A Gnose “Tradicionalista” de René Guénon e Olavo de Carvalho
Orlando Fedeli
"De fato, a existência de uma gnose ou philosophia perennis mostra que a religião e o dogma não são a última palavra em matéria de espiritualidade, e que a "fé" tende, em última análise, a desembocar num conhecimento direto que elimina toda a necessidade de "crença", pois traz uma certeza, nas palavras de Guénon, 'mais forte ainda que uma certeza matemática'"
Muito prezado Felipe,
salve Maria!
←I - 1. Comentando a Epígrafe-Confissão
Inicialmente, permita-me algumas palavras sobre a epígrafe que coloquei nessa carta, usando um Texto-Confissão do sr. Olavo de Carvalho. Bastaria esse texto, para provar que tanto ele, quanto Guénon, são gnósticos mesmo.
Pois, segundo Henri-Charles Puech:
"Chama-se ou pode-se chamar "gnosticismo" - e também "gnose" - toda doutrina ou toda atitude religiosa baseada na teoria ou sobre a experiência de obtenção da salvação pelo Conhecimento"(Henri-Charles Puech, En Quête de la Gnose, Gallimard, Paris, 1978, vol. I p. 185).
Um dos mestres de Olavo confirma que esse Conhecimento superior é a Gnose:
"O conhecimento direto e interior, o do Coração-Intelecto, é o que os gregos denominavam gnose; a palavra 'esoterismo' - segundo sua etimologia - designa a gnose, na medida em que está de facto subjacente às doutrinas religiosas, portanto dogmáticas." (Frithjof Schuon, O Esoterismo como Princípio e como Caminho, Ed. Pensamento, p. 11-12)
E Schuon explica que "A diferença entre crença e Gnose - a fé religiosa elementar e a certeza metafísica - é comparável àquela que existe entre uma descrição e uma visão" (Frithjof Schuon, Comprendre L’ Islam, p. 173).
O que espanta é que o homem que escreveu o que coloquei em epígrafe, venha desafiar que se prove ser ele um gnóstico. Ou ele está delirando, ou não tem memória, ou espera que os outros não a tenham.
E ainda ele me exige que prove ser ele um gnóstico, sob pena de me considerar "um impostor"!
"Impostor", conforme ensina até o "pai dos burros", é aquele que abusa da confiança de outrem para enganá-lo, por meio de palavras, ou atitudes. E o dicionário dá como sinônimos de impostor as palavras mentiroso, ou charlatão.
Tendo em conta o que diz o texto citado, fica patente que impostor não sou eu, pois minha acusação de que ele é gnóstico não era nem falsa, nem mentirosa.
Nada adianta ele declarar agora que o que escreveu antes de 1995 não vale mais. Até hoje, ele afirma que há algo superior à fé e às crenças de todas as religiões - a "Tradição" primordial - núcleo comum a todas elas. Esse núcleo ele mesmo o chamou de Gnose. E é esse suposto núcleo que permite a ele dizer-se, ao mesmo tempo, católico-judeu-islâmico.
Como não adianta, também, ele querer distinguir gnose de gnosticismo antigo, porque o que dizia o gnosticismo antigo era exatamente isso: que a Gnose era um conhecimento superior à fé.
E você vê, caro Felipe, que H. C. Puech - um dos maiores especialistas no assunto - no texto acima citado, toma Gnose e Gnosticismo como termos equivalentes, para não dizer sinônimos.
Sobre esse ponto, veremos adiante outros textos de Puech confirmando que os melhores especialistas atuais, tendo em vista as descobertas e estudos mais recentes, usam Gnose e gnosticismo indiferentemente (Cfr. Puech, op. cit., vol I, pp. 187 e seguintes).
Diante deste Texto-Confissão de Olavo, são ociosas outras provas de que ele é um gnóstico, pois a confissão do acusado dispensa outras investigações.
Com isso, a polêmica, de fato, está encerrada, e ele nem precisa responder-me mais qual é a religião dele, nem se Guénon é gnóstico.
Entretanto, farei um estudo do problema, respondendo não tanto aos melodramáticos AVISOS 2 e 3 que Olavo publicou, mas tendo em vista, sobretudo, esclarecer as pessoas que me consultaram e que, em medida maior ou menor, tinham sido enredadas pelas obscuras e esotéricas doutrinas olavianas.
Além disso, este pequeno estudo pode ser útil em outras situações, e para outras pessoas, já que a Gnose - e as brumas sofísticas em que ela se envolve - são extremamente repetitivas.
Li, divertidamente espantado, os terríveis AVISOS do sr. Olavo de Carvalho, que você gentilmente me enviou.
O AVISO 2, na realidade, foi mais um "esclarecimento preliminar", para os alunos dele - que ele julga assustados (perplexos e confusos) - do que uma resposta para mim. Com efeito, ele não responde a nenhuma questão por mim colocada. Não disse nem qual é a religião dele, nem se considera Guénon um gnóstico.
Perguntas que havia feito, porque desconhecia o Texto-Confissão dele. Se o tivesse conhecido antes, não teria perguntado nada.
O sr. Olavo, no entanto, que evidentemente sabe o que escreveu nesse artigo da revista Planeta, finge que se esqueceu dele, e, em vez de dizer que é gnóstico, somente insulta, exigindo que eu prove que ele é um gnóstico sob pena de considerar-me um "impostor".
Note ainda que ele mesmo não julga que seu Aviso 2 seja uma resposta, pois confessa que não sabe quando terá tempo e paciência para me responder...
Se ele não me dá respostas, prodigaliza ofensas: "santarrão de opereta", "má fé", "Iago da Teologia", "intrigante de grosso calibre", "louco"...E me garante que, se não fosse o Código Penal, eu receberia "um tapa na cara"....O que já é bem menos que ter o "pescoço cortado".
Todos esses insultos e ameaças são mais próprias de um discutidor de botequim do que de um intelectual, e denotam o desespero de quem foi pego em erro, de alguém que vê seu "código terminológico" elucidado, e não tem como se justificar. Que não tem como contestar o que já havia confessado.
Em todo caso, repito, nesse Aviso 2, ele não quis dizer qual é a religião dele. Não quis confessar que, sendo gnóstico, ele se julga acima de todas as religiões.
Qual seria a religião exotérica de Olavo? Da esotérica, já temos a prova confessa: ele é gnóstico.
Por que será que ele não confessa o seu pensamento verdadeiro, ele que é tão célere a dizer que é "católico-judeu-islamita-e etc?
E que os alunos "assustados" do sr. Olavo - repito - notem que ele também, nesse AVISO 2, não disse se Guénon é gnóstico ou não, coisa que ele admitiu no seu artigo-confissão, em 1981.
Agora, quero acrescentar mais uma pergunta que O de C. qualificará de "inquisitorial": e Frithjof Schuon - que também muito influenciou seu Olavo - Schuon que também foi iniciado na doutrina sufi, e que também se "islamisou", Schuon é gnóstico ou não?
Nesse artigo-confissão, Olavo apresenta e recomenda uma bibliografia sintomática, que, ela também, é outra confissão. Ele cita como livros que deveriam ser lidos: "Jacob Needleman, The Sword of Gnosis, (Baltimore, Penguin Books, 1974), Frithjof Schuon, Gnosis, Divine Wisdom (Pates Manor, Befont, Middlesex, Perennial Books, Ltd., 1959) e etc.
Títulos bastante esclarecedores para indicar qual é o pensamento dos autores citados.
Você vê, meu caro Felipe, que vários amigos e vários modelos intelectuais que o Sr. Olavo de Carvalho afirma ter, e para os quais reconhece que tem dívidas doutrinárias, são islamisados, sufis e gnósticos. Ora, dize-me com quem andas e dir-te-ei quem és...
Mas, apesar disso, o sr. O de C. se faz de esquecido do que escreveu, tentando negar que é gnóstico.
Vai ele agora dizer que tudo o que ele escreveu, antes de 1995, não vale mais...
←I - 3. Olavo de Carvalho e o sufismo
E o sufismo?
Olavo é sufi?
Certa vez, diz ele que deu curso de Astrologia para gente metida até a goela no sufismo. E ele mesmo? Estava metido lá, senão até a goela, pelo menos até o coração?
"Os três livros que eu escrevi sobre Astrologia foram redigidos para um grupo de pessoas que estavam metidas até a goela no esoterismo islâmico. Para entender-se o que está escrito, é preciso saber para quem foi escrito. Nada do que está ali pode ser transposto para um público geral sem que sejam feitas as devidas conversões. Se eu fosse reeditar esses livros, no lugar de uma página, teria que escrever trinta" (Olavo de Carvalho, entrevista: A Amnésia Moderna, in Porto do Céu, Astrologia, http://www.olavodecarvalho.org/textos/astrologia.htm).
Será que ele também se tornou sufi como Guénon e Schuon?
Dirá ele que escreveu para pessoas metidas até a goela no esoterismo islâmico - que é gnóstico - mas que ele mesmo não participava desse mergulho na gnose sufi ou shiita... até a goela...
Pelo menos, o sr. Olavo de Carvalho esteve metido "até a goela" - o que não é pouco - com gente iniciada no esoterismo islâmico.
Aliás seria bem estranho que alguém fosse capaz de dar cursos de esoterismo islâmico numa escala - "até a goela" - que só iniciados entenderiam, sem ter sido também iniciado nesse mesmo esoterismo gnóstico...
Ora, o esoterismo islâmico mais conhecido é o shiismo. O esoterismo shiita é a Gnose do Islam. Quem afirma isso em seus livros é Henry Corbin, o maior especialista em shiismo no Ocidente, autor insuspeito, que é elogiado pelo sr. Olavo de Carvalho.
Você quer saber em que obra, e em que volume, e em que página, Henry Corbin afirma isso?
Pois vá lá, embora alongue esta carta:
"A doutrina shiita é, por excelência, a gnose do Islam; o shiismo é, ele mesmo, a sucessão, a tradição ininterrupta da gnose (silsilat al-‘irfan) (Henry Corbin, En Islam Iranien, Gallimard, Paris, 1971, Vol I, p. 128. A tradução é nossa).
Dir-nos-á o sr. Olavo de Carvalho que seu esoterismo não é o shiita, mas apenas esoterismo sufi, o qual pode ser sunita.
Ora todo sufismo é gnóstico. Especialmente o sufismo shiita de que o Ismaelismo foi um ramo:
"O Ismaelismo [de Alamut] passou bem sob o manto do sufismo" "L’Ismaélisme, est bien passé "sous le manteau du soufisme"(Christian Jambet, La Grande Réssurection d’Alamut, Verdier, Dijon, 1990, p. 334).
E falando da destruição dos ismaelitas de Alamut pelos mongóis de Hulagu, diz Jambet:
"Porque ela [a Comunidade de Alamut] não foi apenas abatida pela invasão mongol, mas foi constrangida à dissolução e à dispersão sob o manto do sufismo" (Christian Jambet, op cit, p. 92).
Depois de mostrar que, se há distinção entre sufismo e shiismo, Henry Corbin diz:
"Todos esses elementos [da doutrina shiita] podem ser encontrados, certamente, no sufismo e na metafísica do sufismo a ponto de dar a impressão, quando se trata do sufismo sunita, de um shiismo que não ousa mais dizer o seu nome" (Henry Corbin, op cit Vol I, p. 83).
Portanto, todos os esoterismos islâmicos - shiita ou sunita - são gnósticos, e Guénon foi iniciado neles, e se fez sufi. Schuon, discípulo de Guénon estabeleceu uma "tariqa" (comunidade ou "caminho") sufi em Paris. Depois, rompeu com Guénon - mas não com a Gnose - e se estabeleceu nos Estados Unidos.
Quanto a Guénon, ele não era muito bem visto pelos sunitas exotéricos, no Cairo...(Cfr. Marie France James, Ésotérisme et Christianisme autour de René Guénon, Nouvelles Éditions Latines, Paris, 1981, p.305.).
(E estou citando essa fonte de primeira mão, seu Olavo. Estou com o interessantíssimo livro da Srta. James em minhas mãos. E ele está já todo sublinhado e marcadinho...)
[Nota: Este trabalho já estava redigido, quando o Sr. Olavo de Carvalho publicou uma nota sobre o livro de Marie-France James no dia 27 de junho de 2001, em seu site, na internet. No Apêndice 3, publicamos essa nota do Sr. Olavo, seguida de nosso comentário a ela.]
E Olavo, tornou-se também sufi como seus mestres?
Sufi shiita ou sunita?
Ele não o diz.
Olavo escreveu uma biografia de Maomé premiada nas Arábias, que, aqui no Brasil, ninguém viu...
Diz ele: "Meu livro O Profeta da Paz. Estudos sobre a Interpretação Simbólica da Via do Profeta Mohammed (Maomé), ainda inédito, nove anos após ter recebido um prêmio do Governo da Arábia Saudita, é um estudo sobre a significação da profecia na História, ilustrado pelo exemplo do único Profeta de cujos atos, palavras, restou para o historiador moderno uma documentação abundante. Foi esse estudo que me permitiu de uma vez para sempre que o fenômeno da profecia é o gonzo sobre o qual gira o portal da compreensão histórica (...) (Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições, pp 242-243, nota 124).
Será que o governo maometano premiaria uma biografia de Maomé que não fosse maometana? Ora, para ser sufi, é preciso, antes, ser maometano.
E Olavo, pelo que se deduz do texto dele acima citado, aceita que Maomé foi Profeta.
Ele escreveu também que pôde "observar pessoalmente" como funciona uma seita sufi, a de Idries Sha (Cfr. Olavo de Carvalho, in Fronteiras da Tradição, ed. Nova Stella, São Paulo, 1986, p. 89, nota 4).
E como pôde ter ele essa experiência sem ter entrado na seita para verificar se a iniciação que lá se dava era correta, ou se era uma contra-iniciação?
Não escreveu Olavo que a disciplina iniciática só pode se conhecida praticamente, e nunca por escrito?
"...a disciplina iniciática (a qual por razões óbvias, só pode ser dada pessoalmente a cada um, já que implica uma prática metódica, não podendo, por isso, ser exposta por escrito) (...)" (Olavo de Carvalho, Questionando o Poder A Crise do Catolicismo, artigo in Planeta, no 110, Novembro de 1981, p. 27).
Logo, ele deve ter sido iniciado na seita sufi. E para ser sufi, se exige antes que a pessoa adira ao islamismo.
Será que Olavo de Carvalho adotou, ele também - como Guénon, como Schuon, e como seu amigo Martin Lings -, um nome árabe?
Certa vez, Olavo declarou de si mesmo: "(...) o resultado é que este pacífico servidor da unidade e da conciliação está se tornando conhecido como um hidrófobo terrorista intelectual, o que não deixa de ser divertido" (Olavo de Carvalho, Da Contemplação Amorosa, Apostila 2, corrigida pelo autor, 14 de Janeiro de 1995. O negrito é meu.).
Imagine, meu caro Felipe: Olavo, o "pacífico servidor da unidade e da conciliação".
Como será que se diz isso em árabe?
Se eu soubesse como se diz isso na língua de Maomé, sugeriria a ele que tomasse esse nome, que possivelmente deve ser Abdel Wahed... Kualker Koisa...
Continuando a paródia de "Olavo è mobile", poder-se-ia ter um "finale" assim:
"Non è molto furbo, chi a lui s’afida
Chi in lui confida e in suo mistero
Ah!...Là è il suo mistero!
Ah!...Là è il suo mistero!"
E não esqueçamos que ser sufi significa ser gnóstico.
Sim, o Sufi é um gnóstico.
Logo, tendo sido um crente, ou pelo menos um simpatizante do sufismo, Olavo de Carvalho, também por isso, é um gnóstico, ou pelo menos simpatizante da Gnose.
Este raciocínio só confirma o que ele mesmo escreveu em seu Texto-Confissão, citado na epígrafe desta carta.
← I - 4. Plano de trabalho
Pensava examinar mais a fundo, no futuro, sem prazos, e com as delongas que me aprouvessem, a doutrina "tradicional" de meu furibundo opositor, possuidor de caridade tão "tradicionalista", comparando-a com a de seus mestres gnósticos Guénon, Schuon e companhia, mas depois desta carta, não creio que isso seja mais necessário...
Dois fatos novos me puseram em dúvida:
a) Já está provado pelo Texto-Confissão dele e pelo que comprovo nesta carta, que o sr. Olavo de Carvalho é um gnóstico;
b) Ele não é um autor a quem se deva dar tanta atenção. Se o próprio Guénon não merece tanto trabalho, o que dirá Olavo, cuja gnose é mais rampeira. Seria, como se diz jocosamente, gastar muita vela com mau defunto". Ou ainda, como diz um simpático refrão caipira, ainda que sem conotação pessoal, é claro, porque sou educado: "É muita banana para um macaco só".
O que me dispensa de me municiar de mais... "bananas".
Se com duas cartas minhas, ele está tão furibundo e estrebuchante de raiva "exotérica", como ficará com esta carta que republica seu Texto-Confissão, que ele julgava esquecido por todos? Como ficará ele com este estudo de suas doutrinas e das de seu querido Mestre René Guénon? E leve-se em conta que, para o estudo ser completo, eu teria que ter em mãos, com direito de publicação, todos os textos dele.
Creio que só com este estudo - de certo modo - "sucinto", ele vai se tornar, mais uma vez, como ele mesmo disse, um "hidrófobo terrorista intelectual".
Se este estudo já é suficiente para provar, mais uma vez, o que ele já confessou, para que fazer uma análise mais profunda das doutrinas delirantes de Olavo, a fim de que fique ainda mais patente que sua doutrina é gnóstica, coisa que ele já confessou?
Para que analisar a afirmativa dele de que: quando se lê o Corão, os gatos e camelos ficam em êxtase?
Com efeito, ele afirma que: "A sensibilidade e receptividade que até os animais mostram ao ouvirem os cânticos do Corão é um fenômeno continuamente atestado por todos os observadores desde o surgimento do Islam" (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, Nova Stella, São Paulo, 1986, p. 28).
Ele que vá ler, então, o Corão para os gatos vadios do Anhangabaú, ou para camelos, junto à esfinge do Egito! Talvez isso acalme, se não os camelos e gatos, ao menos, a sua ira "hidrófoba".
Depois desta carta, ficará ele ainda mais espumante de raiva e multiplicará suas injúrias, em vez de tentar dar argumentos impossíveis.
Que ele fique hidrófobo ou amante da concórdia, pouco importa:
"C’ est fini!", como dizem os franceses.
Tendo então o tempo e o vagar que eu quiser - porque eu também tenho muito mais o que fazer do que ler lixo gnóstico pretensamente intelectual - farei ainda apenas uma biografia de Guénon, para elucidar alunos que quase nada conhecem, de fato, desse gnóstico francês.
(Ainda recentemente, conversei com dois alunos de O de C. que nem sabiam de um fato que o sr. O. de C. omitiu em sua biografia de Guénon: que Guénon foi sagrado "Bispo" de uma Igreja Gnóstica com o esotérico nome de Palingenius (Cfr. MF James, op. cit p. 81 a 83)...E por que será que seu Olavo não contou isso na biografia de Guénon que escreveu para a Revista Planeta (no 107, Agosto de 1981)?...Será que não se pode induzir em falso testemunho por omissão?)
Ele que aguarde então, enquanto lê o Corão para quatro gatos pingados brasileiros, e vá colecionando seus insultos e ameaças contra mim.
←I - 5. Olavo, o tolerante, ecumênico e "Pacífico Servidor da Unidade e da Conciliação"
Singular "filósofo" esse seu Olavo, que publica livros, e não admite que se os critique! Ele publica livros, faz conferências, dá aulas que circulam pela Internet, mas não admite que se lhe façam reparos.
Quem publica livros, quer que sejam lidos. Tem que aceitar, então, que alguns leitores aprovem ou adotem a sua posição doutrinária, e que outros a critiquem, e mesmo a ataquem.
Com seu Olavo isso não vale. Ele exige unanimidade total a seu pensamento. Quem o lê, tem que aprová-lo, se não, será um imbecil, coletivo ou individual, mas sempre um imbecil. Diplomas de imbecilidade, ele os distribui generosamente. Afinal, ele é o "pai" do "Imbecil Coletivo".
Li vários livros, conferências e artigos do sr. Olavo de Carvalho, e concluí que ele é um iniciado e gnóstico. E que pretende dizer-se também católico.
Ora, católico é que ele não é.
E porque manifestei o que penso da doutrina de Olavo de Carvalho, ele me ameaça, dizendo-me que me verei de "pescoço cortado", e de que me daria "um tapa na cara", se não fosse proibido pelo Código Penal.
Que grandes argumentos...selvagens!...
Aproveito contra Olavo uma citação que ele faz de Leonardo por cuja veracidade histórica, tendo em vista como Olavo "chuta" suas citações, não me responsabilizo: "Dove si grida non è vera scienza" (O de C., Cadeia para os Astrólogos, artigo in Planeta, no 75, Dezembro de 1978, p. 30).
Essa atitude brutal do sr. Olavo de Carvalho, desejando dar tapa na cara em quem o critica, manifesta o ranço stalinista e fidelista que ele mantém, como antigo membro do Partido Comunista: quem for contra o que afirma o totalitário, deve se ver de "pescoço cortado" ou levar "tapa na cara".
Compreende-se que ele tenha declarado: "(...) tenho a firme consciência de não haver criticado, na intelectualidade da esquerda nacional, o conteúdo de seus ideais políticos, que com freqüência compartilho, e sim seus métodos oportunistas, sua hipocrisia (...) etc..." (Olavo de Carvalho, Bandidos & Letrados II, in Jornal do Brasil).
Como se vê, Olavo ainda partilha de certos "ideais" da esquerda. Olavo "mutta d’accento, non di pensier....".
Imagine-se se o sr. Olavo tivesse um dia poder político, o que aconteceria com meu curto e mui querido pescoço, e com minha cara...
E ele me acusa de pretender "terceirizar o Santo Ofício".
Ora, meu julgamento sobre a doutrina do sr. Olavo de Carvalho é a de um simples católico. Como disse, qualquer pessoa pode julgar uma obra publicada, e dar seu parecer sobre ela. Qualquer católico, constatando que um autor se apresenta como católico, mas tem erros contra a Fé, tem o dever de denunciar esses erros.
Isso não é Inquisição: é mero direito de pensar e de ter um juízo sobre o que se lê.
Para alertar que está havendo um incêndio, não é preciso ser bombeiro, e seria bem ridículo que se chamasse membro de um Corpo de Bombeiros terceirizado, a quem gritasse "Fogo!", ao ver um incêndio.
O sr. Olavo de Carvalho pode-se dizer maometano, sufi, judeu, budista, hinduísta, o que ele bem entender. Dizer que é católico, afirmando coisas absolutamente contrárias à doutrina católica, isso não!
Se ele se apresenta como católico, sem o ser, e se, sob essa capa, pretende passar adiante, na nave da Igreja, uma doutrina gnóstica, como sendo católica, qualquer ‘marujo’ católico tem a obrigação de gritar "fogo gnóstico a bordo". E se, por isso, ele quer dar um tapa na cara de quem grita "Fogo!", fica bem claro, então, que sua intenção era mesmo a de incendiar o barco.
O sr. Olavo de Carvalho não é católico, mas afirma que também é católico. Basta esse "também", para demonstrar que católico ele não é.
Poderia eu, só por brincadeira, parodiar seu Olavo no Jardim das Aflições, e dizer que tenho várias razões para criticar os escritos dele.
"A primeira é que, apesar da veemência com que contesto aqui as idéias" gnósticas de Olavo de Carvalho, "nada digo contra a sua pessoa". Ao contrário do que ele faz comigo, injuriando-me pessoalmente. Viso apenas suas idéias heterodoxas.
A segunda razão é que a ira "de um filósofo - ou de um pretenso filósofo - não torna verdadeiras as idéias falsas que tenha defendido, nem exime do dever de contestá-lo, para defesa e esclarecimento dos vivos".
"A terceira razão é que aquilo que possa ter havido de maligno na influência" dos escritos de Olavo sobre o público, não veio dele enquanto indivíduo, mas enquanto membro atuante de um grupo; grupo este - o dos esotéricos seguidores da "Metafísica" "Tradicional", leia-se Gnose - que continua vivo", embora passe mal... (Cfr. Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições, p. 32-33).
Se Olavo se dá o direito de criticar outros "hidrofobamente", por que não se pode criticá-lo educadamente, embora com ironia?
Estava redigindo esta resposta ao AVISO 2 do sr. Olavo de Carvalho, quando me enviaram um novo AVISO dele.
Era o de número 3.
Olavo já prometeu diversas vezes que não se ocupará mais de mim, mas, como já notei, ele, como "la donna é mobile, qual piuma al vento"... della rabbia. E "mutta d’accento, non di pensiero...".
E também não de "rabbia".
Esse AVISO 3 demonstra que ele mesmo achou os seus dois primeiros AVISOS nada suficientes. E essa repetição de AVISOS insultuosos indica que ele não conseguiu digerir nem a sua raiva impotente, nem responder com suficiência.
Ainda esperançado, fui ler o tal AVISO 3, pensando que encontraria lá - além dos costumeiros insultos de botequim, é claro - as duas informações que solicitara dele:
1) Qual é a religião de Olavo de Carvalho?
2) Admite Olavo que a doutrina de Guénon é gnóstica?
Fui, pois, ler o tal Aviso 3. Quem sabe, encontraria uma resposta, ainda que pouco civilizada.
Vã esperança!
Qual nada!
Resposta séria, nenhuma.
No AVISO 3 de Olavo de Carvalho, de novo, só encontrei novos insultos, e um delírio: o de que eu lhe estabelecera um prazo para resposta.
Delírio, sim, porque nunca fixei prazo nenhum para ele me responder. Apenas, tendo passado um tempo razoável, deduzi que ele não me responderia. Como até hoje não respondeu: só insultou, ameaçou que eu constataria ter me "cortado o pescoço", e que, se não fosse o Código Penal, me daria "um tapa na cara", e outras amabilidades próprias de um "intelectual" autodidata... de botequim.
Não lhe dei prazo, e não aceito prazos da parte dele.
Escreverei, usando o tempo que quiser, primeiramente, esta resposta analisando a doutrina de Guénon, provando que ela é gnóstica. Ao mesmo tempo, porque é interessante para ajudar alguns, analisarei a obra chatíssima e a doutrina abstrusamente gnóstica do próprio Olavo de Carvalho, doutrina que ele pretende que seja uma preparação e uma introdução à do gnóstico Guénon.
Depois, quando me aprouver, farei uma pequena biografia de René Guénon, para que os alunos de Olavo conheçam muita coisa que ele omitiu, na biografiazinha de Guénon que ele publicou na horrível revistinha esotérica Planeta, que mais parecia um gibi.
Ficará então bem claro que o sr. O de C., de fato, difundiu especialmente as idéias "tradicionalistas" e "metafísicas" de Guénon.
Você me ponderará, meu prezado Felipe, que ele se separou um tanto de Guénon, para seguir mais a Frithjof Schuon.
O que não muda praticamente nada no problema em foco, porque Schuon também é um gnóstico confesso, e que além de ser sufi, foi também discípulo de Guénon, e... etc... E cada etc!
Por enquanto, pedirei que deixem estes AVISOS registrados em nosso site, porque faço questão que o público conheça o nível intelectual de Olavo, através de suas injúrias...
←I - 7. Olavo de Carvalho e os "tradicionalistas" esotéricos
Foi Olavo quem iniciou este debate, saindo em defesa de René Guénon que eu atacara como gnóstico. Defendendo-o doutrinariamente, ele admitiu que aceitava pelo menos o núcleo do guénonismo.
Ele chegou a afirmar que Guénon é um dos maiores vultos espirituais de nosso tempo e da História:
"Os grandes homens do século XX estiveram no campo do saber, não no da ação. Edmund Husserl é maior que Hegel ou Kant. Poucos séculos tiveram homens espirituais da altura de René Guénon, Râmana Maharshi e Franz Rosenzweig." (Entrevista de Olavo de Carvalho ao Embaixador Caius Traian Dragomir, http://www.olavodecarvalho.org/textos/dragomir.htm. O negrito é meu).
Aliás, como já lembrei, ele de tal modo acata as doutrinas de Guénon - embora diga que lhe faz algumas restrições - que escreveu:
"Julgamos que este trabalho seria um comentário e prolongamento - ou, de outro ponto de vista, uma introdução - à majestosa exposição de doutrinas tradicionais empreendida neste nosso século sobretudo por René Guénon, Ananda K. Coomaraswami, Frithjof Schuon, Titus Burckhardt, Seyyed Hossein Nasr e Martin Lings" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, Ed. Nova Stella, São Paulo, 1986, p. 8).
Ora, pretender fazer isso não é querer ecoar, reproduzir, refletir ou endossar as teses de Guénon e de seus seguidores, coisa que ele nega ter feito no AVISO 3?
Negar isso, seria uma contradição delirante.
Sim, porque todos esses nomes citados por ele são de discípulos ou de seguidores de Guénon, pelo menos durante certo tempo, e que difundiram as teses "tradicionalistas" e "metafísicas" do maçon, sufi, hinduísta e gnóstico René Guénon (Cfr.Antoine Faivre, O Esoterismo, Papirus Editora, Campinas, 1994, p. 103). Aliás, o próprio Faivre é apresentado como tendo recebido, pelo menos, alguma influência dele. (Cfr, Antonio Carlos Carvalho, Um homem simples: René Guénon, Introdução ao livro de René Guénon: A Crise do Mundo Moderno, Editorial Vega, p. 25)
E O de C. se afirma um entusiasta de temas islâmicos, sufis e hinduístas, citando sempre com admiração os que são reconhecidamente gnósticos:
"Sou aficionado de temas islâmicos e retorno sempre aos livros de Ibn Arabi, René Guénon, Henry Corbin, Frithjof Schuon, Titus Burckhardt, Seyyed Hossein Nasr." ("O Brasil tem filósofo", Entrevista de Olavo de Carvalho a Gramática On line, http://www.olavodecarvalho.org/textos/temfilosofo.htm. O negrito é meu).
E Titus Burckhardt nos informa que:
"Muhyi-d- Dîn ibn Árabi, ‘o grande mestre’ (ash-sheikh al- akbar) da gnose islâmica, em quem nós encontramos a mais vasta concepção dos princípios herméticos, concebe a natureza universal como o aspecto feminino ou materno do ato criador" (Titus Burckhardt, Alchimie, Thot, Milão, 1974, p. 116. O negrito é meu. O itálico é do autor).
Não só Olavo é um entusiasta desses temas e desses autores, mas afirma que deve muito a eles:
"Devo muito, no entanto, aos estudos de religião comparada e simbólica tradicional (René Guénon, Frithjof Schuon, Titus Burckhardt, Seyyed Hossein Nasr) e às noções de alquimia natural e espiritual que recebi de dois amigos, Juan Alfredo César Müller e Michel Veber" (Olavo de Carvalho, entrevista ao Embaixador Caius Traian Dragomir - novembro de 1998).
Veremos que todos esses autores são adeptos da Gnose.
Passemos, agora, a responder às migalhas de defesa dele, existentes nos AVISOS 2 e 3.
←II - Guénon, Gnose, Guénonianos Gnósticos e Olavo de Carvalho
←II - 1. A Terminologia usada pelos autores esotéricos é uma confissão de Gnose
Como dissemos, o sr. O de C. abraçou a defesa de René Guénon escrevendo-me uma carta contraditória. E, agora, recusa dizer se Guénon é gnóstico ou não. Durante muito tempo, em suas obras, o sr. O de C. se apresentou como autor "Tradicionalista", defensor da "Metafísica" guénoniana, "Esotérico", adepto da "Philosofia Perennis" (Filosofia Perene), apologista dos "Grandes Mistérios" e do que ele e Guénon chamam também de "Sabedoria":
"(...) os primeiros princípios são conhecidos por um método próprio, que é o método da sabedoria ou gnose" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião p. 24. O negrito é meu).
E Olavo diz que sábio é o gnóstico:
"Para o sábio ou gnóstico, conhecer é ser, e vice versa" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, Nova Stella, São Paulo, 1986, p. 26).
Se Olavo identifica sábio com o gnóstico, então é claro que para ele a Sabedoria é a Gnose.
Veremos adiante que todos esse termos, postos em negrito, têm o significado de Gnose. Como aliás, ele mesmo confessou ao identificar Philosophia Perennis com Gnose, em seu Texto-Confissão.
Mas, para provar que ele mesmo não é difusor da Gnose, Olavo de Carvalho começa enumerando quatro pontos fundamentais dessa doutrina herética, e três desenvolvimentos dela. Tudo isso - os quatro itens e os três desenvolvimentos - mais parecendo copiados de uma enciclopédia popular, tipo Barsa ou Tesouro da Juventude, ou de algum site da Internet, do que da lavra de O de C., pois, curiosamente, os quatro itens que ele menciona não parecem ter o seu estilo.
A Gnose é um fenômeno religioso bem mais complexo do que estes quatro itenzinhos em que o sr. Olavo de Carvalho a resume. Há sistemas gnósticos muito complicados, e cada seita apresenta delírios muito próprios e originais. E até contraditórios. Basta ler os livros gnósticos encontrados em Khénoboskion, ou o Adversus Haereses de Santo Irineu, ou o Panarion de Santo Epifânio, ou as grandes obras dos especialistas em Gnose, para ver como as seitas gnósticas são complexas. Veja-se, por exemplo, que a Kabballah é reconhecidamente a Gnose judaica, e, entretanto, ela não é contra o casamento e a procriação, como o são normalmente as seitas gnósticas.
O sistema gnóstico de Guénon, para dar outro exemplo, mistura conceitos hinduístas e sufis, além de idéias gnósticas retiradas de vários sistemas, e que ele amalgamou no que ele chama de "Tradição" ou "Metafísica", revelação divina primordial, que teria sido recebida por homens historicamente desconhecidos...de superiores ainda mais misteriosos, e ainda mais desconhecidos.
Delírio... E delírio gnóstico.
←II - 2. Guénon já fora acusado de ser adepto da Gnose
Será que ninguém percebera, ainda quando Guénon estava vivo, que ele defendia e propagava a Gnose?
É claro que isto não poderia ter passado desapercebido. Não faltaram os que o acusaram de ser um defensor da Gnose.
Quando Guénon foi acusado de ser gnóstico, ele também, como Olavo, ficou muito irritado, pois ficava desmascarado ante o público diante do qual pretendia passar por católico e "tradicionalista". (E há certos católicos, que, basta alguém se dizer "tradicionalista", para que o considerem quase como "canonizado"...Foi assim que Guénon conseguiu "cooperar", mesmo sendo maçon, em revistas católicas anti maçônicas!)
Para defender-se da acusação de ser um gnóstico, Guénon escreveu:
"Esta deformação grega de idéias orientais incompreendidas - [o gnosticismo] - é o que menos o [me] interessa no mundo", e ele assinalará, de outro lado, que vigiou cuidadosamente em se abster de empregar essa própria palavra ‘Gnose’ - "apesar de sua perfeita equivalência com o sânscrito jñãna", contentando-se com o termo "metafísica" ou, a rigor, "conhecimento", movido sempre pelo "desejo de afastar tudo o que trouxesse risco de ser mal compreendido, na medida em que é possível prevê-lo" (René Guénon, carta a Noële Maurice-Denis, apud Marie France James, Ésoterisme et Christianisme. Autour de René Guénon, Nouvelles Éditions Latines, Paris, 1981, pg. 203).
E quem acusara Guénon de ser um adepto da Gnose?
Fora Jacques Maritain que sugerira a Noële Maurice-Denis que colocasse em um seu trabalho o seguinte parágrafo, que ela adotou:
"R. Guénon quereria que o Ocidente degenerado fosse pedir ao Oriente lições de metafísica e de intelectualidade. É somente no contrário, na sua própria tradição e na religião de Cristo, que o Ocidente encontrará a força de se reformar a si mesmo na verdadeira ordem, e a força de ensinar a orgulhosa sabedoria do Oriente. E se o pseudo orientalismo teosofista, cuja propaganda inunda atualmente o Ocidente, representa para a inteligência uma ameaça de deliqüescência e de corrupção radical, é preciso confessar que o remédio proposto pelo sr. Guénon, - falando claro, uma renovação hinduísta da antiga Gnose, mãe das heresias - só seria própria a agravar o mal" (Apud Marie F. James, op. cit. p. 198. O negrito é meu).
Então, não sou o primeiro a ver na obra de René Guénon a Gnose. Um filósofo mundialmente conhecido, e insuspeito de ser conservador ou católico integrista, (até pelo contrário, um homem bem simpático ao modernismo), Jacques Maritain, acusou Guénon de ser um gnóstico, e de difundir muito pouco veladamente, a mãe de todas as heresias, a Gnose. E a amiga de René Guénon, Noële Maurice-Denis, embora mais tarde, por preocupação de amizade, tenha procurado atenuar a acusação, adotou o parágrafo escrito pela própria mão de Maritain: Guénon era um adepto da mãe de todas as heresias: a Gnose.
E não digo isso para assustar os alunos do sr. Olavo de Carvalho, mas para lhes dar informações que o sr. Olavo não lhes dá.
Portanto, para Guénon, as palavras "Metafísica", "Conhecimento" - e poderíamos acrescentar "Tradição" ou "Grandes Mistérios", como escrevi em carta anterior, citando Martin Lings - significam Gnose, termo este que Guénon cuidadosamente evita, para não ser desmascarado como gnóstico.
Vejamos o que disse o próprio Guénon sobre Gnose:
←II - 3. Guénon e seus seguidores confessam que são Gnósticos
"Por Gnose aqui se deve entender o Conhecimento tradicional que constitui o fundo comum de todas as iniciações, cujas doutrinas e símbolos foram transmitidos, desde a mais remota antigüidade até nossos dias, através de todas as Confraternidades secretas, cuja longa corrente jamais foi interrompida" (René Guénon, in Études sur la Franc Maçonnerie et le Compagnonage, T. I, p.257, apud Jean Robin, René Guénon, Testimone della Tradizione, ed Il Cinabro, Catania 1993, p.167. Tradução e negrito são nossos).
E esse texto também é uma confissão.
Portanto, quando Olavo de Carvalho, adepto de Guénon, fala em Conhecimento Tradicional, deve-se entender Gnose.
Note-se bem: Guénon afirma que a Gnose jamais foi interrompida. Portanto - "et pour cause" - nem pelas seitas gnósticas dos primeiros séculos do cristianismo, é claro! Também o "gnosticismo" - é óbvio - adotava a Gnose.
Guénon previne ainda que o Conhecimento (a Gnose) não pode ser alcançado pela razão:
"Não insistiremos aqui sobre a distinção entre razão e intelecto puro e supra individual, distinção que, ao menos teoricamente, foi reconhecida também por certos filósofos ocidentais antigos, como Aristóteles e os escolásticos, os quais, porém, não parecem ter tirado dela todas as conseqüências. Diremos apenas que o conhecimento metafísico ou espiritual, no verdadeiro sentido da palavra, sendo de ordem universal, seria por definição impossível a nós todos, se no ser humano não houvesse uma faculdade da mesma ordem e da mesma dignidade, portanto, transcendente com relação ao indivíduo. E esta faculdade nós a chamamos intuição intelectual" (René Guénon, Além do Plano "Mental", artigo publicado no "Il Regime Fascista", "Diorama", em 16 de Julho de 1939, in Precisazioni Necessarie, Edizione Il Cavalo Alato, Salerno, 1988, p.127).
