foi desgraçadamente recebida por certos teólogos modernistas, nominalmente católicos, e, posteriormente, um pouco mais camuflada na Nova Teologia, principalmente de Urs Von Balthasar e de Rahner, teologias que são repetições da velha Gnose.
A doutrina gnóstica de Basílides e do Livro do Grande Logos é, evidentemente, a mesma que será elaborada por Hegel, e repetida por teólogos modernistas quer católicos, como Urs Von Balthasar e Rahner, ou cismáticos, como Bulgakov, ou protestantes como Bultmann.
Toda a doutrina da Kenosis de Deus procura fundamentar-se no texto de São Paulo aos Filipenses, que os gnósticos Modernistas, com seus mestres gnósticos protestantes, interpetam literalmente: Kenosis não deveria significar analogicamente humilhação de Deus, mas deveria ser interpretada literalmente como aniquilação, esvaziamento ontológico.
Para esses Modernistas e gnósticos, eknosen, em Filipenses, II, 6, quer dizer apenas aniquilamento. Um literal aniquilamento, um esvaziamento substancial e ontológico, por meio do qual Deus criou o mundo, e Cristo nos teria divinizado.
Curioso é que se se diz que o fogo do inferno deve ser entendido literalmente como fogo, esses teólogos gritam contra o 'fundamentalismo' da interpretação literal do termo fogo, mas, para o termo eknosen a interpretação literal seria absolutamente necessária e certíssima.
E quem decide qual seria a verdadeira interpretação da Escritura? O teólogo ou o Papa? Quem recebeu as chaves do Reino dos Céus?
O ensinamento da Igreja é totalmente diverso da doutrina da kenosis, pois que Pio XII chamou essa última doutrina de nefanda: 'Vai diretamente contra a profissão de fé do Concílio de Calcedônia, uma conhecida doutrina largamente difundida fora do âmbito da Igreja Católica e à qual deu ocasião aparente uma passagem de São Paulo aos Filipenses (Fil. II, 7) arbitrária e erroneamente interpretada. Referimo-Nos à chamada doutrina 'kenótica', segundo a qual, se chega a despojar a Cristo da Divinidade do Verbo; invenção nefanda, que tão reprovável quanto o docetismo, seu contrário, reduz a nome vão e inconsistente todo o mistério da Encarnação e da Redenção' (Pio XII, Sempiternis Rex, Sobre o Concílio de Calcedônia, nº 31).
Pio XII, com esta encíclica, visava condenar a doutrina kenótica protestante e cismática, que começava a ter uma penetração na Nova Teologia modernista...
E os teólogos Neo Modernistas da Nova Teologia, como von Balthasar, citam Bulgakov, quando falam da kenosis, e jamais de Pio XII.
Daí se vê como sutilmente o movimento teólogico Modernista se sentou na Cátedra de São Pedro. E esses teólogos citam-se uns aos outros, como se fossem os Doutores e os Padres da Igreja Modernista e Gnóstica, que se infiltrou na Igreja Católica. E esses doutores de dúvidas e de negações não têm rubor de citarem, como autoridades doutrinárias, os hereges, os gnósticos, os livros da Cabala, e os filósofos panteístas ou gnósticos, como se fossem fontes de revelação.
Só não admitem o ensinamento dos Concílios dogmáticos ou o ensinamento pontifício. Para eles, o único Concílio, fonte de fé absoluta, seria o pastoral Vaticano II, que não quis ensinar dogmaticamente, e nem mesmo quis condenar nada e ninguém. E em nome dessa tolerância doutrinária do Vaticano II, e em nome da sua fé na liberdade religiosa, se quer fechar a boca de quem quer que defenda a doutrina de sempre da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.
XIII - A Kenosis em Hegel, em Bulgakov e em von Balthasar
a) A kenosis em Hegel
As raízes do pensamento kenótico, e pois, gnóstico, de Hegel, foram os hereges gnósticos Mestre Eckhart e Lutero, além do cabalista Jacob Boehme. Não sou eu que afirmo essas raízes. Elas são reconhecidas também por um autor simpático a este pensamento kenótico como Piero Coda, professor da Lateranense.
'Detivemo-nos somente em Hegel, seja porque, de fato, exercerá mais largo e profundo influxo sobre o pensamento posterior, seja porque programaticamente procurará colocar o discurso trinitário no centro de seu pensamento, com uma novidade de acento que lhe vem da sua formação luterana originária, com decisivos influxos de Eckhart e da mística gnosticante de J. Boehme” (Piero Coda, Dio Uno e Trino - Rivelazione, Esperienza e Teologia del Dio dei Cristiani, Ed. San Paolo, 2.000, p. 227).
E ainda:
'Hegel, obviamente, tem ele também presente a doutrina trinitária, mas ele a colhe em seu dar-se fenomenológico, na morte na cruz, do Verbo feito carne. A oportunidade (ou a 'promessa' como a chamaria K. Barth) é formidável; no entremeio há a mística especulativa de Eckhart, a Kreuzetheologie de Lutero e a teosofia de Jacob Boehme' (Piero Coda, Questio de Alteritate in Divinis, Agostino, Tomaso, Hegel).
E tudo isso, em Hegel, ligado à doutrina da Kenosis:
'Como justamente afirmou E. Jungel, a verdadeira novidade de Hegel foi a de ter conjugado de modo profundo a teologia crucis de Lutero com a teologia trinitária: ou, pelo menos,— parece-me essencial precisá-lo — com aquilo que ele entendia por cada uma dessas duas. Está propriamente nisto, também, aquela que Karl Barth justamente definiu a grande 'promessa' hegeliana: compreender o dinamismo do ser tri pessoal de Deus a partir da kenosis da Encarnação, da cruz e da morte de Jesus Cristo, exatamente aquele 'salto de qualidade' e perspectiva de que necessitava a dogmática tradicional.(...) Essas categorias se reduzem, afinal de contas, àquela de 'Sujeito' ou 'Espírito'(Geist) e àquela de 'negatividade'. Com a primeira [Sujeito], Hegel quer repensar— ainda que à luz da 'descoberta' moderna do sujeito como auto consciência (De Descartes a Kant) — a identidade do Absoluto como movimento do devir à plena e consciente realização de si. Com a segunda [Espírito ou Geist] — inspirando-se naquilo que ele mesmo definirá a 'sexta-feira especulativa' — a 'necessidade' que o Absoluto, para alcançar a si mesmo, tem de passar através do movimento de 'alienação' da extrisicação; numa palavra, da morte. Evidentíssima a inspiração cristã desses conceitos, reconhecida pelo próprio Hegel que define o cristianismo 'a religião dos tempos modernos' Mas evidentíssimo também o racionalismo que nega este pensamento: a fé é absorvida toda ela na razão, Deus na autoconsciência, que tem dele (ou que é) a humanidade' (Piero Coda, Dio Uno e Trino - Rivelazione, Esperienza e Teologia del Dio dei Cristiani, Ed. San Paolo, terza edizione, 2.000, p.227-228).
Hegel repete a noção dialética típica da Gnose, que repudia o princípio de não contradição:
'O especulativo que é retirado da representação religiosa no seu dar-se culminante, de fato, segundo Hegel, é dialético, isto é, o Fassen des Entgegensetzen in seiner Einheit, oder des Positiven im Negativen [o tomar os opostos em sua unidade, ou seja, o positivo no negativo] (Hegel, Wissenschaftder Logik, 52, apud Piero Coda, art. Questio de Alteritate in Divinis, Agostino, Tomaso, Hegel).
Para Hegel, como para a Gnose e a Cabala, a Divindade, o Absoluto, o Fundamento [Ungrund] sobre o qual tudo começa, do qual tudo se desenvolve: 'O começo contém o um e o outro, o ser e o nada, ele é a unidade do ser com o nada; é um não ser que é ao mesmo tempo ser, e um ser, que é, ao mesmo tempo, não ser'( P. Coda, art. cit.).
Nestas frases, é nítida a concepção gnóstica da Divindade primordial.
Como na Gnose, a contradição do nada com o ser seria a causa do movimento dialético na própra Divindade. 'Hegel ilustra 'a verdade do ser e do nada 'como esse movimento consistente no imediato desaparecer de um deles no outro: o devir; movimento em que o ser e o nada são diferentes, mas de uma diferença que imediatamente se resolveu', ao mesmo tempo, na primeira das suas Anmerkungen [Hegel] se volve à metafísica cristã a qual, rejeitando a proposição que do nada viesse nada, 'afirmou uma passagem do nada ao ser' (P. Coda, art. cit.p.8-9)
A Cabala afirma essa mesma doutrina: do nada vem o ser, das trevas vem a luz (Cfr. Gerschom Scholem, Les Origines de la Kabballe, Aubier, Paris, 1966, p. 288).
Essa doutrina dialética, claramente gnóstica, permite a Hegel afirmar que o Mundo é idêntico e contrário à Divindade, assim como o finito e o infinito se resolvem na identidade da contradição, e que, assim também, a Criação e a Divindade são idênticas na contradição, e que, pois, o homem e Deus são e não são, a mesma coisa.
'Mas o finito é apenas isso, tornar-se infinito ele mesmo por sua natureza, a infinitude é a sua destinação afirmativa, aquilo que ele é verdadeiramente em si. Assim, o finito desapareceu no infinito, e aquilo que é, é apenas o infinito' (Piero Coda, art. cit. )
Hegel aplica essa doutrina dialética, junto com a doutrina kenótica, para explicar a sua concepção daTrindade divina.
Para Hegel, as relações das Pessoas divinas devem ser consideradas de acordo com o evento pascal, que significa um total e real doar-se ao Outro, e depois acolhê-lo em Si, isto é, a kenosis, o auto esvaziamento ou aniquilamento de Deus.
'Por meio da idéia profunda segundo a qual o ser da pessoa é o existir na dedicação de si a uma outra pessoa, Hegel considerou a unidade na Trindade como unidade que se realiza somente pelo processo da doação recíproca. Ele concebeu assim a unidade de Deus com uma intensidade e uma energia até agora jamais alcançada, não por meio, digamos, de uma redução da tríplice personalidade, mas exatamente através da mais aguda acentuação da idéia de personalidade' (W. Pannenberg, Lineamenti di Cristologia, apud Piero Coda, Dio Uno e Trino - Rivelazione, Esperienza e Teologia del Dio dei Cristiani, Ed. San Paolo, terza edizione, 2.000, p.229).
Hegel, seguindo Lutero, vê o abandono de Deus em Jesus crucificado como uma forma de Kenose e a relação com a Trindade e as processões das Pessoas divinas. Conforme Hegel, em Deus, as Pessoas são porque não são. O Pai é Pai somente porque gera o Filho, mas para gerá-Lo deve comunicar-lhe kenoticamente todo o seu ser, esvaziando-se absolutamente do ser. O Filho, por sua vez, se reverte ele também kenoticamente no Pai, e esse mútuo esvaziamento kenótico do Pai e do Filho, e do Filho no Pai, constitui o Espírito Santo.
Deste modo, a Trindade é um perfeito devir kenótico e não propriamente um ser. Na divindade, haveria somente o devir, e não tanto o ser, somente o devir como Espírito.
Hegel procurou interpretar o ser não como substância — ousia — mas como Sujeito, ou Espírito (Geist) em perpétuo devir.
E o teólogo considerado como alma do Vaticano II, Karl Rahner, considera que o ser não deve ser visto como ousia— substância — mas sim como consciência-espírito. Rahner chamou essa mudança na concepção do ser como espírito e não como substância, como a 'reviravolta antropocêntrica do pensamento moderno' (Cfr. Piero Coda, L'Altro di Dio, Città Nuova, Roma, 1997, p. 90).
A negação que Deus seja um ser substancial foi admitida também pelos teólogos da Libertação. O ex-Frei Boff escreveu ele também:
'Assim Mary Daly sugere compreendermos Deus menos como substância, e mais como processo, Deus como um verbo ativo e menos como um substantivo, Deus significaria o viver, o eterno tornar-se incluindo o devir da criação inteira, criação que, ao invés de estar submetida ao Ser supremo, participaria do viver divino. Este Deus poderia ser expresso pelos símbolos do Pai e da Mãe, ou pela combinação das propriedades de cada um deles; Deus como Pai maternal, e Deus como Mãe paternal' (Leonardo Boff, A Trindade, a Sociedade e a Libertação, Vozes, Petrópolis, pp154-155).
Como não classificar essa doutrina como gnóstica?
A Gnose foi definida precisamente como uma revolta anti metafísica, como uma recusa do ser. Que se leia Cioran, para confirmá-lo.
E essa concepção de Hegel, de Rahner e também de Urs von Balthasar, como veremos mais adiante — omito Boff por sua influência menos notável neste ponto; ele é tido mais como um repetidor do que um pai de heresias — terá terriveis conseqüências no campo da verdade, porque se o ser não é substância, toda a doutrina sobre a verdade desmorona. Assim, não é de surpreender se o Vaticano II, inspirado pela Teologia de Rahner, será ecumênico, relativizando a verdade da Fé.
Desse processo kenótico na esfera da Divindade desenvolver-se-ia a Criação, exatamente como diziam os gnósticos, por uma espécie de decadência ou expoliação da Divindade infinita no ser finito. Assim como em Deus as Pessoas divinas procederam kenoticamente assim, por sua vez, Deus teria criado o mundo kenoticamente, esvaziando-se nele.
A criação, por sua vez, passaria por evolução à vida, à racionalidade cognoscente, com o aparecimento do homem, para retornar ao nada divino, através da evolução dialética.
Como escreveu Teilhard de Chardin, se passou da esfera inanimada à vida , e desta à noosfera, para chegar, no final, ao Cristo ômega, no qual todos serão Deus, em uma pancristificação definitiva. E também esse sistema de Teilhard é, ele também, gnóstico
E não esqueçamos, peço-lhe, a doutrina esotérica de Blondel.
b) A Kenose em Sergej Bulgakov
Dessa doutrina gnóstica se abeberou a teologia protestante que, por 'osmose', a infundiu aos teólogos católicos dos quais nasceu o Modenismo, e, depois, a assim chamada Nova Teologia, como também a teologia dos eslavófilos e dos Modernistas russos como Sergej Bulgakov, tão querido ao Padre Bouyer e a Urs von Balthasar.
O gnóstico Sergej N. Bulgakov, condenado por heresia pela Igreja Cismática, quando veio para o Ocidente, foi recebido com simpatia nos colóquios dos teólogos modernistas que, já naquele tempo, enamoravam-se ecumenicamente pelos hereges de todas as seitas.
Padre Louis Bouyer fala do gnóstico Bulgakov como sendo 'este extraordinário visionário que podia ser o Padre Serge Boulgakoff' (L. Bouyer, Gnosis–La Connaissance de Dieu dans l'Écriture, Cerf, Parigi, 1988, p. 100).
Em 1927, Bulgakov participou do Primeiro Congresso do Conselho Mundial das Igrejas, em Lausanne, como também no Segundo Congresso, em Oxford, em 1937. Ele participou ainda dos Congressos organizados por Berdiaeff, entre teólogos católicos, protestantes e cismáticos, dos quais participaram o modernista Lucien Laberthonnière, e os filo modernistas Gabriel Marcel, Jacques Maritain e Etienne Gilson (Cfr. Piero Coda, L'Altro di Dio. Rivelazione e Kenosi in Sergej N. Bulgakov, Città Nuova, Roma, 1997, p.47, nota 64).
E o que tornava tão simpática, para os modernistas ecumênicos, a figura de Bulgakov?
Talvez o seu princípio fundamental da religião:
'Na base da religião está a experiência pessoal de um encontro com a divindade. Esta é a única fonte de sua autonomia [ ...] A religião nasce de um sentimento de Deus (qualquer que seja a forma dessa revelação)' (Sergej N . Bulgakov, Lumière sans Déclin, p. 26, apud Graziano Lingua, Kenosis di Dio e Santità della Materia, La Sofiologia di Sergej N. Bulgakov, Ed. Scientifiche Italiane, Napoli, 2.000, p.34. O negrito é meu).
E a experiência religiosa pessoal é a revelação do noumeno em si mesmo, ou seja, da res divina enquanto tal, que não se faria por via intelectual, mas por experiência mística.
Atualíssima e plenamente de acordo com o espírito do Vaticano II, essa afirmação de Bulgakov. Todo o ecumenismo atual se fundamenta no respeito a todas as religiões, qualquer que seja a forma da sua revelação.
Bastariam essas palavras sobre a experiência religiosa pessoal, para fazer de Bulgakov um Modernista ou um perito do Vaticano II.
Como se vê por essa citação de Bulgakov, a osmose, reconhecida por Piero Coda entre a teologia Católica e a teologia protestante deveria ser extendida à teologia cismática oriental russa.
Parece até que existe uma Seita Ecumênica e Internacional dos Teólogos Modernistas...
E quais eram as raízes doutrinárias de Bulgakov?
As mesmas raízes gnósticas dos Modernistas ocidentais:
'A Tradição sofiológica russa não se nutre apenas, mostra-lo-emos no estudo, de fontes cristãs, mas também da doutrina gnóstica, sobretudo na corrente valentiniana, da Cabala judaica, da filosofia de Boehme e de Pordage, e de algumas reflexões espirituais do romantismo alemão, desde von Baader e Schelling' (Graziano Lingua, Kenosis di Dio e Santità della Materia, La Sofiologia di Sergej N Bulgakov, Ed. Scientifiche Italiane, Napoli, 2.000, p. 9).
Tais teólogos da Nova Teologia — desde Karl Rahner a Hans Urs von Balthasar, feito Cardeal por João Paulo II — aceitaram, mais claramente que outros, a doutrina gnóstica da kenose, seja para explicar a vida da Divindade em modo teosófico, seja para explicar a Criação e a Redenção.
Limitar-me-ei apenas a dar algumas citações sobre a doutrina kenótica em Bulgakov, a fim de que se compreenda a gravidade daquilo que ele entende por kenose, e que von Balthasar vai promover entre os católicos.
Comenta Graziano Lingua:
'Na descrição da dinâmica intratrinitária como amor, Bulgakov introduz a categoria da kenose, que desempenhará um papel fundamental em todo o seu sistema. Referindo-se ao famoso hino paulino (Fil. II, 6-8) onde se diz: 'Ele (Jesus) embora existindo na forma de Deus não considerou uma rapina ser igual a Deus, mas esvaziou-se (eknosen) a si mesmo, tomando a forma de escravo', ele concebe globalmente o amor de Deus como um esvaziamento, um 'enfraquecimento' pelo qual o Sujeito Absoluto se torna próximo ao outro de Si' (Graziano Lingua, Kenosis di Dio e Santità della Materia, La Sofiologia di Sergej N Bulgakov, Ed. Scientifiche Italiane, Napoli, 2.000, p. 66-67).
Diz Bulgakov:
'Essa ativa auto afirmação de si é o amor: as labaredas da tríplice hipóstase divina flamejam em cada um dos três centros hipostáticos somente para se unirem, identificando-se entre si na saída de si em direção ao Outro, na ardente renúncia do amor pessoal. Estaticamente, a personalidade mono-hipostática é centro de auto afirmação e de repulsão, é egocêntrica; dinamicamente, em vez, a personalidade se realiza como fonte da abnegação do amor, como uma saída em direção ao outro eu' (S. N . Bulgakov, Il Paraclito, 141, apud Graziano Lingua, Kenosis di Dio e Santità della Materia, La Sofiologia di Sergej N. Bulgakov, Ed. Scientifiche Italiane, Napoli, 2.000, pp. 69-70).
Conforme Bulgakov, três são os níveis nos quais atua a kenose: o primeiro está na vida intra trinitária; o segundo na criação, e o terceiro seria na crucificação.
'Sergej Bulgakov, na sua teoria da redenção, tenta compreender a kenose da cruz como a última das auto doações de Deus, que começam com a auto desapropriação intra trinitária de Deus a favor do Filho, e que continua com a kenose da criação' (Urs von Balthasar,TheoDrammatica, Vol. IV, L 'Azione, Jaca Book, 1986, p. 291).
Na vida intra trinitária, como já vimos, as processões divinas seriam geradas por meio kenótico, esvaziando-se o Pai no Filho para dar-lhe existência, e, por sua vez, o Filho se esvaziaria, ele também, kenoticamente no Pai, por amor. E esta relação kenótica entre o Pai e o Filho seria o Espírito Santo, amor kenótico do Pai e do Filho.
Evidentemente, como costumavam fazer os modernistas, que ora afirmavam uma coisa, e pouco depois diziam o contrário, Bulgakov ora faz entender esse esvaziamento como uma literal kenose, isto é , um reduzir-se a nada para permitir a existência do outro, ora fala de modo que se possa afirmar que resta alguma coisa do ser, no final desse esvaziamento.
Na criação, haveria um outro ato kenótico: Deus se esvaziaria para criar o mundo, que seria uma verdadeira emanação de Deus que Bulgakov — exatamente como dizem os cabalistas — chama de o 'êxodo de Deus'.
Conforme a explicação de Graziano Lingua sobre a doutrina da kenose de Bulgakov na criação, 'o amor kenótico leva Deus a não exaurir-se na pericorese divina, mas a sair do círculo dos três em direção à possibilidade de quartas hipóstases. Deus é capaz de amar o nada a tal ponto de escolhê-lo como outro a quem dar a personalidade que é o coração da sua essência. O amor kenótico desta vez não se limita a deixar sair uma parte da usia divina, mas implica uma alienação bem mais profunda.: é o êxtase real de Deus, que sai de si mesmo, fazendo-se 'hipóstase outra'. Bulgakov fala em relação a isso como um verdadeiro e próprio 'êxodo' da Trindade no campo de ser criatural hipostático, 'o ato do soprar a vida simboliza o fato, inexprimível em linguagem humana, do amor extático de Deus, que vai além dos próprios limites para chamar o criado ao ser pessoal'(Graziano Lingua, Kenosis di Dio e Santità della Materia, La Sofiologia di Sergej N Bulgakov, Ed. Scientifiche Italiane, Napoli, 2.000, p. 149).