Esta citação é preciosa doutrinariamente, pois que afirma a existência de uma faculdade no homem de ordem "metafísica" e supra individual, que não deve ser confundida com a razão.
É também muito importante para informar os ingênuos que René Guénon colaborou numa revista fascista. Ele publicou nessa revista mussoliniana 25 artigos desde 1934 até 1940, quando a guerra interrompeu a colaboração.
É muito bom que os leitores de Olavo de Carvalho saibam que Guénon - em cuja defesa Olavo saiu a campo - era colaborador de uma revista Fascista.
Outra prova de que Guénon identificava Tradição primordial com Gnose pode ser encontrada no livro Formes Traditionnelles et Cycles Cosmiques, ao tratar ele da Cabala:
"O termo Qabbalah [Cabala], em hebreu, não significa outra coisa senão "tradição", no sentido o mais geral; e, se bem que ele designe mais habitualmente a tradição esotérica ou iniciática, quando é empregado sem maior precisão, acontece por vezes também que ele seja aplicado à própria tradição exotérica" (René Guénon, Formes Traditionnelles et Cycles Cosmiques, Gallimard, Paris, 1970, p. 61).
E Guénon previne que usa esse termo para designar a tradição especificamente hebraica; porém, mais adiante, ele esclarece que, embora ele não concorde com Paul Vulliaud no identificar Cabala com misticismo judaico, aceita que seria sustentável identificar Cabala com Gnose:
"Sem dúvida isto depende do sentido que se dá à palavra [misticismo], e este que ele [Vulliaud] indica (o qual faria dele quase que um sinônimo de "Gnose" ou conhecimento transcendente) seria sustentável se não se tivesse senão a preocupação da etimologia, porque é exato que "misticismo" e "mistério" têm a mesma raiz" "Para nós, a Kabbala é muito mais uma metafísica do que uma filosofia, e ela é bem mais iniciática do que mística(...)" (René Guénon, Formes Traditionnelles et Cycles Cosmiques, p. 93).
E Guénon considera a Tradição primordial como sinônimo de Metafísica e não de Filosofia. Logo, para ele, Cabala é Gnose, porque pode ser tomada como tradição iniciática e esotérica, como a Tradição primeva, isto é, a Gnose.
Outro autor também elogiado por Olavo, Seyyed Hossein Nasr, chamou a "metafísica" de Gnose, no sentido "tradicional":
"Na tradição islâmica, após muitos séculos através dos quais as várias perspectivas se formaram, se desenvolveu uma situação que demonstra totalmente o papel e função da filosofia, da teologia e da metafísica ou gnose num contexto tradicional." (Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, pág. 81.O negrito é meu).
Esse mesmo autor, Nasr - que Olavo admira e recomenda - diz que Shankara e Rumi são mestres da Gnose:
"A obra de mestres da gnose tais como Sankara e Jalal al-Din Rumi pertencentes a dois tipos de tradições muito diferentes exemplifica o casamento entre sabedoria da ordem mais elevada e beleza de expressão." (Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, p. 275, nota 5.O negrito é meu).
E Frithjof Schuon, outro mestre de Olavo, diz que:
"...a perspectiva de Shankara é uma das mais adequadas expressões possíveis da philosophia perennis ou do esoterismo sapiencial." (Frithjof Schuon, O Esoterismo como Princípio e como Caminho, Ed. Pensamento, p. 14)
Ora, O de C. escreveu sobre Shankara:
"Recebi ainda o impacto decisivo da doutrina vedantina, da qual tomei conhecimento por Swami Dayananda Sarasvati, diretor da Academia de Estudos Védicos de Bombaim, que eu e alguns companheiros trouxemos ao Brasil para dar conferências e se tornou um grande amigo do nosso país. Ele me pôs na direção certa em que devem ser lidas as obras de Shankaracharya, provavelmente o mais alto espírito metafísico que já habitou este mundo." (Entrevista de Olavo de Carvalho ao Embaixador Caius Traian Dragomir, em <http://www.olavodecarvalho.org/textos/dragomir.htm>, grifo nosso).
O de C, confirma sua adesão e simpatia a esses autores gnósticos assim como a doutrinas gnósticas ao dizer, numa entrevista:
"Preferências: Livro - A Bíblia e o Corão, as escrituras hindus no comentário de Shânkara, (...)" (A filosofia não é para os tímidos, Entrevista de Olavo de Carvalho a Zora Seljan, Jornal de Letras, da Academia Brasileira, julho de 2000, http://www.olavodecarvalho.org/textos/timidos.htm. O negrito é nosso).
←II - 4. Gnose e gnosticismo
Todos esses gnósticos tradicionais teimam em distinguir a Gnose dos primeiros tempos do cristianismo da Gnose "em contexto tradicional". Ora, ambas têm o mesmo conteúdo e o mesmo sentido: a salvação de uma partícula divina que existiria no homem, por meio do conhecimento (Gnose).
Schuon pretende dar uma "explicação" sobre este problema - distinguindo "Gnose Tradicional" do gnosticismo dos primeiros séculos do cristianismo - explicação ou lição que Olavo segue docilmente:
"Enfim, resta um outro equívoco a elucidar de uma vez por todas: a palavra "gnose", que aparece neste livro como em nossas obras precedentes, refere-se ao conhecimento supra racional - portanto, puramente intelectivo - das realidades metacósmicas; ora, este conhecimento não se reduz ao "gnosticismo" histórico, sem o que seria preciso admitir que Ibn Arabi ou Shankara tenham sido "gnósticos" alexandrinos; em suma, não se pode tornar a gnosis responsável por cada associação de idéias e por cada abuso de linguagem. É humanamente admissível não crer na gnose, mas o que não é absolutamente admissível é, quando se pretende conhecer este assunto, classificar sob este vocábulo coisas que não têm nenhuma relação - nem sob o ponto de vista do gênero, nem quanto ao nível - com a realidade da qual se trata, qualquer que seja, aliás, o valor que se lhe atribui. Em vez de "gnose", nós poderíamos também dizer em árabe ma’rifah, ou em sânscrito jñana, mas nos parece bastante normal usar um termo ocidental, dado que escrevemos numa língua do Ocidente; (...)" (Frithjof Schuon, Comprendre l ‘Islam, Ed. du Seuil, Paris, 1976, pp. 136-137).
E em nota ao pé de página, esclarece Schuon:
"Se nós não "reduzimos" o sentido da palavra [Gnose] a este sincretismo, nós admitimos entretanto que, de toda evidência e por razões históricas, se chamem de "gnósticos" também os hereges designados convencionalmente por esse termo" (F. Schuon, Comprendre l ‘Islam, p. 137, nota 1).
Em primeiro lugar, o próprio Schuon - nessa nota 1 - admite que o "gnosticismo" antigo pode ser considerado como seguidor da Gnose.
Segundo, a doutrina das seitas gnósticas cristãs é a mesma que a da chamada "Gnose Tradicional de Guénon e quejandos.
Terceiro, as maiores autoridades no tema, como já aludimos, consideram que não cabe distinguir mais entre Gnose e gnosticismo:
"No sentido restrito que tinha inicialmente a palavra "Gnose" se substitui um sentido largo, que amplifica e engloba o primeiro; de início reduzido às dimensões de uma heresia, cujo estudo, a este título, pertencia propriamente à História da Igreja e que não podia ter se formado senão no interior do Cristianismo e posteriormente a seu aparecimento, o gnosticismo atinge agora as proporções de um fenômeno geral da História das religiões, ultrapassando de muito, por sua extensão, os limites e o campo do cristianismo antigo, e exterior, senão anterior, a ele por suas origens. Deste fenômeno, as gnoses cristãs heterodoxas não representam mais senão uma expressão entre muitas outras; falando propriamente, elas não são heresias imanentes ao cristianismo, mas os resultados de um encontro e de uma junção entre a nova religião e uma corrente de idéias e sentimentos que existia antes dela e que lhe era primitivamente estranha e o permanecerá na sua essência. A Gnose revestiu aqui formas cristãs, ou, que, com o tempo, se tornaram cada vez mais profundamente cristianizadas, da mesma forma que ela tomou em outros lugares formas pagãs adaptando-se às mitologias orientais, aos cultos de mistérios, à filosofia grega ou às ciências e artes ocultas" (Henri-Charles Puech, En Quête de la Gnose, Gallimard, Paris, 1978, vol. I, pp. 187-188).
Quarto, supor que os gnósticos dos primeiros séculos do cristianismo tenham sido os primeiros gnósticos da História é cometer um erro infantil. A Gnose é conseqüência de uma falsa colocação do espírito humano diante do problema do ser, e ela pode ocorrer em qualquer época, sem ligação histórica direta com outros sistemas gnósticos. Houve Gnoses antes do gnosticismo cristão dos primeiros séculos de nossa era. Os sistemas religiosos hindus são anteriores ao gnosticismo e entretanto, são gnósticos também. Houve, ainda antes de Cristo, Gnose na Pérsia, no Egito antigo, e na China, por exemplo.
Já existia uma Gnose, mesmo entre os judeus, e em tempos anteriores a Cristo. Gerschom Scholem afirma que no período do segundo Templo, já se infiltrara um pensamento esotérico entre os judeus, esoterismo que dará origem à Cabala, a Gnose dos judeus (Cfr Gershom Scholem, A Mística Judaica - (Major Trends in Jewish Mysticism), Perspectiva, São Paulo, 1972, p. 41).
Todas essas Gnoses, embora diferindo entre si em pormenores, apresentavam a mesma estrutura de pensamento e o mesmo esquema religioso da Gnose dos primeiros séculos e da Gnose ‘tradicional" guénoniana.
Os estudiosos da Gnose reconhecem isso (Cfr. Simone de Pétrement, Le Dualisme chez Platon, les Gnostiques et Manichéens, que cita Harnack, PUF, Paris, 1947, p. 134; Hans Jonas, Gnosis und spätantiker Geist, p. 1, citado por S. de Pétrement; a mesma tese de que houve Gnoses antes do cristianismo está em R. P. Festugière La Révélation d’Hermès Trismegiste, Paris, Lecoffre et Gabalda ed., 1954, IV vol. p.3; Gerschom Scholem admite que havia uma Gnose judaica pré cristã: Jewish Gnosticism, Merkabah Mysticism P. 4 e 5, assim como em G. Scholem, Les origines de la Kabbale, Aubier- Montaigne, paris 1966, p. 30 e pp. 41-42; G. Scholem, A Mística Judaica (Major Trends in Jewish Mysticism), Ed Perspectiva, São Paulo, 1972, p. 48).
Ainda agora, acaba de ser publicado um livro do Cardeal Ratzinger - que acabo de receber - no qual, se trata da Gnose, identificando-a, é claro, com Gnosticismo. Nesse livro, o Cardeal Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé (o ex Santo Ofício, do qual não sou membro terceirizado) diz:
"Dado que o conhecimento (= gnose) é a verdadeira força da redenção e portanto também a forma mais alta de elevação, isto é, de união com a divindade, esses sistemas de pensamento e essas doutrinas religiosas - por outro lado, muito diversas entre si - são definidas como "gnósticas".
E pouco adiante, diz O Cardeal Ratzinger: "Também hoje o gnosticismo torna a exercer seu fascínio em muitos modos; as religiões do extremo Oriente trazem em si a mesma estrutura fundamental" (Cardeal Joseph Ratzinger, Introduzione allo Spírito della Liturgia, Edizioni San Paolo, Milano, 2.001, p. 28. O negrito é meu).
Não poderia ter sido mais providencial este livro que acaba de sair quentinho do forno: ele não só identifica Gnose e gnosticismo, como afirma que as religiões do extremo Oriente (Taoísmo, Hinduísmo e Budismo), tão admiradas pelos adeptos da "tradição primeva", tem estrutura fundamental gnóstica.
←II - 5. Esoterismo e Gnose
Do mesmo modo Schuon - autor recomendado e elogiado por O. de C. - escreveu que o que ele chama de Philosofia perennis é a Gnose, e que o esoterismo que ele defende é a Gnose.
"O que nós temos em vista, neste livro como nos precedentes, é, afinal de contas, a scientia sacra ou a philosophia perennis, a gnose universal que sempre existiu e que sempre existirá" (Frithjof Schuon, Comprendre l ‘Islam, ed. du Seuil, Paris, 1976, Avant propos, p. 7. O negrito e sublinhado são meus; os itálicos são do autor).
"Além disso, nosso interesse pelos esoterismos históricos - tais como o pitagorismo, o Vedanta shivaíta, o Zen - é menor do que o interesse pelo esoterismo em si que, com satisfação, denominaríamos philosophia perennis, sendo por si mesmo independente das formas particulares por constituir a sua essência." (Frithjof Schuon, O Esoterismo como Princípio e como Caminho, Ed. Pensamento, pág. 1.O negrito é meu).
E, mais adiante, acrescenta Schuon:
"Quanto ao esoterismo em si, que não é outro senão a gnose, devemos lembrar duas coisas, embora já as tenhamos mencionado em duas outras ocasiões." (Frithjof Schuon, O Esoterismo como Princípio e como Caminho, Ed. Pensamento, pág. 19.O negrito é meu).
O próprio Olavo de Carvalho concorda que esoterismo é o mesma coisa que Philosophia Perennis:
"Já o esoterismo, ao contrário, sendo um único em sua essência (ele é a Philosophia Perennis, a verdade metafísica una, eterna, supraformal e transcendente), varia entretanto nas distintas formas históricas que o expressam, havendo, portanto, um esoterismo cristão, um islâmico, um judaico, etc. "(Olavo de Carvalho, À procura da Pérola Viva Conhecimento Revelado: O Esoterismo Cristão, in Planeta, n* 108, Setembro de 1981).
(E não esqueçamos que em seu Texto - Confissão O de C. admitiu que Philosophia Perennis é a Gnose).
Ora, o esoterismo tem como um de seus elementos fundamentais a Gnose.
É o que se lê em Antoine Faivre:
"Mais do que as práticas propriamente ditas, é o conhecimento - no sentido de "gnose’-- que parece contribuir para fundamentar a noção de atitude esotérica;" (Antoine Faivre, O Esoterismo, Papirus editora, Campinas, 1994, p.18).
E Luc Benoist-- outro seguidor de Guénon - afirma que "O esoterismo, que como vamos ver, toma para revelar-se-nos o canal metódico da iniciação, tem por objeto libertar o homem dos limites de seu estado humano, tornar efetiva a capacidade que ele recebeu de alcançar os estados superiores de forma ativa e duradoura graças a ritos rigorosos e precisos" (Luc Benoist, El esoterismo, tradução de Fr. Garcia Barzán, Ed Nova Buenos Aires, 1967, p. 4).
E tanto o sr. Olavo - quanto René Guénon - se disseram esotéricos. Portanto, ambos são gnósticos.
E Schuon escreveu:
"O conhecimento direto e interior, o do Coração - Intelecto, é o que os gregos denominavam gnose; a palavra 'esoterismo' - segundo sua etimologia - designa a gnose, na medida em que está de facto subjacente às doutrinas religiosas, portanto dogmáticas." (Frithjof Schuon, O Esoterismo como Princípio e como Caminho, Ed. Pensamento, págs. 11-12. O negrito é nosso)
Conforme Schuon, então, haveria um núcleo subjacente a todas as religiões, e que seria a Gnose.
Está aí. Para Schuon, Esoterismo = Filosofia Perene = Gnose.
Olavo expressou o mesmo pensamento quanto a essa fórmula.
Ousará ele negar o que ele mesmo escreveu?
Sim, Olavo de Carvalho "ecoou" essa mesma doutrina: O aflito Olavo - o "pai" do Imbecil Coletivo" - repetiu essa mesma doutrina, quando escreveu:
"O esoterismo é a ciência universal por excelência, é o conhecimento e a realização da unidade (...)". (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, ed. Nova Stella, São Paulo, 1986, p. 11. O negrito é meu)
O Esoterismo transmitiria pelo conhecimento a verdadeira Sabedoria ou Gnose. Vejamos, inicialmente que é essa "Sabedoria" à qual os "tradicionalistas" dão vários nomes, analisando, depois, o que eles entendem por conhecimento.
←II - 6. "Sabedoria" e Gnose
Para Olavo, "os primeiros princípios são conhecidos por um método próprio, que é o método da sabedoria ou gnose" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 24. O negrito é meu).
E eis aí uma nova confissão.
Essa sabedoria ou Gnose é que seria o núcleo de todas as religiões, a "Sofia Perennis", o objeto da "Philosophia Perennis". Por isso, ele usa essa última expressão como idêntica a ‘Unidade transcendente das religiões", pois ele escreveu: "philosophia perennis, ou unidade transcendente das religiões" (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, ed. Nova Stella, São Paulo, 1986, p. 75).
É o que ele confirma no Prefácio desse mesmo livro:
"Todos os estudiosos de religiões comparadas do mundo, com quase nenhuma exceção, utilizam o termo "Tradição" como sinônimo de Sanathana Dharma, de Lei Perennis, de Sophia Perennis, de Al-Hikmat al- illahiya - para designar o número de princípios metafísicos que é comum a todas as religiões do mundo, (...)"(Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, ed. cit. p. 7).
Esse texto de Olavo é uma terceira confissão. Ele diz que Tradição é sinônimo de Al-Hikmat al - ilahya. Ora, que significa essa expressão árabe?
"Lembramos de novo que a palavra théosophie é tomada aqui em sentido etimológico da palavra grega "teosofia" cujo eqüivalente literal em árabe é hikmat ilahîa, Sohrawardi o entende no sentido da palavra ‘irfan (um conhecimento que é gnose). Ela põe em ação não uma representação conceitual e abstrata das coisas, mas uma percepção direta (kashf), uma presença real (hodur, hozûr) dos mundos espirituais." (Henry Corbin, En Islam Iranien, Gallimard, Paris, 1971, Vol. III, p. 9, nota 1).
Portanto, o próprio Olavo, usando o termo Tradição como sinônimo de Al- Hikmat al - Ilâhya, confessa que, para ele, Tradição significa Teosofia, ou com Sohrawardi, Gnose.
É o que afirma ainda outro autor esotérico:
"Essa sabedoria eterna da qual a idéia de tradição não pode ser divorciada e que constitui um dos componentes principais do conceito de tradição é precisamente a sophia perennis da tradição ocidental, que os hindus chamam de sanatana-dharma e os muçulmanos de alhikmat al-khalidah (ou javidan khirad em persa)." (Nasr, Seyyed Hossein, "Knowledge and the Sacred", pág. 68. O negrito é meu).
Nasr nos dá aí um verdadeiro poli dicionário:
Sabedoria eterna = Tradição = Sophia Perennis = Sanathana Dharma = Al hikmat al-khalidah = Javidan khirad.
E todas essas expressões significam GNOSE.
Em "A Unidade Transcendente das Religiões", Schuon fala da "ortodoxia universal, a Sanâtana-Dharma dos hindus" (pág. 24. O negrito é meu).
O mesmo Schuon confirma que a expressão Sophia Perennis significa para os esotéricos Gnose, como veremos pouco adiante.
Não há, então dúvida: Olavo de Carvalho usa o termo Tradição como substituto da palavra Gnose. E se ele usa expressões árabes e sânscritas para substituir (ou esconder?) a palavra Gnose, isso demonstra um desejo de "velar" seu pensamento. Para um esotérico, isso é natural.
Tendo considerado tudo isso, fica claro que ao pensamento de Olavo de Carvalho se aplica perfeitamente o que diz Antoine Faivre sobre o esoterismo tradicionalista e o estudo comparado das religiões:
"Trata-se de uma tendência que consiste em querer estabelecer denominadores comuns entre duas ou mais religiões diferentes, até entre todas as tradições, com a esperança de se obter uma iluminação, uma gnose, de qualidade superior"(...) "A concordância de que se trata aqui é de outra natureza. Pretende-se mais criadora, concerne à iluminação individual pelo menos tanto quanto à coletividade, exprime a vontade não apenas de eliminar as diferenças ou de descobrir as harmonias entre diversas tradições religiosas, mas sobretudo de adquirir uma gnose que abrase e abrace num mesmo cadinho diversas tradições para revelar - no sentido, diríamos, fotográfico do termo - ao homem de desejo a imagem do tronco vivido e escondido do qual todas as tradições particulares seriam apenas os ramos visíveis. Essa tendência assume a partir do século XIX uma forma acentuada em decorrência de um melhor conhecimento do Oriente e depois graças à influência de uma disciplina nova, as "religiões comparadas", a ponto de os defensores do tradicionalismo, aqueles que são chamados em inglês os perennialists, chegarem a postular e ensinar que existiria uma "Tradição primordial" dominando todas as outras tradições religiosas ou esotéricas da humanidade" (Antoine Faivre, O Esoterismo, p. 23. Os negritos são meus. Os itálicos são do autor).
A citação foi longa, mas é necessária, porque fotografa a gnose de Guénon e Olavo de Carvalho.
Olavo elogia e recomenda Schuon para seus alunos e leitores:
"É ainda nos Estados Unidos que se encontra hoje o mais poderoso núcleo de resistência ao avanço do ateísmo oficial - o que abrange desde as comunidades que se organizam contra a lei do aborto até a elite espiritual concentrada em torno de figuras como Seyyed Hossein Nasr - exilado iraniano -, Huston Smith, Victor Danner e outros, profundamente influenciada pelo pensamento de Frithjof Schuon, homem espiritual de primeiro plano e formulador do único método válido já concebido para a comparação e aproximação das religiões."
"[Nota de rodapé:] V. Frithjof Schuon, De L'Unité Transcendante des Religions, 2e. éd., Paris, Le Seuil, 1979, e Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred. The Gifford Lectures, 1981, New York, Crossroad, 1981. - Nota da 2ª ed.: O reconhecimento de minha dívida intelectual para com F. Schuon não implica de maneira alguma aceitá-lo como a espécie de guru universal ou árbitro supremo das tradições que ele de certo modo pretendeu ser." (Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições, 2a. edição, E. Realizações, pág. 308. O grifo é nosso).
Vimos que O de C. recomenda e elogia --ecoa - o pensamento de Schuon citado por Nasr. Ora, Schuon também diz que a Sophia Perennis (a Sabedoria Perene) é acessível somente aos "gnósticos", aos "pneumáticos", aos "teósofos":
"Quanto à Sophia perennis, trata-se do seguinte: há verdades inatas no Espírito humano, que apesar disso estão em certo sentido enterradas nas profundezas do 'Coração' - no puro Intelecto - e são acessíveis apenas a quem for espiritualmente contemplativo; e essas são as verdades metafísicas fundamentais. O acesso a elas é possuído pelo 'gnóstico', 'pneumático' ou 'teósofo', - no sentido original e não sectário destes termos, - e o acesso a elas era também possuído pelos 'filósofos' no sentido real e ainda inocente da palavra: por exemplo, Pitágoras, Platão e em grande parte também Aristóteles." (Schuon, "Sophia perennis": Studies in Comparative Religion; apud Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, State University of New York Press, 1989, pág. 88, nota 18).
Também Nasr diz:
"Neste estudo, gnose é sempre usada no sentido de conhecimento sapiencial ou sabedoria, como o conhecimento que unifica e santifica e não num sentido sectário como relacionada ao gnosticismo ou num sentido teológico estreito como foi empregada por certos autores cristãos primitivos que a contrastavam com sophia." (Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, pág. 50, nota 13).
Embora Schuon, citado por Nasr, tivesse dito que a palavra gnóstico era aí empregada não no sentido sectário, mas no sentido "inocente", o que ele, Schuon, afirma sobre o "Coração" ou "Intelecto", como instrumento do Conhecimento, demonstra que ele emprega o termo exatamente como a Gnose tradicional empregava esses termos: intelecto era, para a Gnose, a partícula divina no homem, o Atma, o pneuma divino, o éon. O "proprium" de que fala Ibn Arabi. E veremos isso, mais a fundo, quando estudarmos a doutrina de Guénon.
Nasr reconhece, com Guénon, que o termo sânscrito jñãna significa Gnose:
"O termo jñãna implica em conhecimento principial que conduz à libertação e está relacionado etimologicamente com gnose, a raiz gn ou kn significando conhecimento em várias línguas indo-européias incluindo o inglês." (Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, pág. 50, nota 14)
Também para este "perennialist", Seyyed Nasr, o conhecimento supremo é identificado com a Gnose, e mesmo com o maniqueísmo:
"Voltando-nos para a Ásia Ocidental, discernimos a mesma consideração do conhecimento como a chave da obtenção do sagrado e a doutrina de que a substância do próprio conhecimento é sagrada no zoroastrismo e em outras religiões iranianas como o maniqueísmo, que baseia toda a religião no objetivo de libertar, por meio do ascetismo e do conhecimento, as partículas de luz espalhadas pelo cosmos como resultado do sacrifício do homem primordial." (Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, p. 8.O negrito e o sublinhado são meus).
Certamente, todas essas citações foram de uma monotonia insuportável, mas como para mau entendedor - que evidentemente, não é você, meu caro Felipe --não basta meia palavra, achei necessário repetir as provas, citando vários autores que dizem a mesma coisa: no código dos seguidores de René Guénon, Tradição = Sophia perennis = Philosophia perennis = esoterismo = sabedoria = Gnose
←II - 7. Gnose = Conhecimento salvador
Vimos que Olavo declarou com todas as letras que "O esoterismo é a ciência universal por excelência, é o conhecimento e a realização da unidade"(...) (O de C. Astrologia e Religião, p. 11)
Que Conhecimento é esse que realiza a unidade?
Conhecimento de que?
Unidade de quê com quê?
Ele vai explicar isso em várias passagens desse mesmo livro, Astrologia e Religião. Na página 63 ele escreveu:
"O que dá sua coerência e inteireza ao conhecimento é a unidade do sujeito cognoscente, mas não no sentido Kantiano, pois não se trata aqui do sujeito individual --ou geral que é uma simples extensão do individual - e sim o sujeito identificado e reintegrado ao Absoluto; é a unidade da inteligência mesma, não enquanto manifestação individual, mas enquanto participação no Intelecto Agente, à objetividade plena portanto, e, a fortiori à verdade mesma. A unidade do mundo repousa na unidade do Intelecto, ou Logos, que é a unidade de Deus" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 63 e 64. Os negritos são meus).
Esse texto também bastaria para provar que a doutrina do sr. Olavo de Carvalho é gnóstica, pois aí ele afirma a tese central da Gnose: que pelo Conhecimento, o homem se identifica com o Absoluto, isto é, com Deus.
A doutrina que ele expõe é a da identificação, através do Conhecimento, do intelecto humano com o Intelecto de Deus, com o Logos, que é a tese central da Gnose averroísta. É também a mesma identidade das coisas do mundo com Allah, que se encontra na Gnose sufi de Ibn Arabi (Cfr. Muhyiedin Ibn Arabi, Tratado de la Unidad Risalatul Ahadiyah)
Olavo vai dizer exatamente isso, nesse mesmo livro: "É possível, ainda, passar da imagem ao conhecimento direto, se formos suficientemente fundo para dentro de nós mesmos, pois "nosso intelecto está conjunto à verdade eterna mesma" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 69).
E, para ele, podemos realizar essa união com o Absoluto, com Deus, com o Intelecto divino, pelo conhecimento, porque tudo emanou da Divindade: é da "unidade primordial, o ser, de onde emanam todas as coisas" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, ed Nova Stella, 1985, p. 75. O sublinhado é do próprio autor). Exatamente o que ensina a Gnose sufi de Ibn Arabi
No mesmo livro, ele diz: "Pelo fato de que o homem habita simultaneamente muitos planos da realidade (sic!) --sendo um ente tão corporal quanto o cálcio de seus ossos e tão espiritual quanto a inteligência divina que nele reside - sua relação com o mundo planetário não pode ser unívoca(...) " (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 49).
Ora no sentido sectário também, tanto quanto no sentido tradicional, Gnose é um conhecimento que liberta, que salva. Daí a definição de Gnose como conhecimento salvador ou libertador. É o que ensinam as autoridades nessa matéria:
"...a Gnose (do grego Gnosis, ‘conhecimento’) é um conhecimento absoluto que salva por si mesmo, ou que o gnosticismo é a teoria da obtenção da salvação pelo conhecimento" (Henri-Charles Puech, En Quête de la Gnose, Gallimard, Paris, 1978, vol I, p. 236).
"Não é arbitrário colocar um conceito geral de gnose como "conhecimento salvador" (Serge Hutin, Les Gnostiques, PUF, Paris, Que sais-je?, 1970, p. 8).
"A gnose (...é...) a religião do conhecimento, o culto do conhecimento como meio de salvação" (Simone de Pétrement, Le Dualisme chez Platon, les Gnostiques et Manichéens, PUF, Paris, 1947, p.88).
"Este é o primeiro ponto e o mais importante da definição de gnosticismo: uma religião - que salva pelo conhecimento --; conhecer, para eles, é essencialmente se conhecer, reconhecer o elemento divino que constitui o verdadeiro Si mesmo [Soi ou Self] (Robert M. Grant, La Gnose et les Origines Chrétiennes, Seuil, Paris, 1964, pp 18-19).
E repare, meu caro Felipe, que esse "primeiro ponto e o mais importante da definição do gnosticismo" - a salvação pelo Conhecimento (que Grant identifica com Gnose) - não apareceu nos 4 itenzinhos do Olavo...
E essa doutrina da salvação pelo conhecimento - Gnose - pode ser encontrada naqueles que se chamam tradicionalistas, inclusive em Olavo de Carvalho, que, como vimos acima, afirma que pelo Conhecimento o homem se une ao Absoluto, isto é, a Deus.
Dizendo isso, Olavo, repete, reproduz, ecoa a doutrina gnóstica de Guénon:
"é através do Conhecimento que se obtém a libertação"(René Guénon, Le Démiurge, in Mélanges, Centro Studi Guenoniani, Venezia, 1978, I parte, p. 33).
Guénon - de cuja doutrina O de C. pretendeu ser um eco prolongador - também escreveu :
"Do que precede resulta que o homem, na sua existência terrena, pode libertar-se do domínio do Demiurgo ou do Mundo ílico, e que essa libertação se opera mediante a Gnose, isto é, mediante o Conhecimento integral" (T. Palingenius, aliás, René Guénon, Le Demiurge, in Mélanges, Centro Studi Guénoniani, Venezia, 1978, p. 27. A tradução é nossa).
"Não há outro meio de obter a libertação completa e final que o Conhecimento; é o único instrumento que desata os laços das paixões: sem o Conhecimento não se pode obter a Beatitude" (T. Palingenius, aliás, R. Guénon, Le Démiurge, idem, p. 28).
Você repare, meu caro Felipe, que nessas duas pequenas citações do Bispo da Igreja Gnóstica Universal, Palingenius-Guénon defende alguns dos quatro itens colocados por O de C. na sua conceituação de Gnose.
E apesar disso, - ou por causa disso - O de C. pretendeu ser, senão o introdutor, pelo menos o propedeuta, o divulgador da doutrina guénoniana aqui no Brasil.
Há no texto acima de Guénon uma alusão ao mundo ílico, ou material, que aprisiona a partícula divina do homem, mundo material de que o homem se libertaria somente através do Conhecimento, isto é, da Gnose.
Notem, então, os "assustados", "perplexos" e "confusos alunos do "pai" do Imbecil Coletivo, que Olavo não pode negar que Guénon era gnóstico. Daí a sua encabulação furiosa. ou - como ele mesmo disse - "hidrófoba"...
Quer você outra citação ainda de Guénon?
Veja essa:
"De fato, a ação é propriamente a condição dos seres individuais pertencentes ao Império do Demiurgo. O Pneumático [o homem divinizado ou espiritual] ou o Sábio, é, na verdade, o que não age, mas residindo num corpo, é totalmente semelhante aos outros homens, todavia ele sabe que se trata apenas de uma aparência ilusória, e isto é suficiente a fim de que ele esteja realmente libertado da ação, já que é mediante o Conhecimento que se obtém a Libertação. Estando libertado da ação, ele não está mais sujeito ao sofrimento; este não é senão o resultado do esforço, e é nisto que consiste a assim chamada imperfeição, ainda que, na realidade, não haja nada imperfeito" (T. Palingenius, aliás, René Guénon, Le Démiurge, p. 33).
Veja que curioso: Guénon e Leonardo Boff se encontram na Teologia da Libertação, um pela via do marxismo racionalista, outro pela via da Gnose irracional.
Olavo - que pertenceu ao Partido Comunista, e que, como vimos, confessa compartilhar certos ideais da esquerda - combate Boff e apoia Guénon. Entretanto, ambos querem a Libertação do homem... Um pela Gnose. Outro pela revolução marxista do PC ou do PT. E Olavo já foi do PC. E se diz anarquista em moral...
Para Guénon, é possível ao homem alcançar "estados superiores do ser" através do que ele chama de "realização metafísica", que é "a tomada de consciência daquilo que é, de uma maneira permanente e imutável" (René Guénon, A Metafísica Oriental, ed Ivpiter, São Paulo, 1983, pp. 31, 32-33 e, esta última frase na p.30. Tradução de Olavo de Carvalho).
Portanto, essa misteriosa e pretensa "realização metafísica" seria obtida por uma " tomada de consciência do que se é", isto é, pelo Conhecimento [Gnose]. Ela se faria em três etapas:
1a) Numa primeira etapa, o homem seria restaurado em seu estado primordial, recuperando as qualidades de Adão no estado primordial, sendo liberto do tempo e do espaço. Isto seria obtido através dos Pequenos Mistérios. (Cfr. René Guénon, A Metafísica Oriental, p. 33-37 e Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 28; Astrologia e Religião, p. 75).
2ª) A segunda fase levaria o homem a "estados supra individuais" (op cit. p. 35) Nesta etapa, "o ser, que não pode mais ser dito humano, saiu doravante da "corrente das formas", segundo a expressão extremo-oriental"(René Guénon, op. cit., p. 36).
3ª) Na terceira fase, se daria "O estado absolutamente incondicionado, liberto de toda limitação" (René Guénon, op. cit., p. 37) Aí é que se daria a "realização metafísica" ou "Libertação", ou ainda "União" com o princípio supremo. (Cfr. René Guénon, op. cit., p. 37).
É a divinização do homem, pela união de seu intelecto com o Intelecto divino, realizada exatamente quando ele conhece - tem a Gnose - que, de fato, ele é o próprio Deus.
Esta é a doutrina gnóstica que Guénon expôs no Le Démiurge (Cfr. ed cit. pp. 27 a 29).
Vira e mexe, o sr. Olavo de Carvalho elogia os sufis, o Corão e Maomé
Ora o que afirma Schuon dos sufis, ele que foi um deles?
"É impossível negar que os mais ilustres sufis, ao mesmo tempo que, por definição, eram gnósticos, foram também um tanto teólogos e um tanto filósofos, ou que os grandes teólogos foram ao mesmo tempo um pouco filósofos e um pouco gnósticos, esta última palavra devendo ser entendida no sentido próprio e não sectário"(Schuon, Le Sufisme, Voile et Quintessence, Paris, 1980, p. 105; apud Nasr, Knowledge and the Sacred, p. 91, nota 46).
É claro que o sr. Olavo se apegará à distinção de Gnose no sentido sectário - das seitas dos primeiros séculos do Cristianismo e Gnose no sentido "próprio".
Só que a Gnose, no sentido das seitas dos primeiros séculos do Cristianismo, era um Conhecimento salvador, pela união do éon com o pléroma divino, e a Gnose no sentido "próprio", "tradicional", guénoniano, era o Conhecimento salvador ou libertador, pela união do intelecto com a divindade. Isto é, exatamente a mesma coisa.
E tanto era a mesma Gnose que houve quem identificasse a Gnose de Guénon com a Gnose Cátara, que é Gnose típica:
"Salientemos da mesma forma que para a Revista Internacional das Sociedades Secretas sob a pena de G. Mariani, que a obra metafísica de nosso amigo [René Guénon] (sic!) aparece como "a realização a mais notável - portanto a mais perigosa - da velha Heresia por excelência [a cátara]" (Marie France James, op. cit. p. 314. A tradução, o negrito e o sublinhado são meus).
E note, meu caro, Felipe, que Marie France James chama René Guénon de "nosso amigo" - e ela o faz freqüentemente em seu livro - o que não indica hostilidade.
Será que O de C. - que diz que leu e anotou esse livro há dez anos atrás - se esqueceu desse tom gentil da autora para com Guénon? Gostaria de crer que ele esqueceu, e que não foi uma tentativa de "induzir em falso testemunho" contra a autora tão delicada para com Guénon...mas...
Em todo caso, está aí um juízo que deve ser levado bem em conta:
A doutrina de Guénon é a realização ou renovação mais notável da velha heresia cátara, que é tipicamente gnóstica, E assim sendo, a Gnose de Guénon não se distingue da Gnose sectária, visto que o catarismo é tipicamente maniqueu.
A Gnose tradicionalista nascida de Guénon e adotada por Olavo de Carvalho e por outros sectários não se distingue da heresia Cátara, nem, portanto da Gnose sectária.
Também o Padre Élisée de la Nativité, O.F.M. afirma que a Gnose de Guénon é a mesma que a das seitas dos primeiros séculos do cristianismo:
"De um lado nosso Frade Carmelita acha "traços das idéias as mais caras a Guénon nos gnósticos do primeiro século de nossa era, em certas seitas mais vivazes da Idade Média, talvez entre os Rosa Cruz do Ocidente"(Marie France James, op. cit. p. 316).
←II - 9. Admiradores cristãos de Guénon reconhecem que a doutrina do esoterismo cristão era a da Gnose, mas que era a boa Gnose
Jean Tourniac, autor que se afirma fiel a Cristo, (op. cit., p.9) mas é bem favorável a Guénon, não nega que haja Gnose nele. Entretanto, procura demonstrar que a Gnose esteve subjacente em muitos autores e movimentos, desde a Antigüidade, e através da Idade Moderna, até os nossos dias, mas que essa Gnose, presente no que ele chama esoterismo cristão, era a boa Gnose.
Referindo-se aos movimentos gnósticos dos primeiros séculos, Tourniac diz que :
"A intervenção da doutrina ou da gnose, não é nem regressão, nem recuo, nem dissolução na "sabedoria grega", nem negação dos dogmas. Ela é, ao contrário, plenitude espiritual, inteligência da fé e valorização dos dogmas.
"É espantoso que se queira assim se privar de toda contribuição intelectiva nos inícios do Cristianismo; mas, depois de tudo, que a gnose seja uma "estranheza" para a mentalidade moderna, não tem nada de tal modo surpreendente: poder-se-ia quase adotar aqui a observação de Paul Valéry "toda visão das coisas que não é estranha é falsa" (Jean Tourniac, op. cit., p. 103).
A seguir, Tourniac afirma:
"O que convém reter, agora, é que estes dados, diretamente inspirados pela gnose, fizeram a alegria da espiritualidade ocidental medieval, prova de que eles não eram tão "heréticos" ou contrários ao Cristianismo, como se quer deixar supor em nossos dias" (Jean Tourniac, op. cit., p. 104).
Antes, ele já havia dado uma lista de esotéricos cristãos portadores desta "boa" gnose, precursora de Guénon: Mestre Eckhart Ruysbroeck, Nicolau de Cusa, Nicolas Flamel, Lullo, Joaquim de Fiore, os Fiéis de Amor e Dante Alighieri, além de existir em obras como o Roman de La Rose, no Percival, na lenda do Graal, etc (Cfr. Jean Tourniac, op. cit. p. 97). Depois, ele cita ainda Reuchlin, Pico de la Mirandola, conhecidos cabalistas, o mago Agripa de Nettesheim, Lefèvre d’Étaples, Guillaume Postel, Paracelso, Knorr von Rosenroth, Silésio, Novalis, Von Baader, Eckartshausen, e Boehme, é claro. (Cfr. Jean Tourniac, op. cit,. p. 97). Uma lista de todos os hereges gnósticos e cabalistas da História do Ocidente. Esses seriam os adeptos da "Boa" Gnose precursora de Guénon, no esoterismo cristão.
Como se vê, os partidários mais sinceros de Guénon não titubeiam em aceitar a Gnose, e pretendem que ela seja cristã.
E o próprio Tourniac demonstra sua simpatia pela Gnose ao colocar como epígrafe de seu livro nada menos que uma citação do Zohar! (Cfr. Jean Tourniac, op. cit., p. 7).
←III - Pontos doutrinários fundamentais da Gnose
O sr. Olavo de Carvalho me apresenta quatro itens fundamentais da doutrina gnóstica, lançando-me um repto para que eu prove, se for possível, que sua doutrina contém esses quatro pontos.
Ele me diz ainda que não basta ter uma ou outra idéia gnóstica, para que se considere uma filosofia como enquadrada no sistema herético.
Ora, isso é completamente falso.
Se um autor tem apenas um ponto gnóstico em sua doutrina, ele é um gnóstico, tanto quanto quem tenha um só órgão com câncer é canceroso. Não adianta afirmar que ele tem 99% dos seus órgãos sadios: havendo um órgão com câncer, o indivíduo é canceroso. Do mesmo modo, se há um só ponto da Fé negado por uma idéia herética, o sistema é herético. Isto porque, sendo a Gnose um pecado gravíssimo contra a Fé, e considerando que a Fé exige absoluta integridade, basta um princípio herético para destruir totalmente a Fé em alguém.
A Fé é como a virgindade: ou é integra, ou não existe.
E a Heresia - como se denominava a Gnose na Idade Média - é como o câncer: basta ter o princípio dela para ser herege.
E a Gnose é a mãe de todas heresias.
Olavo de Carvalho se declara admirador, e doutrinariamente devedor, tanto como seguidor de vários dos autores da seita guénoniana. Ora, o sistema doutrinário desse grupo sectário é gnóstico. Logo, na medida em que ele aceita as idéias desse sistema sectário - e Olavo as aceita em bem larga medida, senão completamente - nessa medida, Olavo de Carvalho é gnóstico.
O fato de que ele declare discordar de alguns pontos da doutrina guénoniana, para aderir ao sistema gnóstico de Schuon, - ao qual ele também faz restrições acidentais, - não o exime da culpa de Gnose, porque o próprio Schuon é gnóstico confesso.
A doutrina de Guénon, como a de Olavo, não tem apenas alguns pontos gnósticos isolados, mas os princípios gnósticos que eles adotam formam uma sistema coerente, que exige chamá-los de gnósticos, ainda que eles não explicitem alguns pontos próprios da Gnose completa. Essa falta de explicitação de alguns pontos da totalidade do sistema gnóstico se nota especialmente em Olavo, que tem uma Gnose menos elaborada pela sua inferioridade em relação a Guénon, quer quanto à inteligência, quer quanto à cultura, quer ainda quanto ao valor de seus livros.
Alguns dos autores gnósticos guénonianos costumam dizer que sua Gnose é distinta da Gnose dos primeiros séculos. Mas, como já dissemos, quando se examinam os dois sistemas, constata-se que eles praticamente coincidem.
Veremos isso de mais perto, quando examinarmos os quatro itens apresentados por O de C. como característicos da Gnose clássica, e demonstraremos que o sistema guénoniano e o de Olavo de Carvalho se encaixam na Gnose clássica, e que não a contrariam. As pequenas diferenças entre os membros do grupo guénoniano não são suficientemente importantes para excluí-los do sistema geral gnóstico. É natural que o erro seja múltiplo. Só a verdade é una. Só a verdade unifica.
Outro ponto a considerar é que toda seita esotérica procura velar sua doutrina. O esoterismo, por natureza, é velado, e usa códigos secretos e anfibologias para mascarar seu verdadeiro pensamento.
René Guénon, tratando desse problema da dissimulação do pensamento esotérico, e de sua adaptação à linguagem religiosa dominante num lugar, escreveu:
"Que, em certos casos, a prudência imponha efetivamente uma espécie de dissimulação, ou o que pode passar por tal, isso não se pode negar, e se poderia encontrar muitos exemplos disso em outros lugares tanto quanto no Oriente; a linguagem de Dante e de outros escritores da Idade Média daria exemplos em abundância disso; mas há também, para fatos desse gênero uma outra razão totalmente diferente, de uma ordem muito mais profunda, e que parece escapar completamente aos ocidentais modernos. A verdade é que este desapego das formas exteriores implica sempre, pelo menos em algum grau, a consciência da unidade essencial que se dissimula sob a diversidade dessas formas (...) passar de uma forma a outra não tem então quase mais importância do que trocar de roupa, conforme os tempos e os lugares, ou de falar línguas diferentes conforme os interlocutores com os quais tratamos" (René Guénon, artigo - relatório Les Religions et les Philosophies de l ‘Asie Centrale - 1928, apud Marie France James, op. cit. p. 294)
A mesma coisa Guénon vai dizer, com outras palavras, e em outro lugar, chamando a dissimulação de "dom das línguas" :
"Sob este ponto de vista, pode-se dizer que quem possui verdadeiramente o "dom das línguas’, é aquele que fala, a cada um, segundo sua própria linguagem, nesse sentido que ele se exprime sempre sob uma forma apropriada ao modo de pensar dos homens aos quais ele se dirige"(...)"o mesmo ensinamento se encontra no esoterismo islâmico: Mohyiddin Ibn Arabi diz que "o verdadeiro sábio não se liga a nenhuma crença", porque ele está além de todas as crenças particulares, tendo obtido o conhecimento daquilo que é o seu princípio comum; mas é precisamente por isso que ele pode, conforme as circunstâncias, falar a língua própria de cada crença. Não há nisso, o que quer possam pensar os profanos, nem "oportunismo", nem dissimulação de nenhum tipo; ao contrário, é a conseqüência necessária de um conhecimento que é superior a todas as formas, mas que não se pode comunicar senão (na medida em que é comunicável)"(René Guénon, Aperçus sur l ‘ Initiation, Ed. Traditionnelles, paris, 1951, pp. 236-237).
O próprio Ibn Arabi, tido como o gnóstico típico do sufismo, afirma a mesma ambigüidade religiosa:
"A mais esplêndida fórmula, a da unidade, foi dada sob uma forma prática pelo grande Mouyidin-din ibn -Arabi quando disse: "Meu coração pode adquirir todas as formas. É o mosteiro do cristão, o templo dos ídolos, a pradaria das gazelas, a Ka‘aba do peregrino, as tábuas da Lei mosaica, o Corão dos fiéis. Amor é meu credo e minha fé." (Luc Benoist, El Esoterismo, p. 34).
O ex frei Boff assinaria em baixo.
Aliás, essa dissimulação do próprio pensamento era costumeira prática dos sufis, que a denominavam Ketman.
Comentando a prática do ketman, Mariani escreveu: "O Ketman está indissoluvelmente ligado a todo esoterismo" (G. Mariani, Les Poisons d’Orient,. Revista Internacional das Sociedades Secretas (Ocultismo), fevereiro de 1932, p. 29, apud, Marie France James, op. cit. p. 350, nota 170).
Schuon defende a "conversão" apenas exterior, por "conveniência":
"É apóstata quem muda de forma tradicional sem razão válida. (...) Podemos passar de uma a outra forma tradicional sem nos termos propriamente 'convertido', apenas por razões de oportunidade esotérica ou espiritual. Nesse caso, as razões que determinarão a passagem serão objetiva e subjetivamente válidas (...)" (Frithjof Schuon, A Unidade Transcendente das Religiões, Trad. Pedro de Freitas Leal, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1991, p. 86. O negrito é meu).
Poderia haver declaração mais cínica?
E esse é que Olavo apresenta como um dos homens mais representativos do "tradicionalismo" espiritual, no século XX.
De fato, Schuon representa muito bem o século XX.
O Próprio O de C., em sua biografiazinha de Guénon, disse:
"... se há algo que caracteriza o esforço guénoniano como um todo é a defesa de uma Tradição, de uma Verdade única que, no plano da doutrina metafísica, estabelece a unidade de todas as manifestações espirituais particulares, de todas as épocas e culturas. Nesse sentido ele pôde, por exemplo, tornar-se muçulmano enquanto declarava ser hinduísta (Mais próxima, segundo ele, da Tradição primordial) e defender as doutrinas orientais, enquanto propunha que, para o Ocidente, só havia um caminho legítimo, o retorno à Igreja Católica.
"Note-se que essa possibilidade de transitar livremente de uma Tradição a outra é, hoje como sempre, apanágio exclusivo dos grandes Mestres espirituais(...) " (Olavo de Carvalho, O Homem e sua Lanterna. René Guénon, O Mestre da Tradição contra o Reino da Deturpação. In Planeta, n* 107, Agosto de 1981, p. 14-15).
E é por isso que Olavo pode se dizer, sem cerimônia, ao mesmo tempo, católico- judeu- maometano. Fazendo isso, ele está praticando o Ketman sufi, ainda que ele não tenha efetivamente se tornado sufi. Estará então imitando seu mestre espiritual, Guénon.
E ainda há católicos, que se dizem tradicionalistas, que acreditam nele! Para um ingênuo tradicionalista católico, nada melhor do que ser "encantado" por um "Tradicionalista" esotérico-gnóstico, praticando o ketman sufi, ou o "dom das línguas", à la Guénon...
Dizia Bismarck, que em todo acordo, alguém faz o papel de cavaleiro, e outro, o de cavalo...
O sr. Olavo de Carvalho, enquanto esotérico, não pode fugir dessa regra: o esoterismo, por definição, exige segredos que não podem ser revelados aos não iniciados.
Daí, se compreender que o sr. Olavo de Carvalho tenha que velar, pelo menos um tanto, o fundo gnóstico de suas doutrinas "tradicionais"...
No livro Astros e Símbolos, o sr. O de Carvalho afirma que:
1) Não usará, ao falar de astros e símbolos, de um sistema coerentemente lógico:
"Por outro lado, o mesmo liame orgânico que filia a astrologia a um complexo tão vasto de conhecimentos impede que adotemos, neste trabalho, um modo de exposição serial, que vá dos princípios às conseqüências em modo coerentemente lógico" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, ed. cit. p. 22).
2) que não exporá claramente os princípios que adotará:
Além disto, ele avisa que, nesse trabalho, deixará "apenas transparecer, ao fundo, os princípios superiores que enformam (sic!) e governam tais enfoques" (idem, p.23)
3) que o implícito supera o explicito, em seu trabalho:
"Pois o que aqui interessa não é só o conteúdo explícito deste último, mas sobretudo sua forma implícita, sua estrutura que procurará reproduzir, na condução do discurso, a estrutura cognoscitiva, o modus cognoscendi da própria astrologia e, por extensão, de todas as demais ciências tradicionais" (idem, p. 23).
Como então não concluir que o esotérico sr. Olavo de Carvalho não diz claramente tudo o que pensa?
E, no capítulo V, intitulado "Notas Para Uma Psicologia Astrológica" --- [Imagine-se o delírio: "Psicologia Astrológica"! ] - O de C. previne o leitor
1) que esse trabalho "não é para principiantes", mas "a pessoas que tenham bons conhecimentos do simbolismo e das doutrinas tradicionais";
2) que "são notas e sugestões esparsas, e não uma exposição coerente"(sic!).
3) que "A terminologia, por isso, é oscilante, incerta". (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, ed cit. p. 63).
É a primeira vez na vida que encontro um autor confessando tão claramente que usa terminologia incerta, em exposição não coerente e especialmente para pessoas que conheçam as doutrinas "tradicionais". Noutras palavras, ele escreveu esse texto para iniciados. Como, então, acreditar num autor que publica um texto com essas características?
É preciso querer ser enganado, para acreditar num autor que confessa que vai usar tais métodos esotéricos.
Desse modo. é preciso ter bem claro que o sr. Olavo de Carvalho - exatamente como Guénon e os demais membros de seu grupo sectário, a "elite" tradicionalista, - pratica o que Guénon chamava de o "dom das línguas": falar com cada grupo religioso, usando a linguagem própria dele, mas exprimindo sempre o "núcleo doutrinário esotérico de todas as religiões", isto é, a Gnose, como explicou Schuon.
←III - 2. Esquema da Gnose
Parece-me, meu caro Felipe, que seria didático fazer, aqui, um breve resumo, ou esquema do sistema gnóstico, para que os leitores de nosso site saibam melhor do que se está tratando. Evidentemente, farei um esquema muito sucinto, apenas lembrando alguns pontos fundamentais da Gnose, que os quatro itens do sr. Olavo resumem mal.
1- A Gnose nasce de uma não solução do problema do mal.
"Unde malum"?
Esta é a pergunta inicial de toda Gnose, que produziu sistemas variadíssimos, desde o Maniqueísmo ao Romantismo, passando pela Cabala.
A Gnose se revolta não apenas contra o mal físico, mas vai mais longe: revolta-se contra a limitação do ser criado, julgando essa limitação um mal em si mesmo. O gnóstico sofre por não ser Deus. Daí ser contrário ao Deus Criador que criou os seres contingentes, análogos ao Ser divino.
A Gnose é uma revolta anti metafísica, tomado este termo no sentido tomista e não guénoniano, é claro.
2- Para Gnose, dever-se-ia distinguir Divindade e Deus.
A Divindade seria, ao mesmo tempo, Tudo e Nada, o único Ser e, ao mesmo tempo, o Não-Ser. Dela nada se conheceria realmente: seria o Deus desconhecido, a Divindade abscondita. Da Divindade teria provindo Deus, que se oporia à Divindade como o Ser ao Não Ser, a Luz às trevas. Deus seria conhecido, revelado, enquanto a Divindade seria absolutamente incognoscível.
3- Dialética metafísica
É claro que essa contradição metafísica que equipara os contrários - Ser = Não Ser; Tudo = Nada; o Pleno = Vazio; destrói os princípios fundamentais do ser e do pensamento, pois nega quer o principio de identidade (O Ser é idêntico a si mesmo), quer o principio de não contradição [uma coisa não pode ser e deixar de ser, ao mesmo tempo, sob o mesmo aspecto].
Do choque desses dois princípios internos do ser --(Yin e Yang, na Gnose taoísta) - é que provem a dialética gnóstica, que considera o ser possuindo dois princípios iguais e contrários em perpétua luta, o que provocaria a evolução contínua e faria das coisas apenas fluxo, um devir contínuo.
4- Evolução da Divindade.
A Divindade evoluiria, e, nessa evolução ela teria emanado inúmeros princípios divinos - cada seita gnóstica enumera emanações diferentes - e uma dessas emanações seria o Deus revelado, o Ser, o Deus conhecido, o Demiurgo criador do universo material, identificado em várias seitas gnósticas com Yahwé. Este seria o deus do mal, pois criando, aprisionou na matéria, na razão e na moral, partículas emanadas da Divindade.
5- A queda da Divindade no Cosmos.
A Divindade teria sofrido uma queda no mundo. Esse seria o grande pecado cósmico praticado pelo Demiurgo criador, aquele que a Escritura chama de Yahwé.
Enquanto para o Catolicismo existe apenas o mal moral, e não o mal enquanto ser, isto é, existem ações más e não coisas más em si mesmas - porque tudo o que Deus fez é bom - para a Gnose, o mal está na ordem do ser. O mal é ontológico.
Por outro lado, para o Catolicismo, a origem de todo o drama foi o pecado original de Adão e Eva no Éden, enquanto para a Gnose, a raiz do mal estaria na própria Divindade, responsável por um pecado ante original (Cfr. Michel Barat, Le Dualisme de la Gnose et L ‘Image Symboliquement Double de la Femme in Les Cahiers Jean Scot Ergène, no 1, Images de L’Homme et initiation, ed. Loje d’ Études et de Recherche Jean Scot Erigène, Paris, 1988, pp.33- 54)..
6- As partículas da Divindade nas coisas criadas
Conforme a Gnose, em cada coisa haveria uma partícula da Divindade. Essa partícula seria o "centro" de cada ser. Essas partículas seriam os âtmâs, os éons, a Fünkenlein (Chamazinha) de Mestre Eckhart, o "primum" de Ibn Arabi, o "Si" (Soi ou Self) de Guénon etc. Por essas partículas da Divindade existentes nas criaturas, as coisas do mundo seriam seres, enquanto a matéria, que as encarcera seria pura ilusão. Nos homens, além do corpo material, a própria alma racional seria um cárcere da partícula divina, pois a razão mostraria ao homem o mundo como inteligível e bom, enganando o homem que, entendendo o mundo, já não quereria sair dele. A capacidade abstrativa do homem o levaria a recortar o todo em conceitos, formando um imenso puzzle que o homem já não sabe reconstituir, criando a ilusão de que o Todo, a unidade não existe. Daí, alguns gnósticos dizerem que a abstração é o pecado da inteligência.
E, como veremos amais adiante, Olavo afirma que abstrair é, no fundo, uma coisa errada, um verdadeiro pecado que exigiria absolvição.
7- O homem segundo a Gnose
Para a Gnose, o homem seria, então, composto de corpo material, alma psíquica, e pneuma ou espírito divino. Tanto o corpo quanto a alma seriam cárceres do éon (atma ou centelha) divino.
Conforme a predominância de um desses componentes, os homens são classificados pela Gnose ou como Hylikoi [materiais], quando neles predomina o corpo; Psykikoi, ou psíquicos, quando predomina a alma; e finalmente, como pneumatikoi, ou espirituais, quando neles prepondera o espírito divino.
Por isso, uma sociedade gnóstica-- como a da Índia, por exemplo - aceita as castas. Para a Gnose, os homens são fundamentalmente, naturalmente desiguais. Daí as castas. E - seguindo Guénon também nisto --Olavo simpatiza com a existência de castas na sociedade. (Cfr. Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições, p. 346-347 e nota 219. Cfr. René Guénon, A Crise do Mundo Moderno, pp. 69-70).
8- Soteriologia gnóstica: o Conhecimento Redentor.
A libertação das partículas divinas, aprisionadas nos cárceres da matéria, da razão e da moral criadas pelo Demiurgo, se realizaria pelo Conhecimento intuitivo ("Metafísico", na linguagem de Guénon, dos "perenialists", e de Olavo).
Que seria o conhecimento libertador? Seria a Gnose - o Conhecimento-- de que, no fundo de nosso ser, somos a própria Divindade. Esse Conhecimento --essa gnose-- não seria um conhecimento intelectual, nem racional, mas supra racional, que permitiria uma iluminação intuitiva de que toda distinção das coisas é ilusória. Por essa intuição, o homem veria que ele é o Universo, e que o universo é a própria Divindade. A intuição seria o Conhecimento de que, pela unidade dos âtmâs o Homem é o Universo, e é a própria Divindade.
Esse Conhecimento salvador libertaria o homem da ilusão da matéria, da ilusão da racionalidade e da abstração, da ilusão do valor da lei moral.
O homem seria seu próprio redentor, e redentor da Divindade. Cristo não seria, então, o Redentor dos homens. Cristo teria sido apenas um dos que se redimiu, um profeta - como pretende o Corão - mas não Deus encarnado. A Gnose recusa a Encarnação do Verbo: ou ela - como os arianos - afirma que Cristo foi apenas a primeira das criaturas, um homem apenas; ou, ela diz - com os eutiquianos - que Cristo foi um deus, mas sem corpo humano real
9- Gnose, Moral e Razão.
Se a redenção - Libertação - do homem se faz pelo Conhecimento ou "Sabedoria" Gnóstica, compreende-se que a prática da moral não tem lugar no processo salvífico dos éons.
Com efeito, para a Gnose a Lei moral foi estabelecida pelo Demiurgo a fim de manter as partículas divinas aprisionadas na matéria. Portanto, obedecer à Lei moral seria cooperar para manter o encarceramento dos âtmâs no mundo material. Daí, o antinomismo da Gnose. A libertação exige a violação da lei moral, o desprezo dos 10 mandamentos.
Esse desprezo da lei moral se realiza, quer pelo anarquismo moral que abusa das criaturas, quer pela prática de uma ascese antinatural que despreza a matéria como má em si, que recusa e nega todo bem às criaturas. Por isso, muitas seitas gnósticas condenam a mulher e a reprodução sexual. Outras, tratam a mulher como meio de libertação, considerando a união sexual como primeiro passo para a abolição da individualidade.
Outro meio de libertação seria o desprezo da ordem racional, da ciência e da metafísica (no sentido aristotélico - tomista), dando preferência à intuição sobre a razão, à magia e às ciências secretas sobre a inteligência e as ciências naturais. Por isso a Gnose considera as ciências esotéricas (Alquimia, Astrologia Numerologia, a Magia etc,) como as únicas corretas e salvíficas, por serem anti racionais.
10- Eclesiologia gnóstica.
Da mesma forma que a Gnose recusa a Encarnação do Verbo, ela repudia a idéia de uma Igreja estruturada, organizada, com uma hierarquia e com propriedades. A Gnose só aceita uma Igreja Espiritual - Ecclesia Spiritualis - sem dogmas e sem riquezas materiais, sem estruturas.
A Ecclesia Spiritualis da Gnose seria constituída por todos as pessoas que, dentro de cada religião organizada, possuíssem a "Tradição"-- como dizem Olavo e os "perenialists" - e tivessem o Conhecimento de que seu espírito é uma partícula da Divindade."(Cfr. Leszek Kolakowski, Chrétiens sans Église, Gallimard, Paris, 1969).
Repito: este é um esquema bem simplificado, para fins didáticos, e para não alongar por demais esta carta, que promete ser imensa. Hélas!
Demonstraremos que muitos desses pontos fundamentais da Gnose são professados por René Guénon e pelos pensadores que seguem a sua escola "tradicionalista", inclusive o sr. Olavo de Carvalho, embora cada um desses pensadores-- ou sonhadores --- possa divergir num ou noutro ponto da linha geral da escola, ou ainda que possam discordar, uns dos outros, em algum ponto concreto particular. O pesadelo é livre...
Os autores dessa escola se dizem Esotéricos, seguidores da Sophia Perennis = da Metafísica Tradicional = da Tradição primordial que, como já demonstramos, eles mesmos confessam que é a Gnose
Olavo de Carvalho se proclama esotérico, favorável à "Metafísica" guénoniana, elogia e recomenda continuamente esses autores "tradicionalistas" guénonianos. Mesmo que discorde deles em algum ponto, Olavo admite - grosso modo-- o seu sistema doutrinário. Por isso, Olavo é um gnóstico.
Vistos estes pressupostos, examinemos agora os quatro itens da doutrina da Gnose segundo Olavo, e vejamos se neles se enquadram, ou não a doutrina de Guénon e a de Olavo.
←IV - Análise dos Quatro Itens da Gnose, segundo Olavo...(...a nível de enciclopédia popular)
1* Item da doutrina Gnóstica, segundo Olavo de Carvalho
Olavo assim formulou seu 1º item:
"1o O dualismo radical, ou oposição insanável entre o reino transcendente do puro espírito e este mundo da matéria grosseira" (Olavo de Carvalho, AVISO 2, 17-04-2001).
←IV - 1. O problema do mal
Vimos que uma pessoa que não consegue compreender o problema do mal, e que se revolta contra ele, engendra uma mentalidade gnóstica que vê o mal como ser. O fato de que as coisas do mundo sejam finitas, limitadas, contingentes, é considerado um mal em si mesmo. Cai-se na revolta metafísica que recusa o ser por analogia, e exige que tudo seja igual ao Ser absoluto, Deus. Ou que, se o mal é o ser, o bem seria o Não-Ser.
O homem, então, recusa tudo o que nele é prova de dependência, de limitação e de contingência: a matéria, a razão, a moral, e até o fato de que é ser por analogia, que é ser contingente. Ele imagina possuir, no fundo de si, algo de divino, que está nele encarcerado. A Divindade teria caído no mundo criado, (ou manifestado, na linguagem de Guénon).
Ora, Olavo escreveu:
"A psicologia astrológica (sic!?) é uma teoria do sentido do sofrimento e da raiz deste último nas polarizações que cosmogonicamente desdobram o orbe manifesto a partir da unidade do ser" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, Nova Stella, São Paulo, 1985, p. 65).
Que significa essa frase arrevesada?
A "psicologia Astrológica" seria a teoria que explicaria isto: que da unidade do ser (da Divindade) se desdobrou algo (saiu de, emanou da unidade) para o orbe manifesto, no cosmos polarizado (isto é, dialético, com dualidade) e que a raiz do sofrimento (da dor, do mal) provém exatamente deste desdobramento das coisas emanadas da Unidade divina.
E já essa apresentação da ‘Psicologia astrológica" (sic!?) identifica a doutrina de Olavo com a Gnose.
Examinemos, agora, o primeiro item da Gnose, tal como foi formulado - ou inspirado por uma "Barsa" qualquer? - pelo sr. O de C., comparando-o com o que diz a Gnose.
←IV - 2. A Divindade: Nada que é Tudo. O Mundo: Tudo que é Nada
O primeiro item de O. de C., exposto por ele como sendo o primeiro princípio da Gnose, merece reparos.
O primeiro princípio da Gnose não é esse, e sim a concepção da Divindade como distinta de Deus. E, mais do que distinta, como oposta a Deus: se, a Divindade é Ser, Deus seria Não-Ser; se a Divindade é o Não-Ser, Deus é que seria o primeiro Ser.
É da concepção da Divindade como Não-Ser, como vazio ontológico, que derivará a oposição da Divindade a toda a ordem do Ser. Daí a primeira oposição entre Divindade e Deus, este considerado como o primeiro Ser.
A oposição entre a Divindade e o mundo criado provem de uma questão metafísica, no sentido tomista, e não no sentido em que a seita de Guénon toma o termo "Metafísica", isto é, a Gnose.
Vimos que a Gnose considera o ser contingente como sendo ontologicamente mau. Existir como ser limitado é que é o mal.
A Gnose, como já foi dito, recusa o ser por analogia: esse é o grande mal para ela. Daí, ela recusar a matéria. Para a Gnose, o ser criado é tido como nada, enquanto possui algo de criado, e, ao mesmo tempo, como sendo a própria Divindade, pela partícula divina que existiria encarcerada nele. Partícula essa à qual os hinduístas chamam de âtmâ, os sufis de "primum", os gnósticos antigos de éon, Eckhart de "Fünkenlein" (centelhazinha), e que Guénon chamava de "Si" (Soi).
Disso decorre a oposição entre o Não-Ser da Divindade e o mundo material, porque todo ele está colocado na ordem do ser por analogia.
Se a coisa criada é ser, a Divindade é Não-Ser; se a Divindade é Ser, então a criatura é não ser, a criatura é nada. Esta é a oposição entre a Divindade e o Mundo para a Gnose.
Por isso, a Gnose é conceituada também como "revolta anti metafísica", como sistema anti-metafísico, tomando-se o termo - é claro - em sentido aristotélico-tomista, e não guénoniano.
Não tenho, agora, tempo para tratar mais longamente deste problema, que deixo para outra ocasião, se for o caso. Agora, tratarei do mínimo necessário, para responder o que coloca o sr. Olavo de Carvalho.
Cuidarei então de expor apenas a questão da oposição da Divindade e do mundo criado, ou do cosmos manifestado, na linguagem guénoniana.
Para o gnóstico Basílides, a Divindade era "aquele que não é" (Cfr. S. Hipólito de Roma, Philosophumena, VII, 20-21, vol Ii, p.103)
Também na Cabala, - a Gnose judaica --a Divindade - o Ein Sof - que a Cabala distingue do Deus criador, é considerada, ao mesmo tempo, como Ser e como Nada. É o que se pode ver nos textos de Azriel de Gerona (Cfr. Gerschom Scholem, Les Origines de la Kabbale, Aubier- Montaigne, Paris, 1966, p. 447)
Scholem assim resume a questão:
"Ser e Nada não são senão diferentes aspectos da realidade divina que, no fundo, está acima do ser (est sur-être). Há um Nada de Deus que dá nascimento ao ser, e há um ser de Deus que representa o nada. A maneira pela qual as coisas existem no nada de Deus é uma; a maneira pela qual elas existem em seu ser é outra. Mas, tanto uma como a outra são modalidades do próprio Ein-Sof, que constitui a unidade inseparada de alguma coisa e do nada"(G. Scholem, Les Origines de la Kabbale, p. 448).
"(...) Henry Corbin escreveu em seu grande livro sobre Ibn ‘Arabi: há o "Deus que não é", o Deus desconhecido, e há o Deus revelado"(Christian Jambert, La Grande Réssurrection d’Alamut, Verdier, Paris, 1990. p. 218).
Portanto, o sufismo de Ibn ‘Arabi faz a mesma distinção entre a Divindade desconhecida, que não seria ser, e o Deus revelado que seria ser, tal qual a faziam os gnósticos, e tal qual a farão os cabalistas. E Olavo de Carvalho não cessa de fazer referências simpáticas ao sufismo.
Guénon, expondo a doutrina do Vedanta adwaita, usa quase as mesmas fórmulas:
"(...)diremos agora que enquanto o Ser é "uno", O Princípio supremo, designado como Brahma, pode somente ser dito "sem dualidade", porque, sendo além de qualquer determinação, mesmo do Ser, que é a primeira de todas, ele não pode ser caracterizado por nenhuma atribuição positiva (...)" (René Guénon, Introdução às Doutrinas Hindus, Ed. Ciências Tradicionais Michel F. Weber, São Paulo, 1989, p. 295).
"Brahma é Ishiwara enquanto princípio produtor de todos os seres manifestados"(R. Guénon, idem, p. 245).
A este Primeiro Principio única realidade de fato, se opõe "o mundo, entendendo por essa palavra, no sentido mais amplo de que seja suscetível, o conjunto da manifestação universal, não é distinto de Brahma, ou pelo menos, só se distingue dele em modo ilusório." (Idem p. 295).
E Schuon diz:
"Para o Islam, ou mais precisamente para o sufismo que é a medula do Islam, a doutrina metafísica - nós já o dissemos várias vezes - é que "não há realidade fora da única Realidade", e que, na medida em que somos obrigados a levar em conta da existência do mundo e de nós mesmos, "o Cosmos é a manifestação da Realidade"; os vedantinos diriam-- repitamo-lo mais uma vez - que "o mundo é falso, Brahma é verdadeiro" mas que "toda coisa é Atmâ" todas as verdades escatológicas estão contidas nesta segunda asserção". É em virtude da segunda verdade que somos salvos; conforme a primeira, nós nem "existimos" na ordem das reverberações da contingência"(F. Schuon, Comprendre L‘ Islam, p. 127-128).
E Guénon explica:
"(...) e assim o Mundo, entendendo por essa palavra o conjunto da manifestação universal, não pode distinguir-se de Brahma senão de modo ilusório, enquanto que, pelo contrário, Brahma é absolutamente "distinto daquilo que ele penetra", isto é, do Mundo, pois que não se Lhe pode aplicar nenhum dos atributos determinativos que convém a este, e que a manifestação universal toda inteira é rigorosamente nula em face à Sua Infinitude." (René Guénon, L’ Homme et son Devenir selon le Vedanta, Ed. Traditionnelles, Paris, 1991, p. 89-90).
Para Guénon - mestre admirado por Olavo, e por cuja defesa ele iniciou este debate, "[...] toda sistematização é absolutamente impossível para a metafísica pura, à vista da qual, tudo o que é de ordem individual é verdadeiramente inexistente" (René Guénon, L’Homme et son Devenir selon le Vedanta, Ed Traditionnelles, Paris, 1991, p. 15. O negrito é meu).
"A multiplicidade existe segundo seu modo próprio, desde o fato de que ela é possível, mas este modo é ilusório, no sentido que nós já precisamos (o de uma "menor realidade"), porque a própria existência dessa multiplicidade fundamenta-se sobre essa unidade da qual ela saiu e na qual ela está contida principialmente"
"Encarando deste modo o conjunto da manifestação universal, pode-se dizer que, na própria multiplicidade de seus graus e de seus modos, a "Existência é única", conforme uma fórmula que tomamos do esoterismo islâmico;(...) "
"Pode-se portanto dizer que o Ser é um, e que ele é a própria Unidade, em sentido metafísico, aliás, e não no sentido matemático, porque estamos aqui bem além do domínio da quantidade: "(René Guénon, L’Homme et son Devenir selon le Vedanta, pp. 64-65).
Também Schuon repete esta doutrina ao escrever: "Brahma não está no mundo", mas "toda coisa é Atmâ"; Brahma é verdadeiro, o mundo é falso" e : "Ele (o libertado, mukta) é Brahma.". "Toda a Gnose está contida nessas enunciações, como ela está contida também na Shahadah ou nos dois testemunhos, ou ainda nos mistérios crísticos"(F. Schuon, Comprendre l ‘Islam, p. 130. O negrito é meu).
E repare, meu caro Felipe, como Schuon admite e reconhece que tanto a doutrina brahmânica como a do Sufismo islâmico contém toda a Gnose. Só não se pode admitir sua interpretação dos "mistérios crísticos".
Guénon também despreza o indivíduo enquanto tal, valorizando-o apenas por sua potencialidade de atingir a divinização, de se unir ao Absoluto:
"O indivíduo humano, com efeito, é ao mesmo tempo muito mais e muito menos do que geralmente se pensa no Ocidente; ele é muito mais em razão de sua possibilidades de extensão indefinida para além da modalidade corporal, (...); mas ele é também muito menos, já que, bem longe de constituir um ser completo e suficiente em si mesmo, ele não é mais do que uma manifestação exterior, uma aparência fugidia revestida pelo ser verdadeiro, e pelo qual a essência deste não é de forma alguma afetada em sua imutabilidade" (René Guénon, A Metafísica Oriental, ed Ivpiter, p. 40. Tradução de Olavo de Carvalho).
Nessas frases, Guénon afirma que o homem, enquanto indivíduo, não é nada, e que seu verdadeiro ser é imutável. Que o Homem é capaz de ultrapassar a sua corporeidade, que o individualiza, e atingir a divinização pela união com o Absoluto.
Olavo não só traduziu este texto gnóstico de Guénon, ele repete essa doutrina escrevendo:
"Sem dispensar os meios racionais - e, ao contrário, fazendo deles uma utilização cujo rigor deixa para trás tudo aquilo a que a filosofia profana está acostumada - a metafísica requer, além deles [dos meios racionais], uma "centralização" do sujeito cognoscente no único ponto-chave em que ele, criatura contingente, participa do Absoluto, e em seguida uma "ascenção’ na qual ele abandona sua dimensões puramente individuais e se "reintegra" no Absoluto. Essas duas etapas correspondem respectivamente àquilo que a tradição chinesa denomina o estágio do "Homem Verdadeiro" - ou seja, a plenitude reconquistada do estado humano - e o estágio do "Homem Transcendente" que já é propriamente uma "divinização" e, portanto, uma ultrapassagem dos limites humanos".(Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, Nova Stella, São Paulo 1986, p.54).
Este trecho de Olavo seria suficiente para caracterizá-lo como gnóstico. E não se iluda quem julgar que ele aí - ao contrário da Gnose - alude ao uso de meios racionais, que ele mesmo, pouco além, afirma insuficientes. Não haja ilusão, porque, poucas linhas abaixo, Olavo afirma com todas as letras que o meio de divinização é um Conhecimento superior ao racional, que é o obtido pelas ciências comuns:
"Esse duplo movimento, de centralização e ascenção, está representado no simbolismo da cruz (René Guénon, Le Symbolisme de la Croix, Paris, Vega, 1931), e se realiza unicamente pelo conhecimento --embora num sentido muito mais efetivo do que aquele que a apalavra "conhecimento" evoca hoje" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 54).
Veja bem, meu caro Felipe, como Olavo atribui a divinização do homem a um Conhecimento superior ao conhecimento comum, isto é, à Gnose, conhecimento absoluto e salvador, porque divinizador.
Guénon chamou o Primeiro Princípio de "Principial".
Ora, Olavo escreveu:
"Principial", termo cunhado por René Guénon. (La Crise du Monde Moderne, Paris Gallimard,1930), para designar o que se refere ao mundo dos princípios eternos e imutáveis, por oposição ao mundo da manifestação" (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, nota 3 do cap. VII, p. 91. O negrito é meu.).
Então temos aí bem explícito o primeiro item constitutivo da Gnose, tal como foi apresentado por Olavo de Carvalho: para Guénon e para Schuon - pelo menos - há oposição entre a divindade e o mundo manifestado.
Ele não pode deixar então de admitir que Guénon é gnóstico, pelo menos quanto ao primeiro item que ele mesmo apresentou.
Nessa nota, acima citada (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, nota 3 do cap. VII, p. 91), Olavo não faz a menor restrição ou crítica à doutrina de Guénon sobre a oposição entre o mundo da manifestação e o não manifestado.
Será que em outras passagens ele refuta e recusa essa oposição?
Noutra nota, em outro de seus livros, Olavo afirma:
"O neologismo "principial" (em francês principial, principielle) foi cunhado especialmente por Guénon para designar aquilo que se refira à ordem dos princípios eternos e imutáveis, e não ao mundo das manifestações. O termo pode ser empregado de modo relativo ou absoluto. Sob o prisma absoluto, está claro que principial, propriamente, é só o princípio único, eterno e imutável, anterior, de certo modo, ao Ser. Sob o prisma relativo pode-se dizer que o Ser, em geral, é principial em relação à natureza, que é apenas uma de suas manifestações, e que a natureza é principial em relação à ordem sensível" (Nota 16 de Olavo de Carvalho, in René Guénon, A Metafísica Oriental, ed Ivpiter, São Paulo, 1981, nota 16, p. 53).
Nessa nota se afirma - sem qualquer recusa ou restrição - que o "Principial", sob o prisma absoluto, é, de certo modo, anterior ao Ser.
Acreditava, então, Olavo que o "Principial" não era Ser?