Portanto, a criação teria sido um êxodo da ousia — uma emanação — da substância divina. E essa doutrina é exatamente a da Gnose.
Na criação, segundo Bulgakov, Deus permite que a sua usia saia de Si mesmo em direção ao 'outro de Si', ou seja, em direção ao nada, renunciando a ser o único a hipostizá-la. Nada diferente, então, da emanação da Divindade gnóstica. 'A isto corresponde aquela autodeterminação do Deus hipostático com a qual ele, possuindo-a desde a eternidade como natureza própria (a plenitude do próprio ser), deixa que ela saia do seio de seu ser hipostático em direção ao auto ser, a faz em sentido autêntico cosmos, cria o mundo do nada, isto é, de si mesmo, do seu próprio conteúdo divino' (Sergej Bulgakov, La Sposa dell'Agnello, Ymca Press, 1945, Bologna, 1991, apud Graziano Lingua, Kenosis di Dio e Santità della Materia, La Sofiologia di Sergej N Bulgakov, Ed. Scientifiche Italiane, Napoli, 2.000, pp. 97-98).
Vê-se claramente que, para Bulgakov, o mundo criado é uma emanação da Divindade, como dizia a Gnose. E como teólogos como von Balthasar aceitaram essa doutrina? Um herege declarado como Bulgakov que foi excomungado, — e com razão— até pela Igreja Cismática, como pode ele ser bem visto por teólogos católicos ocidentais? Isso só se explica se se considera que tais teólogos Modernistas são ainda piores que os que estão fora da Igreja de Deus.
Tal receptividade a Bulgakov só se explica porque o Modernismo e a Nova Teologia Neo Modernista eram, elas também, formas de Gnose.
'O ato de amor divino, que faz com que a Divindade assim se expanda fora de Si, é para a Divindade um 'condescender' para com a criatura, e um 'auto limitar-se para dar espaço ao Outro de Si'. Dito em síntese, é um gesto kenótico: Deus, impelido pelo seu amor para com o mundo, escolhe 'rebaixar' a sua natureza, deixar que a sua natureza saia de Si em direção ao nada; colocado ao lado de seu ser absoluto, o ser relativo, com o qual entra em relação, sendo por isso Deus e Criador, o 'Fiat' criador, que é o imperativo da divina omnipotência exprime, ao mesmo tempo, também, a imolação do amor de Deus, do amor de Deus pelo mundo, do Absoluto pelo relativo, em virtude do qual o mesmo Absoluto se torna 'Absoluto-Relativo' (Sergej N. Bulgakov, L'Agnello di Dio. Il Mistero del Verbo Incarnato Ymca Press, Bologna, 1991, apud G Lingua, Kenosis di Dio e Santità della Matteria — La Sofiologia di Sergej N . Bulgakov, Ed. Scientifiche Italiane Napoli, 2.000, p. 105. O negrito é meu).
E ainda:
'Que a criação produza a kenose de Deus significa não só que Deus deixa que o mundo saia dele e lhe esteja diante na sua independência criaural, mas também que ele se adapte pacientemente à impotência, à relativa insuficiência do mundo e limite a sua absolutilidade, a fim de que esta não queime o relativo que lhe está diante. O Deus Trino perde a sua absolutilidade e se faz relativo ao mundo, se faz outro fora de si, arriscando-se a uma relação com o nada. A kenose é assim diretamente ligada à antinomia do rosto de Deus percebido pelo homem na experiência religiosa: o movimento kenótico não pode ser lido como um esvaziamento que prive a Deus da sua Divindade — [Mas que cautela! ] — mas como um paradoxo pelo qual Deus permanece na imutável plenitude do próprio ser em si, e ao mesmo tempo que vive 'na' e 'com' a criatura' (G. Lingua, Kenosis di Dio e Santità della Materia, La Sofiologia di Sergej N Bulgakov, Ed. Scientifiche Italiane, Napoli, 2.000, pp. 105-106. O negrito é meu).
Portanto, o mundo teria sido feito da ousia divina, do próprio conteúdo do ser divino. E, para fazer escapar essa doutrina da condenação por panteísmo, ou de Gnose, seria preciso a capacidade acrobática e os brumosos véus da Nova Teologia.
Talvez se me dirá que eu, não sendo teólogo, faço simplificações e generalizações incorretas, e, por esse defeito, vejo a Gnose e a Cabala por todo lado.
Mas não sou eu somente que vejo nessa doutrina da criação por kenose — por esvaziamento — de Bulgakov e de von Balthasar e outros, a influência da heresia gnóstica e da Cabala. Graziano Lingua diz a mesma coisa ao admirar-se de que Bulgakov repete quase as mesmas palavras da doutrina cabalista do Tzim Tzum de Isaac Luria de Safed.
'As palavras de Bulgakov são aqui surpreendentemente próximas da tradição Cabalista que vê a possibilidade da criação na 'auto contração (Tzim Tzum) de Deus'. O Pai Eterno, voluntariamente se auto limita para deixar espaço e liberdade para a sua criatura Somente assim a sua Absolutidade se torna relativa, ele é verdadeiramente Deus, respeitando de uma vez para sempre a alteridade daquilo que vem dEle para a luz' (G. Lingua, Kenosis di Dio e Santità della Materia, La Sofiologia di Sergej N. Bulgakov, Ed. Scientifiche Italiane, Napoli, 2.000, p.106).
E von Balthasar disse que aceitava o núcleo da doutrina kenótica de Bulgakov. Há, pois, do que se espantar, se há conseqüências dessa doutrina na Nova Teologia? Seria de maravilhar, se não se encontrassem conseqüências semelhantes.
Por exemplo, para Bulgakov, o mundo é uma verdadeira auto manifestação de Deus. E não poderia ser de outro modo, se o mundo é considerado uma 'saída' da ousia divina no criado.
'Deus criou o mundo não só para auto revelar-se nele, para manifestar a Sofia divina na Sofia criada, mas também para para se unir a ele através dos homens e dos anjos, espiritualemnete e pessoalmente, mandando o seu único Filho' (Sergej Bulgakov, L 'Agnello di Dio. Il Mistero del Verbo Incarnato, ed. cit., p. 219, apud G. Lingua, Kenosis di Dio e Santità della Materia, La Sofiologia di Sergej N. Bulgakov, Ed. Scientifiche Italiane, Napoli, 2.000, pp. 177-178).
E se o mundo foi feito da mesma ousia divina, como poderia permanecer a distinção da ordem natural e do mundo natural? O sobrenatural se identifica com o natural, exatamente como tende a dizer a Nova Teologia de Henri de Lubac.
Veja-se esse trecho de Graziano Lingua, comentando a teologia de Bulgakov:
'O homem é, desde a origem, divino-humano: o primeiro Adão criado à imagem do segundo Adão, esconde em si a figura de Cristo, que é divino-humano na sua estrutura. Não é pois aceitável a posição da teologia católica que não dá razão do significado ontológico da imagem de Deus no homem, pois que divide nitidamente a dimensão natural/criatural, da dimensão sobrenatural' (G. Lingua, Kenosis di Dio e Santità della Materia, La Sofiologia di Sergej N. Bulgakov, Ed. Scientifiche Italiane, Napoli, 2.000, p. 175 ).
Restaria dizer uma palavra sobre a doutrina personalística de Bulgakov, que é, também ela, tão simpática e osmótica com a doutrina de tantos teólogos ocidentais.
Para Bulgakov, assim como Deus é uno e trino pela suas Pessoas, assim também a pessoa humana seria capaz de uma intercomunicação com todas as outras pessoas humanas, tendendo a formar, na História, uma unidade pela qual todos os homens se tornariam a humanidade. E Cristo unificaria na sua Pessoa toda a humanidade. E, por isso, a salvação seria de toda a humanidade. Assim se poderia dizer que há um processo 'histórico-salvífico' que salva a humanidade toda, sem exceção de ninguém.
Para Bulgakov, como para Boehme, como para Anna Katharina Emmerick, a falsa vidente romântica, a individuação, fruto da materialidade, teria sido causada pelo pecado original (G. Lingua, Kenosis di Dio e Santità della Materia, La Sofiologia di Sergej N. Bulgakov, Ed. Scientifiche Italiane, Napoli, 2.000, p. 171 ). Antes do pecado original, Adão era homem-humanidade.
'O eu individual se torna ele mesmo em plenitude, quando cessa o próprio colocar-se por si, quando perde a própria inidvidualidade. Somente naquele momento, esse que até então, qual raio individualmente qualificado, resplandecia só com a sua própria cor, se inflama da luz do pléroma e é incorporado àquela plenitude integral, na qual Deus é tudo em todos'. '(...) cada homem não é um pedaço da totalidade dos homens, mas é a multiplicação dos uns-totalidade humana no seu interior'. '(...) cada homem singularmente se realiza somente na co-hipostacidade com as demais pessoas, isso é, unindo-se a elas com amor recíproco'. 'Cada hipóstase criatural, não enquanto individualidade, isto é, limitação, mas enquanto centro hipostático do todo, é já suficiente ontologicamente capaz de conter e de realizar em si a plenitude do ser na própria natureza' (Sergej N. Bulgakov, La Sposa dell'Agnello, EDB,, Bologna, 1991, 162, apud G. Lingua, Kenosis di Dio e Santità della Materia, La Sofiologia di Sergej N. Bulgakov, Ed. Scientifiche Italiane, Napoli, 2.000, p.172).
Essa unidade unitotal se realiza, depois, na História, sem que as hipóstases singulares percam a sua característica originária: cada homem singular, como já foi aludido, é criado seja como indivíduo, seja como omni-homem; o seu nascimento não é uma fragmentação da omni-humanidade originária, mas uma multiplicação segundo diferentes temas. A humanidade é pluri-hipostática, vivente nos muitos seres humanos que sulcam a história, mas é também uma 'pluralidade-hipostática', ou melhor , é contida e reproduzida em cada ser singular vivente. 'A humanidade, —diz Bulgakov em Nevesta Agnca [A Esposa do Cordeiro] —- (...) é o Adão omni recapitulante ou integral. Adão não é só uma determinada pessoa humana, é também a pluralidade humana, a omni pessoa, à imagem do Deus único, mas tri hipostático' (G. Lingua, Kenosis di Dio e Santità della Materia, La Sofiologia di Sergej N. Bulgakov, Ed. Scientifiche Italiane, Napoli, 2.000, p.174).
'Isto significa que, como Adão é cabeça de todo gênero humano, ele porta em si toda a humanidade, a ele ligada, assim também os filhos e as filhas de Adão a carregam, toda ela, em si, e são, nesse sentido, eles mesmos, como Adão, na sua pluralidade. Disto se segue que a humanidade em geral, como também cada homem singular, aí se deve entender, não como uma série de unidades distintas, que se aproximam uma da outra em virtude de uma certa semelhança (e isto seria a herética 'semelhante substancialidade', em vez da ortodoxa 'consubstancialidade'), mas somente na composição de um todo: em cada homem vivem completamente o Adão natural junto com todos os membros do gênero humano' (Sergej N. Bulgakov, La Sposa dell'Agnello, EDB,, Bologna, 1991, 167, apud G. Lingua, Kenosis di Dio e Santità della Materia, La Sofiologia di Sergej N. Bulgakov, Ed. Scientifiche Italiane, Napoli, 2.000, p.174).
E isso faria com que toda a humanidade seja salva coletivamente em Jesus Cristo, formando um só homem-humanidade com ele. Assim se explicaria que cada homem singular, pelo fato de ser concebido, só por esse fato, sem levar em contar as suas obras, seria salvo, somente porque é um homem.
E com isto se abre caminho para a apokatastasis de von Balthasar para quem, se o inferno existe, ele está vazio. Na Nova Teologia, houve uma grande osmose com a doutrina gnóstica de Bulgakov.
c) A Kenose e a Doutrina Trinitária de Urs von Balthasar
Depois de todas essas citações comprovantes da heresia gnóstica em Bulgakov, vejamos o que diz Urs von Balthasar sobre a doutrina kenótica desse heresiarca russo.
'A recente teologia russa teve razão — ainda que ela não esteja isenta, por exemplo, de tentações gnósticas e hegelianas— de dar um lugar central a essa problemática. Sem dúvida seria possível despojar a concepção fundamental de Bulgakov de seus pressupostos sofiológicos e manter — desenvolvendo-a em muitos pontos — essa intuição que nós colocamos mais alto no centro de nossas reflexões: o último pressuposto da kenose é o 'desinteressamento' das Pessoas [divinas] (enquanto são puras relações) na vida intra trinitária do amor; em seguida, há uma kenose fundamental que intervém com a criação enquanto tal, porque Deus, desde toda eternidade, assume a responsabilidade do êxito da criação (considerando também a liberdade humana) e, em previsão do pecado, faz entrar em linha de conta também a cruz enquanto fundamento da criação: 'A cruz de Cristo está inscrita no mundo da criação' (Urs von Balthasar, Pâques, le Mystère, Cerf, Paris, 1996, pp.43-44).
Vê-se, por essa citação cheia de insinuantes contorsões serpentinas, que a osmose doutrinária, não se fez apenas entre a teologia católica e a protestante, mas também com a teologia muito pouco...ortodoxa de Bulgakov.
Von Balthasar — como um ecumênico que quer destruir os bastiões da Igreja e da verdade — não se dá muitos escrúpulos de fazer alusões, sem condená-las explicitamente (no máximo lhes faz débeis restrições), a fontes pouco limpas do ponto de vista da ortodoxia. Veja-se como ele admite que haja verdades —os famosos 'logos spermatikós' as sementes do Verbo — até em...Valentino, em Goethe, em Lutero e, evidentemente, em Hegel...(Cfr. Urs von Balthasar, Pâques, le Mystère Cerf, Paris, 1996,pp.64, 68,69,70).
Como era costume entre os Modernistas, von Balthasar procede com cautela, afirmando de modo brumoso — blondeliano — insinuando, utilizando palavras estudadas e ambíguas até a contradição, dizendo em uma página o contrario daquilo que ele tinha dito em outra.
E seguindo o seu mestre, o Padre de Lubac, von Balthasar se atreve a dizer com ele que:
'É a essa especulação que se liga a Homilia Pascal do Pseudo Hipólito sobre cuja ortodoxia não há dúvida, quando ela atribui à cruz um significado que se extende ao cósmos, e utiliza, para exprimir isto, imagens que remetem a Platão, mas também ao budismo' (Urs von Balthasar, Pâques, le Mystère Cerf, Paris, 1996,p. 65. O negrito é meu).
E neste ponto, von Balthasar coloca, em uma nota, uma citação do Padre de Lubac: 'H. de Lubac, Aspects du Boudhisme, Paris, 1950, chp. II: 'Duas árvores cósmicas' pp. 55-79. Aí, se encontrará também notas sobre a figura do gigante que surge freqüentemente tanto de Cristo como de Buda, e de outros textos sobre a função cósmica da cruz' (Urs von Balthasar, Pâques, le Mystère Cerf, Paris, 1996,p. 65, nota 13).
Não seria absurdo afirmar que esses teólogos ecumênicos encontrariam os 'logos spermatikós' até no satanismo, até em Lúcifer. Eles só tem dificuladade de achar o Verbo — a verdade divina e integral — na Igreja Católica Apostólica Romana. Nesta, eles vêem normalmente os 'pecados'.
Nesta resposta, não é possível dar senão um pequeno resumo da doutrina kenótica.fluvialmente exposta, e de forte sabor gnóstico, de Urs von Balthasar, aliás, bem pouco conhecida pelos simples fiéis.
Von Balthasar, como outros teólogos modernistas, admitiu a influência da doutrina de Hegel e de Bulgakov a respeito da kenose em Deus Trino, a kenose de Deus ao criar o mundo, e, finalmente, a kenose de Cristo, na cruz, como meio de redenção, doutrina kenótica aceita na teologia protestante liberal do século XIX e que inspirou o Modernismo.
'Os kenóticos do século XIX na Alemanha escrevem sob a influência de Hegel, para quem o sujeito absoluto, para se tornar concreto e para si, se torna finito na natureza e na história do mundo. Assim, para esses teólogos, a perspectiva é inversa: é sujeito da kenose não aquele que se tornou homem, mas aquele que se torna homem; trata-se de uma 'auto limitação do divino' como diz Thomasius' (Urs von Balthasar, Pâques, le Mystère Cerf, Paris, 1996, pp. 39-40).
Ainda que, nesse preciso texto não use o termo kenose, von Balthasar explica a eterna geração do Filho como dedicação ou esvaziamento absoluto do Pai, isto é, por kenose:
'O Pai que gera o Filho não se 'perde' com esse ato, em um outro, para depois finalmente 'ganhar' a si mesmo, mas é, enquanto aquele que se dá, desde sempre ele mesmo. E também o Filho é, desde sempre ele mesmo, enquanto ele se deixa gerar e deixa que o Pai assim disponha dele. O Espírito é, desde sempre, ele mesmo, enquanto compreende o próprio 'Eu' como o 'Nós' do Pai e do Filho, e vem a ser 'expropriado' no seu proprissimum. (Somente quem entende isto escapa ao mecanismo da dialética hegeliana) (Urs von Balthasar, Theo Drammatica, Jaca Book, Milano, 1992, vol II, Le Persone del Dramma. l'Uomo in Dio, p. 243).).
O Pai eterno seria um eterno esvaziar-se no Filho, ao qual o Pai dá a Filialidade aniquilando-se a Si mesmo.
Por sua vez, o Filho seria Filho enquanto receptividade feminina, mas eternamente agradeceria ao Pai que lhe deu a existência, e tudo aquilo que Ele tinha, tornando a dar ao Pai tudo aquilo que recebeu dEle. Assim, também o Filho é um eterno esvaziar-se. Desta mútua doação desabrocha o Espírito Santo, doação mútua, mútua aniquilação do Pai e do Filho, e do Filho no Pai. Deste modo, poder-se-ia perguntar se em Deus não existiria, no fundo, nenhuma ousia. Deus não teria substância. Deus seria pura relação, em um eterno devir, e as Pessoas em Deus seriam puro devir, um puro relacionar-se. Noutras palavras, se deve perguntar se von Balthasar pensa que Deus existiria enquanto ser, ou se Deus é um eterno devir.
Veja-se a ambigüidade até a contradição de von Balthasar nesta citação:
'A teologia cristã permaneceu irremovívelmente firme na idéia que o Deus que se revela em Jesus Cristo subsiste em si mesmo como eterno ser ou essência, coisa que é ao mesmo tempo um eterno devir (não pois temporal), e à idéia que não é possível prescindir jamais, sequer por um instante, da consideração ontológica desse eterno devir. Antes, vista a coisa a partir da Nova Aliança, dever-se-á dizer que a revelação de Deus atuada em Jesus Cristo é uma revelação primariamente trinitária — Jesus não fala de Deus em geral, mas nos mostra o Pai e nos dá o Espírito Santo — e que nós devemos fazer uma imagem acerca do 'ser' e da 'essência' de Deus por relação trinitária de Jesus com Deus. Tal relação se manifesta no devir de Jesus como um eterno devir' (Urs von Balthasar, TheoDrammatica, Vol V, Jaca Book, Milano, 1995, p. 50. Os negritos são meus).
Pode haver texto mais contraditório?
Afinal, para von Balthasar, Deus é ser ou devir?
Ele responde que Deus é ser e devir!
Poucas páginas adiante, von Balthasar escreve:
'A vida eterna, que é Deus, e que permanece 'indescritível', não pode absolutamente ser definida como um devir, pois que ela não conhece aquela 'pobreza que é a razão do nosso tender’, da nossa 'inquietude'. 'A vida eterna, exatamente porque é a plenitude da vida, é a completa paz'. Todavia, esta paz não é rígida, mas é eterna mobilidade' (Urs von Balthasar, TheoDrammatica, Vol V, Jaca Book, Milano, 1995, p. 66. Os negritos são meus).
Como se escreve que a vida eterna não pode ser dita um devir e imediatamente se ousa afirmar que ela é 'eterna mobilidade'?
Bem tinha razão São Pio X ao advertir que os Modernistas, para dissimular sua heresia, não hesitavam em contradizer a si mesmos, dizendo numa página algo, e, noutra, o contrário!
Aliás, von Balthasar recusava o princípio de não-contradição, e afirmava que a contradição existe sempre neste mundo, e até mesmo nas próprias palavras de Cristo, no Evangelho:
'Balthasar acreditava que a contradição é uma parte da verdade. Como ele explicou em seu livro Word and Revelation, ele acreditava que as expressões da 'verdade mundana', assim como o 'Ser mundano', podem ser 'contraditórias' e até mesmo expressões de verdades da Escritura podem ser opostas ou 'contrárias' [entre si]. Balthasar concordava com Hegel que 'somente Deus é 'a verdade absoluta'' e que ''toda verdade não é, a própria negação está em Deus'' (itálicos acrescentados). Assim, as afirmações bíblicas não são absolutamente verdadeiras, mas cada uma delas é relativa e de certo modo negativa ou falsa, e essas afirmações encontrarão sua síntese somente quando chegarmos ao Pai que é a verdade absoluta. Mas, por ora, não podemos ter confiança completa até mesmo nas palavras de Cristo. Balthasar declarou: 'A palavra de Cristo, que falou como nenhum outro jamais falara, que foi o único a falar com poder, é apesar disso uma ponte insegura entre a mundanidade do mundo e a superpalavra do pai' (itálico acrescentado). (...) A filosofia da verdade de Balthasar viola o primeiro princípio autoevidente da razão especulativa (a lei natural), que afirma que a mesma coisa não pode ser afirmada e negada ao mesmo tempo (o princípio de não-contradição)' (Fr. Regis Scanlon OFM Cap., 'The Inflated Reputation of Hans Urs von Balthasar', New Oxford Review, pp. 17-24, March 2000, http://www.petersnet.net/browse/3344.htm Os negritos são meus).