Já vimos, porém, que para O. de C., pelo menos mais recentemente - porque ele muda "d’accento non di pensiero"...-- a Divindade é Ser, e que, nisso, ele discorda de Guénon. Entretanto, noutra passagem, ele diz que poder-se-ia chegar a um acordo nessa questão chamando o Principial de Supra Ser, em vez de Não Ser (Ver p. 52 deste trabalho).
Outro problema está em saber se admitindo, como faz Olavo, que a Divindade - o "Principial"--- é Ser, se ele admite também que as coisas que constituem o universo sejam seres análogos.
Nesse mesmo livro, o sr. O. de C. afirma: "O postulado de objetividade que funda a ciência moderna estabelece a existência de um mundo material objetivo, acessível ao conhecimento pelos sentidos e regido por leis matemáticas, ou matematicamente expressáveis."
"O enfoque tradicional concordaria com o caráter matemático do mundo objetivo --que aliás não é uma invenção moderna, mas uma herança do conhecimento tradicional, por exemplo através do pitagorismo. O que não poderia é concordar com a outra parte da hipótese de base, que tende - ora de maneira sutil, ora ostensiva - a identificar "objetividade" com "sensorialidade" ou "materialidade" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, ed cit., p. 57).
A idéia de que a objetividade não se identifica com a materialidade é correta. Deus, os anjos, a alma não são materiais, mas são seres objetivos, reais. Se ficasse nisso, Olavo teria razão.
Contudo, ele considera como objetivos, embora não materiais também os centauros e outros seres representados no Zodíaco.(Cfr. Olavo de Carvalho. Astros e Símbolos, p. 60).
Por outro lado, em outros textos, Olavo adere à doutrina de Guénon de que o mundo material não é real - portanto, que o mundo material não seria objetivo - a afirmação dele acima citada deve ser vista com certo cuidado. Deve ser matizada e considerada no conjunto do sistema exposto por Olavo.
Olavo, como os demais pensadores "tradicionais", não considerava, pelo menos quando escreveu esse livro Astrologia e Religião, os seres materiais como objetivos. Como os demais seguidores de Guénon, Olavo julgava, então, os seres materiais como realmente ilusórios. E, portanto, o mundo material, sendo ilusório, se oporia à Divindade concebida como único Ser.
Veja este outro trecho do Sr. Olavo de Carvalho no qual ele nega a objetividade do ser criado ou manifestado:
"Vivemos, movemo-nos e somos dentro dessa inteligência [divina], pois suprimida a inteligência, já não temos identidade humana nenhuma, e não somos nada."(Olavo de Carvalho, Astros e Religião, ed. cit. p. 64). Texto esse que o identifica com a Gnose sufi.
Está aí a prova de que, para Olavo, o mundo material não era, então, de fato, objetivo. O mundo seria objetivo apenas enquanto nele há, aprisionado na matéria, o Intelecto divino.
←IV - 3. A Divindade e o Mundo na Gnose Sufi
Também para a Gnose sufi há essa mesma oposição entre Allah e o mundo criado, pois se considera Allah como Ser, os seres criados são puro nada, somente existindo pelo que neles existe da Divindade, aquilo que Ibn Arabi chama de "proprium", e que eqüivale ao âtmâ da Gnose hinduísta.
Vejam-se algumas citações para comprovação.
"Porque aquele que pretende que algo distinto dEle [Allah] possa existir - pouco importa que seja por si mesmo, ou por Ele, ou nEle - que possa desaparecer ou extinguir-se, que pode extinguir-se a extinção também, etc, etc. tal homem entra em um círculo vicioso. Tudo isso é idolatria e nada tem a ver com a Gnose. Tal homem é idólatra e não conhece nada de Allah, nem de si mesmo. Se se pergunta por que meio se chega a conhecer o Si mesmo, isto é, o "proprium", a alma, e a conhecer a Allah, a resposta é : a via até estes dois conhecimentos está indicada com essas palavras: Allah é, e o nada com Ele. Ele é agora tal como era" (Ibn Arabi, Tratado da Unidade).
"Então Allah lhe permitiu ver que tudo o que não é Ele [Allah], incluindo o "si mesmo" do homem, não tem nenhuma existência. E viu que as coisas, tais como são: quero dizer, que viu que as coisas são a "quididade" de Allah fora do tempo, do espaço e de todo atributo"(Ibn Arabi, op. cit.).
‘Verás que não é que Allah tenha criado todas as coisas, senão que tanto no mundo invisível, quanto no mundo visível não há senão Ele, porque em nenhum dos dois mundos há um só ponto de existência própria."(Ibn Arabi, op. cit.).
"Na realidade, o distinto dEle não existe"(Ibn Arabi, op. cit.).
"A substância de teu ser ou de teu nada é a Sua Existência. Quando vires que as coisas não são distintas de tua existência e da Sua [Existência], e quando possas ver que a substância de Seu Ser é o teu ser, e que teu nada nas coisas, sem ver nada que seja com Ele ou nEle, então isto significa que conheces a tua alma, teu "proprium". Quando se conhece o Si mesmo de tal maneira, ali está a Gnosis, o conhecimento de Allah, mais além de todo erro, dúvida ou combinação de algo temporal com a eternidade, sem ver na eternidade, por ela, junto a ela, outra coisa que a eternidade" (Ibn Arabi, op. cit.).
Daí a recusa explícita da analogia do ser:
"Pode-se falar de união entre dois ou mais, e não quando se trata de uma coisa única. A idéia de união ou de chegada comporta necessariamente a existência de duas coisas ao menos, análogas ou não. Se são análogas, são semelhantes. Se não são análogas, formam oposição. Porém, Allah - que Ele seja exaltado - está isento de toda semelhança, assim como de todo rival, contraste ou oposição." (Ibn Arabi, Tratado da Unidade).
Portanto, para o sufismo de Ibn Arabi, as coisas criadas são nada e, ao mesmo tempo, possuem a quididade, isto é a substância de Allah.
"Quando tiveres conhecido o que é verdadeiramente o teu "proprium", ter-te-ás desembaraçado do teu dualismo e saberás que não és distinto de Allah"(Ibn Arabi, op. cit).
"Desde o momento em que este mistério tenha sido desvelado a teus olhos-- que não és distinto de Allah - saberás qual seja o fim de ti mesmo, que não tens necessidade de aniquilarte, que jamais deixastes de ser, e que não deixarás jamais de existir..."(Ibn Arabi, op. cit.).
←IV - 4. Panteísmo ou Gnose em Guénon?
Essa concepção da Unidade e da Unicidade do Ser poderia levar alguém a pensar que, com essa unicidade, se aceitaria o Panteísmo, isto é, que tudo é Deus, inclusive a matéria.
Engano: os autores que analisamos afirmam que os seres criados são de fato ilusórios. Rejeitam assim o panteísmo. E, realmente, Guénon recusa expressa e taxativamente o panteísmo:
Para Guénon há unidade do Ser, o que, à primeira vista, levaria a dizer, a quem examinasse a questão superficialmente, que Guénon defenderia um panteísmo crasso, o que está bem longe do que ele pensava, pois ele coloca uma diferença fundamental entre o "Principial" e o mundo das criaturas (o conjunto do manifestado, para usar o neologismo de Guénon), este mundo é ilusório e não metafisicamente real.
Isso, que dizemos, é confirmado tanto pelas citações que já demos de Guénon, como por um admirador e discípulo dele, Jean Tourniac:
"De resto, jamais Guénon pretendeu que o Cosmos manifestado, fosse Deus! Tudo está em Deus, mas nada é Deus senão Ele. Jamais a metafísica, em virtude de seu próprio nome, poderia confundir o mundo manifestado com seu Principio Eterno"
"Nós veríamos essa confusão do cósmico e do divino... mais nos evolucionistas católicos do que em Guénon, e nós não compreendemos como se pode acusar Guénon de gnosticismo e de idealismo platônico, e, ao mesmo tempo, de "cosmolatria". [de panteísmo].
"De outro lado, seria difícil recusar a asserção de Guénon sobre as forças cósmicas atrás das quais existe "alguma coisa de outra ordem das quais elas não são realmente senão o veículo e como a aparência exterior, de entidades psíquicas" (Jean Tourniac, op. cit. p. 94).
De fato, Guénon não pode ser dito panteísta, e sim gnóstico.
"Brahma
Guénon não identifica a Divindade e o Mundo das "manifestações, pois diz que este é ilusório e que os âtmâs que estão nos seres individuais do mundo manifestado devem se libertar para retornar ao principial, a Brahma. E isto é Gnose.
Pelo contrário, ele sempre afirmou que o universo material é metafisicamente ilusório, e que havia oposição entre o mundo manifestado na grosseria da matéria e o Principial, mas que há Unidade de Ser, porque em tudo o que é manifestado "está presente", há algo da Divindade - âtmâ - o que lhe permitia afirmar que só havia, de fato, unidade de ser. E isso é exatamente o que ensina a Gnose.
Há, pois que distinguir o Panteísmo, que identifica metafisicamente a Divindade e o Cosmos - daí a Cosmolatria - e Gnose, que opõe o Cosmos (ilusório) à Divindade (única Realidade), ao mesmo tempo que afirma que há algo substancialmente divino, aprisionado na matéria: o âtmâ, ou o "Si".
Olavo de Carvalho, repete de modo menos inteligente, essas mesmas doutrinas de Guénon., dizendo que:
"Deus não está acima de nós no sentido em que o capitão está acima do tenente" (Olavo de Carvalho, artigo "Verdade sem dono", in Jornal da Tarde, 2- X- 1997).
Portanto, para ele, Deus não poderia mandar no homem, no que ele concorda com o ex Frei Boff, e com Frei Betto.
De modo que, em Guénon, e em Olavo de Carvalho, não há apenas "Sabor de Gnose" - como até alunos dele reconheceram - mas há mais: há a própria Gnose. Eles são gnósticos: o primeiro, mais elevado; o segundo mais grosseiro e mais mal ajambrado.
Essa Unidade do Ser - entendida de modo gnóstico e não panteísta - é própria também à doutrina do shiismo e do sufismo, que Guénon adotou explicitamente, e Olavo semi ocultamente. (Lembre-se que ele confessou ter tido uma "experiência "pessoal na seita de Idries Sha).
Henry Corbin explica essa Unidade do Ser - defendida por Guénon - muito clara e explicitamente, em sua obra sobre o Islam Shiita, na Pérsia.
"A fórmula disso é: La ilâha illâ’llâh (não há Deus senão Deus). E há o Tawhid ontológico (Tawhid wojûdi): é o Tawhîd esotérico (Tawhîd bâtin), aquele no qual concordam os Iniciados (os "Amigos de Deus", os Awliyâ) convidando os homens a considerar o ser em seu ato absoluto de ser, isto é, sem responsabilidade [ em francês absout) pelas determinações que ele atualiza, porque não pode haver outro ser senão o ser. Compreender o sentido esotérico deste versículo: "Tudo o que existe sobre a terra se aniquila (fânin), somente persiste a Face de teu senhor em sua glória e em sua majestade"(55; 26-27) - é compreender a única realidade do ser único. A fórmula disto é; Laysa fi’l wojûd siwâ’llâh (só Deus é ser). Falando de monismo, evitemos criar equívocos com certos sistemas ocidentais modernos que nada tem a ver com o que tratamos aqui; seria preciso antes falar de théo - monismo, ou mesmo de théomonadismo." (Henry Corbin, En Islam Iranien, vol II, p. 104).
Fica então claríssimo: tanto em Guénon quanto no esoterismo islâmico e hinduísta, não há identidade da Divindade com o Mundo, o que seria panteísmo, mas haveria Unidade e Unicidade do Ser espiritual divino, pela presença substancial de algo da Divindade no ser manifestado, o âtmâ, o éon, aquilo que Eckhart chamava de Fünkenlein, a chamazinha divina aprisionada no fundo da alma humana, o que não é panteísmo, e sim, Gnose (Teo - Monismo ou Teo monadismo, como propõe Corbin.
Que essa doutrina é a da Gnose, é confirmado pelo mesmo Henry Corbin:
"Somente aquele que se volta em direção ao ser (absout) livre de toda determinação que o entrave, e compreende que "não há senão Deus que seja ser", somente este aí escapa ao shirk secreto, inconsciente, professa a Unidade no verdadeiro sentido, [somente esse aí] é um ‘ârif, um gnóstico" (Henry Corbin, op. cit. Vol III, p. 195. O negrito é meu. Os itálicos são do original).
De tudo isso, portanto, se conclui que a doutrina de Guénon é gnóstica, e que Guénon é um ‘ârif, um gnóstico.
E, na medida em que Olavo de Carvalho defende, repete, e não recusa essa doutrina da unicidade do ser, pelo contrário, a afirma dizendo que há "identidade e unicidade do Ser" (Cfr. Astrologia e Religião, Nova Stella, p.1986, p. 17) e de oposição do mundo manifestado em relação à Divindade (Cfr. Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, nota 3 do cap. VII, p. 91), nessa medida, ele também é um gnóstico.
←IV - 5. Oposição entre a Divindade e o Mundo material
No Item I da doutrina gnóstica citado por O de C., se diz que a oposição entre a divindade e o mundo se dá por causa da matéria "grosseira".
Caberia perguntar: haveria outra matéria não-grosseira, uma matéria subtil? Veremos isso, mais adiante.
Ora, Guénon tem uma concepção pessimista e depreciativa da matéria enquanto tal, pois diz: "...porque a matéria é essencialmente multiplicidade e divisão, e é, por isso, digamos de passagem, que tudo o que dela deriva só pode engendrar lutas e conflitos de todas as espécies, entre os povos como entre os indivíduos" (René Guénon, A Crise do mundo Moderno, ed. Veja, p. 73).
Ele opõe também o mundo das manifestações ao mundo "Principial", pois enquanto considera este o da imutabilidade, o mundo das manifestações - o Cosmos - é o do devir. Para ele toda a criatura é puro devir, sem ter nada de ser propriamente dito, sem ter nada de ontológico ou metafísico no sentido comum deste termo:
"(...) natureza" e "devir" são, na realidade sinônimos" (René Guénon, A Crise do Mundo Moderno, p. 99). Por isso, ele notará que Dante colocou Lúcifer no centro do globo terrestre: "(...) essa mesma tendência a que acaba de se fazer referência é também, poder-se-ia dizer, a tendência "individualizante", aquela segundo a qual se efetua o que a tradição judaico-cristã designa como nome de "queda" dos seres que se separaram da unidade". [O que é uma concepção tipicamente gnóstica e não cristã, dizemos nós]. E em nota a esta frase, Guénon escreve: "É por isso que Dante coloca a residência simbólica de Lúcifer no centro da Terra, isto é, no ponto onde convergem de todas as partes as forças da gravidade; é, neste ponto de vista, o inverso do centro da atração espiritual ou "celeste", que é simbolizada pelo Sol na maior parte das doutrinas tradicionais"(René Guénon, A Crise do Mundo Moderno, p. 121, nota 1).
←IV - 6. A Divindade e o Mundo na Gnose de Mestre Eckhart
Essa oposição da Divindade incognoscivel, oculta (Não-Ser) e de tudo o que compõe o mundo - conjunto dos seres manifestados, --- apareceu também nitidamente na Gnose de Mestre Eckhart.
"Antes mesmo que houvesse ser, Deus agiu; Ele fez o ser quando o ser não existia. Mestres de espírito frustro dizem que Deus é um puro ser, Ele está mais acima do ser que o mais elevado dos anjos está acima de uma mosca. Eu falaria falsamente também se eu chamasse Deus um ser tanto quanto se eu dissesse que o sol é pálido ou negro. Deus não é nem isto nem aquilo. E um mestre diz: Aquele que crê conheceu Deus, e, se conhecesse qualquer outra coisa, não conheceria Deus. Mas quando eu digo que Deus não é um ser e que Ele está acima do ser, eu, dizendo isso, não lhe contestei o ser, mas, ao contrário, eu lhe atribui um ser mais elevado" (Mestre Eckhart, Sermão Quasi Stella Matutina, in Sermons, Introdução e tradução de Jeanne Ancelet-Hustache, ed. du Seuil, n*9 p. 101).
E mais ainda dizia Mestre Eckhart:
"O ser é verdade? Se se interroga tal ou tal mestre, ele diria: "Sim!". Se me tivessem interrogado, eu teria respondido: "Sim!" Mas agora eu digo: "Não!", porque a verdade é assim super acrescentada (...) e se Ele não é nem bondade, nem ser, nem verdade, nem Um, que é Ele então? Ele é o Nada" (Mestre Eckhart, Sermão: n* 23, ed. cit. p. 21).
Desse modo, Deus enquanto relacionado com as criaturas é Ser, e é Ser de todas as coisas. Mas este Deus-Ser é apenas o adro da divindade, de Deus em si mesmo, que não seria ser, mas puro intelligere (cfr. Vladimir Lossky, Théologie Négative et Présence de Dieu chez Maître Eckhart, Vrin, Paris, 1973, pág. 213).
"(...) se Deus é ser, a criatura é nada; se a criatura é ser, Deus é superior ao ser e infinitamente não semelhante de tudo quanto existe"(V. Lossky, op. cit. p. 296).
Será preciso lembrar que Eckhart foi condenado pela Igreja como herege? (Cfr. Denziger, 501 a 529).
E Olavo de Carvalho, como Guénon e Tourniac, aponta Mestre Eckhart como um dos elos da corrente esotérica e "tradicionalista" do cristianismo.
Também Eckhart aceitava que a Divindade fosse Ser, desde que, então, se considerasse as criaturas como Não-Ser. A nota gnóstica está na oposição radical e absoluta entre a Divindade e o Universo. Também o gnóstico Bhagavad Gîta aceita que a Divindade possa ser considerada ou como ser, ou como Não Ser:
"Ó Infinito, senhor dos deuses, em quem o mundo habita, tu, imperecível, o ser e o Não-Ser, e aquilo que está além"(Bhagavad Gîta, XI, 37).
Veja, meu caro Felipe, que o Bhagavad Gîta coincide com o pensamento de Mestre Eckhart, e que, tanto Guénon quanto Olavo de Carvalho podem se apoiar, ambos, nesse mesmo texto do Gîta.
Aliás, um "historiador" biógrafo de Guénon, tido como católico ou pelo menos como cristão, Jean Tourniac, testifica que a metafísica de Eckhart é muito semelhante às doutrinas orientais e ao budismo Zen:
"É verdade que Eckhart não hesita em expor publicamente elementos doutrinários que estão singularmente próximos das perspectivas orientais, (..)
"(...) comparou-se o ensinamento de Mestre Eckhart ao do budismo Zen, e há muito de verdade nessa comparação" (Jean Tourniac, Propos sur René Guénon, Dervy - Livres, Paris, 1973, p.41).
O que torna a doutrina de Eckhart semelhante às doutrinas orientais é que todas elas são variações da Gnose.
E Schuon - que é outro dos gnósticos a quem Olavo diz ser devedor doutrinariamente - que diz Schuon desse problema?
"Ora, entre os conceitos inacessíveis ao exoterismo - [às religiões positivas] ---, o mais importante é talvez, pelo menos em certo sentido, o da gradação da Realidade Universal: a Realidade afirma-se por graus, sem deixar de ser una, achando-se os graus inferiores dessa afirmação absorvidos nos graus superiores, por integração ou síntese metafísica. É a doutrina da ilusão cósmica: o mundo não é apenas mais ou menos imperfeito ou efêmero, é sim desprovido de existência face à Realidade absoluta, pois a realidade do mundo limitaria a de Deus, o único que "é". Mas o Ser em si, que mais não é que o Deus pessoal, é por sua vez ultrapasssado pela Divindade impessoal ou suprapessoal, o Não-Ser, de que o Deus pessoal ou o Ser é apenas uma primeira determinação a partir da qual se desenvolvem todas as determinações secundárias que constituem a Existência Cósmica. Ora, o exoterismo não pode admitir nem a irrealidade do mundo, nem a realidade exclusiva do Princípio Divino, nem sobretudo, a transcendência do Não-ser em relação ao Ser, que é Deus" (Frithjof Schuon, A Unidade Transcendente das Religiões, Dom Quixote, 1991, pp 49-50. Os negritos são meus).
Veja, meu caro Felipe, como neste texto de Schuon - um dos mestres preferidos de Olavo-- fica patente a doutrina de oposição entra a Divindade (Nada, Não-Ser), e Deus (Ser), entre a Divindade (Única Realidade) e o mundo (ilusório).
Guénon repete essa mesma doutrina ao dizer:
"O Mundo, entendendo por essa palavra o conjunto da manifestação universal, não pode distinguir-se de Brahma senão de modo ilusório, enquanto que, pelo contrário, Brahma é absolutamente "distinto daquilo que Ele penetra", isto é, do Mundo, pois que não se lhe podem aplicar nenhum dos atributos determinativos que convém a este, e que a manifestação universal toda inteira é rigorosamente nula com relação à Sua Infinitude". (René Guénon, L’Homme et son Devenir selon le Vedanta, Ed, Traditionnelles, Paris, 1991, pp. 89-90).
E Jean Robin escreveu:
"A doutrina da Unicidade da existência, de fato, implicava a dos estados múltiplos do Ser, evocada na seguinte passagem de Tchoang-Tseu, citado por Guénon: "Não vos pergunteis se o Princípio está nisso ou naquilo. Ele está em tudo o que é. Por isso Lhe são atribuídas as qualidades de grande, supremo, inteiro, universal, total (...) Aquele que fez com que os seres fossem seres, (Ele mesmo) não está submetido às mesmas leis dos seres. Aquele que fez de modo que os seres fossem limitados, é ilimitado, infinito.(...) Enquanto manifestação, o Princípio produz a sucessão das suas fases, mas, Ele mesmo não é condensação ou dissipação. Tudo procede dEle e se modifica com e sob Sua influência. Ele está em todos os seres, por definição, mas Ele não é idêntico aos seres, não sendo diferenciado, nem limitado" (Jean Robin, René Guénon, Testimone della Tradizione, Ed Cinabro, Catania, 1993, p. 95).
E Olavo de Carvalho, seguindo as lições de seus mestres no Tradicionalismo esotérico, escreveu que "a reta simboliza o princípio da divisão - a substância" o estado de ser mais afastado do Ser puro.(Cfr. Astrologia e Religião, ed. cit. p. 80).
←IV - 7. Discordância entre Olavo e Guénon?
É verdade que Olavo diz separar-se de Guénon precisamente nessa questão de considerar o Primeiro Principio - o "Principial" - como Não-Ser ou como ser:
"O ponto chave dos erros de Guénon - que até hoje ninguém neste mundo parece ter enxergado, nem mesmo seus concorrentes da escola schuonniana - é de natureza puramente metafísica: está na sua doutrina do Não-Ser e das "possibilidades de não-manifestação". Esclarecida e derrubada essa doutrina intrinsecamente absurda, manifestam-se os verdadeiros pontos de discordância entre cristianismo e guénonismo, bem como sua via de conciliação. Explico isto mais extensamente em meu Diário Filósofico ". (Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições, Diadorim, Rio de janeiro, 1995, pp. 305-306, nota 170. O negrito é meu. Infelizmente não possuo o tal Diário Filosófico, que deve ter cada coisa...).
Repare duas coisas:
1) Olavo pretende ser possível conciliar guénonismo e cristianismo;
2) Por esse texto acima, Olavo não aceita que a divindade seja Não-Ser.
Isso o eximiria de aceitar a Gnose?
Não basta. Porque em outros escritos Olavo defende doutrina mais matizada e não tão oposta a de Guénon sobre o Não Ser:
"Segundo se vê em "Les États Multiples de l'Être", a teoria do Não-Ser implica, para além das possibilidades de manifestação e das impossibilidades de manifestação, uma terceira coisa que Guénon chama "possibilidades de não-manifestação". Esta noção é um "flatus vocis": ou ela designa apenas possibilidades de manifestação que efetivamente não se manifestaram, ou então puras impossibilidades de manifestação. Ora, as possibilidades de manifestação e as impossibilidades de manifestação, juntas, compõem o domínio propriamente dito do Ser, nada sobrando para além dele senão um conceito vazio. Na verdade a expressão Não-Ser só vale como figura de linguagem, para designar os aspectos superiores e mais sublimes do Ser mesmo, seu lado misterioso e eternamente desconhecido, ou imanifestado, portanto qualidades do Ser e não uma outra entidade substancialmente distinta. Creio que o próprio Guénon não ignorava isso. Alguns de seus colaboradores preferiram mesmo usar em vez de Não-Ser a expressão Supra-Ser para designar o Brahman, o eternamente imanifestado, distinguindo-o de Ishwara, o Ser manifestado. Isso basta para eliminar toda confusão a respeito." (Olavo de Carvalho, in Diário Filosófico, apud e-mail a aluno. Negrito nosso.)
Portanto, a diferença entre Olavo e Guénon seria de terminologia e não de conteúdo: em vez de Não Ser, Olavo prefere usar a expressão Supra Ser.
Ora, também esta não é uma idéia original de Olavo.
O gnóstico Mestre Eckhart já a havia adotado:
"Deus não é bom, ele não pode portanto tornar-se melhor, e porque ele não é melhor, ele não pode vir a ser o melhor (...). Ele está acima de tudo isso! Se eu digo ademais que Deus é sábio, isso não é verdade; eu sou mais sábio do que ele! Se eu digo ainda que Deus é alguma coisa que é, isso não é verdade; ele é algo absolutamente transcendente, ele é um supra ser não-ser"(Mestre Eckhart, Sermão: Da Renovação do Espírito, Obras de Mestre Eckhart, pp. 131, apud, G. Gusdorf, Le Romantisme, Vol. I, p. 566. O itálico é do autor).
Aproveito aqui, meu caro Felipe, observações que você me fez na carta mais recente que você me enviou:
A expressão Supra-Ser em vez de Não-Ser é utilizada pelo próprio Schuon, em "O Mistério do Véu", segundo ensaio do livro O Esoterismo como Princípio e como Caminho, escrito após A Unidade Transcendente das Religiões.
É claro que há muito de artificial em toda esta controvérsia, haja visto o caráter dialético da gnose, para a qual, em última instância, Deus é - usando a fórmula do gnóstico Nicolau de Cusa - a coincidentia oppositorum. Nasr o reconhece a seguir, ao afirmar que tanto faz chamar a Divindade de Ser ou Não-Ser, desde que se Lhe oponha o mundo:
"Ela [a Divindade] é Vazio se o mundo é encarado como plenitude e Plenitude se o relativo é percebido à luz de sua pobreza ontológica e vazio essencial. (9)"
E na nota nove, ele esclarece:
"(9)...metafisicamente falando, o conceito de Realidade Suprema como vazio e como plenitude se complementam um ao outro como o símbolo yin-yang e ambos se manifestam integralmente em toda tradição integral. Mesmo no Cristianismo, em que o simbolismo da Plenitude Divina é enfatizado e desenvolvido com notável elaboração na teologia franciscana, especialmente a de São Boaventura, a visão complementar de vazio aparece nos ensinamentos do dominicano Meister Eckhart, que fala do 'deserto da Divindade'." (Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, p. 134 e nota 9, p. 155-156)"
Até aqui, Felipe, vai a citação de sua carta, que tenho prazer em agregar a esse trabalho, como contribuição de um ex aluno de Olavo, que percebeu onde as brumas esotéricas olavianas o estavam levando.
E não posso deixar sem protesto a agregação do nome de São Boaventura nessa citação de Nasr, onde o Doutor Seráfico aparece como Pilatos no Credo.
←IV - 8. Toda criatura é puro fluxo. A Dialética Ontológica
Outra nota de oposição entre a Divindade e o Mundo criado - pelo menos na visão de Guénon - proviria do caráter dialético das coisas criadas, que faria delas um fluxo, um devir perpétuo, sem existir sujeito de mudança. O ser criado, para a Gnose, seria puro fluxo, e não propriamente Ser
Como vimos, quando a Gnose considera a Divindade como Ser, então, as criaturas não tem senão um ser aparente ou ilusório. Se a Gnose afirma que a Divindade é Nada absoluto, então é a criatura que é tida como ser.
Em todo caso, nas duas situações, ela vê a criatura como dialética, isto é, como sendo o resultado de uma luta de dois princípios iguais e contrários, que na Gnose Taoísta são chamados de Yin e Yang. Daí, ela considerar que toda criatura não é ser, mas apenas devir, fluxo, ou mudança, sem haver propriamente um sujeito de mudança, tal como dizia Heráclito.
Benoist cita a mesma imagem usada por Heráclito para afirmar o fluxo do devir:
"A Criação deve ser, por conseguinte, um fluxo permanente como a água que corre cria a permanência do rio"(Luc Benoist, El Esoterismo, p.15).
Guénon, também, defende essa teoria em vários de seus livros.
"A tradição extremo oriental em sua parte propriamente cosmológica atribui capital importância aos dois princípios, ou, se se preferir, às duas "categorias" que designa pelos nomes de yang e yin: tudo o que é ativo, positivo ou masculino é yang, tudo o que é passivo, negativo, ou feminino é yin. Em todas as coisas o lado claro é yang, e o escuro é yin, mas um não existindo nunca sem o outro, eles aparecem como complementares muito mais do que como opostos".(...) "Segundo o que já dissemos, é fácil compreender que yang é o que procede do Céu e yin o que procede da natureza da Terra(...) o aspecto Yang dos seres corresponde ao que neles há de "essencial" ou de "espiritual", e sabe-se que o Espírito é identificado com a luz pelo simbolismo de todas as tradições; por outro lado, seu aspecto yin é aquele pelo qual se liga à "substância", e esta, devido à "inintegibilidade" inerente à sua indistinção ou a seu estado de pura potencialidade, pode ser definida propriamente como a raiz obscura de toda a existência" (René Guénon, A Grande Tríade, pp. 29-30. O negrito é meu).
Não é necessário mostrar como essa doutrina é fortemente dualista, nem como os conceitos de essência e de substância são usados de modo abusivo, nem ainda como Guénon coloca um tom negativo na raiz obscura de toda existência, já que ele declara que a luz está relacionada com o Espírito.
Disso tudo, desse conceito dualista do ser proveniente da idéia do Yang e do yin, Guénon conclui que: "todo ser é andrógino" (René Guénon, A GrandeTríade, p. 30). O que e uma formulação tipicamente alquímica e gnóstica.
Desse choque de princípios opostos é que resulta a perpetua mutação, proveria idéia de que só existe o devir e não sujeito do devir, isto é, que todo ser é fluxo:
"(...) natureza" e "devir" são, na realidade sinônimos" (René Guénon, A Crise do Mundo Moderno, p. 99).
Também para o sr. O de C. o ser criado é puro fluxo, puro devir:
Com efeito, Olavo de Carvalho em muitos textos repete essa noção depreciativa do ser criado - "manifestado" - que é típica da Gnose e, como vimos, da doutrina de Guénon.
Falando do conceito dialético do ser de Hegel, ele já havia afirmado - sem qualquer restrição - que: "Em outras termos: ser é devir" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 32).
E não venha o sr. Olavo dizer que estamos atribuindo a ele o conceito de ser de Hegel, porque essas conclusões ele tira de seu raciocínio anterior sobre o Ying e yang, isto é, sobre a dialética dos contrários na gnose Taoísta, que ele vê confirmada em Hegel.
Tanto ele aceita essa noção de ser como fluxo, pelo menos no "mundo manifestado", que, pouco adiante, ele diz:
"Na astrologia, o símbolo que evoca esse segundo enfoque é o do ciclo lunar. Este projeta na tela dos céus o espetáculo da permanência na mudança, do ser que se revela e constitui no devir" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 32).
É do dualismo metafísico do ser --que Olavo aceita - que ele tira o conceito de ser como puro devir, o que faz de Olavo de Carvalho um seguidor da metafísica de Heráclito e não de Aristóteles. E Heráclito também pode ser apontado como um filósofo de pensamento gnóstico.
←IV - 9. Evolução da Divindade e sua Manifestação no mundo das criaturas
Para Olavo de Carvalho, como para os demais defensores da Tradição primordial, a Divindade, que Guénon chama de "Principial", seria una, eterna, imutável. Porém, que essa afirmação não engane. O termo "Imutável", em si mesmo, não significa que a Divindade não tenha se transmudado no Cosmos. Dizem, os que se auto denominam filósofos "perennialists", que a Divindade se manifestou primeiro emanando o Primeiro Ser - Ishiwara, no Hinduísmo --e depois todas os demais "níveis de ser", ou " os Múltiplos Estados de Ser", como expõe Guénon.
"Aqui, nos é preciso insistir um tanto sobre um ponto essencial: é que todos os princípios ou elementos de que falamos, que estão descritos como distintos, e que o são efetivamente do ponto de vista individual, não o são entretanto senão neste ponto de vista apenas, e não constituíam na realidade senão outras tantas modalidades manifestadas do "Espírito Universal" (Atma). (René Guénon, L’Homme et son Devenir selon le Vedanta, ed. cit. p. 89).
E pouco depois diz Guénon: "assim o Mundo, entendendo por essa palavra o conjunto da manifestação universal, não pode se distinguir de Brahma senão de modo ilusório, enquanto que, pelo contrário, Brahma é absolutamente "distinto daquilo que ele penetra", isto é, do Mundo, pois que não se Lhe pode aplicar nenhum dos atributos determinativos que convenham a este aqui, e que a manifestação universal toda inteira é rigorosamente nula em face de Sua Infinitude." (Réné Guénon, op. cit p. 90).
Fica claro que o universo provém da Infinitude de Brahma, e que Guénon o considera como ilusório, como não ser. Portanto, que há uma oposição completa entre a Divindade e o mundo da manifestação.
Guénon, expondo a doutrina Taoísta, afirma: "Os dez mil seres são produzidos (tsao) por Tai-i (que é idêntico ao Tai-ki), modificados (hua) por yin-yang, pois todos os seres provém da Unidade principal", mas suas ações no "devir" devem-se às ações e reações recíprocas das "duas determinações"(René Guénon, A Grande Tríade, ed. Pensamento, São Paulo, p.33. O negrito é meu).
E se Guénon diz que tudo emana da Unidade principal, Olavo vai repetir isso mesmo, pois ele só ecoa - se fosse em classe de escola, dir-se-ia que ele só cola - o que seus mestres "tradicionalistas" dizem.
"A linha horizontal não é outra coisa senão o ideograma I, que significa o número 1, e também, segundo Wieger, a unidade primordial, o ser, de onde emanam todas as coisas (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, Ed. Nova Stella, São Paulo, 1985, p.74-75. O negrito é do autor. O sublinhado é meu)., o Ser é portanto o extremo limite onde estão contidas todas as mutações que constituem e dissolvem os entes"
Não disse?
Tinha certeza que Olavo ia colar também isso.
Portanto, Olavo escreveu: da "Unidade primordial, o ser, de onde emanam todas as coisas".
E chamo sua atenção para o verbo "emanar". Olavo não fala em criação dos seres do universo, e sim em emanação, exatamente como afirma a Gnose.
←IV - 10. Tipos de matéria: a grosseira e a subtil
Vimos que no primeiro item Olavo indica que a Gnose "opõe a Divindade ao mundo da matéria grosseira".
Ora, vimos que há sistemas gnósticos, como os da Cabala e o do Romantismo que aceitam a matéria, embora a oponham à Divindade. Esses sistemas são exatamente aqueles nos quais se distingue uma "matéria grosseira" das coisas deste nosso mundo visível, e uma "matéria subtil " própria de seres de um mudo superior ao nosso.
Para citar só um exemplo da teoria gnóstica da matéria subtil, limitar - me - ei à da Gnose islamita, tão apreciada por seu Olavo:
"Esta metafísica [do ser como luz] provém, com suas variantes particulares, da metafísica da luz largamente professada pelas escolas teosóficas tradicionais na cristandade, no Islam e entre os Cabalistas judeus. A doutrina dos quanta de tempo e de espaço, em Oâzi Sa’id Qommi, não é senão uma conseqüência da análise aplicada ao conjunto da metafísica do ser, e pela qual desaparece o hiatus entre o que é chamado Espírito e o que é chamado Matéria. Há uma só e mesma Luz diferenciada em múltiplos graus de condensação e de subtilidade; há uma "matéria espiritual" e há uma matéria no "estado material"; o corpo no mundo do Malakût se torna um corpo espiritual subtil. De um modo geral, pode-se dizer que esta metafísica tradicional da Luz precedeu os resultados de nossa moderna física da luz, na medida em que esta tornou definitivamente precária toda fronteira interposta entre "material" e "imaterial" (Henry Corbin, En Islam Iranien, Vol. IV, p. 198).
Conforme a Gnose shiita, haveria um mundo imaginal intermediário entre o mundo sensível, da materialidade grosseira, e o mundo intelectual, puramente espiritual. Este mundo imaginal era chamado de Hûrqaliâ, na Gnose shiita.
O Sheik Ahmad distinguia:
"1o) Há o primeiro jasad que chamaremos de Jasad A, e que é entendido como sendo o corpo elementar, material e perecível. É o corpo aparente de cada um de nós, aquele que podemos ver, tocar, pesar, reconhecer. É uma formação acidental e caduca, resultante de uma composição de elementos físicos sub lunares.
" 2o) Há um segundo jasad que chamaremos Jasad B; ele é escondido e oculto a nossos olhos no jasad A; ele também é uma formação elementar, mas, diferentemente do primeiro, não são os elementos terrestres perecíveis, os de nossa Terra material que o constituem; são os elementos - arquétipos ou elementos subtis da "Terra de Hûrqaliâ". Este segundo jasad é portanto uma formação pertencente ao mundo intermediário, ao mundo do barzkh ou mundus imaginalis; ele tem por conseqüência dimensões mas diferentemente do primeiro jasad, ele não é um corpo acidental, é um corpo essencial e imperecível; é o corpo elementar subtil, o corpo de "carne espiritual", caro spiritualis.
"3o) Há o primeiro jism: chamêmo-lo de Jism A. Diferentemente dos dois jasad, ele não é um corpo elementar; ele não pertence aos Elementos terrestres nem aos Elementos subtis. Ele parece com o Jasad A porque ele é como ele acidental, não durável para sempre.. Ele parece com o Jasad B no sentido em que ele é, como ele, uma formação do mundo intermediário. Entretanto, não é dos Elementos subtis da Terra de Hûrqaliâ que ele provém (isto é, da região que ai corresponde ao clima terrestre do Ocidente cósmico); ele se origina na matéria celeste e nos Céus de Hûrqaliâ (isto é, na região correspondente às Esferas, ao clima celeste do Ocidente cósmico). É o corpo celeste subtil destinado a se reabsorver, o corpo astral.
"4O) Há o segundo jism, que chamaremos Jism B, e que é o corpo subtil essencial, arquétipo, eterno e imperecível (jism asli haqîqî); jamais o espírito se separa dele, porque ele é constituído de individualidade eterna. Dele se pode dizer que ele é corpo supracaeleste no homem" (Henry Corbin, Corps spirituel et Terre Céleste, De l’ Iram Mazdéen À l’Iran Shî’ite, Buchet Chastel, Paris, 1979, pp.115 e 116).
É essa correspondência "analógica" entre o mundo material grosseiro e o mundo imaginal subtil que permite, junto com a dialética, à Alquimia afirmar que a matéria e espírito são correlatos: que a matéria é espírito cristalizado, e que o espírito é matéria sublimada, doutrina essa, alquímica e gnóstica, que se encontra em Jacob Boehme e em seus seguidores, tais como Von Baader, Oetinger, Benguel, e, mais tarde, no próprio Hegel.
Baader distingue uma matéria incorruptível do ser eterno, e outra corruptível do ser temporal. Diz ele: "Confundir ou separar espírito e matéria, como fazem o panteísmo e o espiritualismo, constitui um erro; fazer do espírito e da matéria dois princípios hostís é outro erro(...)há separação entre espírito e a matéria, pelo fato que não se os distingue; não há também hostilidade entre eles". (E. Susini, Franz Von Baader et le Romantisme Mystique, Vrin, Paris, 1942, vol. II, p. 454).
Para Oetinger, cabalista cristão (luterano), alquimista e pré romântico, "O volátil se fixa e o fixo se volatiliza. Isso significa que o espírito se torna corpo, e o corpo se torna espírito. (...) O perfeito símbolo dessa alquimia é Jesus Cristo: em sua pessoa, o Espírito revestiu uma forma corporal e o corpo de carne se espiritualizou com a ressurreição. Essa pessoa é por excelência o lugar do encontro entre o espírito e o corpo (...) É universalizando essa verdade que Oetinger declara de um lado que tudo é espírito, de outro lado, que tudo o que é espírito, é também corpo"(Pierre Deghaye, La Philosophie Sacrée d‘Oetinger, in Kabbalistes Chrétiens, Albin - Michel, Paris, 1979, p. 247).
Também Luc Benoist afirma a existência de vários mundos:
"Desde uma concepção universal, o mundo se apresenta sob três aspectos: um estado de não manifestação que representa a Possibilidade Universal, um estado de manifestação informal ou subtil que representa a Alma do Mundo e um estado de manifestação formal ou bruta que é o do mundo substancial dos corpos"(Luc Benoist, El Esoterismo, ed. cit., p. 9).
Mais adiante, Benoist vai se referir a um quarto "mundo ":
"Além e acima dos três mundos, o da manifestação corporal, sutil e informal, há um quarto estado não manifestado, princípio dos outros três. É o mundo do En Soph hebreu [da Cabala], da Libertação hindu, da identidade suprema do Islam, e chega-se a ele depois de ter passado além do manifestado, além da obscuridade, quando se pode ver, dizem os textos hindus, o outro rosto da obscuridade. É o estado do yogui hindu e do Homem universal islâmico" (...)"Libertação, conhecimento e identidade não são senão um só e mesmo estado em que o sujeito, o meio e o fim se identificam. Somente o yogui, que corresponde também ao pneumático da Gnosis pode obter uma libertação na vida (...)" (Luc Benoist, El Esoterismo, p. 22).
Poder-se-iam fazer muitas outras citações, que lhe poupo, para não alongar mais ainda esta "lettre - fleuve".
E Olavo? Aceita ele, com a Gnose islamita, que existe uma matéria subtil e uma matéria grosseira, sendo esta o que há de mais oposto à Divindade? Aceita ele que existe um mundo imaginal, sutil?
Falando do Zodíaco, Olavo explica que usando a palavra zoon para designar os seres do Zodíaco, os gregos quereriam dizer que essas criaturas eram de fato seres reais, vivos. Diz mais: "é forçoso concluir que, se designaram tais criaturas pela palavra zoon, foi porque as consideravam tão reais quanto os elefantes ou as minhocas, e não simples produções do psiquismo humano. De fato, a idéia de identificar "realidade" e "corporeidade" não passou pela cabeça de ninguém antes do século XIX e os gregos não tinham portanto nenhum motivo para crer que o incorpóreo fosse necessariamente subjetivo" (Olavo de Carvalho. Astros e Símbolos, p. 60.O negrito é do autor).
E depois de dizer essa enormidade, continua, mais adiante Olavo:
"Seres como a cabra marinha e o centauro possuíam, portanto, uma fórmula própria de realidade, distinta tanto da presença corpórea quanto da pura ideação subjetiva. Essa forma de realidade intermediária foi denominada em latim mundus imaginalis, e o termo "imaginal" pressupunha uma distinção radical entre ela e o "imaginário" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 60).
E ainda: "O mundus imaginalis é o âmbito das hierofanias, das aparições sacrais, (...) "(Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 61).
Dizendo isso, Olavo se enfileira no pelotão dos esotéricos, pois Luc Benoist também diz que no, ‘mundo intermédio’, "se encontram os prolongamentos extra corporais dos indivíduos, as energias das entidades não humanas, as influências dos ‘gênios elementares’ ou elementos de Paracelso, que as tradições chamam de gnomos, ondinas, silfos, salamandras, djins, demônios" (Luc Benoist, El Esoterismo, p. 14).
Pelo menos, Olavo pode dizer que não está sozinho nesse delírio, o que sempre é uma consolação...
Olavo, que tão dado é aos estudos de esoterismo islâmico, e que cita elogiosamente o gnóstico shiita Henry Corbin, cita também a expressão mundus imaginalis, típica da Gnose shiita. Logo, ele conhece e aceita a existência desse mundus imaginalis constituído de uma corporeidade subtil, que é uma crença própria da Gnose shiita.
Por outro lado a Alquimia tem como verdade e certeza que a matéria é espírito cristalizado, e que o espírito é matéria sublimada.
"Os próprios alquimistas descrevem freqüentemente o objetivo de sua obra como "volatilização do sólido e solidificação do volátil", ou como "espiritualização do corpo e corporeificação do espírito" (Titus Burckhardt, Alchimie, sa Signification et son Image du Monde, Thot, Milan, sem data, original ed. alemã de 1960, p.80. A tradução é minha).
"Como dizem os alquimistas, o "corpo" deve se tornar "espírito" e o "espírito" deve se tornar "corpo" (Titus Burckhardt, op. cit. p. 82).
Para os alquimistas - e a Alquimia, como veremos, é uma ciência gnóstica - "(...) a matéria permanece um aspecto ou uma função de Deus. Não é uma realidade separada do espírito, mas o complemento necessário dele"(Titus Burckhardt, op. cit., p. 57).
"Para a humanidade "arcaica" - que não faz a separação artificial entre matéria e espírito - (...) (Titus Burckhardt, op. cit., p. 13).
"A concepção de uma matéria radicalmente separada do espírito, tal qual se apresenta tanto na teoria quanto na prática em nosso mundo moderno - a despeito de certas correntes filosóficas opostas - não é de nenhum modo evidente em si.
(...) "Conforme Descartes, o espírito e a matéria são duas realidades radicalmente distintas que, segundo um plano divino, se reencontram apenas num único ponto: o cérebro humano(...) Para os povos antigos, a matéria era como um aspecto de Deus. Nas civilizações comumente chamadas arcaicas, essa perspectiva era imediata e ligada à experiência sensível, porque essa aqui, a matéria, era a terra em seu aspecto de perenidade, como princípio passivo de todas as coisas visíveis, enquanto que o céu representava o princípio ativo e gerador. Estes dois princípios são como as duas mãos de Deus. Eles estão reciprocamente relacionados como macho e fêmea, pai e mãe, e não podem ser dissociados, porque em tudo o que produz a Terra, o Céu está presente como princípio gerador"(Titus Burckhardt, op. cit., pp.55-56).
Dada essa correlação e esta identidade dialética entre matéria e espírito, para a Alquimia poderia ser dito que a própria alma espiritual possuía uma "matéria (Cfr. Titus Burckhardt, op. cit., p. 66).
E Olavo, que cita, admira e recomenda Titus Burckhardt como um de seus mestres, Olavo defende a Alquimia, que é uma ciência gnóstica, como provaremos adiante.
Por tudo isso, é seguramente uma simplificação própria de enciclopédia popular o que Olavo cita em seu primeiro ponto fundamental da Gnose. E a expressão "matéria grosseira" que Olavo usou - ou copiou - deixa aberta a porta para a admissão da existência de uma suposta matéria subtil, típica da Gnose e da Alquimia.
←IV - 11. Conclusão deste primeiro item
Registremos então este ponto: para Olavo de Carvalho, o Principial é Ser, é único, eterno e imutável, embora ele tenha dito que ele é chamado também de "Inexistente", pelos filósofos que pretendem ter um "conhecimento", uma "Sabedoria terminal", superior à própria Filosofia, isto é, a Gnose.
Registremos ainda que para Olavo de Carvalho tudo o que existe no Cosmos emanou da Unidade primordial, ou Ser.
Resumindo: o sr. Olavo de Carvalho afirma:
1) Que há oposição entre o "Principial" e o mundo manifestado.
2) Que, ao contrário do que diz Guénon, o Principial seria Ser ou Supra Ser.
3) Mas, com Guénon e Schuon, ele concorda que o mundo manifestado é pura ilusão. Que o ser criado é fluxo, é devir.
4) Que há um dualismo no ser manifestado, que é expresso pelos princípios: do Yin e do Yang, da Gnose taoísta. O que significa aceitar o dualismo metafísico no ser criado, contrariando os princípios de identidade e de não-contradição, princípios esses recusados pela Gnose.
5) Que a tendência à individuação é má. De onde decorre logicamente sua condenação do princípio de individuação, que é a matéria. Daí o seu desprezo por tudo o que é individual, enquanto tal, que só teria valor enquanto potencialidade de divinização, pois, como ensinou Guénon, o indivíduo é Deus em potencial, pelo seu "Si"
6) Ele aceita a doutrina guénoniana dos "estados múltiplos do ser ", que conduz à negação do mundo "manifestado", considerado como mera ilusão.
7) Ele apóia, sem fazer restrições --a não ser negando que o Principial seja Não-Ser - autores que são patentemente, e às vezes, confessadamente gnósticos como Guénon, Schuon, Burckhardt, Nasr, Ibn Arabi, etc.
←V - O 2º Item da Gnose, segundo Olavo de Carvalho: o Demiurgo
"O Criador apresentado como uma divindade secundária imperfeita ou má, em contraste com a suprema divindade espiritual".
Essa oposição já foi vista em muitas das citações do item anterior, nas quais ficou patente que os pensadores da escola guénoniana admitem que há uma distinção metafísica entre a Divindade e Deus. Se a Divindade é considerada como Não-Ser, como diz Guénon, ou como Supra Ser, como sugere Olavo, Deus e o Mundo serão tidos como Seres. Se a Divindade é considerada como Ser, como afirma Olavo, Deus será tido como Nada, ou Não-Ser.
Esse Deus, primeira manifestação da Divindade, teria sido o Criador, o causador das manifestações divinas. É a este Criador que a Gnose sempre chamou de Demiurgo, aquele que a Bíblia denominou Yahwé.
É facílimo provar que a escola de Guénon defende essa tese. Para isso basta citar o artigo Le Demiurge - o Demiurgo - que René Guénon publicou na Revista La Gnose, no 1, novembro - dezembro de 1909, e janeiro de 1910, sob a assinatura de T. Palingenius, nome que ele adotou, quando foi sagrado Bispo da Igreja Gnóstica. (Cfr. René Guénon, Mélanges, "Le Demiurge, Gallimard, Paris, 1976).
Nesse artigo - ao qual jamais O de C. fez reparos ou recusou adesão, pelo contrário apoiou e elogiou --Guénon expõe largamente a doutrina gnóstica do Criador oposto à Divindade.
Ele começa exatamente, como toda Gnose, tratando da questão da origem do mal e pergunta : "Si Deus est, unde malum? ".
E ele responde a essa questão, como todo gnóstico, dizendo que o imperfeito não pode provir do perfeito. Portanto, recusando o ser por analogia (no sentido tomista do termo analogia).
René Guénon - cuja defesa por O de C. deu início a este debate - escreveu:
"É evidente que o perfeito não pode produzir a imperfeição, já que se isso fosse possível, o perfeito deveria conter em si mesmo o imperfeito em estado principial, com o que deixaria de ser perfeito. O imperfeito não pode proceder do perfeito por via de emanação; assim, não poderia resultar senão da criação "ex nihilo"; mas como admitir que algo possa proceder do nada, ou, em outros termos, que possa existir coisa carente de princípio? Por um lado, admitir a criação "Ex- nihilo" seria admitir o aniquilamento final de todos os seres criados, já que, o que teve um começo, deve também ter um final, e não há nada mais ilógico que falar de imortalidade em tal hipótese. Mas a criação assim entendida é um absurdo, posto que é contrária ao princípio de causalidade, que é inegável para todo homem sincero e medianamente razoável, com o que podemos dizer como Lucrécio: "Ex nihilo nihil, ad nihilum nihil posse reverti" (Palingenius, aliás, René Guénon, O Demiurgo, artigo publicado pela primeira vez no número 1 da revista La Gnose, 1909, reeditado in René Guénon, Mélanges Centro Studi Guenoniani, Venezia, 1978, parte I, p. 19. A tradução é do Instituto René Guénon de Estudos Tradicionais).
E note que Guénon assinou esse artigo como Bispo da Igreja Gnóstica, na qual ele assumiu o nome de Palingênius, renascido.
Será que Guénon, Bispo da Igreja Gnóstica não era gnóstico?
É de rir.
A doutrina gnóstica de Guénon se encaixa inteiramente no sistema da Gnose pois considera a criação ex nihilo, - como a ensina a Igreja Católica - um absurdo, e julga que uma Divindade perfeita não poderia ter produzido uma criação imperfeita. Exatamente como ensina a Gnose.
Guénon, ao dizer que o perfeito não pode produzir o imperfeito, faz confusão entre perfeito absoluto (Deus) e o perfeito relativo (a criatura).
Pelo contrário, dizemos nós, o que é evidente é que Deus não poderia produzir outro Ser perfeito absoluto, porque este último, se criado, por ser criado, já não teria a perfeição do criador. Logo, Deus só pode criar seres com perfeição relativa.
Também por essa doutrina, Guénon é gnóstico.
E O de C. quer ser o continuador da obra de Guénon. Logo, quer dar prosseguimento à sua pregação gnóstica.
Esta doutrina sobre o Demiurgo como deus criador, responsável pelo mal metafísico, Guénon já a recebera de seu iniciador nas doutrinas taoístas, Albert de Pouvourville (Matgioi).
"O Deus pessoal das ‘religiões jeovaistas’, para Matgioi, estava na origem de [sua] enfermidade intelectual." (J.P. Laurent, Le Sens Caché dans l’oeuvre de René Guénon, p. 157, apud Marie-France James, Ésotérisme et Christianisme autour de René Guénon, p. 80, nota 33).
E essa autora explica ainda que, para Matgioi, "... o cristianismo, refluxo do budismo, tinha sido artificialmente ligado ‘por copistas malfazejos’ ao ‘Jeovaismo demiúrgico’. O tema do demiurgo, tão importante no Esoterismo, achava aqui uma nova aplicação: os judeus tinham interceptado o raio celeste e tornado necessária esta forma imperfeita e diminuída de conhecimento que foi a Revelação "(J. P. Laurent, Le Sens Caché dans l’oeuvre de René Guénon, p. 53, apud Marie -France James, op. cit. p. 80, nota 34).
No artigo intitulado Le Démiurge, Guénon ensina a Gnose de modo explícito: "Podemos dizer que o Demiurgo cria a Matéria entendendo por essa palavra o cáos primordial que é a reserva comum de todas as formas, depois organiza essa matéria caótica e tenebrosa onde reina a confusão, fazendo surgir dela as formas múltiplas cujo conjunto constitui a criação" (T. Palingenius, aliás, René Guénon, Le Démiurge, artigo publicado originalmente na revista La Gnose n o 1, p. 4).
Não há dúvida então que T. Palingenius, Bispo da Igreja Gnóstica, era um gnóstico. (E o "T." significava bem sintomaticamente Tau..."Á bon entendeur...").
Quem tiver ouvidos para entender, que entenda.
Seria preciso citar o artigo de Guénon na íntegra, tanto ele é interessante para provar que ele é gnóstico. Limitemo-nos a algumas passagens.:
"Considerado como criador, o Demiurgo produz primeiro a divisão, e não é realmente distinto dela, já que só existe enquanto a divisão mesma existe; depois, como a divisão é a fonte da existência individual e essa vem definida pela forma, o Demiurgo deve ser considerado como formador e então é idêntico a Adam Protoplastas, tal como vimos"(René Guénon, Le Démiurge, p. 4).
Também Nasr considera que o mundo - produção do Demiurgo - é mau, e que o homem deve buscar libertar-se dele, da mesma forma que era preconizada pelo maniqueísmo e pelo budismo:
"O ponto de vista do maniqueísmo, que vê o mundo como mau ao invés de bom, é primeiramente iniciático e não metafísico, ou seja, começa com o objetivo não de entender a natureza das coisas, mas de fornecer uma via para escapar da prisão da existência material. O budismo possui uma perspectiva prática similar mas, é claro, com um pano de fundo metafísico diferente, à medida que pertence a um universo espiritual diferente." (Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, State University of New York Press, 1989, p. 156, nota 13)
Veja, meu prezado Felipe, como Guénon considera o Demiurgo criador - isto é, o Deus que a Igreja Católica adora - como mau:
"Isso nos leva a considerar ao Demiurgo como um reflexo tenebroso e invertido do Ser, já que na realidade não pode ser outra coisa".(R Guénon, Le Démiurge, p. 4).
Essa asserção de Guénon - a quem Olavo não quis reconhecer como gnóstico, e de quem se fez defensor e divulgador - nos leva a indagar: será que Guénon, como muitos outros gnósticos, julgava que o demiurgo era, de fato, o deus do mal.? Será que ele identificava Yahwé a Lúcifer?
Ora, nesse mesmo artigo, Guénon escreveu:
"Desde um ponto de vista geral, o Demiurgo, convertido em uma potência distinta e considerado como tal, é o "príncipe deste mundo" de que se fala no Evangelho de São João " (R. Guénon, Le Démiurge, p. 4. O negrito é meu).
Todos os intérpretes do Evangelho sempre disseram que o "Príncipe deste Mundo" do qual falou o mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo, no Evangelho de São João, é o próprio demônio, Lúcifer.
Portanto, Guénon considera que o Criador deste mundo material grosseiro foi o diabo, identificando Deus Pai, o Criador, com Lúcifer.
E quando ainda assinava artigos como Bispo da Igreja Gnóstica, Guénon escreveu, tratando da diferença entre o Grande Arquiteto do Universo e o Demiurgo:
"Isso basta para marcar a profunda diferença entre o Grande Arquiteto da Maçonaria, de um lado, e, de outro, os deuses das diversas religiões, que não são todos senão aspetos diversos do Demiurgo" (Palingenius, aliás, René Guénon, La Gnose, Julho - Agosto de 1911; apud Marie-France James, op. cit. p. 131, nota 30).
Portanto, para Guénon, o Deus Criador da Bíblia, para ele, era o demiurgo causador do mal pela criação do universo material.
Está então provado que Guénon defende exatamente o segundo item citado por Olavo como fundamental da doutrina gnóstica. René Guénon é, pois, um gnóstico.
E Olavo de Carvalho defendeu Guénon, se declara continuador e divulgador de seu pensamento, nunca condenou essa blasfêmia de Guénon, não quis reconhecer que ele é um gnóstico, e omitiu que Guénon foi Bispo da Igreja Gnóstica.
Por que Olavo fez tudo isso?
Mas Olavo de Carvalho não se limitou a fazer tudo isso. Ele elogiou o artigo Le Démiurge de Guénon, assumindo a sua doutrina.
"Talvez a amostra mais contundente da coerência da obra guénoniana seja o fato de que, no seu primeiro artigo, publicado em 1909 (Le Démiurge), Guénon já tenha definido, de maneira taxativa, tanto a sua posição quanto a do adversário: e daí até a sua morte, em 1951, Guénon permanecerá, sem nenhuma alteração doutrinária, o defensor da Unidade contra "o espírito de negação e de revolta", da parte contra o todo e do relativo contra o Absoluto, o qual espírito personificado, recebe na tradição semítica o nome de Shatan, Shaitan, ou Satã, termos que querem dizer precisamente" o Adversário " (Olavo de Carvalho, O Homem e sua lanterna. René Guénon o Mestre da Tradição contra o Reino da Deturpação, in revista Planeta, no 107, agosto de 1981, p. 17).
Portanto, Olavo de Carvalho adere à doutrina gnóstica exposta pelo Bispo Gnóstico Palingenius - Guénon de que o Criador do Universo - o Demiurgo - é para ele também o "Adversário", Satã, o revoltado contra a Unidade, contra o Absoluto, contra a Divindade Incognoscível.
E por essa citação do próprio Olavo de Carvalho fica provado, mais uma vez, que ele também tem uma doutrina gnóstica. E bastaria este ponto: o de identificar o Criador, o Demiurgo, com Satã, o Adversário, com Lúcifer, para que ele seja um verdadeiro e completo defensor da Gnose.
Olavo de Carvalho, também, é gnóstico.
Para bom entendedor, bastaria essa citação de Olavo, para compreender que ele é adepto da Gnose.
Entretanto, daremos alguns textos a mais de Olavo, para confirmar o que está para lá de evidente no texto acima sobre a identificação do Demiurgo com Satã.
A Gnose pretende que toda a criação é fruto de uma queda da própria Divindade que se teria tornado prisioneira no universo material criado pelo demiurgo. Por isso, a Gnose apresenta as esferas cósmicas como verdadeiras "muralhas" orbitais do grande cárcere do universo. Essas órbitas planetárias ou astrais seriam guardadas pelos servos do Demiurgo, os Arcontes, ou espíritos planetários, demônios que impediriam o retorno das partículas divinas (âtmâs) ao pléroma divino.
A criação teria sido uma queda da Divindade, e isto seria a causa de todo o mal do universo. A criação teria sido um drama teo cosmogônico. Para os gnósticos, enquanto estão presas no universo material, as partículas divinas - os âtmâs, os "primum" de Ibn Arabi, os éons da Gnose antiga, etc.-- estão no reino da dor e do sofrimento, no túmulo da matéria, onde foram encarceradas pelo Demiurgo, isto é, pelo "Adversário."
"(...) essa separação dos caminhos [o do Conhecimento e o da ciência] sem cruzamento acha sua origem, para o cristianismo e para o judaísmo, no seio de um drama ético cuja responsabilidade, a do pecado, cabe ao homem, enquanto que, para a Gnose, o drama se dá, e foi sempre, e está já atado, dando-se fora do tempo na esfera do divino. No Primeiro caso, a criação, foi humanamente corrompida, enquanto que, no segundo, essa corrupção é o fruto de uma deficiência não mais ética, mas ontológica: para os gnósticos, se a criação é má e corrompida, ele o é porque é a criação de um deus que não é verdadeiramente Deus, a gnose introduz uma distinção entre o demiurgo e o Deus verdadeiro" (Michel Barat, Le Dualisme de la Gnose et L ‘Image Symboliquemente double de la Femme, in Les Cahiers Jean Scot Erigène, I, Images de l’Homme e Iniciation, ed. Loge d’Etudes et de Recherche Jean Scot Erigène, Parois, 1988, pp. 36-37).
Já citamos e explicamos a frase abstrusamente arrevesada de Olavo que alude à queda da Divindade como causa e raiz do mal do universo criado:
"A psicologia astrológica (sic!?) é uma teoria do sentido do sofrimento e da raiz deste último nas polarizações que cosmogonicamente desdobram o orbe manifesto a partir da unidade do ser" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, Nova Stella, São Paulo, 1985, p. 65).
Essa mesma tese da unidade do ser é proclamada por Olavo, de modo ambíguo, ao escrever:
"Ser e unidade são sinônimos. Ser é ser um" (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, p. 26).
É claro que essas frase devem ser entendidas no contexto da doutrina exposta por Guénon, por Ibn Arabi e pelos outros mestres de Olavo, e não num contexto metafísico tomista a respeito dos transcendentais do ser, a respeito do ens e do unum. É no contexto da doutrina sufi e hinduísta da unidade e da unicidade do ser que deve ser compreendida essa citação de Olavo de ser como sinônimo de unidade.
Como todo gnóstico, Olavo desvaloriza o mundo material concreto, assim como as ciências naturais que permitem conhecê-lo, preferindo as "ciências esotéricas tradicionais", as ciências ocultas da Gnose, a Alquimia, a Astrologia etc. Por essa razão diz Olavo que "a experiência concreta é destituída de verdade, destituída de sentido".
"Ora, os princípios universais geralmente chegam a nosso conhecimento unicamente através de fórmulas abstratas, de modo que nos encontramos sempre divididos entre uma verdade universal e abstrata e uma experiência concreta destituída de verdade e de sentido" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, ed cit. p. 41).
Daí, ele falar também da "opacidade dos dados fenomênicos sensíveis" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 50). Por isso também ele opõe a intuição tradicional que dá a Sabedoria ou Gnose à Filosofia racional que se fundamenta numa análise dos dados materiais destituídos de verdade e de sentido. Para Guénon, que normalmente é seguido nesse ponto por seus discípulos tradicionalistas, a "Metafísica" é sobrenatural" (R. Guénon, A Metafísica Oriental, tradução de Olavo de Carvalho, p.19-20), ela está "além da natureza" (Op. cit., p. 17), está "além do ser" (op., cit p. 21).
Daí, Guénon fazer restrição até mesmo a Aristóteles, dizendo que "Assim, quando Aristóteles encarava a metafísica como o conhecimento do ser enquanto ser, ele a identificava com a ontologia, isto é, tomava a parte pelo todo" (René Guénon, A Metafísica Oriental, tradução de Olavo de Carvalho, p. 21), para concluir que a metafísica de Aristóteles é "parcial" e "incompleta por limitar-se ao ser" (R. Guénon, A Metafísica Oriental, p. 26).
Evidentemente, Guénon toma o termo "Metafísica" como sinônimo de Gnose, caso contrário, seria o cúmulo da pretensão ele querer criticar Aristóteles enquanto Metafísico.
A Metafísica "tradicional" - a esotérica - não seria filosofia: "não é um conhecimento puramente humano e racional". "(...) um conhecimento de ordem natural, um saber profano e exterior; não é de nada disso que desejamos falar. Tomamos, então, "metafísica" como sinônimo de "sobrenatural? Aceitaríamos de bom grado tal assimilação, de vez que, enquanto não ultrapassamos a natureza, isto é, o mundo manifesto em toda a sua extensão (e não apenas o mundo sensível, que não é, dele, senão um elemento infinitesimal), estamos ainda no domínio da física; o que é metafísico, como dissemos, é aquilo que está além da natureza, é portanto, propriamente o "sobrenatural "(René Guénon, A Metafísica Oriental, pp.19- 20. Tradução de Olavo de Carvalho).
Todo esse desprezo de Guénon pela Física e pela Metafísica aristotélica provém exatamente da consideração de que o mundo material seria ilusório, valendo apenas como manifestação do mundo divino.
Guénon vai defender uma "Metafísica" supra racional, sobrenatural, contra a Metafísica racional, aristotélica. Do mesmo modo, como toda a Gnose, valorizará as ciências esotéricas em detrimento das ciências naturais. O mesmo faz Olavo, ao defender a Astrologia e a Alquimia, que, como veremos, se fundamentam na Gnose.
Sobre o desprezo das ciências naturais, e a preferência pelas ciências esotéricas, veremos outro textos mais adiante. Aqui, só colocamos esses pontos como comprovação de uma concepção negativa do mundo, típica da Gnose.
←VI - O 3º Item fundamental da Gnose, segundo Olavo de Carvalho
"A oposição irrecorrível do corpo e da alma, donde a concepção da alma como prisioneira do corpo material".
←VI - 1. Um Erro de Olavo
Nessa redação de seu terceiro item da Gnose, O de C. cometeu um erro grosseiro. A Gnose jamais afirmou que a oposição é entre a alma e o corpo. Ela vai mais longe. A oposição que ela afirma é entre o espírito divino (pneuma) aprisionado quer no corpo material (hylé), quer na alma (psyché). E que essa oposição é de ordem metafísica.
Para a Gnose, o homem é um ser composto de três elementos distintos:
1) corpo material; 2) alma racional; 3) espírito divino (pneuma).
Sendo que o "pneuma", repetimos, se oporia tanto à alma, quanto ao corpo.
Como Olavo cometeu esse erro primário? Pois é claro que ele sabe que a Gnose não diz o que ele escreveu nesse terceiro item.
Não se pode dizer que ele não tenha compreendido a Gnose, pois é inteligente.
Teria errado por estar enfurecido? Por estar "hidrófobo", como ele costuma dizer?
Ou teria caído em equívoco por falta de precisão, falha comum em um jornalista autodidata?
Não quero pensar que ele tenha errado de propósito.
Até mesmo uma enciclopédia popular deve dizer que a Gnose considera que a Divindade, ao cair no mundo material, se dividiu, ficando em cada ser, aprisionada uma partícula divina. Para a Gnose cristã, essa partícula divina se chamava éon, ou pneuma; na Gnose hindu era o âtmâ; na Gnose islâmica de Ibn Arabi, era o "primum", e na de Averróes, era o "intelecto agente"; na gnose de Mestre Eckhart, era a "Fünkenlein", a chamazinha divina; para Teilhard de Chardin, era a "consciência"; para Jung, e para Guénon o "Si" ou Moi (Self), etc.
Conseqüentemente, o homem seria formado por três elementos:
1) corpo material mau e ilusório;
2) alma racional enganadora;
3) espírito divino, qualquer que seja o nome que as diversas seitas dêem a esse espírito.
←VI - 2. A alma (inteligência, vontade) como prisão da partícula divina
Para a Gnose, a alma racional teria sido criada pelo Demiurgo mau, para ajudar a manter o éon aprisionado. A inteligência, ao compreender o mundo material, feito inteligível pelo Demiurgo, se compraz nele, julgando-o, então, bom, e não querendo sair dele. A inteligência racional, ao fazer abstrações, recorta a realidade única, a unidade fundamental do Ser, em uma multidão de conceitos, levando o homem à ilusão de que existe uma infinidade de seres individuais. A razão enganaria o homem. Abstrair seria o grande pecado da inteligência racional.
"Os piores inimigos do zen são as palavras e a razão discursiva que velam o conhecimento intuitivo, objetivo que exalta, direto e instantâneo"(Luc Benoist, El Esoterismo, ed. cit., p. 29). E o zen é gnóstico.
"A ciência moderna, pelo contrário, tem por instrumento dialético a razão e por domínio o geral. A razão não é senão um instrumento vinculado à linguagem para todos os fins, que permite respeitar as regras da lógica e da gramática sem simplificar nem garantir nenhuma espécie de certeza quanto à realidade de suas conclusões e muito menos de suas premissas. Efetivamente, a razão é apenas um meio puramente discursivo e dedutivo, um habitus conclusionis diria um escolástico, que não chega até às causas". (Luc Benoist, El Esoterismo, p. 5).
Abstraindo, a razão distingue sujeito conhecedor e objeto conhecido, separando, portanto, a realidade única do Ser, dividindo o Ser. Só quando o homem conhecesse que o sujeito conhecedor é o mesmo objeto conhecido, só então ele realizaria que o Ser é um só. A libertação da prisão da razão e da matéria individualizante se daria quando o homem conhecesse que ele (como sujeito conhecedor) se identifica com a Divindade (objeto conhecido). Quando ele fizesse essa identificação, ele teria o conhecimento absoluto que o identificaria com a Divindade, e mesmo, com todas as consciências, agora divididas nas coisas criadas. Realizando, pelo conhecimento, essa união de sujeito (homem) com o objeto (Divindade), ele teria a unidade do conhecimento, na unidade da consciência e de todas as consciências. Que é exatamente o que Olavo de Carvalho chama de "filosofia" :
Filosofia é "a unidade do conhecimento realizada na unidade da consciência, e vice versa"(Olavo de Carvalho, aula do Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho, Junho de 1998, Bloco 8).
E que divertido é o exótico "vice versa" dessa definição!...
Se já era perplexitante a definição, que dirá ela posta no avesso por esse surpreendente vice versa?
Que estranha definição de Filosofia a de Olavo. Filosofia da qual ele próprio confessa expressamente que, em seus livros, deixou subentendido o seu real significado, que ele não deixou muito "explicitado":
"(...) a maior parte de meus livros publicados trata apenas de crítica cultural, com uma filosofia subentendida mas não muito explicitada" (Olavo de Carvalho, Entrevista ao Embaixador Caius Traian Dragomir, novembro de 1998, p. 2).
Nessa mesma entrevista, Olavo explica:
" Isto colocava enfim a questão do conhecimento como sistema orgânico, ou da unidade do conhecimento (sic!). Quando digo que essa unidade deve ser do tipo sistêmico - e não apenas sistemático --, subentendo que não pode tomar a forma de um sistema dedutivo, como no racionalismo clássico, mas sim a de uma unidade vivente (sic!) que se identifica em última análise, com a unidade de um ente vivo e consciente: o indivíduo humano real, unidade psico física e espiritual, é o padrão da unidade do conhecimento" (Olavo de Carvalho, Entrevista ao Embaixador Caius Traian Dragomir, novembro de 1998, p. 2).
Que significa esse charabiá?
A "unidade do conhecimento" não seria do tipo racionalista clássico, dedutiva, mas seria "unidade vivente" (sic!). E que significa isso? Que está subentendido nisso?
E que quer dizer: a unidade do conhecimento se "identifica com o indivíduo humano real, unidade psico física e espiritual", que "é o padrão da unidade do conhecimento"?
Haveria indivíduos humanos irreais? Que está "subentendido" nessa estranha conceituação de Filosofia?
A definição de Filosofia de Olavo de Carvalho só pode ser entendida num sistema de pensamento irracional e gnóstico, pois identifica a consciência do sujeito conhecedor com o objeto conhecido (Deus), num Conhecimento único. A Unidade da consciência do indivíduo humano com a Divindade e com todos os seres, daria a unidade do Conhecimento, e a unidade do Conhecimento causaria a unidade da consciência. Está aí explicada a abstrusa definição de Filosofia de Olavo de Carvalho, da qual ele tanto se orgulha, e que ele confessa não ter explicitada inteiramente em seus livros, pois contém algo "subentendido".
Você terá uma confirmação disso que afirmo, caro Felipe, nos livros do próprio Olavo.
Primeiro, no Astrologia e Religião (p.11) ele diz que "O esoterismo é(...) o conhecimento e a realização da unidade". E vimos já que o conhecimento proporcionado pelo esoterismo é a Gnose.
Segundo, numa aula dele, na qual ele afirma: "a Filosofia no sentido mais puro", buscando "a unidade do conhecimento" encontra Deus no mais fundo da consciência humana (Cfr. Olavo de Carvalho, Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho, bloco 8, junho de 1998, p. 15).
Ora, afirma Olavo que há uma unidade do conhecedor e do objeto conhecido como se isso fosse uma novidade descoberta por ele ou por seus mestres "tradicionalistas", mas, ao dizer isso, Olavo está, de fato, repetindo o que diziam os gnósticos românticos.
"Se nós chamamos subjetivo aquele que conhece, e objetivo o que é conhecido, então o conhecer autêntico (das Wahre Erkenen) ou o em si do conhecer(das an-sich des Erkenens), não é nem um, nem o outro, nem um sujeito cognoscente, nem um objeto conhecido, mas a unidade absoluta de ambos. A oposição entre subjetividade e objetividade não é, portanto, uma oposição real; a verdadeira realidade só se encontra onde esta oposição desaparece totalmente" (Heinrich Steffens, Grundzüge der philosophischen Naturwissenschaft, Berlin, 1806, apud Georges Gusdorf, Le Romantisme, Payot, Paris, 1993, Vol. I, p. 489).
E concluindo do que citou de Steffens, diz Gusdorf: "A diversidade de ser e a unidade do pensamento devem fundir-se para que advenha o conhecimento pleno"(G. Gusdorf, Le Romantisme, Vol. I, p. 489).
Esse conhecimento pleno, também para os românticos, era a Gnose:
"As denominações "filosofia transcendental", "filosofia da identidade", "dialética" propõem soluções diversas ao problema insolúvel das relações entre sujeito e objeto, entre o real e o verdadeiro, entre a consciência humana e a consciência divina"(G. Gusdorf, Le Romantisme, Vol. I, p. 489).
Essa união - ou melhor, identificação - do sujeito conhecedor e do objeto conhecido, quer seja o objeto uma criatura, quer seja a própria Divindade, faz da filosofia romântica uma forma de Gnose.
Veja, meu caro Felipe, estas outras citações de Steffens e de Gusdorf, como se coadunam com a doutrina de Guénon e de Olavo:
"A verdade não é uma construção do espírito, mas uma reintegração na totalidade, uma reconciliação dos opostos; o sujeito e o objeto só se excluem num primeiro momento em que as evidências da separação superam as invidências unitivas"(G. Gusdorf, Le Romantisme, Vol. I, p. 380).
"A consciência é a revelação do infinito no finito, a tensão entre o infinito interior do Eu [sujeito] e o infinito exterior do Universo, tensão afirmada no espaço interior"(Steffens, Gurnzüg der philosophischen Naturwissenschaft, Berlim, 1806, Einleitung, p. 202) "A consciência em questão não é uma simples apercepção psicológica, mas antes um órgão ontológico. "Graças à consciência se afirma a cada instante o infinito, isto é, a totalidade, a oposição entre o exterior e o interior é superada" (Steffens, op. cit., p. 205, apud Gusdorf, op. cit., Vol I, p. 381).
Veja, caro Felipe, como Gusdorf explicita o mesmo pensamento de Olavo, ao expor a filosofia dos românticos sobre a união entre sujeito e objeto:
"O saber se realiza na fusão conjugal da subjetividade e da objetividade; na linguagem do Antigo Testamento, "conhecer" uma mulher, é unir-se carnalmente a ela" (G. Gusdorf, op. cit. Vol I, p. 358).
É claro que essa doutrina da fusão do sujeito com o objeto é oposta ao princípio de contradição, e admite a dialética gnóstica da igualdade dos contrários (Yin e Yang). É o que pretendia o grande mestre da Gnose romântica, Novalis:
"Destruir o princípio de contradição, tal é talvez a mais alta tarefa da lógica superior"(Novalis, L’Encyclopédie, fragments, ed. Wasmuth, tr, Gandillac, ed. de Minuit, 1966, 128, p. 64, apud G. Gusdorf op. cit, Vol. I, p. 193).