Como um teólogo pode ser tido como católico, se adota o princípio hegeliano de que sim e não coexistem , quando Cristo,disse: 'Seja a vossa linguagem sim, sim; não, não. Tudo o que passar disso vem do malígno'( Mt., V, 37).
E apesar disso Urs von Balthasar foi feito cardeal...
'No centro do Theo-Dramma de von Balthasar está o o reconhecimento do dramático aspecto da Trindade imanente, um 'Drama primordial' que começa e é sustentado pela total auto doação do Pai na geração do Filho, e na eterna ação de graças [eucaristia] para com o Pai, unida no 'NÖS' que é o 'EU' do Espírito Santo (Urs von Balthasar, TheoDrammatica, Vol II, p. 256, apud (John C. Médaille, 'The Trinity as the Pattern of the World in the Theo-Drama', http://www.medaille.com/freedom.htm)
'Deus possui-se a si mesmo doando-se, e apenas doando-se. Mas assim, doando-se, Ele se possui. Assim é. O seu possuir-se é o evento, é a história de um doar-se, e, nesse sentido, o objetivo de todo simples ter-se. Como essa história, Ele é Deus, ou melhor, essa história do amor é o 'próprio Deus'. (E. Jungel, Dio, mistero del mondo, Queriniana, Brescia, 1982, p. 427. Apud Piero Coda, Dio Uno e Trino - Rivelazione, esperienza e teologia del Dio dei cristiani,. Edizioni San Paolo, 2000, pg. 238).
Por sua vez, Urs von Balthasar diz:
'Assim, a divina plenitude, já na sua primeira fonte, é uma plenitude que parece um espaço interior, que se faz pobre, que por meio da sua pobreza enriquece o Filho com a prórpia divindade do Pai' (Urs von Balthasar, Cattolico — Aspetto del Mistero, ed. Encuentro, Madrid, 1988, p. 34).
'A auto dedicação do Pai, que dá não somente alguma coisa daquilo que Ele tem , mas tuto aquilo que Ele é (em Deus, há somente ser e não ter). passa inteiramente ao Filho gerado (sem reflexão sobre o fato que ele, o Pai, se torne Ele mesmo mediante a sua dedicação assim como não seria legítimo interpretar o pensamento de Hemmerle) (Urs von Balthasar, TheoDrammatica, Vol. V, Jaca Book, Milano, 1995, p.72).
Gerando o Filho, o Pai entrega tudo aquilo que Ele é, mas Ele não deve ser pensado como se Ele fosse existente antes dessa auto entrega. Ele é a auto entrega total. Esvaziando-se a si mesmo no Filho, o Pai doa, não tudo aquilo que Ele tem, mas aquilo que Ele é, porque em Deus não há possuinte, mas somente sendo.
E nesse sentido, a kenose é uma super morte:
'A resposta do Filho ao dom do Pai (consubstancial ao Pai) somente pode ser uma eterna ação de graças (Eucaristia) para com o Pai, a Fonte — uma suma ação de graças como sem ipseidade, sem reserva, como a original auto entrega do Pai. Procedendo de ambos, como o seu subsistente 'NÖS', expira o 'Espírito' comum a ambos: como essência do amor, que mantém a infinita diferença entre os dois, sela essa diferença, pelo fato de que Ele é o Espírito de ambos, e os liga' (Von Balthasar, Theo-Dramma, Vol. IV, p. 324, apud (John C. Médaille, 'The Trinity as the Pattern of the World in the Theo-Drama', http://www.medaille.com/freedom.htm )
'Esse total dom de si, para o qual o Filho e o Espírito Santo respondem, repetirão, significa algo como uma 'morte', uma primeira e radical 'kenose', se se quiser: uma 'super morte', que se encontra como aspecto de todo amor e que fundamentará no interior da criatura tudo aquilo que nela poderá ser uma boa morte: do esquecer-se de si mesma pela criatura amada até aquele supremo amor que 'dá a vida por seus amigos' (Urs von Balthasar, TheoDrammatica, Vol. V, L'Ultimo Atto, Jaca Book, Milano, 1995, p. 72).
A vida divina, pois, seria um eterno doar-se, um aniquilar-se — literalmente compreendido como tornar-se nada, não ser — afim de que o Outro seja. E este doar-se de modo total, não mais sendo, é que permeteria dizer que Deus é amor.
É impresionante que se encontre na Filofia de Jacob Boehme, tal qual é exposta por Alexander Koyré, quase as mesmas palavras para definir Deus:
'A maldade, tanto quanto o amor, são por essência livres; um ser que não fosse livre não poderia nem amar, nem doar-se. Pois bem, é no amor que jaz a perfeição moral do ser, e Deus, ele mesmo, não é Deus senão porque ama e gera o amor' (Alexander Koyré, La Philosophie de Jacob Boehme, Vrin, Paris, 1971, p. 433. O negrito é meu).
'Trata-se (...) da reviravolta universalmente decisiva da visão de Deus que não é em primeiro lugar 'potência absoluta', mas 'amor' absoluto, e a cuja soberania não se manifesta no ter para si aquilo que lhe pertence, mas no seu abandono (...) O aniquilamneto de Deus tem a sua possibilidade ontológica na auto renúncia eterna de Deus, a sua doação tripessoal, a partir da qual também a pessoa criada não deve ser descrita mais como ser-em-si, mas mais profundamente (enquanto criada à imagem e semelhança de Deus) como 'retorno-a-si-mesma' (reflectio completa) do ser cada vez já 'fora de si', e como 'estar fora de si', como 'centro que se dá e se desdobra'. Os conceitos de 'pobreza' e de 'riqueza' se tornam dialéticos, o que já não está aqui para significar que a essência de Deus esteja em si (univocamente) 'kenótica', e que, pois, o fundamento divino da possibilidade da kenose possa ser, mediante essa, feito elevar-se a conceito omni compreensivo ( nessa direção jazem alguns erros dos modernos kenóticos) se bem que (...) a 'potência' divina é assim constituída que pode aprontar, em si mesma, o espaço para um auto aniquilamento, tal qual é aquele da encarnação e da cruz, e sustentar esse aniquilamneto até o fim. Entre a forma de Deus e a forma de servo intercorre na identidade da pessoa, uma analogia das naturezas conforme a maior dissemelhança em tanta semelhença' (DS 806) (Urs von Balthasar, Mysterium Salutis, Vol. VI, Queriniana, Brescia, 1971, pp. 189-190. Apud Piero Coda, Dio Uno e Trino - Rivelazione, Esperienza e Teologia del Dio dei Cristiani, ed. San Paolo, 2.000, pp. 240-241).
Evidentemente, esta compreensão do Amor como renúncia ao ser não é verdadeira, pois que Santo Agostinho já tinha observado: 'Que maior monstruosidade pode haver do que aquela que afirma que as coisas ficariam melhores com a perda de todo o bem? '( Santo Agostinho, Confissões, VII, 12).
Daí se entende porque se fala, hoje, tanto de amor...
O amor segundo a doutrina kenótica, é semelhante àquilo que prega o budismo: uma busca do vazio, um suicídio metafísico, que prepara todas as renúncias, todas as auto demolições. Ser verdadeiramente pobre exigiria o aniquilação do próprio ser. Quem é, por ser, seria rico. A Teologia da Libertação, no fundo, quer uma libertação ontológica. Como a Gnose, ela é uma rebelião anti metafísica.
'O seio do Pai, depois que o Filho foi gerado por ele, não está 'vazio'? E o Filho, não podendo ele mesmo tomar para si a divindade, mas apenas recebê-la, não é em todas as suas riquezas 'Pobre'? E o Espírito Santo, como pura 'respiração do amor do Pai e do Filho, não é, de algum modo, 'inessencial'? (Urs von Balthasar, TheoDrammatica, Vol. II, Jaca Book, 1992 , p.248).
Com essa explicação pode-se compreender melhor o que querem dizer os teólogos modernistas a respeito da Igreja 'pobre'. Pobre quer dizer, no jargão deles,vazia de tudo, 'inexistente'.
Essa estranha doutrina da Trindade — que nada tem de católica, mas que é toda gnóstica, e, como disse Pio XII, é 'nefanda' — conduz von Balthasar a considerar Deus como 'eterna super abubdância', como alguma coisa que seria sempre maior, sempre mais perfeita, e não como a absoluta perfeição do Ato puro de São Tomás. Deus seria, para von Balthasar, como 'fonte de vida'.
Para von Balthasar, a Kenose é a chave para compreender a Divindade. Deus, para ele, só pode ser Deus pela kenose.
De seu lado, o Filho só pode ser Filho graças à sua capacidade, à sua potência de receber o dom do Pai.
'Se aquele que possui não existisse mais, mesmo que fosse por um momento, um dom constantemente recebido, mas um bem do qual ele tivesse, exatamente na raíz, a disposição autônoma, ele cessaria imediatamente de ser o Filho do Pai, ele perderia todos os títulos para ser acreditado, e ele seria obrigado, nesse caso, de convidar os homens a não acreditarem mais nele. A forma de existência do Filho, que o constitui Filho desde toda a eternidade, é este recebimento ininterrupto de tudo aquilo que ele é, e, conseqüenemente dele mesmo, como dom que vem do Pai' (Urs von Balthasar, Théologie de l 'Histoire, Fayard, Paris, 1970, pp. 40-41).
Von Balthasar diz que essa receptividade do Filho seria condição necessária para a auto doação do Pai. E esta receptividade seria como o feminino em Deus. O Filho daria a sua cooperação na sua eterna geração pelo Pai, deixando-se gerar. Essa seria como uma potencialidade passiva em Deus, enquanto que a auto-doação do Pai seria um elemento ativo e masculino na Divindade.
'Enfim, a unidade divina do fazer e do deixar fazer (da qual se demonstra a eqüivalência no amor) se traduz mundanamente na duplicidade dos sexos. Trinitariamente o Pai certamente aparece enquanto gerante não originado, primariamente (super)-masculino; o Filho, enquanto aquele que se deixa acontecer, desde o princípio como (super)-feminino, mas depois, enquanto ativamente expirando com o Pai, de novo como ( super)-masculino, o Espírito como (super)-feminino. E enquanto o Pai, como já foi indicado, se deixa, no seu gerar e expirar, co-determinar desde sempre pelos precedentes dele, há até mesmo nele um quê de ( super)-feminino, sem que por isso venha a ser tocado o seu primado na ordem, mas propriamente o elemento trinitário em Deus veta uma projeção do mundo sexual na divindade (como ocorre em muitas religiões e nas syzygias gnósticas) devemo-nos contentar em ver a sempre nova reciprocidade do fazer e do deixar fazer (que é por seu lado uma forma de atividade e de fecundidade), como a origem incomensurada de quanto o mundo da vida criada verá traduzido como forma e possibilidade do amor e da sua fecundidade no plano sexual' (Urs von Balthasar, TheoDrammatica, Vol V, L'Ultimo Atto, Jaca Book, Milano, 1995, p.78).
É incrível a audácia de afirmar todas essas idéias sobre a masculinidade e a feminilidade nas pessoas divinas, e ainda de ousar fazer referência às fábulas das falsas religiões e às syzygias gnósticas, pelo que há de escandaloso nessas afirmações.
E, para von Balthasar, essa condição de receptividade é que dá um caráter feminino ao Filho.
'Do mesmo modo que o Filho se comporta, em certa medida de um modo receptivo e feminino com relação à vontade do Pai, assim a Igreja e o cristão em relação à vida do Filho. A efusão dessa 'semente de Deus' (I Jo. III, 9) no seio do mundo é o evento o mais íntimo da História' (Urs von Balthasar, Théologie de l 'Histoire, Fayard, Paris, 1970, p. 144).
E, de passagem, veja-se como a 'semente de Deus', de que fala São João, isto é, analogicamente, a graça santificante, é interpretada literalmente como uma 'semente de Deus no mundo', algo emanado de Deus, e não como a graça santificante na alma do justo. E assim, cautelosamente, se insinua a doutrina gnóstica que pretende que exista, sepultada no mundo, alguma coisa da própria substância da Divindade.
Como a Cabala, pois, von Balthasar admite uma dualidade masculina - feminina em Deus.
E quando o Filho aceita a auto doação do Pai, Ele diz o primeiro 'Fiat', que será repetido, depois, pela Virgem, e pela Igreja, e por cada homem que aceita a graça de Deus. E a Igreja somente seria santa e divina, quando aceitasse a sua kenose, em uma verdadeira auto doação. Talvez aquela que Paulo VI chamou de misteriosa auto demolição da Igreja.
Essa doutrina kenótica da Nova Teologia de von Balthasar pretende dar uma explicação do processo da vida divina absolutamente semelhante — e por vezes idêntica — à pretensão dos gósticos, que, como disse Santo Irineu, soberbamente pensavam possuir o segredo — a Gnose— da vida divina: 'O Profeta, falando do Verbo, os interpelava perguntando: 'Quem poderá contar a sua geração? 'Vós, [gnósticos, ou teólogos da Nova Teologia] — porém, descreveis a geração do Verbo do Pai' (Santo Irineu, Adversus Haereses, II, 28, ss. ).
Um outro ponto semelhante à doutrina gnóstica da Nova Teologia de von Balthasar, herdada da Cabala, é a admissão de que o mal tem raíz na própria Divindade.
Para von Balthasar, a doutrina kenótica aplicada à Trindade impõe que haja em Deus uma 'longitude' infinita que abarcaria todas as possíveis distâncias, incluindo a do pecado.
'É possível, com Bulgakov, definir a auto expressão do Pai na geração do Filho como a primeira 'kenose' intradivina que abraça de todos os lados as outras, desde o momento que o Pai aí se desapropria radicalmente da sua divindade e a transpropria ao Filho, ele não a divide com o Filho, mas a participa ao Filho, dando-lhe tudo o que é seu: 'Tudo aquilo que é teu é meu' (Jo, XVII, 10). O Pai, que não pode ser pensado exatamente (arianamente) como existente 'antes' dessa auto doação, é esse movimento de doação, sem reter por cálculo coisa alguma.. Este ato divino que gera o Filho como a segunda possibilidade a ter parte na idêntica divindade e de ser ela mesma, é a colocação de uma distância infinita absoluta, no interior da qual todas a demais possíveis distâncias podem ser incluídas e compreendidas, as distâncias que podem acrescentar-se no interior do mundo finito, até mesmo sem excluir o pecado. No amor do Pai se encontra uma renúncia absoluta a ser Deus só por si mesmo, um deixar ir do ser divino e, nesse sentido, uma (divina) a-teidade (naturalmete do amor), que não é lícito confundir de modo algum com o a-teísmo intra mundano, mas que todavia fundamenta (superando-a) tal possibilidade. A resposta do Filho à possessão eqüiessencial da divindade não pode ser senão uma eterna ação de graças (eucaristia) à fonte paterna, uma ação de graças tão desinteressada e sem cáculo algum, tal qual era a doação primeira do Pai. Emergindo de ambos, qual 'Nós' subsistente deles, respira o comum 'Espírito', que, ao mesmo tempo que mantém aberta a diferença (como a essência do amor), a sela, e, qual o único Espírito de ambos, lhe serve de ponte' (Urs von Balthasar, TheoDrammatica, Vol IV, L'Azione, Jaca Book, Milano, 1995, pp. 301- 302 O negrito é meu).
'É também necessário observar que a infinita distância, suficientemente larga para conter até todos os pecados humanos, é também uma exigência do amor, porque a mais perfeita interpenetração entre as pessoas exige a máxima separação [Von Balthasar, TheoDrammatica, Vol. II p. 258] não poderia haver amor, se não houvesse distinção entre as pessoas, e amor infinito exige uma distância infinita'(John C. Médaille, 'The Trinity as the Pattern of the World in the Theo-Drama', http://www.medaille.com/freedom.htm).
'De outro lado, o homem foi criado para ser integrado em Cristo, e, pois, na vida da Santa Trindade. Qualquer que seja o afastamento do homem pecador, nos cuidados de Deus, ele é sempre menos profundo que o distanciar-se do Filho com relação ao Pai, no seu esvaziamneto kenótico ( Fil. II, 7) e da miséria do 'abandono' (Mt. XXVII, 46). Este é aspecto próprio da economia da redenção na distinção das Pessoas da Santa Trindade, que de outro lado são perfeitamente unidas na identidade de uma mesma natureza e de um amor infinito' (Urs von Balthasar,Alcune Questioni Riguardanti la Cristologia, IV, D, 8, in La Civiltà Cattolica, n0 3129 - 1 - Nov. - 1980. Apud Piero Coda, Dio Uno e Trino - Rivelazione, Esperienza e Teologia del Dio dei Cristiani, Ed. San Paolo, p. 242).
Em outros termos, o amor infinito teria como condição um afastamento infinito — uma separação infinita — entre o Pai e o Filho, afastamento tão grande que permitiria conter nele até mesmo o pecado.
d) Kenose, Criação e Redenção em von Balthasar
Sendo Deus Amor, e Amor que quer absolutamente esvaziar-se em um Outro, literalmente aniquilar-se, a existência de pessoas — entendidas como devir kenótico — na Divindade seria uma exigência necessária. Mais ainda. Seria necessária a existência da absoluta alteridade, que conteria a totalidade do mundo e inclusive os pecados, para existir o absoluto afastamento da bondade aos pecados, entre a Divindade e o Outro.
É o amor de Deus e a sua absoluta liberdade que exigiriam o mundo da criação. O mundo é não só criado ex nihilo — do nada — mas também criado por nada, fora do divino amor.
'Em termos sobretudo radicais fala, sob influência do Areopagita, Scoto Erígena, para quem o nada do qual Deus criou o mundo é o seu próprio supernada (ou sobre ser) (Urs von Balthasar, TheoDrammatica, Vol. II, Jaca Book, 1992 , p.251).
'Falávamos de uma primeira 'kenose' do Pai na sua auto desapropriação na 'geração' do Filho eqüiessencial; esta primeira kenose se amplifica como que por si a toda a Trindade, desde o momento em que o Filho não poderia ser eqüiessencial ao Pai senão na auto desapropriação desse aí, e desde o momento em que o 'NÓS' deles, o Espírito, do mesmo modo só poderia ser Deus, se Ele pessoalmente selasse essa auto desapropriação, idêntica no Pai e no Filho, com o querer que nada fosse 'para si', bem como (segundo mostra a sua revelação ao mundo) pura comunicação e dom de amor entre o Pai e o Filho (Jo. XIV,26; XVI, 13-15). Com essa kenose primordial tornaram-se radicalmente possíveis as outras kenoses de Deus no mundo, que são então puras conseqüências dessa [primeira kenose]: a primeira kenose como 'auto delimitação' do Deus Trinitário, em razão da liberdade dada às criaturas, a segunda, como mais profunda 'auto delimitação' do próprio Deus Trinitário mediante o seu pacto, que da parte de Deus, é, por princípio, incancelável, faça então Israel o que quiser; e a terceira, não somente cristológica mas inteiramente trinitária, em razão da encarnação somente do Filho, o qual ora manifesta o seu radical comportamento eucarístico no pro nobis da cruz e ressurreição' (Urs von Balthasar, TeoDrammatica, Vol. II, Le Persone del Dramma, L' Uomo in Dio, Jaca Book, 1992 , p.308).
Piero Coda, estudando a questão da criação, e fundamentando-se evidente e osmoticamente em von Balthasar e em Bulgakov, diz que a criação se explica pela kenose de Deus.
[Certamente, Ilmo Doutor Papetti, o senhor notou como todos esses teólogos modernistas se kenotizam mutuamente, esvaziando, um no outro, as heresias que elocubram].
'A criação, de fato, à luz do evento do Crucificado/Ressurgido, pode ser vista e aprofundada como kenose, e, portanto, não-ser do amor de Deus. Analogamente a quanto ocorre entre as Pessoas divinas no seio da Trindade. Com a única diferença que, na criação, isto ocorre da parte de Deus em relação àquilo que não é Deus, ou melhor ainda, com relação àquilo que, por si, simplesmente não é. Na ótica do agape podemos pensar em reformular o princípio tradicional da creatio ex nihilo, falando de um ex nihilo amoris: no sentido que o 'nada' do qual Deus cria é a kenose de agape que Deus livremente vive no momento em que dá o ser ao Outro-de-si, àquilo que por si não é'(Piero Coda, Questio de Alteritate in divinis, Agostino, Tomaso, Hegel, http://mondodomani.org p. 11).
E diz ainda Piero Coda, que essa doutrina kenótica da Trindade permite que haja a possibilidade de um espaço, antes, 'a realidade do negativo como ruptura e como pecado'.
'Assim, a possibilidade e a própria realidade do negativo como ruptura e como pecado encontra espaço de realidade e de redenção dentro da distinção trinitária que sobreabraça'(Piero Coda., Questio de Alteritate in divinis, Agostino, Tomaso, Hegel, http://mondodomani.org p. 11)
Escreve von Balthasar, respondendo, entre as linhas, a Hegel:
'Que Deus (enquanto Pai) possa dar a outrem a sua divindade, e que Deus (enquanto Filho) não a tenha unicamente como emprestada, mas a possua em 'igualdade de essência', significa uma tão inconcebível e insuperável 'separação' de Deus de Si mesmo, que toda outra separação em tal modo tornada possível (mediante essa!), seja mesmo a mais amarga e obscura, pode verificar-se somente no interior dessa. E isto não obstante que a própria comunicação seja um evento de absoluto amor, cuja felicidade consiste na doação não só de alguma coisa de Si mesmo, mas simplesmente de Si mesmo . Se ambas estas coisas se captam com um só olhar, tudo quanto foi dito não dá direito de ver a Trindade unilateralmente como o 'jogo' de uma absoluta 'beatitude', que abstrai da dor real, portanto carente de 'seriedade' da divisão e da morte' (Urs von Balthasar, TeoDrammatica, Vol. IV, L'Azione Jaca Book, 1995, pp. 302-303, apud Piero Coda, apud P. Coda, Questio de Alteritate in divinis, Agostino, Tomaso, Hegel, http://mondodomani.org p. 11-12).