Talvez você queira uma comprovação de que a filosofia romântica era Gnóstica. Veja como Gusdorf admite francamente isso:
"Existe uma relação entre a função mítica e a gnose, especulação meta- religiosa que se aventura além dos limites prudentes dos territórios eclesiásticos. O saber gnóstico, transmitido pela iniciação, assegura aos depositários dos segredos escatológicos o benefício da salvação eterna. A gnose se apresenta sob a forma de parábolas, confiadas aos homens por uma benevolência divina, cuja luz intrínseca desenlaça as contradições do real. O mito gnóstico do andrógino, evocação de uma unidade originária dos sexos, anterior à sua dissociação, propõe, por exemplo, uma inteligibilidade adaptada às delícias, paixões e horrores do amor. Os românticos recorreram a este arquétipo existencial para justificar o injustificável nas paixões da humanidade. A situação gnóstica da razão ultrapassada e confundida é por excelência uma situação romântica; o romantismo é uma renascença gnóstica, vaga de fundo que submerge as seqüelas da filosofia das luzes" (G. Gusdorf, Le Romantisme, Vol I, pp. 511-512. O negrito é meu).
Quer outra?
"O saber romântico é uma gnose, em busca de evidências ocultas reveladas àqueles que são dignos de serem iniciados nos segredos do ser" (G. Gusdorf, Le Romantisme, Vol. I, p. 386).
"A possibilidade de ascenção ao saber total caracteriza o gnosticismo romântico"(G. Gusdorf, Le Romantisme, vol. I, p. 411). E note, meu caro Felipe, que também Gusdorf usa o termo gnosticismo como equivalente de Gnose.
"A doutrina gnóstica da revelação como experiência íntima de uma verdade transformante que conduz à salvação por vias que escapam ao controle do entendimento é um elemento da ontologia romântica"(G.Gusdorf, Le Romantisme, Vol. I, p. 635).
(Voltaremos mais adiante - no item VI-4 - à definição de Filosofia de Olavo, para mostrar, ainda mais claramente, que ela tem caráter gnóstico.
Não só a inteligência enganaria o homem. A vontade faria outro tanto.
A vontade enganaria o homem ao tomar cada ser individual como real, bom e desejável. Na realidade, todas as coisas materiais seriam pura ilusão. O mundo das manifestações seria falso, ilusório. Querer seria o pecado da vontade. Daí a pregação da indiferença absoluta diante do mundo, a negação absoluta do querer como necessária para a libertação, preconizada por muitas doutrinas gnósticas, como, por exemplo, a hinduista, a budista e a de Mestre Eckhart.
Essa condenação do querer, essa recusa em aceitar a vontade e o bonum dos seres criados, leva a Gnose ou à ascese absoluta pela recusa de toda criatura, ou ao antinomismo, pelo abuso das criaturas, ao odiar toda a lei imposta pelo Demiurgo ao mundo criado. Para a Gnose, a salvação - a Libertação-- não se obtém pela obediência a mandamentos, pela virtude ou santidade. Basta o Conhecimento. O Conhecimento (Gnose) --que Olavo chama também de Metafísica ou Sabedoria (Cfr. Aula do Bloco 8 de Olavo de Carvalho - Crítica e Conselhos à Igreja Católica - que citei em carta precedente, na qual Olavo ataca a Moral e a virtude como "bobagem").
Também Guénon recusa a Moral em sentido comum:
"Para começar, se estaria tentado a dizer o seguinte: se a distinção entre o Bem e o Mal é ilusória, se em realidade não existe, o mesmo deve suceder com a moral, pois é evidente que a moral está baseada nesta distinção, a qual considera essencial. Isto seria ir demasiado longe; a moral existe, mas na mesma medida que a distinção entre o Bem e o Mal, quer dizer, para tudo o que pertence ao domínio do demiurgo; desde o ponto de vista universal, não teria nenhuma razão de ser" (R. Guénon, Le Démiurge, p. 8)
Repare como Guénon é cauteloso: ele nega a Moral, depois recua, e afinal diz que ela só vale no domínio do Demiurgo, que ele chamou de "Príncipe deste mundo (o demônio). E conclui que fora dos domínios do Demiurgo - que é o que realmente vale, segundo ele-- a moral "não teria nenhuma razão de ser".
Logo depois Guénon escreve: "Isso indica que há de se ter muito cuidado em não confundir os diversos planos do universo, pois o que se diz de um poderia não ser verdadeiro para o outro. Assim, a moral existe necessariamente no plano social, que é essencialmente o domínio da ação; mas não quando se considera o plano metafísico ou universal, posto que então já não há ação"(R. Guénon, Le Démiurge, p. 8).
Será preciso salientar que Guénon defende a dupla verdade, e, em conseqüência, a dupla moral? Ou que ele, de fato, nega toda a moral, porque ela só teria validade no plano da ação, que ele considera absolutamente ilusório e falso?
Seria preciso sublinhar que Guénon, no máximo, defende que pode existir uma moral para a vida social, e outra para os que atingiram a unidade pelo conhecimento? Portanto, que existiriam duas morais?
Ora, a defesa de duas morais é típica dos movimentos gnósticos: uma moral para os homens "materiais"(os Hylikoi) e outra para os que alcançaram o Conhecimento (os Pneumatikoi). No Islam, por exemplo, enquanto os homens comuns ficam proibidos de tomar vinho, para o sufi, o vinho pode ser permitido.
Essa libertação da lei e essa duplicidade moral são permitidas aos que alcançaram o Conhecimento: da idéia que o bem é desconhecido resulta a liberdade do gnóstico. Não há para ele atos permitidos ou proibidos em geral. O importante é conhecer" (Simone de Pétrement, Le Dualisme chez Platon, les Gnostiques et Manichéens, Puf, Paris, 1947, p. 267).
←VI - 3. As partículas divinas encarceradas nos seres criados
Toda essa doutrina das partículas divinas aprisionadas na matéria, no corpo, e na alma humana, é defendida por René Guénon e por seus seguidores da corrente "perenialista" ou "tradicionalista".
A documentação sobre esse ponto da doutrina gnóstica nos "perennialists" é bastante grande. Dela citarei apenas o que é mais explícito,, pois esta carta não é uma tese de doutorado.
Comecemos por Guénon, analisando sua condenação da individuação e a encarnação.
"Convém insistir muito particularmente na natureza essencialmente supra --individual do intelecto puro; por outro lado, somente o que pertence a esta ordem pode ser verdadeiramente chamado "transcendente", não podendo normalmente este termo aplicar-se senão ao que está além do domínio individual. O intelecto jamais está então individualizado; (...) o espirito jamais está realmente "encarnado", o que por outro lado é igualmente certo em todas as acepções em que a palavra "espírito" pode ser legitimamente tomada. Resulta disto que a distinção existente entre o espírito e os elementos de ordem individual é muito mais profunda que todas aquelas que podem estabelecer-se entre estes últimos, e especialmente entre os elementos psíquicos e os corporais, isto é, entre os que pertencem respectivamente à manifestação sutil e à manifestação grosseira, que em suma não são senão modalidades da manifestação formal" (René Guénon, Espírito e Intelecto, in Mélanges, cap. III, ed cit p. 49-50. A tradução e os negritos são nossos).
Desse texto convém salientar alguns pontos:
1) Que, segundo Guénon, "o espírito jamais está realmente encarnado".
O que resulta numa negação implícita da Encarnação do Verbo. Isso não espanta, dada a adesão de Guénon ao maometismo. E com isso ele nega também a Divindade de Jesus Cristo e a Redenção por Ele realizada.
2) "O intelecto jamais está então individualizado".
Portanto, para Guénon, existe um só intelecto, e esse único intelecto é o Intelecto divino, tal qual dizia o mono psiquismo da Gnose árabe.
3) O intelecto se opõe quer à alma, quer ao corpo, tal qual ensinam todos as escolas gnósticas.
4) Que a "distinção" entre o "espírito"(o intelecto ou o Si) e os elementos individuais, psíquicos e corporais, é muito maior do que a existente entre alma e corpo. Exatamente como colocamos que a Gnose faz. E como Olavo deveria tê-lo feito neste 3º item.
Portanto, Guénon é um gnóstico.
Vejamos outros textos elucidativos de Guénon e de sua Gnose.
"Imaginando-se que é a alma individual, o homem se apavora, como alguém que toma, por engano, um pedaço de corda por uma serpente; mas seu temor é afastado pela percepção de que ele não é a alma, mas o Espírito universal" (R. Guénon, Le Démiurge, p. 6).
Veja, paciente Felipe, outra prova da Gnose de Guénon: o espírito do homem não é pessoal; é o próprio Espírito universal.
Repare ainda como Guénon deixa clara a oposição do "Espírito" não só ao corpo, como também à alma.
Ele vai deixar isso ainda mais patente nesta outra passagem:
"Aquele que tomou consciência dos dois Mundos manifestados, quer dizer, do Mundo hylico - conjunto das manifestações grosseiras ou materiais --, e do Mundo psíquico, - conjunto das manifestações sutis --, é nascido duas vezes, Dwidja; mas aquele que é consciente do Universo não- manifestado ou do Mundo sem forma, quer dizer, do Mundo pneumático, e que chegou à identificação de si mesmo com o Espírito universal, Atmâ, este, e só este, pode ser chamado de Yogi, que quer dizer, unido ao Espírito universal. O Yogi, cujo intelecto é perfeito, contempla todas as coisas como morando nele mesmo, e assim, pelo olho do Conhecimento, percebe que tudo é Espírito" (René Guénon, Le Démiurge, p. 6-7).
Perdoe-me estar a todo momento chamando a sua atenção, mas é que em carta tão longa e tão tediosa, em assunto tão árido e rebarbativo, é fácil perder os pormenores. E, como não só você lerá esta carta, mas também muitos dos assustadiços e perplexos alunos do Olavo, que conhecem menos claramente estes temas, vejo-me obrigado a salientar pontos mais importantes, ou mais obscuros.
Veja então, na citação acima, como Guénon reconhece a existência de três mundos, exatamente como faz a Gnose:
1) O Mundo Hylico ou da Matéria grosseira-- Mundo Hílico
2) Mundo Psykico ou subtil das almas; Mundo Psíquico
3) O mundo do Espírito: Mundo Pneumático.
4) Que o Yogi, o gnóstico pneumático, é aquele que, tomando consciência da unidade do intelecto, se identifica com o Espírito Universal presente em tudo, e realiza a identidade Suprema na unidade do conhecimento e da consciência. Para ele, tudo é Espírito
5) Portanto, a grande oposição não é entre a alma e o corpo, e sim entre o mundo manifestado e o mundo Não Manifestado.
Guénon, Bispo gnóstico, era um gnóstico.
E, para tornar ainda mais claro que ele era realmente gnóstico, Guénon registra pouco depois:
"Acima do Universo Pneumático existe apenas - segundo a doutrina gnóstica - o Pléroma -, que pode considerar-se como constituído pelo conjunto dos atributos da Divindade. Não se trata de um quarto mundo, mas do próprio Espírito universal, Princípio Supremo dos três Mundos, nem manifestado, nem não manifestado, indefinível, inconcebível e incompreensível"(René Guénon, Le Démiurge, p. 7).
Guénon ensina que o "Si" de cada um - o Self, o Moi - "este "Si", ao qual se designa analogicamente por espírito, essência ou com qualquer outro nome, é idêntico à Realidade Absoluta na qual tudo está contido, isto é, o Atmâ supremo e incondicionado"(René Guénon, Espírito e Intelecto, in Mélanges, ed cit.p.52).
Poderia ser Guénon mais explicitamente gnóstico?
No livro L’ homme et son Devenir selon le Vedanta, René Guénon trata num capítulo inteiro sobre a distinção entre o "Si" e o "Eu" (entre o "Soi" e o "Moi"), isto é, entre o eu, enquanto indivíduo material, e a partícula divina - o âtmâ ou "Soi"(Self), que seria o verdadeiro ser do homem.
Nesse capítulo, há um texto intitulado "O Centro Vital do Ser Humano, moradia de Brahma", no qual se pode ler o seguinte:
"O "Si" - [em francês, o "Soi"] - como vimos no que precede, não deve ser distinguido do Atmâ; e, de outro lado, Atmâ é identificado ao próprio Brahma: é o que nós podemos chamar de a "Identidade Suprema" de uma expressão emprestada ao esoterismo islâmico, cuja doutrina, sobre este ponto como sobre muitos outros, e apesar de grandes diferenças na forma, é no fundo a mesma que a da tradição hindu" (René Guénon, L ‘Homme et son Devenir selon le Vedanta, ed Trad., Paris, 1991, p. 41).
Esse texto é bem interessante. Nele Guénon afirma que o "Si" é igual ao Atmâ, que é igual a Brahma. Logo, o centro do homem seria a própria Divindade, já que duas quantidades iguais a uma terceira são iguais entre si. O "Si" é uma partícula de Brahma no homem.
Caberia citar aqui a famosa frase do Upanishad: "Brahma é o teu âtmâ e teu âtmâ é Brahma". Em outras palavras, a partícula divina que está encarcerada no homem é a Divindade, e a Divindade é ela.
Como você vê, de novo, fica patente a Gnose hindu propalada por Guénon.
Considere ainda que Guénon, embora reconhecendo as diferenças de forma entre o Hinduismo e o esoterismo islâmico, julga entretanto que, no fundo, eles são a mesma coisa, isto é, a Gnose de sempre.
Guénon diz mais explicitamente ainda o que já estava bem claro:
"Assim, o que reside no centro vital, do ponto de vista físico, é o Éter; do ponto de vista psíquico, é a "alma vivente", e, até aí, nós não ultrapassamos o domínio das possibilidades individuais; mas também, e sobretudo, do ponto de vista metafísico, é o "Si" [Soi] principial e incondicionado. É portanto verdadeiramente o "espírito Universal" (Atmâ), que é, na realidade, o próprio Brahma, o "Supremo Ordenador"; e assim fica plenamente justificada a designação deste centro como Brahma-pura. Ora, Brahma, considerado deste modo no homem (e se poderia considerá-lo semelhantemente com relação a todo estado de ser), é chamado Purusha, porque ele repousa ou habita na individualidade (trata-se, digamo-lo de novo, da individualidade integral, e não somente da individualidade restrita à sua modalidade corporal) como em uma cidade (puri-shaya), porque puri, em sentido próprio e literal, significa ‘cidade’". (René Guénon, L’Homme et son Devenir selon le Vedanta, p. 46-47).
Veja agora, como Guénon repete o que ensinava a antiga Gnose ou o antigo gnosticismo:
"Purusha, considerado como idêntico à personalidade, é por assim dizer uma porção (ansha) do Supremo Ordenador (o qual entretanto não tem partes sendo absolutamente indivisível e "sem dualidade"), como uma faísca em relação ao fogo (cuja natureza está aliás em cada faísca)"(René Guénon, L’Homme et son Devenir... p. 58).
"Faísca" do fogo! A "Fünkenlein" de Mestre Eckhart!
Exatamente a mesma expressão de Mestre Eckhart, para designar a partícula da Divindade em cada ser criado!
Da Gnose se poderia dizer: "plus ça change, plus c’est toujours la même chose ".
Não se pense, porém, que a partícula divina exista só no ser humano. Para a Gnose, ela existiria em todas as coisas do universo. Para o Vedanta e para Guénon da mesma forma:
"Convém aliás notar que (...) em razão da unidade fundamental do ser em todos os seus estados, deve-se considerar o centro de cada estado no qual se projeta o raio espiritual, como virtualmente senão efetivamente identificado com o centro do ser total; e é pelo quê um estado qualquer, o estado humano também tanto como qualquer outro, pode ser tomado como base para a realização da "Identidade Suprema’"(René Guérnon, L’Homme et son Devenir, p. 72).
Guénon sublinha que não se deve confundir o "Si" com o "Eu", porque o "Eu" está relacionado com a pura individualidade, com a corporeidade, com a manifestação, enquanto o "Si" é relacionado com Brahma, a Divindade. Haveria então oposição entre o ‘Si" e o "Eu", tal qual havia oposição entre a Divindade e o mundo das criaturas.
"Em vez dos termos "Soi" e "Moi", poder-se-ia empregar também os de "personalidade" e "individualidade", com uma reserva, entretanto, porque o "Soi", como nós o explicaremos um pouco mais adiante, pode ser ainda alguma coisa mais que a personalidade" (René Guénon, L’Homme et son Devenir selon le Vedanta, ed. Traditionnelles, Paris, 1991, p.30).
Para Guénon: "O "Soi" é o princípio transcendente e permanente cujo ser manifestado, o ser humano por exemplo, não é senão uma modificação transitória e contingente, modificação que não poderia, aliás, de modo algum afetar o princípio, assim como o explicaremos em seguida" (...)"O "Soi" enquanto tal, jamais é individualizado e não pode jamais o ser, porque devendo ser sempre encarado sob o aspecto da eternidade e da imutabilidade que são os atributos necessários do Ser puro, ele evidentemente não é suscetível de nenhuma particularização, que o tornaria "outro que Si mesmo" (R. Guénon, op. cit., p. 31).
"O "Soi" é assim o princípio pelo qual existem, cada um em seu domínio próprio, todos os estados de ser; e isso deve se entender não só dos estados manifestos dos quais acabamos de falar, individuais como o estado humano ou supra individuais, mas também, se bem que a palavra "existir" se torne então imprópria, do estado não - manifestado, compreendendo todas as possibilidades que não são suscetíveis de nenhuma manifestação, ao mesmo tempo que as próprias possibilidades de manifestação em modo principial;(...)" (René Guénon, L’Homme et son Devenir p. 32).
"O "Soi", considerado em relação a um ser como acabamos de fazer, é propriamente a personalidade"(R. G., op. cit., p. 32) "Essa personalidade é uma determinação imediata, primordial e não particularizada do princípio, que é chamado em sânscrito Atmâ ou Parmâtmâ, e que nós podemos designar, por falta de melhor termo, como "espírito Universal (...)" (Réné Guénon, L’Homme et son Devenir, op. cit., p. 32).
Em tudo haveria uma partícula da Divindade (Brahma).
"Atmâ penetra todas as coisas, que são como suas modificações acidentais, e que, conforme a expressão de Râmânuja, "constituem de algum modo seu corpo (essa palavra devendo ser tomada aqui apenas num sentido puramente analógico), que elas sejam, aliás, de natureza inteligente ou não inteligente", isto é, conforme as concepções ocidentais, "espirituais" tanto quanto "materiais", porque isto, não exprimindo senão uma diversidade de condições na manifestação, não faz nenhuma diferença com relação ao princípio incondicionado e não manifestado" (René Guénon, L ‘Homme et son Devenir selon le Vedanta, p. 33).
Para Guénon, o Intelecto se identifica com o que ele chama de espírito (o pneuma dos gnósticos):
"A conclusão que resulta imediatamente de tudo isso é que, enquanto o ser esteja não só no estado humano mas em qualquer estado manifestado, individual ou supra individual, não pode haver para ele nenhuma diferença efetiva entre seu espírito e o intelecto, nem, em conseqüência, entre espiritualidade e intelectualidade verdadeiras."(René Guénon, Espírito e Intelecto in Mélanges, p.52).
Veja, Felipe, como Guénon usa intelectualidade como sinônimo de espiritualidade, já que, para ele, e para os "tradicionalistas", o Intelecto humano é o Espírito divino, o Logos. Em Guénon, há um tal abuso de termos usados equivocamente que se pode dizer que ele escreve em código... esotérico, e Olavo imita esse código como ele pode.
"O coração é o órgão do Conhecimento, é o órgão do amor espiritual, é o sopro do espírito, o pneuma, a causa de sua relação com a vida. No coração se oculta o princípio divino indestrutível, chamado luz pela Tradição hebréia. É o embrião imortal da Tradição chinesa, aquele ao qual a alma permanece unida durante algum tempo depois da morte" (Luc Benoist, El Esoterismo, p. 10).
Se fossemos citar os textos mais claramente gnósticos das obras de Guénon, seria preciso copiar praticamente livros inteiros. Creio, então, que estas citações já são suficientes para provar que, para Guénon, há uma partícula divina encarcerada em cada coisa criada.
Era o que queríamos demonstrar, neste III item proposto por Olavo.
Logo, Guénon é gnóstico.
Também na Gnose averroísta, se ensina doutrina semelhante a respeito do intelecto. Veja, segundo Etienne Gilson, o que afirmava Averróes (Ibn Rochd) sobre o Intelecto uno e divino.
"Assim, tocando o problema da unidade do intelecto agente, ele (Averróes) declara expressamente isto: per rationem concludo de necessitate, quod intellectus est unus numero, firmiter teneo oppositum per fidem. [Pela razão concluo que necessariamente o intelecto é um só, mas mantenho firmemente, pela fé, o oposto disto]. (Étienne Gilson, La Philosophie au Moyen Âge, Payot, Paris, 1976, vol I, p. 360).
Mais adiante, explica Gilson: "A descrição do mundo de Averróes é suficiente para mostrar que o Intelecto agente é aí na realidade uma substância inteligível separada, isto é, uma Inteligência agente, a mesma para todos os homens" (...) "Tudo o que há no indivíduo de eterno ou de eternizável pertence ao Intelecto agente de pleno direito e só é imortal por sua imortalidade" (E. Gilson, op. cit., vol I, p. 366).
Schuon, defendendo o mono psiquismo averroista, disse: "Toda a certeza - a das evidências lógicas e matemáticas notadamente - surge do Intelecto divino, o único que existe" (F. Schuon, Comprendre L’Islam p. 170). E mais adiante Schuon dirá que o "Intelecto é transpessoal" (F. Schuon, Comprendre L’ Islam, p. 173).
Por isso, Schuon também identifica potencialmente o verdadeiro sujeito humano ao divino:
"A gnose é caracterizada por recorrer à pura metafísica: a distinção entre Atma e Maya e a consciência da identidade potencial entre o sujeito humano, jivatma, e o Sujeito Divino, Paramatma. A via contém por um lado a 'compreensão', e por outro a 'concentração'; portanto, doutrina e método." (Frithjof Schuon, To Have a Center, p. 67-68, capítulo "Gnosis is Not Just Anything", em <http://www.frithjof-schuon.com/NA-gnosis-engl.htm>.).
Em Nasr, encontramos a mesma concepção gnóstica e hermética da composição tripartite do homem, incluindo nele um "espírito" de origem divina.
"Num primeiro nível de compreensão do microcosmo humano, portanto, deve-se levar em consideração a natureza tripartida do ser humano, que consiste em espírito, alma e corpo - os clássicos pneuma, psyché e hylé, ou spiritus, anima e corpus, das tradições ocidentais tanto greco-alexandrinas quanto cristãs - ao menos considerando o hermetismo cristão. A alma é o princípio do corpo, mas no ser humano 'normal' é ela própria subserviente ao espírito e atinge sua salvação e beatitude por meio de seu casamento com o espírito que é tema de tantos textos alquímicos." (Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, State University of New York Press, 1989, p. 172. O negrito é meu.)
E Nasr, tratando do Hinduísmo, diz que:
"Nesta tradição em que o conhecimento de Deus deveria ser propriamente chamado de autologia em vez de teologia..." (Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, University of New York Press, 1989, p.7). Portanto, conhecer-se seria conhecer o próprio Deus. Logo, o conhecimento "tradicional" identifica o homem a Deus.
Também Émile Boutroux - outro autor elogiado por Olavo, como um verdadeiro aristotélico - tem a mesma doutrina sobre a composição do homem e sobre o elemento divino que existiria nele: o "nous"
"O que diferencia o homem dos outros animais é o núus, que nele está unido à alma animal. (...) O núus é o conhecimento dos primeiros princípios. Ele não tem nascimento: é eterno." (Émile Boutroux, Aristóteles, Editora Record, Rio de Janeiro, 2000, p. 109-110.)
E se Olavo foi estudioso, admirador, seguidor de Guénon - e de Schuon, e de Nasr --, se ainda é seu defensor, por que não confessou que Guénon era gnóstico?
Qual o interesse dele em não deixar saber que Guénon é gnóstico?
E o próprio Olavo?
Será que ele discorda da concepção gnóstica de que o homem é composto de alma, corpo, e de um espírito, ou pneuma, divino?
Será que ele discorda da Gnose de Guénon e de Averróes, no que se refere ao intelecto?
Registre-se, para começar, que Olavo afirma uma estranha composição para o ser humano, e, além disso, ele exalta a alma humana, manifestando - ainda que só teoricamente - um certo desprezo pelo corpo:
"De modo que, nessa perspectiva, somente aquilo que é propriamente humano - isto é, caracterizado pelos três atributos que definem o homem: inteligência objetiva, vontade livre e linguagem (sic!) - pode ser reconhecido como pertencente à alma individual, tudo o mais provindo de um resíduo de animalidade no homem, resíduo este que é por sua própria natureza coletivo e impessoal.. A presença de quaisquer elementos animalescos ou diabólicos no homem deve ser vista sempre como uma intrusão, e o invasor deve ser expulso para que a alma individual recupere sua integridade." (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, p. 63).
O texto é, de novo, ambíguo. Nele há um sabor de gnose pelo evidente desprezo do que há de animal no homem, isto é, pelo corpo, e pelo que dele deriva.
Aliás, muito estranha é a colocação da "linguagem" como elemento constitutivo da alma humana, quando a linguagem é uma propriedade e não elemento essencial do homem. Caso se levasse em conta, rigorosamente, o conceito de homem expresso por Olavo, os mudos não seriam homens. O que é evidentemente absurdo.
E Olavo afirma que essas três faculdades são comuns ao homem e a Deus:
"O homem realiza isso [ zelar pela ordem cósmica] pelo exercício das três faculdades que ele tem em comum com o próprio Deus: inteligência, vontade e linguagem (sic)". (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, p. 27. O negrito é meu).
Deus, então, teria linguagem?
Repare, Felipe, que Olavo não está aplicando a palavra "linguagem" de modo antropomórfico para Deus, pois ele diz que a linguagem é uma faculdade divina e humana, comum a Deus e ao homem.
Mais, ele diz que tirou isso do Corão!
Todavia não informa seus leitores de que Surata do Corão ele tirou isso. Gostaria de saber em que Surata o Corão afirma isso.
"(...) os três fatores que segundo o Corão definem a condição humana, e que são a inteligência objetiva, (capaz de apreender o absoluto e o relativo), a vontade livre (capaz de optar pelo real e rejeitar o ilusório) e a linguagem lógica (capaz de abstração (sic),isto é de superar a particularidade e de elevar-se ao universal)." (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, p. 59).
Então, o homem teria faculdades em comum com o próprio Deus?
Olavo não ressalva que está se exprimindo analogicamente (No sentido tomista da palavra analogia), de modo que, sem essa ressalva, o ter faculdades em comum com Deus faz do homem um ser divino. Exatamente como pretende a Gnose.
Olavo, também por isso, é gnóstico.
E note que, agora, por essa última citação, para Olavo, a abstração já não seria pecado...
Contradições olavianas.
Para ele, "A inteligência "aparece" na alma, mas não "está" na alma; ela "vê" o mundo e portanto (sic! Olavo deve ter traduzido o "pourtant" francês pelo termo "portanto", em vez de "entretanto". Coisas de auto didata distraído...) não "está" no mundo" (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, Nova Stella, São Paulo, 1986, p.17).
Noutro livreco, ele escreveu um texto que já citei, mas que convém aqui repetir para possíveis maus, ou mais lerdos e "esquecidos" entendedores:
"Pelo fato de que o homem habita simultaneamente muitos planos da realidade --sendo um ente tão corporal quanto o cálcio de seus ossos e tão espiritual quanto a inteligência divina que nele reside (...)" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 49).
Portanto, - e não "pourtant" - Olavo afirma que a inteligência que "habita" o homem, é divina. Portanto, - e não "pourtant"-- a inteligência não é um constitutivo da natureza humana, mas a Inteligência só habita no homem, e ela seria divina. Pensamento que torna Olavo tão gnóstico quanto Guénon.
Para Olavo, há, de fato, um "centro" divino, não só no homem, mas em todas as coisas:
"O centro representa não só o núcleo da consciência do observador como também o alcance universal, divino da consciência individual verdadeiramente centrada em si mesma e identificada com o universo"(Olavo de Carvalho, artigo O que é Afinal este Símbolo dos Símbolos? Mandala, Encontro do Homem com o Universo, in Planeta, no 59, Junho de 1977, p.54. O negrito é meu).
Nessa passagem há mais uma confissão da Gnose de Olavo: ele afirma que há na consciência humana algo de divino, o "centro", que identifica o homem com o universo e com Deus. Exatamente a doutrina da Gnose.
Nesse mesmo artigo, Olavo prossegue sua pregação gnóstica ao escrever:
"Não só o ser humano possui um centro, mas todas as coisas e seres, na medida em que existem, possuem uma presença, um aqui-agora, um "eu" (Esta é uma tese plenamente aceitável em termos de ciência moderna: os gnósticos de Princeton a endossam.) Assim, o centro da realidade universal está por toda a parte, onde quer que exista uma presença. "O centro tem um certo caráter paradoxal. Por um lado, é impossível definí-lo, porque o agora não se deixa agarrar. Por outro, ele é a única realidade concreta, já que todas as coisas que não estão no agora são simples ilações" (Olavo de Carvalho, artigo O que é Afinal este Símbolo dos Símbolos? Mandala... in Planeta, Junho de 1977, no59, p.54).
Desse modo, Olavo ecoa a doutrina de Guénon e do hinduismo de que em tudo há um Atmâ ou "centro", e que este Atmâ é a própria Divindade nas coisas, as quais, sem se considerar o Atmâ ou "centro", são puro nada.
←VI - 4. A Libertação pelo Conhecimento
Para libertar-se do Mundo da manifestação, o homem deveria identificar-se com Brahma pelo conhecimento de que o seu "Si" - o seu Intelecto agente - é o próprio Atmâ, o próprio Brahma.
"A realização dessa identidade se opera pelo Yoga, isto é, a união íntima e essencial do ser com o Princípio Divino, ou, se se prefere, com o Universal" (René Guénon, L’Homme et son Devenir..., p. 41).
"A libertação não é, por conseguinte, para o nosso eu, mas para o nosso Si Mesmo [Self] que jamais chega a ser alguém. A libertação nos chega quando deixamos de ser nós mesmos como indivíduos e realizamos a identidade suprema"(Luc Benoist, El Esoterismo, ed. cit., p.26).
Essa união do Atmâ com Brahma se "realiza" quando o homem "efetivamente toma consciência do que é realmente e desde toda a eternidade"(R.G. op. cit. p. 42).
É pois pelo Conhecimento que o homem se liberta de seu estado atual e volta a ser a Divindade.
E isso é Gnose da mais clara.
Veja como é certa minha afirmação:
"Para aproximar-se da Presença invisível e escapar da ilusão de maya[ isto é, do mundo material] o hindu considera que nada supera a gnosis, o conhecimento da doutrina"(Luc Benoist, El Esoterismo, p. 25).
Esse Conhecimento Libertador não deve ser confundido com o conhecimento comum, racional, obtido pela abstração ou pelo estudo. É um Conhecimento de outra natureza, que Guénon chama de Conhecimento Intuitivo.
"Ao indicar as características essenciais da metafísica, dissemos que ela constitui um conhecimento intuitivo, isto é, imediato, opondo-se nisto ao conhecimento discursivo e mediato da ordem racional."(René Guénon, Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus, p.183).
Essa intuição - diz Guénon - seria capaz de identificar sujeito e objeto:
"A intuição intelectual é mesmo mais imediata ainda que a intuição sensível, porque ela é além da distinção entre sujeito e objeto que esta última deixa subsistir; ela é tanto o meio do conhecimento como o próprio conhecimento, e nela sujeito e objeto são unidos e identificados" (René Guénon, Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus, p.183).
Para Guénon, só esse conhecimento intuitivo é real e verdadeiro, e não o conhecimento racional, que seria imperfeito:
"O único conhecimento verdadeiro que existe é aquele que mais ou menos participa da natureza do conhecimento intelectual puro, o conhecimento por excelência. Qualquer outro conhecimento, sendo mais ou menos indireto, tem em suma apenas um valor simbólico ou representativo; não há outro conhecimento verdadeiro e efetivo além daquele que nos permite penetrar na própria natureza das coisas, (...) "(Idem p. 183).
E Guénon tira disso tudo a conseqüência absurda:
"A conseqüência imediata disto é que conhecer e ser são, no fundo, uma só e mesma coisa". (René Guénon, idem p. 183).
E aí está mais uma prova de que a identificação do conhecer e ser não é doutrina original de Olavo: ele a colou de outros gnósticos.
Na realidade, quando se afirma que conhecer é ser, se está equiparando o nosso conhecimento ao do próprio conhecimento divino. Somente em Deus é que o conhecer produz o ser.
Eis o que diz Santo Agostinho:
"Deus não conhece todas as criaturas espirituais e corporais porque elas existem, mas elas existem porque Ele as conhece" (S. Agostinho, De Trinitate, XV.O negrito é meu).
São Tomás, comentando exatamente esse texto que ele cita num sed contra, ensina:
"A ciência de Deus é a causa das coisas. A ciência divina é, em relação aos seres criados, o que a do artífice é em relação ao que ele fabrica.. A ciência do artífice é causa do fabricado, porque o artífice obra guiado por seu pensamento, pelo qual a forma que ele possui em seu entendimento é princípio de sua operação, como o calor é da calefação. Advirta-se, entretanto, que uma forma natural qualquer não é princípio de ação enquanto permanece em seu sujeito dando-lhe o ser, senão enquanto tem tendência a produzir o efeito.
Pois o mesmo acontece coma forma inteligível, que, enquanto está naquele que entende, tampouco é princípio de ação se não se lhe acrescenta tendência a produzir um efeito, coisa que faz com a vontade; pois, devido a que a forma inteligível possa representar uma coisa e sua oposta (já que um só é o conhecimento do que se lhe opõe), nunca produziria um efeito com preferência a outro se não o determinasse um apetite, como diz o Filósofo. Se, pois, não há dúvida que Deus produz as coisas por seu entendimento, já que seu ser é o seu entender, é necessário que a ciência divina seja causa das coisas enquanto leva adjunta a vontade, e por este motivo costuma-se chamá-la de "ciência de aprovação". (São Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q.14, a. 8.O negrito é meu).
Fica então claro: é só em Deus que conhecer é ser.
Voltaremos a esse tema mais adiante.
←VI - 5. Eco dessas Doutrinas em Olavo
Se Guénon diz que o Intelecto humano é o próprio Logos divino, e que, por isso, o conhecimento identifica sujeito e objeto; que conhecer é ser; Olavo repetirá, como eco, essas mesmas doutrinas absurdas.
Veja, agora, como se tornam claras certas frases misteriosas e ambíguas de Olavo, à luz da doutrina acima exposta sobre a existência de um núcleo divino no homem e em todas as coisas, e dessa conseqüente teoria do Conhecimento metafísico intuitivo:
"Desdobrado sob a dupla aparência de consciência e de presença, é o mesmo Logos, a mesma Inteligência que se manifesta dentro e em torno de nós, que dialoga consigo sempre que um homem vê uma pedra e a pedra é mostrada ao homem" (Olavo de Carvalho, artigo Lux in Tenebris, in Jornal da Tarde, 25 de Dezembro de 1997. O negrito é meu).
Isso elucida também a causa da estapafúrdia, romântica e gnóstica tese exposta por Olavo - que ele copiou de Guénon - de que há identidade entre sujeito e objeto, pois o Logos, o Verbo, estaria presente no homem e na pedra, sendo, no fundo, a única realidade nesses dois seres, de modo que, quando o homem vê a pedra, o Logos existente no homem dialoga com o Logos existente na pedra, e ele é a única realidade existente em ambos, fazendo identificar sujeito e objeto.
Para não dizer que essa é uma idéia isolada na doutrina de Olavo, cito outra passagem de seus livros:
"O que dá sua coerência e inteireza ao conhecimento é a unidade do sujeito cognoscente, mas não num sentido kantiano, pois não se trata aqui do sujeito individual - ou geral, que é uma simples extensão do individual - e sim do sujeito identificado e reintegrado ao Absoluto; é a unidade da inteligência mesma, não enquanto manifestação individual, mas enquanto participação no Intelecto Agente, à objetividade plena portanto, e, a fortiori (sic) à verdade mesma. A unidade do mundo repousa na unidade do Intelecto, ou Logos, que é a unidade de Deus". (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 63-64. Os itálicos em negrito são meus).
Creio que não é preciso sublinhar que esse texto é completamente averroísta e gnóstico.
Quer mais?
Vá lá.
"Vivemos, movemo-nos e somos dentro (sic) dessa inteligência, pois, suprimida a inteligência, já não temos identidade humana nenhuma, e não somos nada. Se somos (sic) a inteligência, não exercemos a inteligência (...)" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 64. Os negritos são do autor).
Esse aranzel só é compreensível numa visão gnóstica do intelecto.
Ainda em 1997, Olavo permanecia fiel a essa doutrina esotérica:
"Deus não é "exterior" à consciência: é o seu núcleo mais íntimo e pessoal" "Todo ser humano possui esse núcleo". "Descoberto sob a dupla aparência de consciência e de presença, é o mesmo Logos, a mesma Inteligência que se manifesta dentro e em torno de nós, que dialoga comigo sempre que um homem vê uma pedra e a pedra é mostrada ao homem"(Olavo de Carvalho, artigo Lux in Tenebris", in Jornal da Tarde, 25- XII- 1997).
Deus "...se manifesta com todo o seu esplendor na auto realização da consciência humana" (Olavo de Carvalho, Lux in Tenebris, in Jornal da Tarde, 25-XII-1997).
Veja mais esta citação:
"Mas é preciso que este homem de erudição seja ainda um homem de espiritualidade, marcado pela vocação de convergência de todos os conhecimentos na luz unificante do Intellectus primus, ou Logos, ou Verbo divino"(Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 21. Os negritos são do autor).
E não se pretenda dar a essa frase acima uma interpretação benevolamente cristã, porque, para Olavo, como já vimos, o Logos habita todos os homens, é a sua inteligência única.
Quer você uma confirmação disso?
"É possível, ainda, passar da imagem ao conhecimento direto, se formos mais fundo para dentro de nós mesmos, pois ‘nosso intelecto está conjunto à verdade eterna mesma’ "(Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 69)
(Olavo não diz de onde tirou as palavras que coloca entre aspas, e que traduziu mal do francês, pois deveria ter traduzido: "Nosso intelecto está unido à própria verdade eterna", e não como ele fez, traduzindo "conjoint" (unido) por "conjunto").
Como conseqüência dessa noção gnóstica de intelecto, considerado como a partícula da Divindade presente e aprisionada nas criaturas - Olavo vai dizer que até as flores conhecem a seu modo (Cfr. Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 26) --, surgirá a idéia de que o homem pode ter um conhecimento divino, não humano, direto, supra racional, intuitivo, libertador e absoluto. Esse Conhecimento é a Gnose.
Tal conhecimento, de ordem inteiramente superior ao conhecimento racional, normal, se daria por uma tomada de consciência da unidade do intelecto humano com o próprio intelecto divino, a qual seria uma iluminação divina direta e absoluta, uma verdadeira Revelação, no pleno sentido da palavra.
"O revigoramento periódico do contato entre a inteligência e o infinito, que é a sua origem, denomina-se revelação, quando desse contato surgem o rito e uma norma destinada a possibilitar esse contato para um grande número de pessoas; denomina-se intuição intelectual quando ocorre para um indivíduo em particular"(Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, p. 19. Os negritos são do original).