Se não se pode conceber Deus como beatitude absoluta sem a 'divisão e sem a morte', isto quer dizer que, em Deus, haveria o mal e o pecado?
Parece impossível não chegar a esta conclusão absurda.
A criação tem, segundo von Balthasar, una relação íntima com o processo kenótico na Divindade:
'A infinita distância entre Deus e o mundo tem raíz naquela entre Deus e Deus' (Von Balthasar, TeoDrammatica, Vol. II, Le Persone del Dramma. L'Uomo in Dio, Jaca Book, Milano, 1995, p 252).
Portanto, em Von Balthasar, nós temos um Deus que não é simplesmente 'absolutamente outro', mas também intimamente coligado à sua criação. Aquilo que foi criado não é absolutamente extrangeiro com relação ao que foi gerado. 'Se na eterna vida de Deus não há nenhum devir,—-[Agora não há devir em Deus?] — mas todavia há o sempre-mais, a surpresa contínua do amor, o ser sempre cada vez unos de diversos 'pontos de vista', então o devir criatural é a aproximação maximamente possível a uma semelhante inatingível vitalidade' (Urs von Balthasar, Theo-Drammatica, Vol. V, L'Ultimo Atto, Jaca Book, Milano, 1995, p. 77).
Também um teólogo de linha diferente de Piero Coda, como o ex frei Leonardo Boff, inspirando-se na teologia de Moltmann— a osmose entre protestantismo e catolicismo, desgraçadamente, já agora, depois do Vaticano II, está feita — asseverava que a Criação seria algo necessário à Divindade. 'Deus é comunidade [Sic!?] de Pessoas não mais simplesmente o Uno. A sua unidade existe na forma de comunhão (comum - união) dos divinos Três entre si e com a história. Há uma história trinitária. As missões do Filho e do Espírito introduzem a criação no processo trinitário. A Trindade se constitui assim num mistério aberto. A unidade, fruto da comunhão, inclui a humanidade e a criação; então, escatologicamente tudo será unificado na Trindade' (Leonardo Boff, A Trindade, a Sociedade e a Libertação, Vozes, Petrópolis, 1986, pp. p. 152-153).
Por meio da criação, como doação kenótica da Divindade, haveria uma revelação do próprio Deus pela sua 'Presença' na criação. A revelação por meio da criação não consistiria na descoberta racional das qualidades invisíveis de Deus tornadas visíveis na criação, como se descobrem as qualidades de uma causa no seu efeito. A revelação cósmica seria o próprio Deus que se dá às criaturas, pelo seu êxodo, e que, depois, por evolução, desabrocha na história com a aparição do homem. Na revelação cósmica, como na histórica, haveria uma 'Aliança' e um modo de libertação da própria Divindade expelida no mundo material.
'Entrevemos com crescente clareza que Deus e Mundo não são realidades que simplesmente se opõem como imanência e transcendência, tempo e eternidade, criatura e Criador. Uma visão estática do ser propiciava este tipo de metafísica da representação. Se introduzirmos, entretanto, as categorias história, processo, liberdade etc. aparece o dinamismo, o jogo das relações, a dialética da mútua inclusão. O mundo emerge não como uma mera exteriorização de Deus, mas como receptáculo da sua auto comunicação. O mundo começa a pertencer à história do Deus trino'(L Boff, A Trindade, a Sociedade e a Liberdade, Vozes, Petrópolis, 1986, pp. 143-144).
De osmose em osmose, se chega ao triteísmo, ao panteísmo e à Gnose.
A queda da Divindade no mundo da criação, permitiria que houvesse, primeiro, uma revelação cósmica, e depois uma revelação na história, e pela história, porque a história é a etapa seguinte à etapa cósmica. Por isto disseram Daniélou e Dupuis:
'Trata-se de uma 'aliança cósmica', mas a permanência que esta promete não se deve a leis naturais, mas sim à fidelidade (‘emet') do Deus vivo. Tal aliança não é parte da história natural, mas de uma história da salvação. A fidelidade de Deus na ordem cósmica é, para Israel, a garantia de uma fidelidade na ordem histórica. É assim que a ordem cósmica será concebida por Paulo, quando fala de uma revelação permanente de Deus através do cósmos endereçada a todas as pessoas. J. Daniélou comenta: “A religião cósmica não é religião natural, no sentido de estar fora da ordem sobrenatural efetiva e concreta. [...] É natural apenas porque é por meio da sua ação no cósmos e do seu apelo à cosciência, que o Deus único é conhecido. A aliança cósmica é uma aliança da graça. Só que esta aliança ainda é imperfeita, porque Deus somente se revela através do cósmos[...]”. “E acrescenta [Daniélou]: 'A aliança cósmica já é uma aliança sobrenatural; não é de ordem diversa da mosaica ou da aliança cristã” (Pe. Jacques Dupuis, Rumo a uma Teologia Cristã do Pluralismo Religioso Paulinas, São Paulo,1999, p. 56).
Na história, se repetiria o mesmo processo de kenose pessoal da Trindade, mas agora, entre as Pessoas divinas e as pessoas humanas.
Como as Pessoas em Deus, a pessoa humana seria não um ser, mas um movimento, um devir.
Em cada pessoa humana, Deus se doaria kenoticamente, divinizando o homem.
Também Maurice Zundel adota esta mesma doutrina, ele que tinha sido tão amigo de Paulo VI que o convidou para pregar os exercícios espirituais para o Papa e para os Cardeais, no Vaticano, em 1972:
'É certo, pois, que o encontro consigo mesmo coincide com o encontro com Deus, pois que, para Santo Agostinho, como para nós, 'a Beleza tão antiga e tão nova' é Ele. Doutra parte, pouco importa o nome que se lhe dê — que se o chame Verdade, Beleza, Música silenciosa, que se o chame Inefável, 'X' o Omega — pouco importa, desde que se o encontre como a 'Presença'— [seria a Schechinah cabalística?] — que nos liberta de nós mesmos e que nos permite tornar-nos, para os outros, um espaço — [um vazio kenótico? ] —sem fronteiras onde eles possam ser acolhidos' (M Zundel, Je est un Autre, ed.Anne Sigier, Québec, 1997, p. 23).
E Zundel repete freqüentemente em seus livros que um Deus trascendente, Senhor do homem e do universo é um ídolo, um faraó. Para ele, Deus é absolutamente imanente. Deus é o homem. E Zundel foi um mestre muito admirado por Paulo VI...
Também a Teologia da Libertação, pela voz do ex Frei Leonardo Boff aceita que o Mundo é Deus em devir, e que todo o Cósmos, com toda a humanidade, se encaminha em direção à cristificação ou à divinização universal. Todos nos tornaremos Deus:
'Todo cósmos é chamado a uma total cristificação e divinização. O Cósmos é parte da própria história de Deus' (Leonardo Boff, O Futuro do Mundo: Total Cristificação e Divinização', Revista de Cultura, Vozes, Petrópolis, 1972, p. 58).
Boff, acreditava, como Teilhard de Chardin, que 'A matéria, pois, é portadora de uma realidade divina, ela é sacramental' (L. Boff, O Pai Nosso, Vozes, Petrópolis, p, 93).
Para Boff, como para Teilhard de Chardin, a evolução vem da cosmogênese à biogênese, à antropogênese para chegar à cristogênese:
'No homem a matéria chega à auto consciência. E a auto consciência desperta para a consciência do Absoluto. Em um homem a auto consciência chegou a identificar- se com o Absoluto e se chamou Jesus Cristo' (L. Boff, O Futuro do Mundo: Total cristificação e divinização', Revista de Cultura, Vozes, Petrópolis, 1972, p.59).
Dizia ainda o ex Frei Boff:
'O homem é chamado a ser alguma coisa maior, isto é, ser assumido por Deus em tal modo que, semelhantemente a Jesus Cristo, Deus homem, Deus seja tudo em todas as coisas, e deva se tornar com o homem uma unidade inconfundível, imutável, indivisível, inseparável. O Cósmos é consagrado a participar desta divinização e santificação' (L Boff, O Futuro do Mundo: Total Cristificação e Divinização', Revista de Cultura, Vozes, Petrópolis, 1972, p. 59).
'...Deus e a criatura não estão um diante da outra, mas sim, um dentro da outra' (L. Boff, O Futuro do Mundo: Total Cristificação e Divinização', Revista de Cultura, Vozes, Petrópolis, 1972, p. 59).
'O futuro do mundo consiste em que ele pode se tornar o corpo de Deus' (L. Boff, O Futuro do Mundo: Total Cristificação e Divinização', Revista de Cultura, Vozes, Petrópolis, 1972, p. 60).
'O universo está destinado a participar da própria história íntima de Deus' (L. Boff, O Futuro do Mundo: Total Cristificação e Divinização', Revista de Cultura, Vozes, Petrópolis, 1972, p. 67).
E não se pretenda interpretar este 'participar' em um sentido analógico, porque Boff, em outros livros e passagens, deixa claro que ele entende que o mundo será Deus.
No livro O Destino do Homem e do Mundo, Boff escreveu: 'A fé cristã explicita o sentido latente percebido dentro da vida. Ter fé consiste em dizer um Sim e um Amém à bondade do mundo. É optar por um sentido pleno e radical que triunfa sobre o absurdo. Por isto, a fé cristã afirma que o mundo caminha não para uma catástrofe cósmica, mas para a sua plenitude. O fim do mundo (a meta do mundo) consiste numa indizível interpenetração com Deus. O destino da criação é ser de tal forma penetrada por Deus que Ele [Deus] constituirá a sua essência mais íntima' (Leonardo Boff, O Destino do Homem e do Mundo, Vozes, Petrópolis, 1973, p. 23).
E mais explícito ainda: 'a vocação a que o mundo é chamado é sublime:Deus mesmo' (L Boff, O Destino do Homem e do Mundo, Vozes , Petrópolis, 1973, p. 23).
Poder-se-iam dar inúmeras citações da Gnose de Leonardo Boff, pelas quais ele nunca foi condenado, e nem mesmo censurado, porque somente repetia o que aprendera com os teólogos da Nova Teologia modernista que triunfou no Vaticano II.
Veja-se ainda este trecho: 'O homem está destinado a ser-um com Deus e com isso a ser totalmente divinizado. Ele irromperá numa plenitude realizadora de todos os dinamismos da sua existência. Ele não o afirmaria se não o tivesse visto realizado em Jesus de Nazareth, morto e ressuscitado. Ele [Jesus] foi aquele ser humano que realizou a possibilidade latente no homem de poder ser-um com a Divindade. A completa hominização do homem supõe a sua divinização. Isto significa: o homem para tornar-se verdadeiramente ele mesmo deve poder realizar a capacidade máxima inscrita na sua natureza de ser-um com Deus, sem divisão, sem mutação e sem confusão. Ora, em Jesus de Nazareth o cristianismo viu essa possibilidade realizada. Por isto foi pela comunidade de fé outrora, e hoje, amado como sendo o Deus encarnado, o Deus conosco, l'Ecce Homo' (L. Boff, O Destino do Homem e do Mundo, Vozes, Petrópolis, 1973, p. 28).
'O futuro de Jesus Cristo é o futuro de cada homem. Se ele é nosso irmão, então significa que possuímos a mesma possibilidade que ele para sermos assumidos por Deus e sermos um-com-ele. Um dia, ao termo da hominização, essa nossa possibilidade será atualizada. Então, cada qual a seu modo, será como Jesus Cristo: permanecendo homem será inserido no mistério do próprio Deus' (L Boff, O Destino do Homem e do Mundo, Vozes, Petrópolis, 1973, p. 29).
Essas afirmações de L. Boff esclarecem certos textos do Vaticano II como, por exemplo, o da Gaudium et Spes que mencionamos, que Deus colocou uma semente divina no homem (Cfr. Gaudium et Spes, no3). Ou ainda aquela misteriosa afirmação que a revelação de Cristo consiste na revelação do mistério do homem ao homem.
Será preciso sublinhar que a Gnose e a Cabala não falam de modo diferente daquele que se expressam von Balthasar, Teilhard, ou Boff ?
Essa fusão da criação na própria divindade trinitária é uma heresia claríssima que penetra, ora veladamente, ora confessadamente a Teologia moderna e a assim chamada Nova Teologia. E o Vaticano II não só não condenou essa heresia, mas, desgraçadamente, sofreu o seu influxo. A ponto de Paulo VI proclamar: 'Humanistas do século XX, reconhecei que também Nós temos o culto do Homem'.
A criação seria o resultado da absoluta kenose de Deus Trino que se esvazia no mundo. E isto aqui seria o Deus criado, ou Deus em devir. O universo criado seria o absolutamente o Outro de Deus, mas o Outro de Deus, em Deus trinitário, que se aniquila para dar a sua vida por amor.
Finalmente a kenose explicaria a crucificação.
'A economia da salvação manifesta que o Filho eterno assume na sua própria via o evento 'kenótico' do nascimento, da vida humana, e da morte na cruz.' (Urs Von Balthasar, Teologia - Cristologia - Antropologia, I, C. 3, in La Civiltà Cattolica, n. 3181 (10 gen. 1983), pg. 50-65. Apud Piero Coda, Dio Uno e Trino - Rivelazione, Esperienza e Teologia del Dio dei Cristiani. Edizioni San Paolo, terza edizione, 2000, pg. 241)
Urs von Balthasar fala do abandono de Deus sofrido por Jesus Cristo, na cruz, como um ato kenótico necessário para divinizar o homem. Na morte de Cristo, dar-se-ia a kenose crística divinizadora do homem. Essa kenose se completaria pela ressurreição que fecharia o circuíto kenótico, retornando à Divindade a Cristo e à Trindade. Isto seria o misterioso 'mistério pascal', passagem do homem do estado atual para o estado divino.
'Deste acontecimento, que se verifica entre o Pai e o Filho, desabrocharia a própria doação, o Espírito que acolhe aqueles que estão abandonados, que justifica os ímpios e vivifica os mortos. O Deus que abandona e o Deus que é abandonado são uma única coisa no Espírito da dedicação. O Espírito procede do Pai e do Filho porque provém da derelictio Jesus.' (Jürgen Moltmann, Prospettive dell'odierna teologia della Croce, in Aa. vv., Sulla teologica della croce, Queriniana, Brescia 1974, pg. 42-46. Apud Piero Coda, Dio Uno e Trino - Rivelazione, Esperienza e Teologia del Dio dei Cristiani. Edizioni San Paolo, Milano, 2000, pg. 237)
Segundo o mesmo e insuspeito Leonardo Boff, a kenose de Von Balthasar se opõe à imagem aristotélica de Deus como ser imutável:
'Desde o seu princípio, diz Balthasar, a própria encarnação possui um caráter «passional», isto é, è direcionada à paixão. A encarnação significa que Deus assume a totalidade da experiência humana, experiência do pecado e do inferno. Cristo assumiu tudo isso ao largo da sua vida até a sua morte, experiência que todos devemos fazer do abandono de Deus que alcança até a descida ao inferno que eqüivale a sentir-se absolutamente condenado. Daí que a paixão deste mundo se trasforme na paixão de Jesus Cristo. Esta kenose implica uma mudança na imagem de Deus, imagem que foi desfigurada pela concepção estática grega do «Deus inmovens».' (LEONARDO BOFF, 'La cruz no es algo a entender, sino a assumir como escándalo', http://www.mercaba.org/FICHAS/JESUS/pasion_de_cristo_05.htm , o negrito é meu).
[E como estas idéias recordam a doutrina antinomista de Sabbatai Tzevi! (Cfr. Gerschom Scholem, Sabbatai Sevi, The Mystical Messiah Princeton University Press, 1975]
'Por outro lado, o homem foi criado para ser integrado em Cristo, e, portanto, na via da santa Trindade. Qualquer que seja o distanciamento do homem pecador nos cuidados de Deus, ele é sempre menos profundo do distanciamento do Filho com relação ao Pai no seu esvaziamento kenótico (Fil 2,7) e da miséria do 'abandono' (Mt 27, 46). Este é o aspeto próprio da economia da redenção na distinção das Pessoas da santa Trindade, que de outro lado são perfeitamente unidas na identidade de uma mesma natureza e de um amor infinito' (Urs Von Balthasar, Alcune questioni riguardanti la cristologia, IV, D.8, in La Civiltà Cattolica, n. 3129 (1 nov. 1980), pg 50-65. Apud Piero Coda, Dio Uno e Trino - Rivelazione, Esperienza e Teologia del Dio dei Cristiani. Edizioni San Paolo, terza edizione, 2000, pg. 242)
'A vida de Deus, que se exprime na relação das três divinas hipóstases - como que nos revela a encarnação e a morte na cruz do Verbo feito homem - é pois atravessada por essa kenose que é esvaziamento de si por amor e que, logicamente, é contínua e perfeitamente vencida pela beatitude infinita: tanto que, propriamente, não se pode falar de sacrifício e de sofrimento de Deus, mas de perfeito amor' (Piero Coda, Dio Uno e Trino - Rivelazione, Esperienza e Teologia del Dio dei Cristiani. Edizioni San Paolo, terza edizione, 2000, pg. 246)
'Hans Urs von Balthasar, em seu livro Mysterium Paschale, utilizou o tema kenótico para criar a sua bela teologia espiritual do mistério pascal da morte e ressurreição de Cristo. Para Balthasar, o drama divino é atuado no proscênio da terra; até que o golpe de lança no lado de Cristo que derramou sangue é uma kenose da compaixão divina do coração, da rachamim, a fonte dos divinos afetos.'[E Rachamin é o nome da sexta emanação sefirótica na Cabala judaica, nome cabalístico para a misericórdia] (John B. Lounibos, Self-emptying in Christian and Buddhist Spirituality, http://www.iona.edu/academic/arts_sci/orgs/pastoral/SELF_EMPTYING.html), Negrito é meu).
'Nessa perspectiva, a revelação não é outra coisa senão o movimento da auto comunicação do único Sujeito divino (evidente influxo hegeliano) através de seus 'três distintos modos de ser' (drei Seinsweisen): Barth prefere essa designação àquela clássica de 'pessoas', porque esse termo - dada a evolução semântica que sofreu na idade moderna, vindo a designar o sujeito autônomo e auto consciente - acabaria por levar ao triteísmo. Uma posição que também o católico K. Rahner divide com Barth. Portanto, o Deus cristão é o único Senhor enquanto é o Revelador, a Revelação e o Revelado' (Piero Coda, Dio Uno e Trino - Rivelazione, Esperienza e Teologia del Dio dei Cristiani. Edizioni San Paolo, terza edizione, 2000, pg. 233 - 234).
Note-se que, desse modo, se aceita, sem restrições, a tese modernista de que a revelação não é de verdades, mas sim da própria realidade divina em si .O que o Vaticano II não repeliu, mas aceitou.
Na história, Deus trascendente permaneceria imanente, para divinizar a criação.
'A teologia contemporânea, a partir sobretudo de Karl Rahner, fala de um axioma fundamental do conhecimento de Deus (Grundaxiom): 'A Trindade econômica é a Trindade imanente'. Isto quer dizer que a Trindade, que se revela na história da salvação, é a mesma Trindade imanente, tal como é em si' (Piero Coda, Dio Uno e Trino - Rivelazione, Esperienza e Teologia del Dio dei Cristiani. Edizioni San Paolo, terza edizione, 2000, pg. 13).
'Deus possui a si mesmo doando-se e somente doando-se. Mas assim, doando-se, se possui. Assim é. O seu possuir-se é o evento, é a história de um doar-se, e, nesse sentido, é o objetivo de todo mero possuir-se. Como essa história Ele é Deus, ou melhor, essa história do amor é 'Deus mesmo' (E. Jüngel, Dio, mistero del mondo, Queriniana, Brescia, 1982, p. 427. Apud Piero Coda, Dio Uno e Trino - Rivelazione, Esperienza e Teologia del Dio dei Cristiani. Edizioni San Paolo, terza edizione, 2000, pg. 238).
Noutras palavras, Deus seria tão imanente ao homem, que Deus é a história, e a história é Deus em vias de kenotização para retorno ao Pai
Sendo assim, a revelação é o conhecimento de Deus como história. Daí a importância dada aos 'sinais dos tempos', isto é, à manifestação de Deus nos eventos históricos, eventos pelos quais se realiza a experiência divina do homem, em que Deus se revela como realidade ao homem, fazendo-o conhecer Deus, e conhecendo Deus, conhecer que o homem é Deus em estado de êxodo, 'caminhando' para o Pai. Conhecendo Deus na história, Deus imanente ao mundo e imanente a si, o homem conhece o mistério do homem. Cristo revela ao homem o mistério do homem, isto é, que o homem é Deus em trânsito. Por isso, poder-se-ia dizer que a revelação é 'histórica-salvífica'.
Veja-se que não fizemos uma interpretação errada daquilo que dizem os famosos teólogos modernistas nesta citação
'Há uma história trinitária. As missões do Filho e do Espírito Santo introduzem a criação no processo trinitário. A Trindade se constitui assim num mistério aberto. A unidade, fruto da comunhão, inclui a humanidade e a criação; então escatologicamente tudo estará unificado na Trindade' (L. Boff, A Trindade, a Sociedade e a Libertação, Vozes, Petrópolis, 1986, p. 153).