A idéia de revelação expressa nesse texto é a mesma que se encontra na Gnose Modernista.
E pouco adiante, Olavo precisa que essa revelação é a Tradição esotérica, a qual, como já provamos, é a Gnose:
"Não há nem religião nem esoterismo de espécie alguma sem uma revelação. A revelação origina ao mesmo tempo as técnicas e disciplinas que conduzem à intuição, e as normas que conduzem à vivenciação simbólica e indireta do sentido. A estas duas instâncias dá-se o nome de esoterismo e de exoterismo, respectivamente. A possibilidade permanente de efetivar uma dessas duas formas de vida espiritual denomina-se Tradição. Toda Tradição remonta a uma revelação. (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, p. 19. O negrito é do autor).
A revelação primordial poderia ser renovada individualmente por meio de experiências esotéricas, através da "intuição intelectual que constituía um espécie de revelação em miniatura, era esta a função das sociedades esotéricas, (...) "(O de Carvalho, A Crise do Catolicismo, in Planeta, Novembro de 1981, no 110, p. 26. O negrito é meu).
Olavo, repetindo ou colando Guénon, defende um modo de conhecimento que não é o racional, discursivo ou abstrativo. Para ele, o verdadeiro conhecimento seria intuitivo, divino e divinizador:
"Todo homem sente que no seu conhecimento dos objetos particulares há algo de irreal e de precário, e esse algo deriva tanto do caráter ao menos parcialmente 'mental', isto é, hipotético do seu conhecimento, quanto da limitação mesma do seu modo de existência." (Olavo de Carvalho, "Esboço de um Sistema de Filosofia", 21.09.97, p. 10, Parte VII, capítulo 24)
"Pela teoria da tripla intuição (V. O Olho do Sol), vemos que o ato intuitivo é, de fato, o único ato cognitivo que existe. Denomino a esta doutrina intuicionismo radical." (Olavo de Carvalho, "Esboço de um Sistema de Filosofia", 21.09.97, p. 9, Parte VI, capítulo 22. Itálicos e sublinhado do original; negrito nosso.).
Repare então, meu caro Felipe, a modéstia de Olavo ao dizer: "Denomino a esta doutrina intuicionismo radical", como se fosse ele o criador dessa doutrina, que ele colou de Guénon! Exatamente, da página 183 da Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus.
É muita ousadia.
O conhecer - e não o conhecimento - seria a única realidade do homem:
"A suprema realidade do ato do conhecimento não está nem no sujeito nem no objeto, mas no ato de conhecer. O sujeito e o objeto nada mais são, 'em si mesmos', do que potências desse ato. V. a aula 'Ser e conhecer'. Em decorrência, a realização do conhecimento é a única realidade do homem. E o dar-se a conhecer (não somente ao homem, é claro) é a única realidade do objeto." (Olavo de Carvalho, "Esboço de um Sistema de Filosofia", 21.09.97, p. 9, Parte VI, capítulo 21).
Portanto, a única realidade no mundo manifestado, seria não o conhecimento, mas o conhecer. Um verbo, uma ação, e não um substantivo, confirmando a idéia gnóstica de que o ser é fluxo.
Como vimos, esse conhecimento seria esotérico, e não transmissível discursivamente.
Tais práticas esotéricas não podem ser transmitidas por escrito : "Daí por que (sic), vista de fora e sem o apoio da disciplina iniciática (a qual, por razões óbvias, só pode ser dada pessoalmente a cada um, já que implica uma prática metódica, não podendo, por isso, ser exposta por escrito) (...) (Olavo de Carvalho, A Crise do Catolicismo, in Planeta, Novembro de 1981 no 110, p. 27).
Essa revelação obtida pelo Conhecimento intuitivo seria a Tradição - que, como vimos, é a Gnose - e estaria presente em todas as religiões: "Mas, qualquer que seja a religião de que se trate, revelação é o meio pelo qual a Verdade total, universal e definitiva se manifesta e se evidencia aos homens"(Olavo de Carvalho, op. cit. p. 33).
No livro Astros e Símbolos, Olavo diz que a intuição é o contrário da abstração, e que também pela intuição sensível se pode chegar a identificar a parte com o todo, a individualização máxima com a universalização, e que isto é a visão intelectual, que ele relaciona então com a Alquimia. (cfr. Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, pp 70-71).
Como os gnósticos em geral, Olavo desvaloriza a razão dando inteira predominância à inteligência. Ele chega a declarar que a abstração é um pecado.
"Mas a última etapa que absolverá o raciocínio analógico de seu último ranço de abstracionismo, é precisamente a forma suprema de raciocínio, forma essa tão superior a todas as outras, que já representa praticamente uma entrada no mundo da intuição e do conhecimento imediato. A essa forma de raciocínio, denominamos convenientia (...) Quando nosso intelecto chega a essa forma de raciocínio, podemos então começar a compreender a doutrina hindu dos "dias e noites de Brahma", ou a doutrina islâmica da "inspiração e expiração de Deus", como retroação de todos os mundos ao seu princípio, seguida de nova expansão multilateral de manifestação universal. Estamos, assim, às portas da metafísica pura, mas isto será assunto para outra ocasião" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 44. O negrito é do autor).
Repare, meu caro Felipe, que Olavo fala em "absolver" o abstracionismo por seu "ranço", indicando que ele considera a abstração como um verdadeiro pecado
Por isso, ele dirá que o verdadeiro conhecimento - o conhecimento "metafísico", isto é, a Gnose - não pode ser alcançado por meio racional.
"O termo "metafísica" não deve ser aqui entendido da maneira comum e corrente tal como a empregam os professores e manuais de filosofia, mas no sentido propriamente tradicional, que tem nas obras de René Guénon, Titus Burckhardt, Frithjof Schuon, Seyyed Hossein Nasr, Ananda Coomaraswamy e tantos outros, que teremos a ocasião de mencionar.
"Se a metafísica está relacionada ao conhecimento de princípios absolutos, por isso mesmo ela não pode ser realizada por meios unicamente racionais, uma vez que razão, ratio, significa proporcionalidade e, portanto, relatividade" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, pp. 53-54 O negrito é do autor).
Seria então por meio desse conhecimento superior que o homem libertaria seu self, o seu pneuma, do cárcere da matéria e da razão.
O conhecimento a que Olavo se refere é de fato um conhecimento divino e divinizador, e que dá a explicação de sua esotérica definição de Filosofia.
"Buscando-se a unidade do conhecimento dentro da consciência, encontra-se dentro dela algo que não é ela e que a funda naquilo que ela tem de mais íntimo. É a frase de Claudel: Deus é aquele que em mim é mais do que eu mesmo. Ou seja, esse interior do interior do interior da consciência é algo que a transcende. Seria aquele pontinho mais mínimo que ao mesmo tempo é o máximo. Este é um momento particularmente brilhante da filosofia porque é filosofia no sentido mais puro da coisa"(Olavo de Carvalho, aula do Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho, junho de 1998, Bloco 8, p. 15).
Isto não é absolutamente Filosofia.
É Gnose.
É esoterismo.
E Olavo o confessa, escrevendo:
"O esoterismo é a ciência universal por excelência, é o conhecimento e a realização da unidade (...)" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 11).
E o tal "pontinho" mais mínimo e máximo no fundo da consciência humana é o que os gnósticos chamavam de éon ou pneuma e que Guénon e o Hinduismo chamam de âtmâ.
E isso também é Gnose.
Vimos que Olavo identifica Tradição, Conhecimento, Sabedoria e Gnose, e que por isso mesmo ele escreveu:
"Para o sábio ou gnóstico, conhecer é ser, e vice versa" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 26. Os negritos são meus).
Para Olavo, então, ser sábio, ser "Filósofo"-- ainda que auto proclamado - é ser gnóstico.
Olavo se auto proclamou "Filósofo", e se considera sábio, porque ele é gnóstico.
Mas, se identificar sábio e gnóstico é dar um passo adiante para compreender o que Olavo deixa subentendido ao expor sua "Filosofia", ainda não progredimos muito na compreensão da afirmação de que todo ser conhece, e que ele só é ser por conhecer. E vice versa.
E ainda tem o vice versa!
De novo um vice versa, que põe o xoró - o incompreensível - no avesso.
Dizendo que conhecer é ser --e vice versa! --, Olavo só repete o que leu em Guénon e em Schuon. (Note-se, porém, que o "explicitador" vice versa é só do Olavo).
Como vimos, quando Olavo diz algo mais estranho, é porque o colou de um de seus mestres esotéricos. Veja essa, que ele confessa ter colado de Schuon.
"Por outro lado, a não-dualidade do conhecer e do ser requer que se entenda o próprio conhecer como um modo de ser. "Ser homem, é conhecer" escreve Frithjof Schuon [in De l’ Unité Transcendente des Religions, cap. IX.] (in Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 25. Os negritos são de Olavo).
E mais:
"Em clima islâmico, a Vontade divina tem em vista, não a priori o sacrifício e o sofrimento como garantias de amor, mas o desenvolvimento da inteligência deiforme (min Rûhl, "de Meu Espírito") determinada, ela, pelo Imutável, e englobando por conseqüência nosso ser, sob pena de "hipocrisia" (nifâq) pois que conhecer é ser; (...)" (F. Schuon, Comprendre l ‘Islam, p. 22).
É praticamente infalível: quando se encontra uma idéia abstrusa nos livros de Olavo, ela é cópia de seus mestres gnósticos. Observe ainda, meu prezado Felipe, que Schuon faz referência à inteligência como deiforme...
Então, para Olavo de Carvalho, - exatamente como para Guénon e Schuon --Conhecer é Ser. E esse conhecimento é que tornaria o homem Sábio ou Gnóstico.
Óbviamente essa tese de que "conhecer é ser" é esdrúxula, e causa perplexidade ao ser lida.
Como se pode entender isso?
É evidente que conhecer não é ser, pois a cadeira em que estou sentado é ser, e entretanto ela não conhece. Para Olavo, porém, ela conhece a seu modo, porque "envia e recebe informações". Todo ente conheceria a seu modo.
"(...) é que todas as modalidades de ser passam a ser entendidas como modalidades de conhecer; por exemplo, as formas existenciais dos entes - a forma dos planetas, dos anjos, das flores e bichos, entendendo-se forma, evidentemente em sentido amplo e estrutural, não restrito e visual - são também suas modalidades de conhecer" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p.26).
Para Olavo, então, a flor, os planetas, os bichos, de certo modo, também conhecem!
Conhecem?
Conhecem o quê?
Conhecem como?
O próprio Olavo vai nos explicar isso:
"De conhecer o quê? A Unidade mesma da qual derivam. Há, por exemplo, modalidades externas e internas de conhecer - a flor não tem interioridade auto consciente, e por isso seu conhecimento da Unidade, ou de Deus, consiste e reside na sua forma corporal (e na função correspondente). O homem tem interioridade auto consciente, e por isso seu conhecimento de Deus não está tanto na sua forma sensível, mas na sua consciência de Deus, e nas conseqüências existenciais que ele tora dessa consciência" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 26).
Então, todas as coisas conhecem "a Unidade de que derivam", isto é, a Divindade. E conhecem a Divindade da qual emanam através do atma, da partícula divina que haveria nelas e nos homens
Quando Guénon, Schuon, Olavo e outros "tradicionalistas" dizem que conhecer é ser, estão, na verdade, equiparando o conhecer humano ao divino. Estão afirmando que o intelecto humano é o próprio intelecto divino. E estão ensinando que é pelo conhecimento que o homem e todas as coisas se identificam com Deus, realizando a unidade das consciências na unidade do Conhecimento. E isso é o que afirma a própria Gnose. Isso é Gnose.
Com todas estas explicitações fica bem mais fácil agora entender o que Olavo quer dizer - deixando subentendido - quando define Filosofia como "a unidade do conhecimento na unidade da consciência, e vice versa".
"Filosofia", - ou sabedoria --para Olavo, é a Gnose. E é por isso que ele afirma que o sábio é o gnóstico.
←VII - O 4o item fundamental da Gnose, segundo Olavo de Carvalho
"Expansão da divindade numa série de potências ou Aeons, um processo que, num ponto qualquer do seu desenvolvimento, teria dado errado, ocasionando a criação deste universo mau".
←VII - 1. Observações iniciais
Antes de tudo, é preciso notar um erro de posicionamento deste item: é claro que ele deveria ter sido posto como segundo item. Sua colocação em quarto lugar, fere a lógica da exposição, pois já se tratou da evolução da Divindade, e da ação do Demiurgo.
Essa falta de ordem nos quatro itens de Olavo, levará a uma certa repetição dos temas já tratados.
Culpa de Olavo.
Outro ponto importante a reter é que no item IV, tal como foi formulado por Olavo, se fala em "expansão" e em "processo" da Divindade e não em "emanações" da Divindade, como em geral se diz, na Gnose.
Ora, admitir um processo ou evolução interna na Divindade é doutrina típica da Gnose. O que Guénon tem de original, quanto a esse ponto, é a afirmação de que não houve emanação ad extra da Divindade: para ele, o processo se daria apenas ad intra, na Divindade. Por isso, ele recusa usar o termo criação, substituindo-o pelo termo "manifestação".
Que René Guénon aceitava a doutrina de um processo evolutivo na Divindade, a qual teria se desdobrado em uma multidão de princípios intermediários entre ela e o mundo "manifestado", é patente para quem quer que tenha lido seus livros mais importantes.
Para comprovar isso basta ler alguns dos livros dele, tais como: Introdução Geral às Doutrinas Hindus, ou A Metafísica Oriental, ou ainda L’Homme et son Devenir selon le Vedanta, Os Estados Múltiplos do Ser, o Études sur L‘ Hinduisme, o Formes Traditionnlles et Cycles Cosmiques, etc.
Guénon quase que só fala disto. Se fossemos citar todos os textos em que ele expõe essa doutrina dos processos ad intra Divindade, que teriam culminado com a queda provocada pelo Demiurgo, reeditaríamos as suas obras. Portanto, limitar-nos-emos apenas a alguns textos mais significativos.
←VII - 2. Guénon e o problema da criação ex nihilo
Antes de citar e examinar os textos de Guénon e de Olavo de Carvalho sobre essa questão, é conveniente colocar alguns pressupostos.
Há fundamentalmente três posições possíveis nesse problema relativo a Deus e à criação:
1) A posição doutrinária do Catolicismo. Conforme a doutrina da Igreja Católica Deus é ato puro, absolutamente perfeito e sem possibilidade de mudança. Por isso Deus assim se definiu: "Eu sou aquele que é "(Ex, III, 14), isto é, o Ser absoluto, imóvel, o Ato puro. Por isso também Deus disse: "Eu sou Deus e não mudo "(Mal. III, 6). Por isso, ainda, Deus, salientando que Ele é absolutamente transcendente ao mundo criado, afirmou: "Deus não é como o homem capaz de mentir, nem como o filho do homem sujeito a mudanças"(Num. XXIII, 19). Essas verdades são completamente negadas por Guénon.
Além disso, a doutrina Católica ensina que Deus criou o mundo por um ato livre de sua vontade, e que o criou do nada (ex nihilo").
2) O Panteísmo, a seu turno, ensina que o mundo é feito da própria substância divina, e que, por essa razão, tudo é divino, inclusive a matéria.
3) A Gnose afirma que a Divindade é essencialmente evolutiva, e que, nesse processo de evolução, teria havido um engano, o surgimento do Demiurgo criador ou causador da matéria e do mundo, oposto à Divindade.
Guénon recusa terminantemente a criação ex nihilo, ensinada pelo Catolicismo, assim como recusa o Panteísmo. A sua posição é a da Gnose, com uma diferença: muitas seitas gnósticas afirmam que o universo foi emanado da Divindade ad extra. Guénon, com a Gnose hinduísta, pretende que o mundo - que ele chama de manifestação e não de criação - não foi "manifestado" ad extra, mas sim ad intra, na Divindade.
Por essa razão, Guénon, em certos livros, recusa explicitamente a idéia de emanação ad extra Divindade, o que pode levar alguns a julgar erroneamente que ele recusa a existência de um processo evolutivo na própria Divindade. Essa distinção, porém, não o coloca fora do sistema gnóstico.
Rejeição da criação ex nihilo
Para comprovar isso, comecemos pelo primeiro artigo de René Guénon, Le Démiurge, escrito para a revista La Gnose, que ele assinou como Bispo da Igreja Gnóstica, sob o nome de "T. Palingenius".
Já citamos em parte esse texto, mas a ilogicidade dos quatro itenzinhos de Olavo nos obriga a repeti-lo para manter a lógica de nossa exposição.
Lá se pode ler que Guénon rejeitava expressamente a criação ex nihilo, mas, inicialmente. parecia repelir também a idéia de que o universo teria emanado da Divindade.
Na realidade, ele pretende que, embora tenham existido transformações na Divindade, o universo teria surgido de uma "queda" Metafísica, e que o universo - conjunto das coisas manifestadas - estaria, de fato, na própria Divindade.
"É evidente que o perfeito não pode produzir a imperfeição, já que, se isto fosse possível, o perfeito deveria conter em si mesmo o imperfeito em estado principial, com o que deixaria de ser o perfeito. O imperfeito não pode então proceder do imperfeito por via de emanação; assim não poderia resultar senão da criação "ex nihilo", mas como admitir que algo possa proceder do nada, ou, em outros termos, que possa existir alguma coisa carente de princípio? Por outro lado admitir a criação ex nihilo" seria admitir o aniquilamento final, e não há nada mais ilógico que falar da imortalidade em tal hipótese. Mas a criação assim entendida é um absurdo, posto que é contrária ao princípio de causalidade, que é inegável para todos homem sincero e medianamente razoável, com o que podemos dizer como Lucrécio: "Ex nihilo nihil, ad nihilum nihil posse reverti"(René Guénon, como Bispo Palingenius, Le Démiurge, p. 1).
A mesma negação da criação ex nihilo pode ser lida no livro Esoterismo Islâmico e Taoísmo, versão castelhana.(Ediciones Obelisco, Barcelona, 1992, p.70).
Por outro lado, Guénon, como já vimos, repele o panteísmo, porque, com o Hinduísmo, considera a matéria pura ilusão. Ele previne que não se caia no erro de pensar que, por não aceitar a criação ex nihilo, ele aceite o panteísmo.
"É pois bastante claro que o que acabamos de dizer se liga estreitamente no pensamento de uns e outros à imputação de "panteísmo" dirigida comumente às mesmas doutrinas orientais e da qual temos demonstrado a miúdo sua completa falsidade, inclusive até ao absurdo (já que o panteísmo é na realidade uma teoria essencialmente anti metafísica) para que seja inútil voltar a isso de novo" (R. Guénon, Esoterismo Islâmico e Taoísmo, ed. cit., p. 67).
←VII - 3. Guénon e o emanacionismo
Nesse mesmo livro, Guénon faz críticas ao emanacionismo:
"Posto que fomos levados a falar do panteísmo, aproveitaremos para fazer em seguida uma observação que tem aqui certa importância a propósito de uma palavra que se tem precisamente o costume de associar com as concepções panteístas: esta palavra é "emanação", que para alguns, sempre pelas mesmas razões e como conseqüência das mesmas confusões, querem empregar para designar a manifestação, quando não se apresenta com o aspecto de criação. Ora pois, por isso, a menos que não se trate de doutrinas tradicionais e ortodoxas, esta palavra deve ser absolutamente posta de lado, não só por causa desta associação lamentável (que esta esteja, pelo demais, mais ou menos justificada no fundo atualmente, não nos interessa), senão sobretudo porque, em si mesma e por seu significado etimológico, não expressa mais do que uma impossibilidade pura e simples. Com efeito, a idéia de "emanação" é propriamente a de uma "saída", porém a manifestação [Para Guénon, o conjunto da criação] não deve considerar-se assim de modo algum, pois nada pode realmente sair do princípio; se algo saísse dele, o Princípio, desde então, já não poderia ser infinito, e se encontraria limitado pelo próprio fato da manifestação; a verdade é que fora do Princípio, não há e não pode haver mais do que o puro nada. Se inclusive se quisesse considerar a "emanação", não em relação ao Princípio Supremo e infinito, mas apenas com relação ao Ser, princípio imediato da manifestação, este termo daria ainda motivos para uma objeção que, por ser distinta da precedente, não seria menos decisiva: se os seres saíssem do Ser para manifestar-se, não poderia dizer-se que eles eram realmente seres, e estariam desprovidos de toda a existência, pois a existência, seja de todo modo que seja, não pode ser mais que uma participação no Ser; esta conseqüência, ademais de que é patentemente absurda em si mesma, num como em outro caso, é contraditória com a própria idéia de manifestação" (René Guénon, Esoterismo Islâmico e Taoísmo. ed. cit., pp. 67-68).
"... há que abster-se também com muitíssimo cuidado de outro erro contrário aquele que consiste em querer ver uma contradição ou uma oposição qualquer entre a idéia de criação e esta outra idéia a que acabamos de aludir e para a qual o termo mais acertado que temos a nossa disposição é o de "manifestação;"(René Guénon, Esoterismo Islâmico e Taoísmo, pp. 65-66).
E Guénon então informa que a idéia de "manifestação" não se opõe, de fato, à idéia de criação. Essa última seria própria do exoterismo religioso, enquanto que a idéia de "manifestação" é mais do esoterismo, significando que tudo permanece ad intra, na Divindade (Cfr. op. cit., p. 68).
Como exemplo dessa idéia de "criação" no exoterismo, e de "manifestação" no esoterismo, Guénon dá a noção de criação no Islamismo e de "manifestação" no esoterismo islâmico:
"Já que acabamos de recorrer a um termo da linguagem da tradição islâmica, acrescentaremos isto: ninguém se atreveria, desde logo, a discutir que o Islamismo, quanto a seu aspecto religioso ou exotérico, seja ao menos tão "criacionista" quanto como pode sê-lo o próprio Cristianismo; entretanto, isto não impede de modo algum que em seu aspecto esotérico haja um nível a partir do qual a idéia de criação desaparece" (René Guénon, Esoterismo Islâmico e Taoísmo, p. 73).
Portanto, a "manifestação" da Divindade se dá na própria Divindade, não havendo nem criação ex nihilo, nem panteísmo.
Resta para Guénon a posição gnóstica, sendo que, para ele e para o Hinduísmo, a "manifestação" se dá na própria Divindade por um processo de mudança ou evolução interna.
Por essas razões, não haveria nem criação, nem emanação ad extra, da Divindade:
"Não pode haver nada que careça de um princípio; mas qual é esse princípio? Não será na realidade o Princípio único de todas as coisas? Se considerarmos o universo total, é evidente eu ele contém todas as coisas, posto que todas as partes estão contidas no todo. Por outro lado, o Todo é necessariamente ilimitado, já que se tivesse um limite, o que estivesse para lá deste limite não estaria compreendido pelo todo, sendo esta suposição completamente absurda. O que não tem limite pode ser chamado Infinito, e como contém tudo é o Princípio de todas as coisas. Por outra parte, o Infinito é necessariamente "uno", porque dois Infinitos que não fossem idênticos se excluiriam um ao outro; resultando disto que não há mais que um Princípio único de todas as coisas, e este Princípio é o Perfeito, posto que o Infinito só pode ser tal se é o Perfeito" (René Guénon, o "Bispo" Palingenius da Igreja Gnóstica, Le Démiurge, p. 1).
Para expor como se deu a "manifestação", Guénon diz que no deserto se dá a imagem a mais perfeita dela, porque lá, "a diversidade das coisas é reduzida a seu mínimo, e onde, ao mesmo tempo, as miragens revelam tudo o que tem de ilusório o mundo manifestado"(...).
"Não se poderia encontrar uma imagem mais verdadeira da Unidade desdobrando-se exteriormente na multiplicidade sem deixar de ser ela mesma e sem ser afetada por isso e fazendo voltar logo a si mesma, sempre conforme as aparências, esta multiplicidade que, na realidade, nunca saiu de si, pois não poderia haver nada fora do Princípio ao qual nada se pode acrescentar e do qual nada se pode subtrair, porque Ele é a indivisível totalidade da existência única".
(René Guénon, Esoterismo Islâmico e Taoísmo, p. 30).
←VII - 4. O processo evolutivo na Divindade no Hinduísmo
Guénon expõe como se dá o processo evolutivo na Divindade, de modo mais pormenorizado, quando trata da doutrina hinduista.
Falando do Princípio Supremo, diz ele:
"O Princípio Supremo, total e universal, que as doutrinas religiosas do Ocidente chamam de "Deus", deveria ser concebido como impessoal ou como pessoal? (...) Sob o ponto de vista metafísico, é preciso dizer que esse Princípio é tanto impessoal quanto pessoal em relação à manifestação universal, mas bem entendido, sem que esta "personalidade divina" apresente qualquer caráter antropomórfico, já que é necessário se resguardar da confusão entre "personalidade" e "individualidade" (René Guénon, Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus, ed. Ciências Tradicionais Michel F. Veber, São Paulo, 1989, p.241).
Elucida Guénon que, enquanto impessoal, esse Princípio Supremo pode ser tido como Não Ser e se chamaria de Brahma. Enquanto pessoal, ele seria Ser e se chamaria Ishiwara (Cfr. op. cit., p. 241).
"Brahma, na sua Infinitude, não pode ser caracterizado por nenhuma atribuição positiva, o que se exprime dizendo que ele é nirguna ou "além de qualquer qualificação", e ainda nirvishesha ou "além de qualquer distinção; em contrapartida, Ishiwara é chamado saguna ou "qualificado", e sadishesha ou "concebido diretamente", porque ele pode receber de tais atribuições, obtidas no universal por uma transposição analógica, diversas qualidades ou propriedades dos seres dos quais é o princípio". (R. Guénon, op. cit. p. 243).
Por sua vez, "Ishiwara é encarado sob uma triplicidade de aspectos principais, que constituem a Trimûrti ou "tripla manifestação", e dos quais outros aspectos mais particulares derivam, secundárias com relação àqueles. Brahmâ [ com circunflexo] é Ishiwara enquanto princípio produtor dos seres manifestados; ele é chamado assim porque é considerado como o reflexo direto, na ordem da manifestação, de Brahma [sem circunflexo], o Princípio supremo." (...) "Os outros dois aspectos constitutivos da Trimûrti, complementares um do outro, são Vishnu, que é Ishiwara enquanto princípio animador e conservador dos seres, e Shiva, que é Ishiwara enquanto princípio, não destruidor como se diz a torto e a direito, mas, com mais exatidão, transformador; estas são "funções universais" e não entidades separadas e mais ou menos individualizadas" (René Guénon, Introdução Geral aos Estudos das Doutrinas Hindus, pp. 243- 245).
E daí para diante la vai a "doutrina" hindu, numa exuberante e delirante enumeração de "aspectos" da Divindade, começando por "Prakriti ou Pradhana, que é a substância universal, indiferenciada e não- manifestada em si, mas de onde todas as coisas procedem por modificação; este primeiro tattwa é a raiz ou mûla da manifestação, e os tattwas seguintes representam suas modificações em diversos graus. No primeiro grau, está Budhi que é também chamado Mahat, ou o "grande princípio", e que é o intelecto puro, transcendente em relação aos indivíduos; aqui, estamos já na manifestação, mas não ainda na ordem universal". (R. Guénon Introdução Geral ao estudo das Doutrinas Hindus, pp. 273-274).
Para Guénon, "... o estado presente [do universo e do homem] não é mais que o efeito de uma queda, o efeito de uma espécie de materialização progressiva que se produziu no curso das eras, através da duração de um certo ciclo" (René Guénon, A Metafísica Oriental, Ivpiter, São Paulo, 1981, p.35. Tradução com notas de Olavo de Carvalho).
Dispenso-me de continuar a citação destes delírios gnósticos. Quem quiser conhecê-los, vá enroscar-se nessa mitologia de pesadelo, nas páginas desse livro delirante de Guénon.
Chega.
Para concluir, lembro apenas que Guénon reafirma a tese fundamental da Gnose, ao dizer que:
"A realização metafísica consistindo essencialmente na identificação pelo conhecimento, tudo o que não é conhecimento em si ‘so tem um valor de meios acessórios" (René Guénon, Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus, p. 279).
←VII - 5. Olavo e o emanacionismo
E Olavo, o que escreveu ele sobre esse problema explicitado no seu quarto item da doutrina Gnóstica?
Já vimos que ele considera que a raiz do mal, a raiz do sofrimento, está na polarização dialética do universo, que proveio do desdobramento da unidade do ser:
"A psicologia astrológica (sic!?) é uma teoria do sentido do sofrimento e da raiz deste último nas polarizações que cosmogonicamente desdobram o orbe manifesto a partir da unidade do ser" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, Nova Stella, São Paulo, 1985, p. 65).
Ora, essa formulação diz, com palavras diferentes, exatamente o que está afirmado no IV item da Gnose, segundo Olavo. Parece que ele anda muito esquecido do que escreveu...
Tão esquecido que não se "lembra de que, para Olavo de Carvalho, "... a unidade primordial, o ser, de onde emanam todas as coisas" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, Nova Stella, São Paulo, 1985, pp. 74-75. O negrito é do próprio Olavo).
E note bem, meu caro Felipe, que Olavo usou o verbo emanar, que Guénon não usa. Portanto, Olavo é ainda mais claramente gnóstico do que Guénon, pelo menos nessa frase.
Essa doutrina tipicamente gnóstica é repetida por Olavo, noutra passagem de outro de seus livrecos, que já citamos, mas na qual queremos, agora, frisar a idéia de emanação.
"A segunda conseqüência, de ordem teórica, é que todas as modalidades de ser passam a ser entendidas como modalidades de conhecer; por exemplo, as formas existenciais dos entes - a forma dos planetas, dos anjos, das flores e bichos, entendendo-se forma, evidentemente em sentido amplo e estrutural, não restrito e visual - são também suas modalidades de conhecer. De conhecer o que? A Unidade mesma da qual derivam" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, Nova Stella, São Paulo, 1986, p. 26. O negrito é meu).
Além de novamente afirmar que tudo deriva da Unidade Primordial --e vimos que Olavo entende deriva como emana - nessa frase está afirmado que todos os seres, pelo fato de serem, conhecem, e conhecem a Unidade primordial de que derivam. portanto, para Olavo, a flor, por exemplo, tem em si, algo que permite a ela conhecer (cfr. Astrologia e Religião, Nova Stella, São Paulo, 1986, p. 26). De alguma modo ela, a flor, teria participação no intelecto. O que está logicamente de acordo com o restante da doutrina defendida por Olavo de que tudo provem do Intelecto Primeiro. Mas isto é exatamente Gnose.
No Natal de 1997, Olavo publicou um artigo intitulado Lux in Tenebris. Evidentemente, o título e a data escolhida para sua publicação, levariam os leitores a julgar que era um artigo sobre o nascimento de Cristo, tanto mais que nele se falava do nascimento do Logos. Na realidade, Olavo expunha, nesse artigo, mais ou menos vagamente, a doutrina gnóstica da queda da Divindade e da evolução das partículas divinas aprisionadas até a sua libertação.
Veja os trechos mais importantes e preste atenção à terminologia guénoniana:
"Desdobrado sob a dupla aparência de consciência e de presença, é o mesmo Logos, a mesma Inteligência que se manifesta dentro e em torno de nós, que dialoga consigo sempre que um homem vê uma pedra e a pedra é mostrada a um homem" (Olavo de Carvalho, Lux in Tenebris, artigo in Jornal da Tarde, 25 - XII 1997).
O que está dito aí de modo obscuro é que o Logos, a Inteligência divina existe, quer na consciência, quer nas coisas como presença, e é ela que dialoga consigo mesma, quando o homem pensa e conhece uma pedra. Uma só "Luz" divina existiria oculta nas trevas da matéria. Lux in tenebris... E o universo não foi criado: foi um desdobramento da Divindade.
A seguir, nesse mesmo artigo, Olavo explica a doutrina hinduísta, propagada por Guénon, a respeito das manifestações da Divindade no Cosmos, e o retorno dos atmâs a Brahma, claro, em linguagem velada, esotérica:
"No fluxo do tempo cósmico, esse Logos atravessa, desde o ponto de vista humano, ciclos de revelação e de ocultação, marcados por quatro momentos fundamentais: o momento em que ele se oculta na multiplicidade confusa do mundo; o momento em que ele se refugia no fundo obscuro da consciência isolada; o momento em que ele se manifesta com todo o esplendor na inteligibilidade do mundo em torno; e o momento em que ele se manifesta com todo o seu esplendor na auto realização da consciência humana"(Olavo de Carvalho, Lux in Tenebris, In Jornal da Tarde, 25 - XII - 1997).
Esquematizado esse texto, veja como fica bem clara a doutrina gnóstica de Olavo, e como ele espertamente a oculta:
Ele diz aí que o Logos, o Intelecto, como diz o sufismo passa por quatro momentos:
1) A queda na multiplicidade confusa do mundo manifestado;
2) O ocultamento dos atmâs ou éons divinos, nas coisas criadas;
3) O afloramento do Intelecto nas consciências através da compreensão do universo inteligível;
4) A Auto Realização Suprema do homem pela união de seu atmâ com o Intelecto divino, através do Conhecimento Supremo.
Isso tudo, foi dito em um artigo que dizia respeito ao nascimento do Logos, num artigo de Natal, quando a luz de Deus nasceu em Belém... Lux in Tenebris.
Indiscutivelmente hábil. Esotericamente hábil. Mas num artigo gnóstico, aparentando ser cristão.
Voltemos ao Astros e Símbolos de Olavo, para encontrar nova confirmação de que as coisas existentes no universo emanaram da Unidade Primordial.
"O que estabelece a analogia entre dois entes, portanto, não são as similitudes que apresentam no mesmo plano, mas o fato de que emanam de um mesmo princípio, que cada qual representa simbolicamente a seu próprio modo e nível de ser, e que contendo em si um e outro, é forçosamente superior a ambos" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 39. O negrito é do Olavo. E tão apropriado que me dispensou de colocá-lo).
Portanto, Guénon defende a tese das transformações ad intra, na Divindade.
Olavo, mais claro, fala de emanações, sem dizer que elas são ad intra.
←VII - 6. O Mundo Imaginal Shiita e Olavo
Olavo inclui no universo manifestado, que se teria desdobrado da Unidade Primeira, também o "mundo imaginal" da Gnose shiita:
"A contra partida ontológica dessa faixa psicológica é o denominado mundus imaginalis, o mundo das formas imaginais, que não se confundem com o imaginário (Hugo atribui o imaginário à parte corporal) e que constituem o elo perdido entre o mundo dos sentidos e as "formas puras (ou abstratas) do entendimento(...)". (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 42. O negrito é de Olavo.).
Então, haveria um mundo imaginal - tal qual na Gnose shiita (Cfr. Henry Corbin, En Islam Iranien.) - que seria o elo entre o mundo puramente material e o mundo superior, puramente espiritual, como ensina a Gnose shiita. E não se pense que sou eu que acuso que isso é relacionado com a Gnose shiita. É o próprio Olavo que escreve:
"Um estudo da consistência e das estruturas do mundus imaginalis poderia levar-nos demasiado longe de nosso propósito, que é simplesmente o de definir o sentido da palavra "Zodíaco", mas podemos remeter o leitor à obra monumental de Henry Corbin que fornece não apenas a explicação, mas a atestação documental extensa das concepções sobre o imaginal, sobretudo na filosofia persa, que ele foi o primeiro autor a divulgar no ocidente". (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 60).
Ótimo.
Só que Olavo esqueceu de dizer que a tal "filosofia" persa é a Gnose shiita. Quem quiser comprová-lo, que leia os quatro volumes de Corbin ns quais ele afirma isto explicitamente: a doutrina shiita é a Gnose do Islam.
E Olavo explica mais: nesse mundo imaginal, existiriam não só os símbolos, mas também os "entes imaginais", simbolizados por eles" (Olavo de Carvalho, op cit., p. 43).
E prossegue Olavo, impertérrito, em suas afirmações gnosticamente descabeladas:
"E é no mundo imaginal que reencontramos então os anjos e os personagens todos das narrativas bíblicas e mitológicas, como formas de realidade que não se reduzem nem ao nosso psiquismo subjetivo, nem a uma objetividade meramente exterior" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 43).
E como ele colocara nesse mundo também os seres mitológicos como o centauro, eis que os personagens bíblicos ficam reduzidos ao nível dos centauros e capricórnios do zodíaco...embora ele diga que "o mundus imaginalis é o âmbito das hierofanias, das aparições sacrais"(Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 61).
E basta! Que já escrevi bem mais do que a meia palavra necessária para os bons entendedores, que, para os maus, não adianta escrever mais.
←VIII - Os Desenvolvimentos Secundários da Gnose, conforme Olavo de Carvalho
No seu AVISO 2, Olavo diz:
"Desses princípios - (os quatro pontos doutrinários fundamentais da Gnose em... nível de enciclopédia popular) - derivam alguns desenvolvimentos secundários, dos quais os mais notórios são a concepção sexual do pecado original (hoje, por ironia, atribuída pela mídia à Igreja Católica), o ascetismo destrutivo e o milenarismo revolucionário que originou as ideologias modernas"
E desafia Olavo: "Qualquer tentativa de caracterizar como gnóstico - herético o meu pensamento só poderia ser levada em conta se demonstrasse nele, a vigência desses princípios e a adesão a esses desenvolvimentos" (Olavo de Carvalho, AVISO 2).
E ele nega de pés juntos que esses princípios e desenvolvimentos existam em sua doutrina e em sua vida. E garante:
"Tudo isso é tão evidente nos meus textos e aliás até na minha vida pessoal, que a acusação de gnosticismo levantada pelo sr. Orlando Fedeli, no essencial, não pode pretender ao estatuto de coisa séria".(Olavo de Carvalho, AVISO 2).
Mas, ao mesmo tempo ele se resguarda, fazendo uma restrição ao dizer que o fato de haver algum elemento gnóstico num autor, num estilo de arte, em ciências, etc, misturado com elementos cristãos, não tornaria esse autor, estilo, ciência, etc, de si gnósticos. E como exemplo disso, menciona a Alquimia e Astrologia:
: "Só para dar um exemplo, a mesma teoria da influências dos astros sobre as paixões humanas se encontra idêntica em Sto Tomás de Aquino e em Robert Fludd. É cristão no primeiro e gnóstica no segundo, não porque apresentem qualquer diferença interna mas pelo lugar que ocupa nas concepções globais de um e de outro"(Olavo ce Carvalho, AVISO 2, 17-4 - 2001).
Ora, já demonstramos que os quatro pontos fundamentais da Gnose indicados por Olavo existem na doutrina de René Guénon, assim como nos livros e escritos de seu discípulo Olavo de Carvalho.
Ademais, nem todos os sistemas gnósticos explicitam simultaneamente todos esses "desenvolvimentos secundários", como os chama Olavo, e nem por isso deixam de ser gnósticos.
Por exemplo, há uma contradição evidente entre o primeiro ponto e o segundo. A concepção do pecado original como o ato conjugal de Adão e Eva, que leva à condenação do matrimônio e à proibição por vezes absoluta de todo ato sexual, é própria das seitas gnósticas ascéticas, como o catarismo e o maniqueísmo.