Isto quer dizer que a kenosis divina tinha como objetivo, desde o início, a criação do mundo e do homem, para que Deus, num ato de amor kenótico, morresse, se aniquilasse, para divinizar o homem :
É exatamente isto que estaria no centro do mistério da revelação:
“Deus faz o homem conhecer, através da sua kénosis, que o homem, desde o princípio, foi concebido kenoticamente, e que precisamente nessa exteriorização e nessa pobreza será rico e glorioso, e que já é assim” (Piero Coda, id., p. 105).
De todas estas citações, fica bem claro que a revelação divina não consistiria em palavras que comunicam verdades, mas a revelação seria a comunicação kenótica do próprio Deus ao homem. A morte de Cristo – aniquilização literal da divindade — teria permitido a divinização do homem. A revelação seria a comunicação da divindade ao homem por meio do Filho, na Cruz, e através do mistério pascal, passagem do estado humano ao divino.
Se a criação foi um ato kenótico da Trindade, através da missão do Filho encarnado e do Espírito Santo visando divinizar o homem e o universo, a revelação do mistério de Deus por Cristo é também a revelação do mistério do homem, um Deus em potência.
Por isso a revelação não estaria reservada aos profetas ou apóstolos eleitos, mas seria concedida a cada homem:
“A paternidade de Deus que Jesus revela é, pois, universal e, ao mesmo tempo, personalizante: no sentido que toca cada pessoa humana na sua condição concreta” (Piero Coda, La Paternità di Dio, il Grido di Giobbe e l'incontro tra le Religioni, http://mondodomani.org/dialegesthal/pc01.htm p. 4).
Este ato de amor kenótico de Deus, que se revela doando-se, deveria ser repetido pela Igreja e pelos homens, numa “abertura” que esvaziasse Igreja e homens no “outro”. Todas as igrejas deveriam ser kenoticamente abertas, para realizar-se na sua própria aniquilação. Da mesma forma, todas as pessoas deveriam estar “abertas”, uma às outras. Não ser “abertos”, não praticar o misterioso auto aniquilamento kenótico, isto seria o grande pecado descoberto pelo Vaticano II.
A Igreja Católica, por amor kenótico, deveria, também ela, auto-aniquilar-se num “misterioso processo de auto-demolição”... para usar a expressão de Paulo VI, ao analisar a obra pós-conciliar do Vaticano II.
Que esta doutrina kenótica inspirou certos textos do Vaticano II, é inegável:
“Em Cristo, o relacionamento entre Deus e a humanidade, e os relacionamentos intersubjetivos entre as pessoas, foram inseridos, revelados e redimidos no domínio da reciprocidade trinitária. Em outras palavras, participam da vida divina que subsiste entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Como ensina o documento do Vaticano II sobre a Igreja no Mundo Moderno, Gaudium et Spes 24, esta reciprocidade é realizada “através do sincero dom de si” (cf. Lc 17:33) que Jesus Cristo revelou e realizou plenamente na kenosis do abandono e morte na cruz” (Piero Coda, 'The Ecclesial Movements - gift of the Spirit for our times', Theological-Pastoral Congress, 26-28 June 2001 - Castel Gandolfo, http://www.focolare.org/en/sif/2001/20010707e_f.html).
O ecumenismo é a conseqüência natural e lógica desta doutrina da revelação universal, tal qual era professada pelos modernistas. Porém, Coda explica à luz – Luz? – da doutrina kenótica como será a Igreja do futuro:
'(...) a revelação divina consiste na convocação de todos os homens para adorar, na liberdade de adesão à verdade, o único verdadeiro Deus e a viver na paz realizações de fraternidade universal. Mas, no correr dos séculos, as tradições monoteístas interpretaram tendencialmente a unicidade de Deus e a universalidade da salvação de forma exclusivista: no sentido de que cada uma delas se auto entendeu e auto configurou como a detentora da Palavra da revelação (e do seu cumprimento) excluindo as outras. Daí, a impossibilidade de compreender o outro/o diferente na sua alteridade/diversidade e, ao mesmo tempo, na comunhão e na companhia da única origem e da única meta da história: que é exatamente o Deus Único e Uno que nos criou e que se revela nos acolhendo em si, na vida eterna' (Piero Coda, La Paternità di Dio, il Grido di Giobbe e l Íncontro tar le Religioni, http://mondodomani.org/dialegesthal/pc01.htm p. 9.).
Desta noção de revelação, absolutamente modernista, Piero Coda retira a conclusão de que o Vaticano II abriu o caminho para uma mudança de época na qual nascerá a Religião de Amanhã, com a sua Igreja Espiritual, tal qual haviam professado todos os gnósticos de toda a história:
“Os tempos — sob a ação do Espírito de Deus que age no coração dos homens e na história dos povos e das culturas — hoje estão amadurecendo e propiciando uma mudança de caráter de época. Como cristãos e católicos, não podemos não pensar naquilo que representou, e representa, para o auto conhecimento da Igreja Católica, o Concílio Vaticano II. Por outro lado, a planetização da família humana – do ponto de vista social, econômico, político, cultural e espiritual — é um evento irrefreável: ainda que se traz consigo – se mal compreendido e conduzido — o perigo da destruição das diversas identidades. Nessa situação, os “sinais dos tempos” e o Espírito de Deus impelem as religiões monoteístas — desde o seu interior, e na valorização das suas identidades específicas — a re-entender a unicidade/unidade de Deus não mais com o fundamento do exclusivismo, mas — conforme a verdadeira e originária intenção do próprio Deus — como garantia de um pluralismo relacional que chama as criaturas humanas à unidade da paz na liberdade das diferentes identidades, sob o olhar do único Deus”. (Piero Coda, La Paternità di Dio, il Grido di Giobbe e l' Incontro tar le Religioni, http://mondodomani.org/dialegesthal/pc01.htm p. 9).
Essa “Igreja” ecumênica e de fé elástica e camaleôntica, não é a Igreja de Jesus Cristo. Estes teólogos modernistas são membros de uma Seita que quer destruir a Igreja Católica. E pretendem realizar esta destruição em nome do Concílio Vaticano II que, segundo eles, fez uma “reviravolta” na História e na Religião. Exatamente como queriam os modernistas.
E finalmente, Piero Coda fala de “um novo advento do próprio Deus conforme a especificidade de cada religião” (P. Coda , La Paternità di Dio, il Grido di Giobbe e l' Incontro tar le Religioni, http://mondodomani.org/dialegesthal/pc01.htm p. 12).
Se acontecer esse “advento”, do qual as Escrituras não falam, dever-se-ia perguntar se não seria o advento do Anticristo.
De toda essa doutrina kenótica, se deduz necessariamente que a revelação não consiste em verdades que o intelecto humano deveria aceitar, mas sim na comunicação da própria res divina, [divinizadora do homem]. Exatamente como diziam os modernistas. E exatamente como o douto parecer do Instituto Paulo VI o confirma.
XIV - A Revelação conforme o Vaticano II
'Poi fummo dentro al soglio della porta
che 'l malo amor dell'anime disusa
Perché fa parer dritta la via torta'
(Dante, Purg., X, 3)
['Depois fomos além da soleira da porta
que o mau amor das almas gasta,
porque faz parecer reto o caminho torto'].
Finalmente chegamos ao ponto em que devemos analisar as cinco notas com que o Instituto Paulo VI caracteriza a revelação segundo o Vaticano II.
Estas cinco notas foram apresentadas pelo douto parecer teológico elaborado pelo Instituto Paulo VI de Brescia, para provar que o novo conceito de Revelação, conforme o documento Dei Verbum do Vaticano II, não seria modernista.
Primeiramente convém lembrar que um dos redatores deste documento conciliar — afirma-se — foi o Padre Henri de Lubac, um dos líderes da assim chamada Nova Teologia (Cfr. Jean Pierre Wagner, Henri de Lubac, Cerf, Paris, 2001, p. 26). Sendo assim, ficaríamos surpresos se o documento Dei Verbum não refletisse, de forma alguma, o pensamento da Nova Teologia, que era um modernismo mais ou menos 'penteado', 'para fazer parecer certo o caminho errado'...
Vejamos, pois, essas cinco notas apresentadas pelo douto parecer teológico elaborado pelo Instituto Paulo VI de Brescia.
O referido parecer teológico afirma na sua primeira nota:
“Quanto ao perfil doutrinário, pode-se resumir o pensamento conciliar, relativo ao conceito de revelação, nos seguintes traços :
'a) O percurso que a noção seguiu na consciência da Igreja é, costumeiramente, medido e concisamente expresso, dizendo que se efetuou a passagem de uma concepção intelectualística para uma concepção histórico-salvífica personalística da revelação.
A concepção intelectualística entende a revelação divina como comunicação de verdades por parte de Deus, ao intelecto humano, sustentado pela liberdade e iluminado pela graça.
A concepção histórico-salvífica entende a revelação como auto-manifestação do próprio Deus à história e na história do homem, através da missão de Jesus e do Espírito.
Não há, evidentemente, oposição entre as duas concepções, visto que a segunda não exclui, mas integra a primeira. A auto-revelação de Deus, de fato, implica também uma comunicação de verdades a nível intelectual e reconhecíveis do ponto de vista poético.
E, todavia, há também uma diversidade entre as duas perspectivas. A segunda supera a primeira, porque os termos do evento da revelação não são mais as verdades de um lado e o intelecto humano de outro, mas são, de um lado, Deus livre e gratuitamente presente na história de Jesus e do Espírito dado por Jesus, e do outro lado, o homem como aquele que é chamado a viver livremente a sua história como história do Espírito, que faz memória da história e do evento escatológico de Cristo”.
[Até aqui a primeira nota do douto Parecer do Instituto Paulo VI de Brescia].
Análise -Resposta
O Instituto Paulo VI reconhece, portanto, que o Vaticano II admitiu um conceito renovado de revelação que, na conclusão do douto parecer teológico, porém, é qualificado como novo.
Portanto, este novo conceito de revelação do Vaticano II, não segue o conceito de revelação que sempre a Igreja ensinou: a revelação é costituída de verdades que Deus nos revelou sebre Si mesmo.
Pelo contrário, o Instituto Paulo VI confessa que a revelação, segundo o Vaticano II, não é mais 'intelectualística', mas é, antes, 'histórico-salvífica'.
Segundo o douto Parecer teológico em foco, 'A concepção histórica-salvífica entende a revelação como auto-manifestação do próprio Deus à e na história do homem, mediante a missão de Jesus e do Espírito'.
Portanto, o Parecer do Instituto Paulo VI admite que se passou do conceito de revelação de verdades para um conceito de revelação “novo” que seria exatamente aquele preconizado pelos Modernistas e Neo Modernistas: a revelação como auto-manifestação do próprio Deus na História e pela História.
Que significa que a revelação é feita por meio de uma auto-manifestação do próprio Deus, se não que, na revelação, no lugar das verdades, estaria a própria res divina que se manifesta na criação e na história?
Esta interpretação é confirmada pelo texto da Lição dada aos professores de Ferrara e publicada pelo Centro Cultural Católico Carlo Caffara, no qual, depois de uma exposição aceitável de revelação, acaba-se por dizer que, conforme o Vaticano II, a revelação não deve ser entendida como 'mera instrução divina', e que ela é uma revelação, de per si, salvadora:
'O termo 'Revelação' conota, pois, um fato: Deus se dá a conhecer ao homem e faz o homem conhecer o projeto que Ele tem com relação a ele. Este projeto é que o homem participe da própria natureza divina. A 'Revelação', portanto é inseparavelmente teológica: é o próprio Deus que revela a si mesmo, e antropológica: é o próprio Deus que revela ao homem o seu destino'.
'A palavra 'Revelação' - este é um ponto central – não é um puro discurso de palavras no sentido que Deus revela a si mesmo e faz conhecer o mistério da sua vontade falando somente ao homem sobre Si mesmo e sobre o mistério da sua vontade. Mas a 'Revelação' conota também, antes em primeiro lugar, un complexo de atos cumpridos por Deus mesmo; conota um conjunto de acontecimentos dos quais é responsável, ator Deus mesmo.'E’ através desses atos que Deus revela a si mesmo e faz conhecer o mistério da sua vontade. Mas, sempre para ter um conceito o quanto possível preciso de 'Revelação', e neste ponto é necessário fazer uma reflexão.'(Centro Culturale Cattolico Carlo Caffarra http://www.caffarra.it LA RIVELAZIONE DIVINA, 'Cristo e la divina Scrittura sono il rimedio d’ogni disgusto', lição dada aos professores. Ferrara 19-02-03. O negrito é meu e o sublinhado é do original).
E até este ponto, não haveria nada a criticar a este texto. Mas, a explicação dada a seguir traz a novidade modernista sobre a revelação, que seria salvadora por si mesma:
'Ouvindo quanto foi dito até agora, não quereria que pensasem do seguinte modo: Deus me faz conhecer a Si mesmo e ao seu projeto sobre o homem mediante fatos e palavras.. La realização do projeto divino sobre o homem, mais precisamente da sua vontade de tornar o homeme participante da sua divina natureza, se coloca para eles, por assim dizer depois que Deus lhes falou por palavras e atos. E’ a redução da 'Revelação' a mera 'instrução divina'. As coisas não são assim: Deus revela a si mesmo e faz connhecer … realizando este projeto mesmo: Deus revela realizando aquilo que revela e realiza revelandosi. S. Tomás diz estupendamente: 'dicere Dei est facere' [in 1Cor 1, lect.2, n.1; ed anche in Ps 32,9].
'A 'Revelação', portanto, não é um puro fato de connhecimento; é uma doação integral que Deus realiza por Si mesmo para o homem.
'Agora podemos entender o seguinte texto do Vaticano II: 'Esta economia da Revelação acontece com fatos e palavras intimamente coligados entre si, de modo que as obras realizadas por deus na história da salvação, manifestam e reforçam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras, e as palavras proclamam as obras e iluminam o mistério nelas contido'.(Centro Culturale Cattolico Carlo Caffarra http://www.caffarra.it LA RIVELAZIONE DIVINA, 'Cristo e la divina Scrittura sono il rimedio d’ogni disgusto', lição dada aos professores Ferrara 19-02-03. O negrito é meu e sublinhado é do original).
Portanto, segundo a explicação do Centro Cultural Católico Carlo Caffarra, a revelação conforme o Vaticano II seria:
1) da própria res divina e não tanto de palavras ou verdades a serem conhecidas; a revelação não seria 'mera instrução divina'(E esta afirmação está inteiramente de acordo com aquilo que se expressou o documento do Instittuto Paolo VI de Brescia)
2) Deus revelando-se realiza o objetivo que tinha ao revelar-se, isto é, o destino do homem de “participar da natureza divina” (E neste ponto o Centro Cultural Católico Carlo Caffarra é menos radical que os modernistas e neo modernistas que dizem que o objetivo final é a divinização do homem).
3) Revelando-se na história, Deus realiza a salvação. A revelação, de si, è salvação. O processo darevelação é histórico salvífico.
Mas esta, repito, era exatamente a doutrina dos gnósticos modernistas, fossem eles católicos, protestantes ou cismáticos: a revelação é um conhecimento, de per si, salvador.
É a Gnose que afirma que a Divindade caiu no mundo material, e que, pela evolução, gerou o homem, que seria a Divindade tomando consciência de si mesma, e o homem, através da História, se tornaria o libertador de Deus. Este é o sentido gnóstico da expressão que Deus se revela na história e através da história. A história da humanidade seria a história da revelação e da libertação da “Presença” divina – da Schechinah – aprisionada no cosmos e no coração do homem. A História, para a Gnose, é somente uma etapa do processo de libertação da Divindade sepultada no cosmos. A expressão que “Deus se revela na história”, portanto, tem sabor de Gnose.
Falando sobre a doutrina de Boheme, Alexander Koyré escreveu:
'A revelação de Deus, que coincide no homem com a revelação do Universo nele, com a sua própria revelação a si mesmo, está ligada à revelação escriturária e não pode realizar-se sob o impulso direto, a inspiração de Deus, do Espírito Santo?”
'(...) No fundo, para ele [Boheme] a Bíblia não é indispensável, e as religiões positivas têm um valor senão muito restrito, quando têm um valor, e quando este valor não é negativo. Pessoal para cada um, contanto que seja profunda e sincera, toda lei é boa; cada uma pode conduzir à salvação” (Alexandre Koyré, Vrin, Paris, 1971, p.498).
Já o pietista e pré-romântico Herder, sequaz da Gnose de Jacob Boheme, dizia que a história é o “caminho de Deus através da natureza” (Cfr. Ladislao Mittner, Dal Pietismo al Romanticismo, Einaudi, Milano1964, p. 311).
E o gnóstico Bulgakov, tão admirado pelos modernistas, achava que o mundo é 'Deus criado', 'Deus em devir' (Cfr. Piero Coda, L'Altro di Dio, ed cit. p. 44, nota 56).
Como já vimos, para Bulgakov, como para a Cabala, a criação é “o êxodo de Deus”: “Esta saída de Deus fora de si é a criação como ato eterno do Deus criador” (Sergej N. Bulgakov, L 'Agnello di Dio. Il Mistero del Verbo Incarnato.p. 164, 182-183, apud Graziano Lingua, Kénosis di Dio e Santità della Materia. la sofiologia di Sergej N. Bulgakov, Ed. Scientifiche Italiane, Napoli, 2.000, p. 61).
“Abrindo a Grande Trilogia, Bulgakov faz uma afirmação que poderia servir de síntese da sua posição:
“O Absoluto e o Transcendente são mais profundos, mais ricos de conteúdo que o relativo e o imanente. Por isto, são sua fonte. São o mistério do qual o relativo e o imanente constituem a revelação; e esta é a auto-revelação com relação ao Absoluto” (Sergej N. Bulgakov, Il Paraclito, Ymca, Bologna, 1987, p. 594, apud Graziano Lingua, Kénosis di Dio e Santità della Materia, la sofiologia di Sergej N. Bulgakov, Ed. Scientifiche Italiane, Napoli, 2.000, p. 51).
É bem conhecida a concepção teilhardiana da criação como manifestação de Deus através da cosmogênese, da noogênese, e da cristogênese, quando, no fim da história, tudo e todos convergiriam para o Cristo Ômega. Ou seja, o pancristismo esotérico de Maurice Blondel.
Também Bulgakov defende uma doutrina similar:
'Bulgakov distingue, pois, uma escala que parte do mundo inorgânico, passa pela individualidade do mundo animal, para chegar à hipóstase humana; os graus que a formam não são saltos, mas dão vida a um pan-organismo bem conexo' (Graziano Lingua, Kénosis di Dio e Santità della Materia, la sofiologia di Sergej N. Bulgakov, Ed. Scientifiche Italiane, Napoli, 2.000, p. 162).
E não só a criação seria uma auto-revelação de Deus, mas a História, etapa seguinte à criação, seria a auto-manifestação, ou a auto-revelação de Deus através da ação do homem.
Já vimos também como, para certos teólogos da Seita Modernista Internacional, parecidos com Bulgakov, na história, a pessoa humana caminharia para uma identificação com toda a humanidade através da Pessoa de Cristo, que será, no fim da história, tudo em todos, revelando-se e salvando a todos, porque salvará o homem-humanidade. A auto-revelação através da auto-manifestação de Deus na história, e através da história, divinizará todos os homens, porque todos, e cada um, serão homem-humanidade.
Seria preciso lembrar ainda que a concepção “histórica-salvífica” da revelação foi adotada pelos teólogos liberais do protestantismo, como, por exemplo, Oscar Culmann e pelo “ Conselho Mundial das Igrejas”. É uma concepção de revelação totalmente de acordo com o conceito expresso pelos Modernistas e pela Nova Teologia.
Para todos esses sistemas modernistas, gnósticos ou filo gnósticos, na criação e na história, seria a própria res divina que se auto-revela.
Como o Vaticano II — conforme o douto parecer do Instituto Paulo VI — pode repetir esta “nova” noção de revelação como auto-manifestação de Deus na história, que é uma reprodução, com novos termos, de um aspecto da velhíssima doutrina gnóstica?
Que diferença haveria entre essa noção, que vê “a revelação como auto-manifestação do próprio Deus à história e na história do homem”, e a concepção gnóstica romântica — que está no fundo do modernismo — que vê a História como a auto-manifestação de Deus?
Parecem-me exatamente a mesma coisa. Ou, pelo menos, a semelhança é tão grande que é difícil ver diferença entre elas. Única ressalva é que, depois, se admite que além da res divina, se revelam também verdades, restrição que já fora feita pela Nova Teologia.
Ora, pois, o Concílio Vaticano II ao se exprimir de modo pouco claro, antes até, por vezes, intencionalmente ambíguo, permitiu que certos teólogos interpretassem um novo conceito de revelação: que a revelação dar-se-ia por uma auto-revelação de Deus na criação e na história,. E, se isto é verdade, o Vaticano II ou ensinou um conceito gnóstico de revelação, ou quis ensinar uma doutrina estranha de modo tão ambíguo que permite a confusão. Em ambas interpretações, este modo de conceituar a revelação, é muito criticável, senão condenável.
Em todo caso, não há, pois, dúvida que conforme o Alegado do Instituto Paulo VI de Brescia, assim como para o Centro Cultural Católico Carlo Caffara, o novo conceito de revelação do Vaticano II, não consiste em verdades que se devem conhecer e crer sobre a natureza de Deus, mas sim que o próprio Deus se revela na história, e revelando-se, salva o homem.
Pelo menos esta é a interpretação desses dois Institutos sobre o novo conceito de revelação do Vaticano II.
Se essa interpretação modernista foi possível, é porque, pelo menos, o Concílio Vaticano II se exprimiu ambiguamente
Ora, um Concílio não tem o direito de exprimir-se assim tão ambiguamente. E, menos ainda, tão modernisticamente
***
O douto Parecer teológico que o senhor teve a bondade de nos enviar admite francamente que a revelação é, principalmente, do próprio Deus, ou seja, como ensinava o Modernismo e a Nova Teologia, da própria res divina, e não tanto de verdades sobre a Divindade.
É verdade que o douto Parecer salienta que “A auto-revelação de Deus, de fato, implica também uma comunicação de verdades ao nível intelectual e reconhecível do ponto de vista poético” (O sublinhado é de minha responsabilidade).
Contrariamente ao Modernismo radical ou integralista, o Vaticano II admite verdades no conteúdo da revelação.
Mas, o que significa que essas verdades seriam “ao nível intelectual e reconhecível do ponto de vista poético”?
Como, do ponto de vista poético?
São as verdades que são reconhecíveis do ponto de vista poético, ou é o nível intelectual que é reconhecível do ponto de vista poético?
A redação do douto parecer é pouco clara e gera confusão.
Mas, de qualquer modo, o adjetivo poético, quer aplicado ao 'nível intelectual', quer aplicado diretamente às verdades reveladas as transforma em fábulas, ou metáforas e não em verdades objetivas 'tout court'.
As verdades da revelação não são, portanto, senão fábulas ou metáforas poéticas?
Mas São Pio X, na Pascendi, escreveu:
'Perguntar-lhes-emos, pois, aos modernistas: que é feito da inspiração?
'Respondem-nos que ela, a não ser talvez por certa veemência, não se distingue da necessidade que o crente experimenta de manifestar vocalmente ou por escrito a própria fé. Nota-se aqui certa semelhança com a inspiração poética; e nesse sentido um deles dizia: Deus está dentro de nós, e agitados por Ele nós nos inflamamos. Desse modo é que se deve explicar a origem da inspiração dos livros sagrados' (São Pio X, Pascendi, nº 22).
O douto parecer do Instituto Paulo VI, ao dizer que as verdades da revelação são 'ao nível intelectual e reconhecível do ponto de vista poético', cai precisamente sob a condenação que São Pio X fez do Modernismo, neste ponto.
O douto Parecer do Instituto Paulo VI, ao dizer que a inspiração das verdades da revelação deve ser vista 'ao nível intelectual e reconhecível do ponto de vista poético', rebaixa a revelação das verdades divinas ao nível dos símbolos, dos mitos, das fábulas ou das 'histórias legendárias', como diria o Padre Lagrange. Portanto, que não seriam, pois, propriamente verdades.
E este rebaixamento é inaceitável. O douto parecer atribui esse rebaixamento das verdades reveladas ao novo conceito de revelação do Vaticano II. Se é assim, o novo conceito de revelação do Vaticano II é modernista, ou, ao menos, semi-modernista. E, assim, se deve concluir que Jean Guitton disse a verdade, quando afirmou que o Vaticano II ensinou doutrinas que haviam sido condenadas como modernistas por S. Pio X.
Mais ainda.
O douto Parecer do Instituto Paulo VI, após ter admitido que o novo conceito de revelação do Vaticano II afirmava que a revelação era também de verdades – ainda que entendidas de modo “poético” —- diz, depois, que estas verdades “não são mais as verdades, de um lado, e o intelecto humano, de outro, mas são, de um lado, Deus livre e gratuitamente presente na história de Jesus e do Espírito dado a Jesus, e do outro lado, o homem”.
E assim, o douto Parecer reduz a revelação somente à res divina, desprezando as verdades que deveriam ser entendidas 'a nível intelectual e reconhecível de um ponto de vista poético'...
Por exemplo, a anunciação do anjo à Virgem Maria Santíssima, também deveria ser 'reconhecida a nível inteletual e reconhecível de um ponto de vista poético apenas, ou é simplesmente verdade?
Para os modernistas, a Anunciação do Anjo à sempre Virgem Maria é pura 'poesia'. E isso também torna o Modernismo herético. Se o Instituto Paulo VI afirma que.conforme o Vaticano II, as verdades reveladas no Evangelho, devem ser entendidas— reconhecidas — 'de um ponto de vista poético', o douto parecer do Instituto Paolo VI está confirmando que o Vaticano II proclamou um conceito de revelação modernista.
Como disse, então, que essa mesma afirmação, expressada por Jean Guitton, revela 'patente ignorância e má fé '?
Portanto, o novo conceito de revelação do Vaticano II é realmente novo, visto que o conceito antigo e católico afirmava que o conteúdo da revelação era um conjunto de verdades que Deus dava ao intelecto humano.
Eram o Modernismo e a Nova Teologia que diziam que a revelação era da própria res divina, e não de verdades dirigidas ao intelecto humano.
Mais uma vez, Jean Guitton não mentiu, nem teve má fé, e nem mesmo revelou ignorância em confessar que o Vaticano II ensinou as doutrinas modernistas condenadas por S. Pio X.
O douto Parecer do Instituto Paulo VI de Brescia, sob hábeis fórmulas, o confirma.
E se a revelação, segundo o Vaticano II, não é de verdades que o próprio Deus nos ensinou, o Vaticano II não podia fazer ensinamentos dogmáticos, nem podia pronunciar anátemas, porque a revelação não trataria de verdades intelectuais. O Vaticano II, por coerência, devia ser “pastoral”. E assim o definiram João XXIII e Paulo VI: pastoral, porque a revelação não permitiria nunca que se definissem dogmas, verdades que devem ser acreditadas com fé divina.
Bastaria essa primeira nota do estudo do Instituto Paulo VI para confirmar que Jean Guitton havia dito a verdade: o Vaticano II defendeu e ensinou as doutrinas do Modernismo. Ainda que colocando-as sob o véu de textos estranhos.
E há outros autores que afirmam a mesma conclusão, isto é, que o conceito de revelação do Vaticano II, no documento Dei Verbum, é realmente novo.
Gregory Baum e Avery Dulles- hoje, Cardeal - estão entre esses:
'Uma abordagem notavelmente informativa, clara e entusiasta da Dei Verbum saiu recentemente da pena de um outro especialista do Concílio, Gregory Baum, O.S.A. ('Vatican II's Constitution on Revelation: History and Interpretation,' Theological Studies, vol. 28/1 (March 1967), pp. 51-75.). Ele assume a posição que o coração do documento deve ser encontrado no novo conceito de revelação contido no primeiro capítulo, nominalmente, que a revelação deve ser identificada com a pessoa de Jesus Cristo.' (Avery Dulles, S.J., 'Theological Table-Talk', rivista Theology Today, Oct/1967, http://theologytoday.ptsem.edu/oct1967/v24-3-tabletalk1.htm . O negrito é meu).
Conseqüentemente, o objeto da revelação não seria mais sobre verdades dirigidas por Deus ao intelecto humano, mas seria a própria realidade de Deus.
Avery Dulles faz um paralelo entre a revelação conforme o Vaticano I e a revelação de acordo com o Vaticano II:
'Em têrmos que são indicativos, porém por demais crús, para fazer justiça à complexidade da questão, pode-se dizer que o Vaticano I vê a revelação sob uma luz que é intelectualista, abstrata, escolástica e, até um certo ponto, proposicional. Ao contrário, a visão do Vaticano II pode ser adeqüadamente caracterizada como vitalista, concreta, bíblica e histórica.' (Avery Dulles, S.J., 'Theological Table-Talk', rev. Theology Today, Oct/1967, http://theologytoday.ptsem.edu/oct1967/v24-3-tabletalk1.htm ).
Revelação conforme o Vaticano I: |
Revelação conforme o Vaticano II: |
Qual das duas posições repete o que dizia o Modernismo?
Jean Guitton deu seu voto, respondendo que o Vaticano II é Modernista
E eu, mesmo depois de ter lido o estudo do Instituto Paulo VI, estou de acordo, uma vez na vida, com Guitton: o Vaticano II tem um conceito Modernista de revelação. E o Parecer do Instituto Paulo VI me confirma nesse juízo.
E que o novo conceito de revelação do Vaticano II, defende que ela é da própria res divina mais do que de verdades recebidas e transmitidas intelectualmente é confirmado por Xavier Zubiri,.um filósofo considerado mestre pelo Neo Catecumenato, movimento nascido do espírito do Vaticano II. Os livros desse autor são adotados nos seminários Redemptoris Mater, do caminho Neo Catecumenal.
'Zubiri, entende a revelação desde a experiência da religação, como a presença real de Deus, enquanto pessoa, no fundo da realidade humana.Quem recebe essa peculiar e gratuita palpitação se converte, por isso, em 'iluminante', mas sempre será um apalpitação de Deus desde o próprio seio do es[pírito humano.Se chamamos revelação ao conjunto de verdades e palavras, é porque ela é destinada aos demais e a eles elas são transmitidas com palavras; porém no receptor primário a revelação é uma iluminação interior. Revelação, entretanto, supõe ter entendido que o fundamento da divindade é um Deus pessoal e livre. No prólogo ao livro de Olegario González Misterio trinitario y existencia humana, Zubiri diz que a função própria da revelação é constituir o homem em Deus, e dirigir sua vida em direção a ele. Revelação não é incorporação a uma doutrina, mas incorporação do próprio Deus à realidade humana, incorporação que culmina (no cristianismo) na Encarnação.' (María Lucrecia Rovaletti, 'La dimensión teologal del hombre - Apuntes en torno al tema de la religación en Xavier Zubiri', nota 45, ftp://www.zubiri.org/zubiri/general/xzreview/1999/rovaletti1999.doc ).
Nesse filósofo adotado pelos Neo Catecumenais, adeptos e filhos do espírito do Vaticano II, o novo conceito de revelação está clara e bem gnosticamente expresso: 'Revelação não é incorporação a uma doutrina, mas incorporação do próprio Deus à realidade humana'.
Ë de espantar que Zubiri seja admirado e louvado pelos gnósticos e esotéricos da linha guénoniana , no Brasil, pelo menos?
O novo conceito de revelação do Vaticano II, tal como é entendido e ensinado pelos que seguem fervorosamente o Vaticano II — [como, por exemplo, os Neo catecuamenais]— é um conceito claramente modernista e gnóstico, pois seria fruto da manifestação do pneuma — do germe divino — existente no mais íntimo da natureza humana. Essa revelação seria feita através de um experiência interior, e não por palavras contendo verdades que se devessem crer.
***
Vejamos, agora, a segunda nota teológica do novo conceito de revelação do Vaticano II, conforme o douto parecer teológico do Instituto Paulo VI de Brescia.
b) “Uma segunda e fundamental nota teológica do renovado – [renovado?] – conceito de revelação é a centralidade concedida ao mistério de Cristo. Jesus Cristo é a plenitude e o cumprimento da revelação de Deus. Conseqüentemente se afirma uma perspectiva indubitavelmente personalística da revelação”.
Permita-me perguntar-lhe: a centralidade da revelação está em Jesus Cristo, ou no “mistério” de Jesus Cristo?
E se a revelação é do “Mistério” — mas não da verdade desse mistério — que se deve entender dessa segunda nota?
Se é o próprio Cristo que se revela — isto é, a “res” do Verbo incarnado, como foi dito na nota “a” — e não verdades sobre a sua natureza divina e humana, que diferença há entre a revelação e a Eucaristia, em que recebemos o mesmo Jesus Cristo, Filho de Deus feito homem, com seu Corpo, Sangue, Alma e Divindade?
Também o ensinamento que citamos do Centro Cultural Católico Carlo Caffarra admite que a revelação é da própria res de Jesus Cristo:
'Até agora en um certo sentido tinha descrito a 'forma' da Revelação: uma descrição formal. Agora digamos verdadeiramente o que é a Revelação [Sabemos o que essa palavra denota ]: é Jesus Cristo. No sentido, explica o Concílio, que Ele é o mediador e a plenitude da inteira Revelação'(...)' Isto é: é o próprio Cristo a Revelação inteira do Pai e do desígnio dEste sobre o homem. Ele é o mensageiro e o conteúdo da mensagem; o revelante e o revelado; o revelante no qual é preciso crer, a verdade revelada na qual é preciso crer. O Evangelho de Cristo é o Evangelho que é Cristo. A Revelação é a sua Pessoa, a sua vida, a sua morte e ressurreição. Agora se compreende melhor porque a Revelação 'ocorre com fatos e palavras conexas entre si'. A Revelação é o dom que o Pai faz de seu Unigênito: ela é portanto, em primeiro lugar uma 'res', um fato [recordai o exemplo] ao qual são ordenadas as palavras. Estas são necessárias para que o acontecimento seja compreendido e assimilado, como o exige a natureza intelectual do Logos encarnado e a natureza inteligente do homem' (Centro Culturale Cattolico Carlo Caffarra http://www.caffarra.it LA RIVELAZIONE DIVINA, 'Cristo e la divina Scrittura sono il rimedio d’ogni disgusto', lição dada aos professores Ferrara 19-02-03. O negrito é meu e o sublinhado é do original).
Perdoe-me, mas esta segunda nota é muito difusa, muito obscura.... E muito pouco exata. E, nessa matéria, deve haver absoluta claridade.
E ainda: que se deve entender com “uma perspectiva decisivamente personalística da revelação'?
Por que se utilizou o adjetivo “personalística” e não o adjetivo “pessoal”?
Evidentemente, houve a intenção de adotar um conceito querido da filosofia moderna que considera a pessoa não como um ser —-[como uma ousia] – mas antes como 'uma presença mais do que um ser –[bendita e misteriosa “Presença”, sempre presente e nunca esclarecida!] – ativa e sem fundo”, como Mounier define pessoa. (Emmanuel Mounier, Le Personalisme, PUF, Paris, 1967, p. 53).
Também Gabriel Marcel afirma que pessoa não é propriamente ser, pois diz: 'Para mostrar, no fundo, o meu pensamento, direi, por um lado, que a pessoa não é, nem pode ser, uma essência, e, por outro lado, que uma metafísica, que s edificasse de certo modo afastada ou ao abrigo das essências, se arriscaria a desfazer-se como um castelo de cartas. É sito o que posso dizer, embora, na realidade, o assunto represente para mim uma espécie de escândalo e até de decepção' (Gabriel Marcel, Refus à l Invocation, N.R. F, 1940, p. 152, apud Régis Jolivet, As Doutrinas Existencialistas, Livraria Tavares, Porto, 1961, p. 11, n o 10. O negrito é meu).
Portanto, para Gabriel Marcel também, pessoa não teria essência. Seria um vazio metafísico.
Mas essa noção “personalística” da pessoa e da revelação nos reconduz à negação do ser de Deus, das divinas pessoas e da pessoa humana, negação típica da Gnose, do Modernismo e da Nova Teologia.
Como vimos, os teólogos da Nova Teologia neo modernista consideravam as pessoas divinas como puras relações, e não como substanciais. Conseqüentemente, a pessoa humana, como diz Mounier, seria mais uma “presença”, um espírito, do que um ente.
O novo conceito de Revelação do Vaticano II, na 'perspectiva personalística', permite entrever no fundo da referida perspectiva... o Modernismo.
E o que seria esta “perspectiva personalística” senão a comunhão das pessoas divinas no esvaziamento — no sentido kenótico — da pessoa humana, esvaziando-se a pessoa divina para salvar a pessoa humana, ela mesma tida como um vazio? E o que seria a pessoa humana entendida como pessoa do homem-humanidade? E se a pessoa humana é uniplural, omni universal, a pessoa de cada homem se confunde com a pessoa de Cristo, Deus e Homem.
Há teólogos que assim entendem esta intercomunicação entre a Divindade e o homem, entre Jesus Cristo e a pessoa humana – pessoa omni universal – por meio de uma experiência místico-kenótica.
Por essa visão kenótica da revelação personalística, não há como colocar verdades dogmáticas na revelação, que seria somente, como diziam os modernistas, uma experiência existencial personalística de Deus que se auto-manifesta ao homem, a cada homem, como escreveu Piero Coda, e que se identifica com esta pessoa omni universal.
***
Vejamos a terceira nota do douto parecer teológico do Instituto Paulo VI de Brescia.
c) “ Além disso, o cristocentrismo da revelação permite entender melhor a unidade e a diversidade entre criação e revelação. A unidade é dada pelo fato de que a criação encontra sua verdade no Verbo Encarnado. Cristo é, portanto, o sentido pleno da criação. A diversidade vem descrita mediante uma superação ou excedente qualitativo da novidade do evento Cristo, relativo ao horizonte da história universal. [neste ponto há uma citação da Dei Verbum 2 e 3]. A conseqüência dessa impostação é que uma reflexão teológica sobre o sentido da história deve partir do evento Cristo, que se torna o princípio hermenêutico da história universal”
Considerando que o douto Parecer teológico procurou exprimir aquilo que há de novo — ou, pelo menos de renovado — nesta terceira nota, sobre o conceito de revelação no Vaticano II, temos dificuldade para encontrar o novo, ou o renovado. Porque sempre se ensinou na Igreja que se pode conhecer a existência de Deus, e de certas qualidades dEle, por via racional através da criação.
S. Paulo disse exatamene isso: as qualidades invisíveis de Deus, depois da criação, podem ser conhecidas através das coisas criadas (Cfr. Rom I, 19-21).
E como o mesmo Criador se revelou na Escritura e na Tradição Apostólica, não é possível haver contradições entre a Criação e a Revelação — seja escriturária, seja tradicional, as duas fontes da revelação — e aquilo que se pode conhecer de Deus por meio da criação.
No entanto, haveria algo de novo no conceito de revelação, que se deveria encontrar, procurando uma interpretação diferente da tradicional, no cristocentrismo expresso nesta terceira nota sobre a revelação, conforme o Vaticano II.
Qual seria este “novo” cristocentrismo?
Nestas condições, o texto torna-se realmente misterioso... “pastoral”... isto é, escrito para que todos entendam melhor a religião e a revelação... conforme o pensamento moderno.
Se não fosse falta de respeito num tema tão sério, desafiaria — pelo menos os padres do Brasil — que interpretassem este parágrafo, porque temo, pareceria a eles, à primeira vista, uma verdadeira confusão.
Um concílio em nenhuma “matéria poderia nos falar fechado” (Dante, Purgatório, XII, 87).
Como o cristocentrismo permitiria entender, de um modo diferente do tradicional, “a unidade e a diversidade entre criação e revelação”?
Que toda a criação tem uma relação com o Verbo de Deus, sabia-se há muito tempo, para não dizer sempre. Basta ler o Prólogo do Evangelho de S. João para saber que todas as coisas foram feitas por meio do Verbo de Deus: 'Omnia per ipsum facta sunt, et sine ipso factum sunt est nihil'(Todas as coisas foram feitas por Ele— o Verbo— e sem Ele nada foi feito). Neste sentido é que é possível compreender uma certa unidade entre Criação e Revelação, assim como que há também uma diversidade entre Criação e Revelação de Cristo.
Entende-se ainda que Cristo, Verbo de Deus Encarnado, dá sentido pleno à criação. E permite compreender a História.
Não há nada de novo em tudo isto. Mas, o que se pretendeu fazer entender mais facilmente — e de modo pastoral — quando o Parecer diz: 'A diversidade vem descrita mediante uma superação ou um excedente qualitativo da novidade do evento Cristo relativo ao horizonte da história universal. A consequência desta impostação é que uma reflexão teológica no sentido da história deve partir do evento-Cristo, que se torna princípio hermenêutico da história universal”?
Talvez o estilo pastoral exigiria insinuar — porém jamais dizer claramente — que, como pensava o Modernista Teilhard de Chardin, toda a história — a noosfera — se encaminha para a divinização no Cristo Ômega? Que o homem é Deus em potência? Que na História, como escreveu Boff, a “semente divina” que, segundo a Gaudium et Spes, Deus teria colocado no homem, chegaria à sua meta final, a Divinização,? Que o mundo —portanto, a criação e a História — são Deus em devir?
Que por isso se espera um novo advento de Cristo nos nossos tempos epocais (??), como diz Piero Coda, contrariando o Evangelho, que revela que Cristo virá somente no fim do mundo, para julgar modernistas e tradicionalistas, bons e maus, judeus e gentios, católicos e hereges?
Fora desta interpretação modernística não se chega a ver claramente o que há de novo nesta terceira nota do douto parecer teológico do Instituto Paulo VI .
Mas, se sabemos o que disseram os Teólogos da Nova Teologia — daquela Teologia osmótica com a teologia protestante e com a teologia cismática oriental — então seria possível entender de modo novo este cristocentrismo da criação e da história.
E há teólogos que interpretam, nesse sentido, a misteriosa terceira nota do parecer teológico do Instituto Paulo VI.
Por exemplo, Karl Rahner — que foi chamado a alma do Vaticano II — assim escreveu sobre este cristocentrismo da criação e da história:
'O mundo é uma unidade em que tudo está em ligação com tudo e, por conseguinte, aquele que toma uma parcela do mundo para dela fazer a sua própria história, toma sobre si o mundo inteiro como englobante da sua própria vida. Por isso, não é extravagante (ainda que se deva proceder com prudência) conceber a evolução do mundo como orientada para Cristo e ver os graus do seu caminho ascensional encontrarem Nele o seu cume. Importa somente evitar a representação de uma tal evolução como ascenção que o inferior realizaria pelas próprias forças. Se é verdade que S. Paulo diz aos Colossensses 1:35 e não adocicando com uma interpretação moralizante, se o mundo como totalidade, e portanto também na sua realidade física, atinge historicamente em Cristo, e através dEle, o estado em que Deus é tudo em todos, então a reflexão que levamos a cabo não pode ser racionalmente falsa (...). Cristo surge então como o cume da história de que a cristologia seria a última palavra...'. (Karl Rahner, S.J., Problémes Actuels de Christologie, trad. de Michel Rondet, Écrits théologiques, 1 - 1959, pp. 136 - 138, apud Blondel e Teilhard de Chardin - Correspondência comentada por Henry de Lubac, Moraes Editores, Lisboa, 1968, p. 119).
Esta concepção de Rahner é absolutamente igual àquilo que disse Teilhard de Chardin, bem como aquilo que deixam entrever o pancristismo 'esotérico' de Blondel e a doutrina de Bulgakov.
E é de se supor que o pensamento de Rahner não fosse estranho a essa nova noção de revelação cristocêntrica ou pancrística.
E se o Vaticano II quis dizer outra coisa diferente daquilo que disse Rahner, o Concílio tinha o dever de explicitar claramente essa afirmação, para não servir de apoio às doutrinas heréticas de Rahner, de Teilhard, de Blondel e de Bulgakov sobre a evolução cristocêntrica do mundo.
Portanto, também esta terceira nota do douto Parecer teológico do Instituto Paulo VI de Brescia não permite negar que Jean Guitton tinha razão ao afirmar que o Vaticano II proclamou as doutrinas do modernismo, condenadas por S. Pio X.
***
A quarta nota do douto parecer teologico do Instituto Paulo VI de Brescia, sobre da revelação conforme o Vaticano II, diz assim:
d) “Finalmente, se afirma a dimensão sacramental da revelação. A revelação de Deus acontece mediante fatos e mediante palavras (Facta et Verba). Essa, descrita como iniciativa de Deus que tem como objeto e princípio a sua própria pessoa, veio através de algumas intervenções do próprio Deus orientadas a um único fim, que é o dom da salvação. Essa ordem de acontecimentos e de intervenções é chamada de “economia” (economia histórico-salvífica). Desabrocha, nesse ponto, a dimensão sacramental, visto que o pleno significado dos gestos decorre somente através das palavras, ou seja, da locutio Dei, que, por sua vez, em Cristo Jesus, é acontecimento histórico concreto”.
(Até aqui a quarta nota do douto parecer teológico do Instituto Paulo VI de Brescia).
Primeiramente, permita-me lembrar que a expressão “economia histórico-salvífica” nos remete, evidentemente, entre outras, à teologia de Urs von Balthasar, de sabor fortemente gnóstico, para dizer pouco.
No Vaticano II, foi largamente utilizado o termo “sacramento”, no sentido de mistério, sem levar em conta que esse termo sempre havia sido utilizado, normalmente, para indicar os sete meios de transmissão da graça, instituidos por Nosso Senhor Jesus Cristo, e que o Concílio de Trento definiu que eram somente sete (Cfr. Denzinger 996, Bento XIV, Denzinger 1470). Os Sacramentos, real e propriamente, são os sete, definidos pelo Concílio de Trento.
O Vaticano II fala da Igreja como sacramento da unidade do gênero humano (Cfr. Lumen Gentium, nº 1), e o douto parecer em questão fala da revelação como produzida sacramentalmente com Facta et Verba.
Facta et Verba são absolutamente necessárias para a validade dos sacramentos. Mas a revelação foi feita por meio de palavras que transmitiram-nos verdades. Dos “Facta” podem-se deduzir racionalmente verdades. Por exemplo, dos milagres de Jesus se deduz, verdadeira e facilmente, a sua Divindade. Mas por si mesmos, os “Fatta” não revelam diretamente o Depositum Fidei: somente comprovam verdades. A revelação foi feita por meio da Locutio Dei, que transmite verdades. Para o douto parecer teológico do Instituto de Brescia, as verdades deveriam ser colocadas em segundo plano. A revelação seria antes de tudo da própria res divina, que ocorreu especialmente por um evento: o evento Cristo.
Por esta razão, a lição do Centro Cultural Católico Carlo Caffarra diz:
'Portanto, recapitulando: os atos reveladores – realizadores do plano divino são explicados pelas palavras; de outro lado as palavras são necessárias mas secundárias com relação aos atos dos quais elas explicam o sentido, fazendo luz sobre o 'mistério neles contido'. São necessárias, porque 'a Revelação de Deus é o seu deixar-se ver que faz para isso apelo inequivocamente à compreensão do crente, à visão de sua razão' [H.U. von Balthasar, Gloria, 3 vol. 2, ed. Jaca Book, Milano 1078, pag. 194]. (Centro Culturale Cattolico Carlo Caffarra http://www.caffarra.it LA RIVELAZIONE DIVINA, 'Cristo e la divina Scrittura sono il rimedio d’ogni disgusto', lezione tenuta agli insegnanti Ferrara 19-02-03 O negrito é meu e o sublinhado é do original).
E o “evento Cristo” foi interpretado pelos modernistas como a tomada de consciência de um homem — Jesus Cristo — que, por meio de uma experiência pessoal, percebeu que o homem é Deus. Deste evento-experiência pessoal — provavelmente de forma kenótica e personalística — cada homem poderia aproveitar, realizando no seu íntimo a mesma experiência reveladora.
Tudo isto não está dito no douto Parecer do Instituto Paulo VI. Mas, não há palavra alguma para defender o povo de Deus dessa heresia. E há, pelo contrário, palavras vagas que permitem interpretar no sentido modernístico esse mistério sacramental da revelação.
E que o Parecer do Instituto Paulo VI coloca em segundo plano as verdades da revelação, há ainda uma prova na quinta nota, que segue:
***
e) 'Depois de ter desenvolvido o discurso sobre a revelação como ação de Deus, salienta-se o objeto da revelação. Essa é a Palavra de Deus, através da qual somos iluminados sobre a verdade de Deus e sobre a salvação do homem. E, como a Palavra de Deus se fez carne, essa verdade não se esgota na ordem intelectual, mas exige que em Cristo seja realizada a comunhão de vida com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. O objeto da revelação é, portanto, uma verdadeira comunhão interpessoal entre o homem e a Santíssima Trindade”.
Novamente se acentua que a revelação não é propriamente de verdades nas quais é preciso crer intelectualmente. O objeto da revelação seria a “Palavra de Deus”, ou seja, o Verbo em si mesmo, e não propriamente verdades sobre a Divindade Una e Trina e sobre a Encarnação do Filho de Deus.
Insiste-se, portanto, sobre o caráter não intelectual da revelação, que é relegado a um segundo plano. Assim, a resposta do homem à revelação não seria tanto a aceitação das verdades reveladas, mas a aceitação de Jesus, a comunhão com Ele, que se faria por meio de uma experiência religiosa. E isto é Modernismo.
A comunhão com Jesus produziria a comunhão com toda a Trindade, e, portanto, a salvação do homem. Chega-se, assim, a uma concepção de salvação que lembra a noção de salvação dos protestantes: uma experiência pessoal e íntima com Jesus que se realizaria mais através de experiência mística que pela fé intelectual e pela prática dos mandamentos. Nem a fé, como virtude sobrenatural propriamente intelectual, e nem mesmo a obediência aos dez mandamentos seriam necessárias. Bastaria a experiência mística com Jesus que leva necessariamente à união com a Trindade divina. E essa experiência personalística se realizaria em qualquer religião, por meio da semente da Divindade que Deus teria plantado no íntimo de cada homem. Assim, o pertencer à Igreja Católica, pelo menos por desejo, não seria absolutamente necessária. Toda a humanidade será salva, porque em todos os homens existiria a semente divina. Exatamente como dizia a Gnose. Exatamente como dizem certos teólogos da Nova Teologia, como, por exemplo, Urs von Balthasar que ousou colocar como possibilidade de verdade católica a apokatastasis (Cfr. Urs Von Balthasar, TeoDrammatica, Vol. V, L'Ultimo Atto, Vol. V, L'Ultimo Atto, Milano, Jaca Book, 1992, pp. 229 e seguintes).
Assim, o conceito católico de revelação coloca o acento sobre as verdades nas quais se deve crer, e das quais derivava a moral, e enfim se podia chegar à experiência mística. O novo conceito de rvelação coloca, em primeiro lugar, a experiência mística que seria suficiente para a salvação. Por isto, hoje, a 'pastoral' praticamente abandonou o ensinamento dos mandamentos da lei d Deus e das verdades da fé.
***
Permita-me acrescentar ainda um reparo.
O douto Parecer teológico do Instituto Paulo VI de Brescia não diz uma palavra sequer, sobre a revelação como experiência, que, como vimos, caracterizava o conceito de revelação Modernista. Mais, se teve o cuidado de não utilizar este termo, como teve o cuidado de restringir a questão submetida — se o Vaticano II aceitou as teses modernistas condenadas por S. Pio X — somente ao campo da revelação.
O douto Parecer limitou-se em examinar o novo conceito de revelação segundo a Dei Verbum.
Entretanto, o autor do douto Parecer teológico se esqueceu de dizer que na Dei Verbum se emprega o termo experiência.
Monsenhor Maggiolini, atual Bispo de Como (Itália), reproduziu um texto da Dei Verbum que diz o seguinte:
'Essa tradição, que vem dos Apóstolos, se desenvolve na Igreja com o auxílio do Espírito Santo. Por isso há um crescimento da compreensão das realidades e das palavras que foram transmitidas. Isso acontece através da contemplação e do estudo (contemplatione et studio) feitos pelos crentes que colocam em seus corações essas coisas como um tesouro, por meio do íntimo conhecimento das coisas espirituais que experimentam (ex intima spiritualium rerum experientia quam experimentur inteligentia), e através da pregação daqueles que receberam pela sucessão apostólica o seguro dom da verdade. A Dei Verbum [n 0 8] registra então três fatores no progresso da tradição: teologia, experiência e o Magistério' (Mons. Alessandro Maggiolini, Magisterial Teaching on Experience in the Twentieth Century, from the Modernist Crisis to the Second Vatican Council, p. 7-8).
Portanto, a Dei Verbum, como lembra Mons.Maggiolini, afirma que a compreensão das coisas e das palavras da Tradição crescem por três meios:
1) pela teologia (pela contemplação e pelo estudo, evidentemente dos teólogos);
2) pela experiência.
3) pelo Magistério.
Portanto, na Dei Verbum se fala de uma possibilidade de crescimento do entendimento da Tradição reveladora, por meio da experiência pessoal (ou personalística?).
Além disso, Monsenhor Maggiolini diz que, na Dei Verbum, a experiência tem mais valor que inteligência:
'Se, entretanto, quisermos ler [na Dei Verbum] os dois fatores — o que parece ser a coisa lógica a fazer — como implicando a prioridade seja da dimensão intelectual (teologia), seja da dimensão experiencial (experiência), então 'a experiência concreta tem, em certo sentido, prioridade com relação à investigação teológica. As realidades vividas precedem sua formulação doutrinária, ao invés de serem uma aplicação proporcionada da afirmação.' (Betti, 'La trasmissione della divine rivelazione,' in La costituzione dogmatica sulla divina Rivelazione, 237. Analogamente, Kothgasser, 'Dogmenentwicklung,' 443). Sem forçar o texto, esse comentário interpreta-a [a Dei Verbum] como uma importante revanche do valor da experiência.' (Allesandro Maggiolini, 'Magisterial Teaching on Experience in the Twentieth Century, From the Modernist Crisis to the Second Vatican Council', revista Communio, verão de 1996, http://www.ewtn.com/library/THEOLOGY/MT20HCN.htm ).
Portanto fica claro que na Constituição dogmática Dei Verbum, o Concílio Vaticano II inovou algo no conceito de revelação: admitiu — como diziam os Modernistas e a Nova Teologia — que a experiência pessoal está na origem da revelação, e que ela supera o elemento intelectual revelado. E isso é Modernismo.
Levando-se em conta o que afirma Monsenhor Maggiolini, Jean Guitton tinha razão ao dizer que o Vaticano II proclamou teses modernistas que haviam sido condenadas por São Pio X.
Tratando deste ponto do documento Dei Verbum, o Padre Schoof lembra que 'Até o último momento [no Concílio] se propuseram mudanças inquietantes a este último parágrafo [da Dei Verbum - aquele que citamos logo acima], no qual se professa pela primeira vez em um Concílio uma verdadeira determinação histórica da revelação'(Padre T. M. Schoof, La Nueva Teologia Catolica, Ediciones Lohlé, Buenos Aires , 1971, p. 307).
E deste ponto — de uma experiência pessoal das coisas e das palavras da Tradição, da revelação — não trata o douto parecer teológico do Instituto Paulo VI de Brescia. No entanto, esse ponto era absolutamente necessário que fosse examinado para provar que Jean Guitton havia se enganado, quando afirmou que o Vaticano II proclamou as teses do Modernismo, condenadas por S. Pio X, visto que a experiência íntima e pessoal da revelação era uma tese fundamental do Modernismo.
Por tudo isso, permita-me respeitosamente dizer-lhe, Ilmo. Doutor Papetti, que o douto parecer de seu Instituto não me satisfez de modo algum. Pelo contrário, deixou-me a convicção ainda mais clara e firme que Jean Guitton disse uma verdade: o Concílio Vaticano II ensinou as doutrinas do Modernismo, que haviam sido condenadas pelo Papa S. Pio X, na encíclica Pascendi.
E lhe peço ponderar que fundamentei meu pensamento principalmente comparando aquilo que o Vaticano II disse com os testemunhos e doutrinas dos mesmos teólogos modernistas e neo modernistas, dos quais diversos atuaram como peritos ou inspiradores da Teologia do Vaticano II.
Expostas assim as diversas posições sobre a revelação, torna-se patente que a doutrina da Nova Teologia é a mesma doutrina dos modernistas moderados como o Padre Lagrange, Blondel, e similares, que procuraram evitar a condenação da Igreja moderando as suas expressões heréticas, ou escondendo o seu verdadeiro pensamento sob uma terminologia ambígua, fluida e obscura. Como ficou também patente que a doutrina do Concílio Vaticano II sobre a revelação, é a mesma doutrina da assim chamada Nova Teologia, condenada por Pio XII na encíclica Humani Generis.
Portanto, a doutrina da revelação do Vaticano II é a mesma doutrina modernista, com novos trajes, um pouco mais camuflada sob uma terminologia obscura, vaga e brumosa.
O Parecer teológico do Instituto Paulo VI de Brescia tem razão em dizer que o Vaticano II apresentou um “renovado conceito da revelação”. Também tem ainda razão em dizer que este é um “novo conceito de revelação”.
É um conceito renovado, comparado ao antigo conceito modernista. É um conceito novo, comparado ao conceito católico, que sempre foi professado pela Santa Igreja Católica Apostólica Romana.
Mas, tinha razão Jean Guitton, também ele, em dizer que o Vaticano II ensinou as doutrinas do Modernismo que haviam sido condenadas por S. Pio X .
Poder-se-ia dizer ainda que os modernistas integrais admitiam somente o critério histórico crítico, como admitiam somente a intuição do coração, repudiando qualquer conteúdo de verdade intelectual na revelação. Mas que os discípulos direitistas de Duchesne — os modernistas moderados — considerando que o núcleo principal da revelação era somente uma experiência interior não intelectual, aceitavam também que, ao conteúdo da revelação, estavam ligadas verdades direcionadas ao intelecto humano.
E esta posição moderada é exatamente aquela que o parecer teológico do Instituto Paulo VI atribui ao Vaticano II, ao afirmar que neste Concílio passou-se “de uma concepção intelectualística para uma concepção histórico-salvífica personalística da revelação”, sem excluir certas verdades reveladas por Deus. Afirma, porém, essa tese de caráter modernista, agravando-a ao dizer que as verdades reveladas devem ser entendidas a 'um nível intelectual e reconhecível de um ponto de vista poético'.
O Vaticano II defendeu, sobre a revelação, as teses da heresia modernista moderada, ou da Nova Teologia. E não somente sobre a revelação. Porque, aceitando um novo conceito de revelação, tudo o mais deveria ser modificado na religião, pelo Vaticano II. E tudo foi mudado, a ponto de se falar em Nova Igreja do Vaticano II
Portanto, Jean Guitton não teve “patente má fé e ignorância' ao declarar que o Concílio Vaticano II ensinou as doutrinas condenadas por S. Pio X, no Modernismo, ou pelo menos no Modernismo moderado.
No Vaticano II, tentou-se conciliar o método histórico crítico com a autoridade da Igreja. E esta conciliação é impossível: ou se aceita a autoridade infalivelmente docente da Igreja, ou se admite o método histórico crítico. E essa incompatibilidade foi denunciada pelo próprio Cardeal Ratzinger, ex-perito Conciliar:
'A Costituição sobre a Divina Revelação — [a Dei Verbum] — procurou estabelecer um equilíbrio entre os dois aspectos da interpretação, a 'análise' histórica, e a 'compreensão', ao mesmo tempo... De um lado, salientou a legitimidade e também a necessidade do método histórico, riconduzindo-o a três elementos essenciais: a atenção aos gêneros literários; o estudo do conteúdo histórico (cultural, religioso, etc.); o exame daquilo que se costuma chamar de 'Sitz im Leben'. Mas, o documento do Concílio quer manter firme, ao mesmo tempo, o caráter teológico da exegese e indicou os pontos fortes do método teológico na interpretação do texto; o pressuposto fundamental sobre o qual se fundamenta a compreensão teológica da Bíblia é a unidade da Escritura. A esse pressuposto corresponde como caminho metodológico 'a analogia da fé', isto é, a compreensão dos textos particulares a partir do conjunto. O documento acrescenta duas outras indicações metodológicas: a Escritura é uma coisa só, a partir do único povo de Deus, que foi seu portador através de toda a história. Conseqüentemente, ler a Escritura como uma unidade significa lê-la a partir da Igreja, como a verdadeira chave de interpretação. De um lado isto significa que cabe novamente à Igreja, nos seus organismos institucionais, a palavra decisiva para a ‘interpretação da Escritura ''.
'Mas, esse critério teológico do método está incompativelmente em contraste com a orientação metodológica de fundo da exegese moderna; é exatamente o contrário, antes é aquilo que a exegese tenta eliminar a qualquer custo. Essa concepção moderna pode ser descrita desse modo: ou a interpretação é crítica, ou compete à autoridade; as duas coisas juntas não são possíveis. Fazer uma interpretação 'crítica' da Bíblia significa menosprezar o recurso a uma autoridade na interpretação .'(...).
'Partindo desse ponto, o trabalho proposto pelo Concílio à exegese — de ser, ao mesmo tempo, crítica e dogmática — aparece como contraditório em si; sendo essas duas exigências incompatíveis para o pensamento teológico moderno. Pessoalmente estou convencido que uma leitura atenta do texto completo da 'Dei Verbum' permitiria encontrar os elementos essenciais para uma síntese entre o método histórico e a 'hermenêutica' teológica. Entretanto, a sua concordância não é imediatamente evidente.'
'Assim, a recepção pós-conciliar da Constituição praticamente abandonou a parte teológica da própria Constituição como coisa do passado, entendendo o texto unicamente como aprovação oficial e incondicional do método histrórico-crítico. O fato que, após o Concílio, terem praticamente desaparecido as diferênças confessionais entre a exegese católica e a protestante, pode-se atribuir a tal recepção unilateral do Concílio. Mas, o aspecto negativo desse processo é que, também no ambito católico, o iato entre exegese e dogma é agora total e que a Escritura tornou-se também para essa, uma palavra do passado que cada um se esforça, a seu modo, por traduzir para o presente, sem poder fiar-se demais à jangada em que subiu. A fé reduz-se então a um tipo de filosofia da vida que cada um, como pode, procura destilar da Bíblia. O dogma, desprovido do fundamento da Escritura, não se sustenta mais. A Bíblia, que se separou do dogma, tornou-se um documento do passado; pertencendo ela mesma ao passado'. (Cardeal Joseph Ratzinger, L’Interpetazione bibbica in Conflitto - Problemi del fondamento ed orientamento dell'esegesi contemporanea' pp 3-4. O negrito é meu. http://www.ratzinger.it/miscellanea/interbiblconflitto.htm ).
Esta crítica arrasadora não é a de um integrista, mas do Cardeal Ratzinger.
Portanto, a tentativa de conciliação feita pela Dei Verbum entre o método histórico crítico e a autoridade dogmática da Igreja não conseguiu senão destruir a fé católica, identificando-a com a protestante, e produzindo um iato intransponível entre a exegese e o dogma. De modo que — diz o Cardeal Ratzinger — o dogma não se sustenta mais.
Foi o novo conceito de revelação do Vaticano II a causa de que 'o dogma não se sustenta mais'.
É deste novo conceito de revelação que nasceram tantas novidades modernistas do Vaticano II, como o novo conceito de Igreja, com o seu dolorosamente famoso 'subsistit', a colegialidade, a liberdade religiosa, o ecumenismo' etc. , e tantos outros problemas que não focalizei nesta carta. Limitei em responder somente ao problema da revelação no Vaticano II, porque este foi o único ponto de que versou o douto parecer do Instituto Paulo VI de Brescia, para refutar a afirmação de Jean Guitton sobre o Modernismo do Vaticano II, coisa que o douto Parecer não conseguiu, pelo contrário, o confirmou.
E uma prova de que o dogma não se sustenta mais – está nos jornais de hoje: um destes teólogos neo modernistas — Tamayo — ousou dizer e escrever que Jesus Cristo não é Deus. E não foi imediatamente condenado. E, timidamente censurato, recebeu o apoio de toda a Seita Internacional dos Teólogos Modernistas, que não acreditam nem em Deus, nem em Cristo, e, menos ainda, na Igreja.
Também um teólogo muito conhecido na Itália, Piero Coda — teólogo fora de suspeita alguma de ser integrista ou antipático ao Modernismo — escreveu:
'Na reflexão teológica contemporânea, a osmose entre a teologia católica e a evangélica, enquanto se refere aos temas centrais da fé cristã (Cristo, o evento pascoal da cruz e da ressurreição, a Trindade, o Espírito Santo, a Igreja, o homem, a história), é agora um dado de fato adquirido e irrenunciável da nossa cultura” (Piero Coda, L'Altro di Dio, Rivelazione e Kenosi in Serge Bulgakov, Città Nuova, Roma, 1997, p. 10).
E esta maldita osmose entre a teologia católica e a teologia herética só foi possível graças ao Modernismo, comum nos teólogos modernos, quer se apresentem como católicos, quer se digam protestantes ou cismáticos. Todos estes Modernistas, satisfeitos com a osmose entre a ortodoxia e a heresia, uns mais outros menos, são, de fato, gnósticos.
Há um ponto que julgo dever salientar: é a aplicação da doutrina da Kenosis à Igreja. Assim como Deus teria uma vida kenótica, num processo dialético de esvaziamento e aniquilamento para gerar o Filho e o Espírito Santo; assim como Deus teria criado o universo por meio kenótico, literalmente aniquilando-se no mundo — caindo no mundo, como dizia a Gnose — assim também deveria fazer a Igreja. Ela deveria aniquilar-se para dar vida às outras religiões. Na sua morte, aniquilando-se, abandonada por Deus como Cristo na Cruz, ela encontraria sua verdadeira vida e ressurreição.
Daqui, o misterioso processo de auto-demolição da Igreja, constatado — mas não combatido — por Paulo VI.
Logo no início do Concílio, o famoso Neo Modernista, Padre Yves Congar, declarou:
“Não há nada de decisivo a fazer na Igreja Católica, enquanto ela não abandona suas pretensões senhoriais e temporais. É preciso destruir tudo isso. E isto vai ser feito.”
'Estas palavras de Yves Congar, um dos principais teólogos do século XX, foram proferidas no dia 14 de outubro de 1962, três dias após o início do Concílio” (Paulo Daniel Farah, A Igreja cogita convocar Concílio Vaticano III, artigo in Folha de São Paulo, 25 Dezembro de 2002, p. A- 9).
Palavras proféticas ou programa?
Paulo VI renunciou à tiara, renunciou kenoticamente a todos os símbolos do poder papal. Paulo VI fez a Igreja aniquilar-se diante do homem e do mundo. Paulo VI se humilhou, e pior ainda, humilhou a Igreja Católica reconhecendo a ONU como única instituição capaz de trazer paz ao mundo.(Ve-se , hoje, no caso do Iraque, que capacidade tem a ONU de produzir a paz!...). A Igreja, depois do Vaticano II, aniquilou-se pedindo perdão pelos seus pecados, como se a Igreja Santa pudesse pecar. Kenoticamente a Igreja rendeu-se à sinagoga, em Jerusalém, no muro das lamentações, tornado Muro da capitulação, nos templos budistas, nas 'sinagogas' reformadas pelos protestantes, nas cerimônias de candomblé. A Igreja se aniquilou, esvaziando a sua antiquíssima e sacra liturgia, capitulando diante do mundo moderno, e renunciando ao gregoriano para substituí-lo pelo Rock. A Igreja se aniquilou admitindo estar no mesmo nível de todos os credos e religiões em cerimônias como as de Assis. A Kenosis da Igreja admitiu até colocar a imagem de Buda sobre o Sacrário, até tirar os crucufixos das salas que seriam preparadas para o culto judaico, como exigiram os rabinos, em Assis.
Por isso, o dogma não se sustenta mais. E esta frase do Cardeal Ratzinger é uma confissão da destruição e do aniquilamento total, porque se o dogma não se sustenta mais, o que permanece de pé, ainda?
E veja, Ilmo. Doutor Papetti, que as reformas que o Modernismo queria fazer, foram feitas depois do Vaticano II, e seguindo sua letra e seu espírito. Compare, lhe peço, as reformas propostas pelos Modernistas, e que estão citadas por S. Pio X na Pascendi, com as reformas implantadas após o Vaticano II, para ver que falta acabar somente com o celibato eclesiástico para que a kenosis termine.
Há ainda um ato kenótico que ainda não foi feito?
Sim.
Havia um.
O Papa pedir para se estudar a doutrina da infalibilidade e do munus petrino para facilitar a ‘união’ com as seitas da Reforma e com a religião cismática do Oriente.
E também isso foi pedido.
E nos jornais de hoje se lê que o Papa propôs que se estude um novo modo de entender os poderes e as funções papais, para que o Papado não seja mais um obstáculo para a união das religiões. E há aqueles que querem reduzir Pedro à função de simples Secretário Geral da ORU – Organização das Religiões Unidas.
Usque quando Deus meus?
Exsurge Domine, quare obdormis?
E, certamente, Deus impedirá uma absoluta kenosi da Igreja, porque Ele mesmo prometeu: 'portae inferi non praevalebunt'( Mt. XVI, 18).
Um outro ponto que gostaria de salientar na conclusão desta longa carta, é que o Concílio Vaticano II, estranhamente, foi proclamado por João XXIII e por Paulo VI, como Concilio Pastoral. Essa qualificação era absolutamente nova, e naquele tempo, ficou incompreensível, como ainda até hoje muitos não entendem perfeitamente aquilo que se desejou dizer com esse estranho adjetivo para um Concílio.
À luz de tudo o que vimos, poder-se–ia dizer que um Concílio que admitiu o conceito de revelação da Nova Teologia — isto é, um conceito modernista da revelação — esse Concílio não podia proclamar nenhum dogma, e nem também impor anátemas.
De fato, se a revelação não comporta verdades dirigidas ao intelecto, não é possível ensinar nenhum dogma, e nem mesmo excomungar nenhum herege, porque não haveria hereges. Todas as revelações seriam igualmente verdadeiras e igualmente imperfeitas.
O novo conceito de revelação — a expressão é do parecer teológico do Instituto Paulo VI de Brescia — não admite dogmas e excomunhões. Por isso, o Vaticano II foi declarado modernisticamente “pastoral”.
O Vaticano II pretendeu apresentar a doutrina católica em linguagem harmônica com o pensamento moderno, isto é, harmônica à filosofia gnóstica de Kant, de Hegel e de outros gnósticos modernos.
Curiosamente, um Concílio pastoral, que pretendeu falar ao povo de modo mais compreensível, utiliza uma linguagem e uma terminologia estranha, obscura, hermética e incompreensível para aqueles que não são iniciados no palavreado pseudo teológico — ou melhor, gnóstico — atual.
Que se entende da expressão que Cristo revelou ao homem o “mistério do Homem”? Que mistério do homem seria esse?
E que quer dizer, para um leigo comum, que a “Igreja é, em Cristo, como que o mistério, ou o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano”? (Vaticano II, Constituição Dogmática Lumen Gentium, nº 1).
E qual é o padre, que tendo estudado teologia, incluindo a modernista, entende realmente o que disse o Vaticano II?
Na Igreja pós conciliar, o debate sobre o que o Concílio quis realmente dizer é dramático. Não se chega nunca a um acordo. E o Vaticano II, que pretendeu unir os cristãos e unir todas as religiões, dividiu os católicos. A Igreja parece ter se tornado a Torre de Babel.
Nas palavras dos documentos do Vaticano II, uma coisa é aquilo que se entende no primeiro sentido, e outra aquilo que os “peritos”, os teólogos do Vaticano II, quiseram dizer. Tanto que alguns notaram que o Vaticano II foi, na verdade, o Concílio dos “Peritos” mais do que o dos Bispos. Esses Bispos atuavam como porta-vozes dos peritos mais do que Padres conciliares, sucessores dos Apóstolos.
E estes “peritos” eram, quase todos, membros da Seita Internacional e Ecumênica Modernista. Dizendo isto, penso em Karl Rahner, em Schillebeeckx, em Chenu, em Congar, em de Lubac, etc.
O teólogo Juan Tamayo, recentemente punido pelo Vaticano, reconheceu isso quando escreveu:
“Os três momentos do processo, pré-Reforma, Reforma e Contra Reforma, podem ser considerados na atitude adotada pela hierarquia romana em relação com os mesmos teólogos que fizeram o Vaticano II.
'Na encíclica Humani Generis (1950) prossegue Tamayo, comparável pela sua intolerância e anti-modernismo ao Syllabus, Pio XII condena severamente os teólogos que tentavam desenvolver a reflexão cristã no diálogo com a modernidade. Condena o evolucionismo, os movimentos histórico-críticos, o retorno às fontes do cristianismo, etc. Alguns deles foram expulsos das suas cátedras e inclusive exilados etc. (Chenu, Congar, de Lubac...). Pois bem, os mesmos teólogos condenados por Pio XII e pela Humani Generis, foram chamados, dez anos depois, por João XXIII, para que liderassem e fundamentassem a reforma da Igreja sob o ponto de vista teológico. O Concílio Vaticano II foi um Concílio mais de teólogos do que de Bispos, ainda que tenha tido um componente pastoral importantíssimo. Uma parte dos documentos e do conteúdo nestes documentos do Vaticano II foram tomados e extraídos das obras de teólogos como Rahner, Haering, Gonzalez Ruiz, Congar, Chenu etc. Entretanto, os mesmos teólogos chamados por João XXIII como peritos do Concílio, caíram sob suspeita no pontificado de João Paulo II e foram condenados novamente, sem que, até hoje, fosse feita a sua reabilitação. O caso mais emblemático foi o de Hans Kung, teólogo de João XXIII, e quase vinte anos depois, expulso da cadeira de teologia de Tubingen. Uma Universidade civil! Quarenta anos depois do Vaticano II (o quadragésimo aniversário se celebra no dia 1º de outubro de 2002) torna-se necessária uma nova Reforma que retome o espírito do Vaticano II e que vá ainda mais além, visando responder aos novos problemas” (Juan J. Tamayo, Las grandes líneas de la reforma de la Iglesia - http://perso.wanadoo.es/laicos/2002/854T-JuanjoTamayo.htm Il grossetto ed il sottolineato sono miei.)
A isto conduziu a linguagem pastoral.
E a linguagem destes gnósticos modernistas era de natureza brumosa como a antiga Gnose. Os peritos não podem falar claramente, mas só hermeticamente. Que se leia Blondel, Rahner, de Lubac, Balthasar e outros. Em todas as suas obras, fica-se com a sensação de abraçar uma serpente de fumaça, tanto eles são difusos. Blondel, ainda, foi acusado de ser absolutamente hermético. E ele mesmo confessou que era esotérico. O próprio Tyrrel ficou sem entender o que Blondel queria realmente dizer, tanto era intencionalmente brumoso o modernista de Aix.
Também o principal discípulo de Blondel, o modernista Padre Auguste Valensin, mestre de de Lubac, declarou diversas vezes que não conseguia compreender o que Blondel escrevia.
O próprio Loisy, ironizava o estilo hermético de Blondel, dizendo:
“De ouro lado, o sistema de Laberthonnière, é Maurice Blondel traduzido para o francês, e sem pretensões doutorais, é renovação do iluminismo protestante” (Cfr. J. Rivière, Le Modernisme dans L' Église, Lib Létourney et Ané, Parigi, 1929, p. 237).
Sempre foi tática dos Modernistas, daquele tempo e de hoje ainda, utilizar uma linguagem hermética, ambígua, obscura, para esconder a sua verdadeira doutrina.
O Modernismo adotou “o processo de transpor sistematicamente sob velhos termos recebidos, um conteúdo diferentre do seu sentido próprio, o que permitiria manter o Credo cristão, adaptando-o a uma realidade totalmente diferente” (Houtin, apud J Rivière, op. cit., p. 150).
Também o Padre Grandmaison escreveu:
'A tática das fórmulas antigas conservadas com um sentido diferente, as profissões de fé mantidas sob o benefício das correções doutrinárias sub entendidas, a firme determinação de se manter lá onde se estava, graças a equívocos, para beneficiar as novas idéias com o prestígio que traz uma cátedra de ensino, um hábito eclesiástico, uma reputação de ortodoxia” (L. de Grandmaison, Études 1908. t. XCVII. p. 303 apud J Rivière, op. cit., p. 221).
Por isso, o próprio Blondel confessou:
“Eu sei da odiosa obscuridade que a minha prosa deve apresentar normalmente aos meus infelizes leitores” (M. Blondel Lettera a Auguste Valensin, nel 27 marzo 1903, in Correspondance Maurice Blondel - Auguste Valensin, Aubier, Paris, 2 vol. , 1957, I vol. p. 86).
'A necessidade de ser breve e claro me paralisa”(Cfr. R. Marlé, Au Coeur de la Crise Moderniste, Aubier, Parigi, 1960, p.165). E ainda: “Imaginai o que me decido inventar para dizer sem dizer” (Lettera di Maurice Blondel al Padre Brémond, 20 -III- 1901, apud R. Marlé, op, cit. p. 44 nota 1).
O próprio Loisy, tão audacioso, redigia exposições doutrinárias ambíguas e com nuances até o equívoco (Cfr. J. Rivière, Le Modernisme dans l'Église, Lib Letouzey et Ané, Parigi , 1929, p. 166).
Essa tática está viva até hoje nos peritos teólogos modernistas que inspiraram as teses do Vaticano II. Que se leia um texto qualquer desses teólogos para constatar como eles empregam uma terminologia estranha, cujo sentido muda camaleonticamente. Desses livros, pretensa e altissimamente intelectuais, um leigo poderia dizer o que Dante dissera da treva infernal:
'Oscura e profonda era, e nebulosa,
tanto che, per ficar lo viso a fondo.
io no vi discernea alcuna cosa'
(Dante, Inferno, IV, 10-12).['Obscura e profunda era, e nebulosa,
tanto que, mesmo fixando a vista profundamente,
eu não discernia aí nenhuma coisa']
Não lhe parece, Ilmo. Doutor Papetti, que esses versos caem perfeitamente ao estilo de von Balthasar, de Rahner, e de tantos outros que se elogiam sempre entre si, falando de doutrinas abstrusas como a da Kenosi, originária da Kabbalah luriânica, ou aquela da misteriosíssima “Presença”, da qual tanto fala, porém sem quase nunca definí-la, Mons. Giussiani, doutrina que aprenderam de Boehme, de Hegel, de Mohler, Moltman, Bultmann, de Bulgakov e de tantos outros hereges?
E como são tediosos os textos destes teólogos! Por exemplo, von Balthasar. Que 'literatura'!...
Tudo isso toma a forma de um sistema hermético, conhecido por alguns iniciados, e que, escondidos atrás de largas costas de certos Bispos e Cardeais, e sob palavras estranhas de neologismos ambíguos e indefinidos, querem fazer admitir, como doutrina da Santa Igreja, a velha Gnose.
Os textos vagos e estranhos do Vaticano II, o seu novo conceito de revelação, entre outros temas, propiciaram uma difusão do Modernismo que destrói a fé.
Como reconheceu o Cardeal Ratzinger, o dogma não se sustenta mais.
E não ficando mais de pé o dogma, é toda a doutrina que não se sustenta mais.
Neste trabalho, limitei-me em responder ao Instituto Paulo VI de Brescia somente sobre o novo conceito de revelação do Vaticano II.
E vimos que este novo conceito de revelação é modernista.
Não examinei tantas outras teses modernistas do Vaticano II, como o novo conceito de Igreja (sacramento da unidade do gênero humano), o problema do 'subsistit', a respeito da Igreja Católica como Igreja de Crsito, a colegialidade, a liberdade religiosa, o ecumenismo, a democratização da Igreja, assim como tantas outras teses modernistas, ou pelo menos, de sabor modernista, que causaram a imensa crise atual da Fé e da Igreja, a ponto de Paulo VI aludir à fumaça de Satanás introduzida no Templo de Deus, e falar ainda de uma autodemolição da Igreja.
O dogma não fica mais de pé.
Tanto esta conclusão é verdadeira que um autor absolutamente insuspeito quanto ao Modernismo, e reconhecido como especialista nessa delicada questão, Émile Poulat, depois de assistir toda a crise oriunda do Vaticano II, e comparando a situação do tempo do Modernismo no início do século XX com a situação atual, escreveu em setembro de 1995:
“As ciências históricas não só revolucionaram nossa consciência do passado, mas também, na “foulée”, o espírito dos Historiadores e a consciência dos crentes. Neste sentido, somos todos modernistas. Aqueles que disso duvidam ou o contestam, que releiam os documentos pontifícios, o Decreto Lamentabili e a encíclica Pascendi (1907). O fato é que o longo juramento anti-modernista instituído por Pio X foi abolido ou abreviado, e reduzido a poucas linhas por Paulo VI, pouco depois de meio século” (Émile Poulat, Permanenza ed Atualità del Modernismo 'Avant Propos' da terceira edição do livro Histoire, Dogme et Critique dans la Crise Moderniste, Paris, Albin Michel, p. XVII, Septembre del 1995. O negrito é meu).
E ainda:
“Em um século, nós passamos bem de um Modernismo restrito a um Modernismo generalizado” (Émile Poulat, Permanenza ed Atualità del Modernismo 'Avant Propos' da terceira edição do livro Histoire, Dogme et Critique dans la Crise Moderniste, Paris, Albin Michel, p. VII, Septembre del 1995).
E como aconteceu esta difusão do Modernismo que os teólogos da seita Internacional Modernista possam ousar a dizer com Poulat:
“Somos todos modernistas”?
E não só Poulat reconhece a difusão do Modernismo. Também Xavier Tilliette, num livro claramente favorável ao Modernismo, escreveu que tudo aquilo que os modernistas ensinaram no princípio do século XX, e que depois foi condenado, foi admitido no Vaticano II:
'Blondel intimidado, Rousselot censurado, Laberthonnière amordaçado, Lagrange e Huby sob suspeita... Eles semearam nas lágrimas. Mas não duvidemos: na incerta primavera do pós Concílio (Vaticano II), foi o seu grão o que cresceu no meio do joio” (Xavier Tilliette, Maurice Blondelet la controverse Christologique, in Le Modernisme, opera editata dall' Institut Catholique de Paris, ed. Beauchesne, Parigi, 1980. p. 160).
Portanto, também para Xavier Tilliette a semeadura do Modernismo foi cultivada e colhida pelo Vaticano II. Seria preciso perguntar a Tillette o que seria o 'joio' que permanece entre o 'trigo' modernista do Vaticano II e quem pode semear esse 'trigo'... E que entende ele o que seria esta que ele chama de 'joio'? Seriam, talvez, os restos de Catolicismo que permanecem entre as amplas messes do Modernismo difundidas hoje em terra católica?
Outro que admite a vitória do Modernismo e da Nova Teologia no Vaticano II é o teólogo Modernista, Padre T. M. Schoof, O .P., que em seu livro sobre a Nova Teologia escreveu:
'Nos próximos três anos haveriam de sobrevir dificuldades, porém, ao final do Concílio [Vaticano II] as esperanças abrigadas antes de outubro de 1962 foram superadas de muito. Não só a terminologia escolástica, considerada durante tanto tempo como óbvia, foi substituída por expressões tomadas da Bíblia, dos Padres e do pensamento moderno, como também inúmeros temas da teologia renovadora pareceram ser aceitos, por fim, pela Igreja Católica. Na Constituição sobre a Liturgia, percebe-se o eco da 'teologia do mistério'de Dom Casel, centrada na Páscoa, e da teologia do sacramento e da palavra, inspirada nele. Na Constituição sobre a Igreja, encontramos ao povo de Deus em contínuo avanço através da História, guiado por ministros unidos colegialmente, como símbolo de uma humanidade em busca da unidade. No Decreto sobre o Ecumenismo, aparece a expressa confirmação da eclesialidade das igrejas não unidas a Roma, e uma busca ecumênica acentuada pela relativização das experiências religiosas sobre a plenitude da Igreja de Cristo. O documento, não tão bem realizado, sobre a formação sacerdotal já não prescreveu um programa uniforme de estudos, considera a teologia bíblica como a base e o pensamento moderno como importante meio auxiliar da educação, e limita a referência à escolástica a um simples 'sob o magistério de São Tomás'. Na Declaração sobre a Liberdade Religiosa, se reconhece o valor inviolável das convicções vitais pessoais' (Padre T. M. Schoof, O . P. , La Nueva Teologia Catolica, Ediciones Carlos Lohlé, Buenos Aires- Mexico, 1971,pp. 300-301. O negrito é meu).
Foi tal a vitória da Nova Teologia Modernista no Vaticano II que seus líderes se espantaram com o seu êxito:
'A Nova Teologia, mais tarde, perguntou-se, assombrada, como havia sido possível percorrer tal distância em três anos. Não somente se havia dado lugar à sua interpretação; seu núcleo havia sido reconhecido e incluído como um autêntico desenvolvimento'( Padre T. M. Schoof, La Nueva Teologia Catolica, Ediciones Carlos Lohlé, Buenos Aires- Mexico, 1971, pp.314).
Uma conclusão similar foi admitida por outros estudiosos da recente história da Igreja, visto que Pierre Colin registra:
“Posições análogas encontram-se hoje no julgamento do Vaticano II. Considera-se que, bem distante de ter fechado a crise modernista, o Concílio [Vaticano II] fez retornar o Modernismo pelo atalho do confuso movimento das reformas litúrgicas, catequéticas, teológicas que ele deslanchou' (P. Colin, L'áudace et le Soupçon, Desclée de Brouwer, Parigi, 1997, p. 29).
Segundo Jean Guitton, foi o Concílio Vaticano II o responsável desse triunfo da heresia modernista no mundo católico, no século XX. E o parecer que o senhor teve a bondade de me enviar, não conseguiu provar senão que Guitton tinha razão: o Vaticano II ensinou – às vezes veladamente – as doutrinas do Modernismo, condenadas por S. Pio X na Pascendi e no Decreto Lamentabili.
Creia-me, Ilmo. Doutor Papetti que, ainda que tenha sido duro dizer tudo isto, 'amor mi mosse che fé parlare' [Amor me moveu que me fez falar] (Dante, Inferno, II, 72)
Que Deus nos dê a todos as graças para sermos fiéis à sua revelação e à Santa Igreja Católica Apostólica Romana, é o que peço, in Corde Jesu, semper,
Orlando Fedeli.
São Paulo, 19 Março de 2003,
festa de São José, patrono da Igreja.
Para citar este texto:
"Jean Guitton e o Modernismo no Concílio Vaticano II: Resposta ao parecer de Brescia"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/cadernos/religiao/vaticano2b/
Online, 21/12/2024 às 13:40:44h