Outras seitas gnósticas defendem o oposto, isto é, o desprezo da matéria por uma violentação completa da lei moral imposta pelo demiurgo, ensinando e praticando um antinomismo radical. (Aliás, Olavo reconhece essa dualidade de atitudes face à matéria nas seitas gnósticas). Foi esse antinomismo gnóstico que Cristo condenou, falando aos Fariseus: "Aquele, pois, que violar um destes mandamentos mais pequenos, e ensinar assim aos homens, será considerado o menor no Reino dos Céus"(Mt V, 19).
Em geral, essas seitas gnósticas antinomistas são as que colocam mais claramente a origem do mal na Divindade e não na culpa de Adão. Como já dissemos, elas falam mais de um pecado ante original, metafísico, acontecido na própria Divindade, antes do que numa culpa moral do primeiro casal. É o que ocorre, por exemplo na gnose hinduísta seguida por Guénon e por Olavo.
O Cardeal Ratzinger, no seu último livro, explica precisamente isto.
"O "pecado original", por exemplo, costumeiramente tão difícil de ser entendido, é identificado com a queda no finito, e assim resulta claro que ele pesa sobretudo sobre aqueles que se acham no círculo da finitude" (Cardeal Joseph Ratzinger, Introduzione allo Spírito della Liturgia, p. 28).
Finalmente, há as seitas gnósticas que assumem uma postura dialética quanto a esse ponto, quer adotando uma posição ascética para os seus novatos, quer, posteriormente um antinomismo absoluto, quando eles teriam alcançado a ‘realização" gnóstica por meio de uma suposta identificação com a Divindade. Era o que faziam por exemplo, os Irmãos do Livre Espírito, no final da Idade Média, os quietistas, certos grupos cabalistas, alguns grupos sufis, e os ismaelitas de Alamut.
Entretanto, todas essas seitas, são gnósticas, embora adotem ou o 1o ponto "secundário" citado por Olavo, ou só o 2o, ou, dialeticamente, os dois ao mesmo tempo.
Vejamos então, sucintamente, alguma coisa sobre os pontos que Olavo chama de "desenvolvimentos secundários" da Gnose.
←VIII - 2. O 1o Desenvolvimento Secundário da Gnose conforme Olavo: a concepção sexual do pecado original
Como já ressaltamos, a Gnose, normalmente, coloca a origem do mal na própria Divindade. O mal seria ontológico e não moral. Para o Catolicismo, o mal é apenas moral, e nunca metafísico, pois, como demonstrou Santo Agostinho em seu obra Contra Manicheos, se o mal absoluto existisse, ele teria o bem da existência, e, portanto, não seria mal absoluto. Ademais, o mal é o que vai contra a natureza. logo, ele não pode ser natureza. Mal, então, é a ausência de ser ou a ausência de ordem. O que é confirmado pela Sagrada Escritura na qual se lê que Deus, ao criar cada coisa, afirma que cada coisa é boa. (Cfr. Gênesis, cap. I).
Para a Gnose, o mal é ontológico, tendo se dado na própria substância divina, e provocou a queda da Divindade no Universo material. Se as seitas gnósticas insistem mais nesse ponto do que na queda de Adão, elas são antinomistas. Se insistem mais no pecado original de Adão, elas são preponderantemente ascéticas. Por isso, algumas das seitas gnósticas deste último tipo condenam o ato sexual como perpetuador da matéria e do aprisionamento dos éons divinos nos corpos materiais. É esse o caso da seita gnóstica mais conhecida, o Maniqueísmo, cuja posição face ao problema do mal foi repetida pelo Catarismo medieval, e por vários outros grupos gnósticos, no decorrer da História.
Para as seitas gnósticas de tipo maniqueu, os atos sexuais seriam "abjetos, bestiais, imitação de conjunções diabólicas. Sobretudo, eles têm por resultado, pela propagação da espécie, a transmissão do Mal original. Eles fazem do homem o cúmplice e o instrumento da Matéria fabricada pelo Demiurgo, para manter as partículas da luz sujeitadas na turpitude dos corpos, a fim de continuar a dominá-las, prolongando o cativeiro de geração em geração. Em suma, a sexualidade forma o mais grave obstáculo para a redenção da humanidade, que ela retarda e impede. Daí, para o maniqueu que tende à perfeição - ou o que é a mesma coisa - à santidade, um dever primordial, imperativo, bem resumido e explicado por Alexandre de Lycopolis: trabalhar em cooperar para a ruína da Matéria decretada por Deus(...) e, em conseqüência, abster-se não só de todo alimento animal, mas também, mas sobretudo, abster-se do casamento, de todo comércio sexual, da procriação de filhos, afim de que o Poder (divino) não continue mais tempo a permanecer na Matéria conforme a propagação do gênero humano(...). (Henri Charles Puech, Sur le Manichéisme et Autres Essais, Flammarion, Paris, 1979, pp. 66-67).
Entretanto, com a Cabala essa questão é mais matizada. Para os judeus, o casamento era obrigatório, e o ter filhos era, como é, uma benção de Deus. Pelo contrário, a esterilidade era um sinal de maldição, porque significava que Deus recusava que a pessoa estéril tivesse qualquer parentesco com o futuro Messias.
Por isso, a Gnose não poderia penetrar entre os judeus, condenando o casamento e a reprodução.
Os primeiros sinais de introdução, entre os judeus, de um misticismo herético que irá mais tarde desembocar na Gnose cabalista, se deu ainda no período do segundo Templo, isto é, ainda no século V antes de Cristo, conforme Gerschom Scholem, cuja autoridade na questão é indiscutível (cfr. Gerschom Scholem, A Mística Judaica, Perspectiva, São Paulo, 1972, pp. 39, 41, 48 nota 24).
Entretanto, a nosso ver, antes mesmo da queda e destruição de Jerusalém, já teria havido essa infiltração. Baseamos nossa opinião no próprio texto da Sagrada Escritura.
Com efeito, no livro de Ezequiel se conta que Deus mostrou ao Profeta que a destruição da cidade santa e do Templo fora causada porque os sacerdotes judeus, secretamente, nos subterrâneos do Templo, adoravam os deuses do Egito, enquanto, na superfície, fingiam continuar adorando o Deus verdadeiro. E é claro que, se adoravam os ídolos do Egito, era porque admitiam a doutrina que explicava essa adoração, que era a Gnose egípcia. (cfr. Ezequiel, Cap. VIII).
Creio que você conhece o texto de Ezequiel, no qual ele mostra como Deus levou o Profeta, em visão, ao interior do Templo de Jerusalém, através de uma porta secreta que existia na parede do Templo. É um texto que parece até o de um romance policial... Entretanto é inspirado por Deus, e tem que ser aceito, é evidente, acima da opinião de Scholem.
O Sefer ha Zohar, o principal livro da Cabala, escrito no século XIII como um pseudo epigráfico, por Moisés Shem Tov de Léon, afirma que o pecado original foi um ato sexual:
"Depois que o homem dirigiu todas essas palavras para a mulher, a inclinação má despertou, deixando-o pronto a buscar a união com ela em desejo carnal, e incitou-a a coisas nas quais a inclinação má tomou prazer, até o fim. A mulher viu que a árvore era boa para ser comida, e que dava prazer aos olhos e tomou da fruta arrancou-a e a comeu - dando logo admissão para a inclinação má - e deu-a também para seu marido com ela: era ela agora que procurou despertar desejo nele, de modo a conquistar seu amor e afeto"(Zohar, I, 49, b.).
Entretanto, a Cabala também diz que o ato conjugal é o meio para reunir de novo a Sefirah Malkult ou Shekinah, isto é o sexo feminino da Divindade, com a Sefirah Yesod, o sexo masculino dela - porque em Deus haveria dualidade sexual, entendidas essa duas sefiroth como princípios, e não materialmente, assim como haveria a dualidade de bem e mal - permitindo que Malkult - a Shekinah - retorne ao pléroma divino.
A Cabala então, ao mesmo tempo em que afirma que o pecado original foi um ato sexual, diz que a união conjugal é um ato mágico que anula a individualidade, ao unir os esposos, e faz com que a Shekinah se reuna a Yesod, reconduzindo as partículas divinas que haviam caído no mundo material - no mundo da manifestação, na linguagem de Guénon - ao seio da Divindade, de volta ao pléroma divino. A Cabala é então uma Gnose dialética também no campo da moral conjugal.
"O Nome Santo não pode permanecer sobre nada que é falho. Por conseguinte, um homem que deixa esta vida defectivo por não ter deixado um filho após ele não pode ligar-se ele mesmo ao Santo Nome e não é admitido atrás da cortina, porque ele é defectivo e uma árvore que foi arrancada deve ser plantada de novo; porque o Santo Nome é perfeito em todo sentido, e nenhum defeito pode estar ligado a ele"(Zohar, I, 48 a).
A mulher seria assim, ao mesmo tempo, a causa do mal, enquanto instrumento da perpetuação da matéria, e o médium para reunir as partículas da Divindade tombadas no cárcere da materialidade fazendo-as retornar ao pléroma divino.
Essa mesma doutrina vai ser repetida por Jacob Boheme, cuja gnose é uma reprodução "cristianizada" do sistema cabalista de Isaac Lúria de Safed.(cfr. Jacob Boehme, Mysterium Magnum, XIX. 19; e Sex Puncta Philosophica, V, 14, VI, 8 e 9; Alexander Koyré, La Philosophie de Jacob Boehme, Vrin, Paris, 1971).
Se você, Felipe, quiser ler sobre isto, recomendo-lhe que leia os livros de Scholem sobre a Cabala, especialmente Major Trends in Jewish Mysticism, Les origines de la Kabbale, e Messianic Ideas in Judaism, assim como todos os livros de Boehme.
A Gnose cabalista de Boehme teve uma grande repercussão no Ocidente, inicialmente nos livros de Isaac Newton, depois na Gnose de Martinez de Pasqualis e de Louis Claude de Saint Martin. Este, o "Filósofo Desconhecido", influiu profundamente nos meios católicos através dos livros do maçon Joseph de Maistre, que difundiu a cabala de Boehme entre os ultramontanos franceses e italianos, especialmente. Até hoje, Joseph de Maistre influi - pessimamente- nos "tradicionalistas" católicos...(cfr. René le Forrestier, La Franc-Maçonnerie Occultiste au XVIII Siècle et L’ Ordre des Élus Cohens, Dorbon-Ainé, Paris, 1928; e Émile Dermenghem, Joseph de Maistre Mystique, Éd. D’Aujourd’hui, Paris, 1979).
Mas a maior influência do Martinismo e de Boehme verificou-se nos filósofos idealistas alemães e no Romantismo.
É de mau tom alguém citar-se a si mesmo, mas como em português é muito difícil encontrar livros sobre esse tema, fico constrangido a pedir-lhe que tenha a paciência de ler o primeiro capítulo de minha tese sobre a Gnose nas Visões de Anna Katharina Emmerick, no site Montfort.
Lá, você lerá que, nas pseudo visões de Ana Katharina Emmerick, se defende exatamente essa tese: que o pecado original foi o ato conjugal. E nisso essas falsas visões seguem a Cabala. Todos os detalhes dessas visões mentirosas, que se afastam da narração bíblica, são tirados de livros cabalísticos.
O Romantismo foi o meio que a Gnose usou para infiltrar-se nos meios católicos, como salientou Alain Besançon.
No esoterismo hindu e maometano, o problema do pecado original de Adão e Eva é deixado em segundo plano, colocando-se o problema do mal no plano ontológico, e não moral ou humano. Aliás, seria difícil fazer a Gnose entrar na Arábia condenando o ato sexual... No Corão, a felicidade paradisíaca é descrita exatamente em termos sexuais...
O que não torna a Gnose Hindu nem a Gnose islâmica menos gnósticas.
Desse modo, se em Guénon e em Olavo de Carvalho, não se acha uma condenação do ato sexual, isso não basta para isentá-lo de adesão e propaganda da Gnose. Apenas os coloca num grupo de seitas gnósticas do segundo tipo (as antinomistas), diferente das ascéticas (como a maniquéia), quanto a esse ponto, que Olavo chama de "secundário", na doutrina da Gnose...
Entretanto, é preciso lembrar que Guénon - muito reticente quanto ao misticismo - não deixa de elogiar as pseudo "visões" de Anna Katharina Emmerick:
"O que faz todo o interesse de certas visões, é que elas estão de acordo, em numerosos pontos, com dados tradicionais evidentemente ignorados pelo místico que teve essas visões". E, em nota aposta a essa afirmação, diz Guénon:
"Pode-se citar aqui como exemplo as visões de Anna Catherina Emmerich"(René Guénon, Aperçus sur L‘ Initiation, Éditions Traditionnelles, Paris, 1992. p.22 e nota 3).
E, dessa vez, não discordamos de Guénon: Anna Katharina Emmerick concorda em muitos pontos com as doutrinas gnósticas de Guénon.
Para não ser injusto com o sr. O de C. devo dizer que é preciso concordar também com ele, pelo menos num ponto: ele afirma que a condenação das idéias gnósticas é evidente em seus textos e em sua vida pessoal (Aviso 2).
De fato, devo admitir: pelo menos na vida pessoal, pelo que é público, Olavo nada tem com este primeiro ponto "secundário" da doutrina gnóstica. Tem mais com o segundo. Pois embora, pela doutrina, ele seja tão gnóstico como um cátaro perfeito, ele não pratica, de modo algum, o moralismo ascético do "perfeito" cátaro.
←VIII - 3. O 2o Desenvolvimento Secundário da Gnose conforme O de C: o Ascetismo Destrutivo
O segundo "ponto secundário", apontado por Olavo, como decorrente dos quatro pontos doutrinários fundamentais da Gnose, seria o que ele chama de "Ascetismo destrutivo".
Ora, já vimos que o desprezo gnóstico pela matéria, pelo que Guénon chama de Mundo da Manifestação, pode se dar, quer pela abstenção de tudo o que seja ligado ao corpo e à matéria, como também pelo abuso da matéria através de um antinomismo radical.
Alguns gnósticos optam, pela via da abstenção ou da renúncia, a tudo o que é material, entregando-se a macerações cruéis e a jejuns anti naturais, como faziam os cátaros.
Outros, pelo contrário, a exemplo dos Carpocráticos, optam inicialmente pela violentação de toda lei moral, que eles dizem imposta pelo Demiurgo. Havia ainda seitas que juntavam os dois sistemas. Os Irmãos do Livre Espírito, por exemplo, começavam exigindo penitências terríveis. Depois, dizendo que já haviam alcançado a "libertação", se proclamavam livres de toda lei, entregando-se a orgias sem freio.
A Cabala de Isaac Luria de Safed deu origem, cerca de um século após o seu aparecimento, ao movimento de Sabbatai Tzvi. Segundo a Cabala, o mal tem raiz na própria Divindade, na sephirah Din. Considerava a Cabala que, quando as partículas da Shekinah caíram no mundo, houve algumas que caíram até mesmo em Samael (Lúcifer). Para resgatar estas partículas da Shekinah que estavam aprisionadas em Samael, seria preciso "descer aos infernos", cometendo os piores pecados. Era a doutrina da santidade do pecado, que já existia na Cabala antiga. Sabbatai Tzvi, o falso messias cabalista, apostatou, adotando o Islamismo. Seus seguidores formaram seitas de diversos nomes. Uma delas foi o Franckismo, do nome de seu lider, Jacob Franck que fundou um grupo antinomista muito importante, que procurava praticar atos que violassem a dignidade humana. Ele planejou mais ainda: queria instituir na sociedade leis que fizessem a própria sociedade ser indigna, violando o quanto possível as leis naturais estabelecidas pelo criador. Tudo isso pode ser lido na obra de Gerschom Scholem: Sabbatai Sevi, the Mystical Messiah, Princeton University Press,1975).
Segundo Scholem, o antinomismo do cabalismo Franckista era mais radical que o dos gnósticos carpocráticos:
"É seu costume (dos sabataianos, seguidores de Jacob Franck, no século XVIII) que, com a vinda de Sabatai Tzvi, o pecado de Adão já estava reparado e o bem resgatado do mal e da "escória". De acordo com eles, desde essa época, a nova Torá tornou-se a lei sob a qual todo tipo de coisas anteriormente vedadas são agora permitidas, mesmo as categorias da relação sexual que ela proibia. Pois uma vez que tudo é puro, não existe pecado ou dano nessas coisas (...) Na História do gnosticismo, os carpocracianos são considerados os representantes mais exponenciais desta forma libertinesca e niilista de gnose. Mas nada que se conhece deles atinge o espírito resoluto desse evangelho do antinomismo pregado por Jacob Franck aos seus discípulos em mais de 200 ditos dogmáticos. As idéias que ele aduzia em apoio de suas pregações constituem não tanto uma teoria como um verdadeiro mito religioso de niilismo" (G. Scholem, As Grandes Correntes da Mística Judaica, Tradução do livro Major Trends in jewish Mysticism, Perspectiva, São Paulo, 1972, p. 318).
Também os ismaelitas shiitas de Alamut - os Assassinos de Hassan Ibn Sabbah - eram deste último tipo, unindo penitências e orgias.
A Gnose sufi, por exemplo, segundo Schuon-- um dos queridos mestres de Olavo - explica que, aquilo que é proibido no exoterismo, pode ser permitido no esoterismo. E dá como exemplo o vinho.
É sabido que a lei corânica proíbe o muçulmano de tomar vinho. Entretanto, o esoterismo sufi permite que o iniciado tome vinho. Na realidade, o esoterismo islâmico tem a mesma inversão da lei típica das seitas gnósticas: desde que o adepto alcançou certo nível de iniciação, a lei, para ele, já não vale mais. Para o iniciado, a lei passa a ser apenas um símbolo, e tudo lhe fica permitido. O que é lei, o que é proibição e obrigação para os religiosos, é lícito para os iniciados, para os que atingiram a união com a Divindade.
Schuon escreve:
"No Islam, em geral, parece que sempre houve - abstração feita da distinção muito particular entre sâlikûn e majâdhib - a divisão exterior entre sufis "nomistas" [seguidores da lei] e "anomistas" [sem lei],uns apegados à lei em virtude de seu simbolismo e de sua oportunidade, e os outros destacados da Lei em virtude da supremacia do coração (qalb) e do conhecimento direto (ma’ rifah). Jalâl ed-Din Rûmi diz em seu Marhnâwt: "Os amadores dos ritos são uma classe, e aqueles cujas almas estão abrasadas de amor formam uma outra (...)" (F. Schuon, Comprendre L ‘Islam, p.27-28, nota 2).
E ainda:
"O Koran diz: "Não ides à oração em estado de embriagues", o que pode se entender em um sentido superior e positivo; o sufi, gozando de uma "estação"(maqâm) de beatitude, ou mesmo simplesmente o dhakir (entregue ao hikr, equivalente islâmico do japa hindu) considerando sua oração secreta como um "vinho" (khamr), poderia em princípio se abster das orações gerais; nós dizemos "em princípio", porque de fato, os sufis e equilibrados e solidários, tão marcados no Islam, fazem inclinar a balança para o outro sentido" (F. Schuon, Comprendre l’ Islam, p. 28, nota 1).
Schuon, que Olavo considera como um de seus mestres preferidos, defende o antinomismo de modo escancarado: "...algo sempre considerado pela moral religiosa como tentação, como via para o pecado e, portanto, começo deste, poderá no esoterismo desempenhar um papel totalmente oposto, não sendo uma dissipação 'pecadora', mas pelo contrário um fator de concentração em virtude da inteligibilidade imediata do seu simbolismo." (Frithjof Schuon, A Unidade Transcendente das Religiões, Trad. Pedro de Freitas Leal, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1991, p. 59)
Schuon vai defender a tese gnóstica de que os que já alcançaram a divinização, não têm mais que se preocupar em cumprir a lei. Para eles, tudo seria permitido:
"...o homem profundamente consciente da natureza das coisas nada tem a evitar, pois os erros não podem seduzi-lo." (Frithjof Schuon, O Esoterismo como Princípio e como Caminho, Ed. Pensamento, p. 31, negrito nosso)
Para quem obteve o conhecimento, nada mais seria pecado, como diziam os quietistas:
"Censura-se igualmente o quietismo por ser imoral, visto que admite um estado em que o homem se encontra além do pecado, idéia que diz respeito a uma santidade - evidentemente incompreendida - na qual os atos do homem são de ouro, e tudo o que ele toca transforma-se em ouro..." (Frithjof Schuon, O Esoterismo como Princípio e como Caminho, Ed. Pensamento, p. 32-33).
Há, portanto, duas morais, no Islam, como em toda a Gnose: uma para os que praticam a religião exotérica, e outra para os iniciados no esoterismo, que alcançaram o Conhecimento, isto é, a Gnose.
Essa doutrina ficará mais evidente no ismaelismo de Alamut, seita shiita e tipicamente gnóstica.
Como o sufismo, o Ismaelismo de Alamut distinguia a shari’a - a lei-- que todos os religiosos devem obedecer, e a libertação da lei, de que usufruíam os que possuíam o Conhecimento salvador:
"Mas sobretudo, distinguir-se-á claramente entre a religião eterna esotérica (dîn) que significa a obediência a um senhor (maître) único e a religião positiva (shari‘a) que consiste em decretos, limitações e obrigações expressas" (Christian Jambet, La Grande Réssurection d’Alamut, Verdier, Paris, 1990, p. 72).
Essa idéia é confirmada em outras passagens desse livro. Citamos outra, para confirmar a existência da dupla moral no esoterismo islâmico de Alamut:
"O advento da Grande Ressurreição é uma ruptura libertadora. A abolição da lei, o segundo nascimento dos fiéis, a nova ética: tantos outros sinais do exercício de uma dualidade no seio do ser. É bem possível que o Ismaelismo de Alamut tenha sofrido a influência das religiões do antigo Irã, do Mazdeismo e sobretudo do Maniqueísmo"(Christian Jambet, La Grande Réssurection d’Alamut, Verdier, Paris, 1990, p. 225).
Como resultado, os ismaelitas que se julgavam na posse do Conhecimento (da Gnose) se diziam livres da obediência às prescrições legais do Corão, que eles interpretavam simbolicamente.
"A abolição da lei é a recompensa prometida aos justos, o estado angélico é próprio dos fiéis do Imam; a comunidade ismaelita, vivendo aqui em baixo em estado de ressurreição espiritual, é o povo dos anjos.
"O túmulo é o corpo humano, o castigo do túmulo são as obrigações da religião positiva (abkâm - e sharî’at). Os clientes do inferno, Munkar e Nakir, são os opressores, os mantenedores do exoterismo (zâlimân e zâhir) (...) Os habitantes do paraíso são aqueles que são liberados do aparente e que se voltam para o que é escondido. Sua retribuição, neste mundo, consiste em que sejam dispensados dos mandamentos da lei."(Christian Jambet, op. cit., pp. 107-108). E daí Jambet explica como e porque o iniciado era dispensado do jejum, da esmola, da peregrinação a Meca, dos atos de piedade, etc. (cfr. Jambet, op. cit., p. 108).
De tudo isso, concluíam os sufis que quem tivesse alcançado a união com a Divindade, - quem fosse realmente sufi - estava acima de todas as leis morais, podendo fazer o que quisesse.
Nessas condições seria de espantar que os ismaelitas usassem normalmente do haxixe? Seria de espantar que usassem tóxicos para se libertar da escravidão da razão, para entrar em pseudos "êxtases"?
Daí Albert de Pouvourville - que adotou o nome esotérico Matgioi --aquele que iniciou Guénon no Taoísmo, ser viciado em tóxicos:
"De volta à França, Pouvourville [Matgioi] continua a partilhar e a atiçar os sentimentos anti religiosos e anti clericais dos ocultistas de seu tempo. Sob o pseudônimo de Mogd, ele colabora inicialmente na revista martinista de Papus,
L’ Initiation,
E cito esse livro - historicamente o mais documentado dos vários que possuo sobre René Guénon - de primeira mão...
Guénon iniciado no Taoísmo por Matgioi, deve ter ouvido seu iniciador louvar as "virtudes" do ópio...
Depois, Guénon se tornou Bispo da Igreja Gnóstica e, em 1912, Guénon foi iniciado no sufismo pelo Sheik Abder Rahman Elish El-Kébir, e assumiu secretamente o nome de Abdel Wahed Yahia. E tornando-se sufi --e Guénon foi chamado "o sufi" - ele ficava acima da lei exotérica, da shari’ a.
"Portanto, Guénon tinha sido gnóstico e maçon. Mas ele o era ainda?. Em 1962, Noële Maurice Denis --[que fora muito amiga de Guénon, por quem manteve sua simpatia] - terá esta reflexão curiosa em uma tomista, mas reveladora de suas preocupações metafísicas: ‘Para nós católicos, naturalmente é o aspeto maçon aquele que mais nos inquietava’. Se bem que Guénon confesse agora um soberano desprezo pelos meios gnósticos [Note, meu caro Felipe, que Guénon dizia desprezar os meios gnósticos, não a Gnose] e maçônicos e que agora ele jure somente pela metafísica hindu, ela [Noële] reconhece que é difícil saber em que medida ele evoluiu. Pelo menos, ele não pratica mais "o uso do ópio e do haxixe como ajuda para a ‘contemplação", e parece, que desde seu casamento, como "um jovem burguês unicamente apaixonado pela verdade, e pelo intelectualismo", separado de todo anti clericalismo e reconciliado em parte com um certo espírito religioso. Não é preciso dizer que Noële Maurice-Denis e Pierre Germain ignoram então tudo de sua confirmação [de Guénon] maçônica na Grande Loja de França, e, sobretudo, sobre sua iniciação no sufismo desde 1912"(Marie-France James, op. cit. pp. 165-166.O negrito é meu).
Está aí: a informação, não a acusação, de que Guénon foi viciado em ópio e no haxixe - pelo menos até o seu casamento - foi dada por uma amiga dele, que manteve uma visão ingenuamente otimista sobre o comportamento de Guénon, que dela ocultava seu maçonismo e seu sufismo, como também de sua própria esposa. É claro que, se Guénon fingia ter deixado de ser maçon e ter desprezo pelos meios gnósticos, quando aderira à Gnose sufi, seria legítimo perguntar se ele deixara, realmente, o uso do ópio e do haxixe, usado freqüentemente pelos sufis.
Se insisti na dupla moral dos esotéricos do Islam, foi porque é esse o esoterismo que Guénon defende, e que Olavo repete.
De fato, vimos como Guénon faz a defesa de uma dupla moral: uma, para os homens comuns, vivendo em sociedade; outra para os que atingiram a "realização metafísica", unindo-se à Divindade, como, por exemplo, para os que atingiram realmente o estado de sufi.
Em carta anterior, mostrei como Olavo de Carvalho desconsidera a moral, a virtude e a santidade, em prol de uma "sabedoria esotérica que é a gnose. Para facilidade de documentação e de compreensão, repito, aqui, algumas das citações já feitas nessa carta anterior.
Para começar, recordo que ele escreveu: "Para o sábio, ou gnóstico, conhecer é ser, e vice-versa"(Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 26).Portanto, se para Olavo, sábio é o mesmo que gnóstico, então Sabedoria se identifica com Gnose.
E Olavo afirma ainda que o que ele chama de Sabedoria está acima de todas as crenças, e por trás de todas as religiões. A Sabedoria seria o núcleo interior mais profundo e mais elevado de todas as religiões. E vimos que esse núcleo, para os tradicionalistas guénonianos é a Gnose. Veja que Olavo disse exatamente isso:
"A sabedoria é eterna e o amor à sabedoria é premiado, independentemente de você ser cristão, muçulmano, judeu, ateu. Se você ama isso, não digo que você está salvo, que você vai para o paraíso. Pelo menos um lugarzinho no purgatório você garante. Isso é o mínimo, tem de ser."(Olavo de Carvalho, Aula do Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho, Junho de 1998, Bloco 8, p. 26).
Portanto, sabedoria seria independente das crenças e da fé que a pessoa tem.
Para Olavo, a salvação advém não da prática da lei de Deus, mas de uma devoção puramente intelectual, e não prática:
"...a índole geral do meu pensamento filosófico, se inclui uma descrição apocalíptica do estado de coisas no mundo, por outro lado enfatiza fortemente o poder cognitivo da inteligência humana, a primazia da verdade e do bem, o poder de salvação inerente à devoção intelectual, etc. - e tudo isto infunde no aluno uma noção "otimista" do sentido da vida, de modo que ele pode chegar a esperar que sua vida pessoal já esteja dotada de sentido pelo simples fato de ele ter apreendido algo do sentido da vida em geral."(Olavo de Carvalho, "Considerações sobre o Seminário de Filosofia", 01.01.2000, negrito nosso)
Ter essa sabedoria é que vale. "A virtude, por si, não quer dizer nada"(Olavo de Carvalho, idem p. 26).
"Chegamos à suprema perversão de achar que o próprio desejo da sabedoria é uma coisa menos importante do que cumprir aquelas regrazinhas que o padre ensinou. Isso é uma blasfêmia, é um pecado contra o Espírito Santo" (Olavo de Carvalho, idem p. 26).
Como se vê, Olavo considera os dez mandamentos "aquelas regrazinhas que o Padre ensinou". E ele julga que é possível ter sabedoria sem obedecer as dez regrazinhas ditadas por Deus a Moisés.
Ora, isso é um absurdo. Só se pode ter realmente sabedoria na obediência à lei.
Prova do desprezo de Olavo aos dez mandamentos se tem nestas afirmações do sr. Olavo de Carvalho - (que só publicamos por necessidade de comprovação, pedindo desculpa, pela grosseria delas) - :
"As pessoa imaginam às vezes que o diabo só faz você comer a mulher do próximo. Isso aí é o de menos, você pode comer a mulher de vários próximos e ainda assim ir para o céu" (Olavo de Carvalho, Aula do Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho, Junho de 1998, Bloco 8, p.20)
Se isso não é relativismo moral e revolta contra a lei de Deus, o que será revolta e o que será relativismo?
Olavo defendeu expressamente o relativismo moral:
"Com a psicanálise e suas teorias sobre repressão dos instintos, mas sobretudo com a antropologia moderna, que difundiu no mundo todo a idéia de que as leis morais, variando de cultura para cultura, eram apenas a expressão de necessidades sociais passageiras, a pretensão cristã de uma moral universal e absoluta foi abalada. Qualquer garoto de escola repete, hoje, que a moral é relativa, que resulta de uma convenção social e que portanto pode ser modificada à vontade." (Olavo de Carvalho, A Crise do Catolicismo, artigo in Planeta, no110, novembro de 1981p. 23. O negrito é meu).
Sem dúvida, com a defesa de um relativismo moral tão radical, Olavo tem muita razão em se afirmar "um anarquista em moral".
E como podem certos católicos vê-lo com simpatia? Será que basta ele atacar o comunismo de Frei Boff, para aceitar alguém que se proclama "tradicionalista", não importando que defenda a moral relativista de Frei Boff e da Gnose?
Veja ainda, caro Felipe, como ele coloca a "Sabedoria" acima da moral, sem esquecermos, porém, que "Sabedoria", para ele significa Gnose.
"A sabedoria é necessidade básica do homem. E a santidade? A santidade vem depois, é perfeição, é para alguns. Uns conseguem, outros não, para isso mesmo é que existe o perdão, a misericórdia"(Olavo de Carvalho, Aula citada p. 21)
É impossível ter sabedoria sem ter santidade de vida. Por isso Cristo nos mandou ser santos, ser perfeitos como o Pai do Céu é perfeito (cfr. Mt V,48). E a Virgem Maria, no "Magnificat", cantou que "a misericórdia de Deus se estende de geração em geração sobre aqueles que O temem " (Luc. I, 50), e não para os que O desafiam, violando sua lei.
Mas veja o que ensina Olavo, com pretensão de dizer coisa ortodoxa, por utilizar algumas palavras relacionadas com a doutrina Católica:
"Segundo a Igreja, o Espírito Santo tem duas ações: uma sobrenatural, que é dar, por exemplo, uma revelação pessoal, ou dar a sabedoria infusa, outra, natural, que é a de manter o homem capaz de compreender os primeiros princípios, como o princípio de identidade. Hoje isso começa a falhar de uma maneira assombrosa. Não é a assistência sobrenatural, é a natural, a natureza foi atingida e quando se diz no Apocalípse que as próprias águas da vida seriam corrompidas, é a isso que se está referindo. É esse fundo de alma, que é simplesmente a pureza natural que é corrompida já não se consegue entender mais que dois mais dois são quatro, que a galinha bota ovo. A partir daí a linguagem vira um caos, como você vai sair dessa rezando, confessando, comungando? Não vai conseguir, não há um jeito ritual de fazer isso, não se pode sair disso por nenhuma prática repetitiva e regularmente. Tem de sair por uma nova aposta no próprio Espírito Santo. Tem de ser protestante, tem de fazer como o bispo Macedo, tem de arriscar. O Espírito Santo vai me iluminar nesta coisa, eu vou entender este negócio. É o único jeito! Agora dizer: não, primeiro, antes disso, tenho de me livrar de todos os meus pecados, vou virar santinho, e depois de virar santinho, daí Ele vai iluminar-me. Pode tirar o cavalo da chuva: Ele vai iluminar você agora mesmo, com todos os seus pecados, com toda a sua malícia, com tudo isso, porque se Ele não fizer isso, você está ferrado". (Olavo de Carvalho, aula citada p. 21).
A Igreja nunca ensinou que o Espírito Santo dá uma revelação pessoal, nem muito menos que Ele tem uma ação natural. São absurdos teológicos. Não se sabe o que mais espanta nesse charabiá teológico - exegético - místico - moral, se a confusão doutrinária, se o relativismo moral, se a presunção de salvação, se a ignorância doutrinária. É um "caruru" que mistura tudo, sem compreender nada dos termos que está usando e misturando.
O resultado é o cáos doutrinário e o abuso da misericórdia de Deus, com uma aceitação do pecado, sem reação contra ele. E que culmina com o ‘conselho" de ficar protestante, de não confessar, de aceitar os pecados, confiando que o Espírito Santo vai dar uma iluminação, uma herética "revelação pessoal".
É claro que isso só pode ser defendido por um esotérico com pretensões a teólogo de barbearia, para pessoas que não têm a mínima noção de catecismo, da Moral e da doutrina católicas.
Aliás, eu gostaria de saber em que Apocalípse está o versículo que diz que até as águas vivas seriam corrompidas". Porque, com essas palavras, não encontrei versículo nenhum no Apocalípse de São João. Devem estar, então, em algum Apocalípse esotérico. O Apocalípse segundo Olavo.
Permita-me uma digressão, para descansar de tema tão enfadonho.
Você deve ter notado como Olavo "chuta" citações. Já encontrei um texto no qual ele diz que o Padre Pio de Pietralcina vivia na Espanha. (cfr. Olavo de Carvalho, O Crime de Madre Agnes, Speculum, São Paulo, 1983, p. 13). Ora, Padre Pio era italiano, e não viveu na Espanha.
Contaram-me que Olavo costuma citar um verso da Divina Comédia no qual o Diabo teria dito a Dante: "Forse tu non pensavi ch’io loico fossi!".
Era um erro crasso de Olavo, do qual eu não tinha prova.
Noutro dia, você, gentilmente, me trouxe a prova desse erro de Olavo. Num prefácio a um livro de Constantin Noica, Olavo discorre com a segurança de um especialista sobre a Divina Comédia, dizendo que, no Inferno, Dante não ouve os condenados falarem em língua humana: "Entre os condenados, com efeito não ouve Dante conversações em língua de gente, mas tão somente orribile favelle (sic), gritos e gemidos animalescos que expressam sem nomear, que quanto mais ressoam, menos dizem impotentes para, objetivando a dor, transfigurá-la em consciência, prenúncio de liberdade" (in Constantin Noica As Seis Doenças do Espírito Contemporâneo", Record, Rio de Janeiro - São Paulo, 1999. Introdução de Olavo de Carvalho, p. 16).
Na mesma página, Olavo sustenta que o demônio disse ao próprio Dante - o visitante florentino do Inferno --, o decassílabo que citei acima:
"Forse non pensavi ch’io loico fossi!"
Ora, quem lê esse texto de Olavo, discorrendo ele com tanta segurança sobre a Divina Comédia, como se fosse um grande conhecedor da obra dantesca, nem desconfia que, na verdade, ele está simplesmente "chutando". Ouviu e decorou o verso, - mas muito provavelmente não leu o Canto do Inferno em que ele está - e o comenta como se o tivesse lido. Para demonstrar erudição...
Com efeito, o verso citado está no Inferno, XXVII, 122-123. Só que não foi a Dante que isso foi dito. Foi a Güido de Montefeltro.
Nesse episódio, Güido de Montefeltro conta a Dante como, após sua morte, São Francisco quis levar sua alma ao céu (porque ele era franciscano),mas um diabo --"un de’ neri cherubini"-- não lhe permitiu isso, levando a alma de Güido ao inferno, por ele ter dado mau conselho ao Papa Bonifácio VIII.
Como é também completamente falso também que, no Inferno, Dante ouvisse apenas "orribili favelle", e não linguagem humana. Muitos condenados falam com Dante, e lhe contam a causa pela qual foram condenados.
Eles até mesmo conversam com Dante em italiano da Toscana, porque ouvem o poeta passar "parlando onesto", isto é, em dialeto toscano, como, por exemplo, acontece no caso de Farinata degli Uberti (Inferno, X, 22, e ss.).
E está errada também a expressão "orribile favelle", como foi escrita por Olavo: "orribili favelle"é que seria correto, pois "favelle" está no plural, exigindo o adjetivo também no plural.
Prossigamos.
Olavo manifesta um desprezo pretensiosamente absurdo e caricato pelo maior Doutor da Igreja sobre Moral, Santo Afonso de Ligório, ao escrever:
"Santo Afonso de Ligório platonizou a moral cristã, transformando-a num sistema dedutivo, axiomático, fazendo um mal desgraçado" (Olavo de Carvalho, Crítica e Conselhos a Igreja Católica, in aula do Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho, Junho de 1998, Bloco 8, p. 19).
Será que Olavo leu mesmo algum livro de Santo Afonso, o maior Doutor da Igreja em Moral?
Tendo em vista como ele "leu" Dante, duvido que ele, seriamente, tenha lido algo de Santo Afonso.
Olavo não quer saber da moral católica como ela é, com tantas exigências. Especialmente em matéria de castidade. Pois declara:
"...há catolicismo, sim, no Brasil, mas reduzido às suas manifestações mais externas e menos espirituais: o moralismo sexual enervante, ostensivamente violado e sempre objeto de chacota (erigida mesmo em gênero literário)..." (Olavo de Carvalho, O Futuro do Pensamento Brasileiro, 2a. edição, Faculdade da Cidade Editora, p. 54. O itálico é meu.).
Criticando o "moralismo sexual enervante", Olavo segue seu mestre Nasr, para quem o ato sexual reconduz ao êxtase paradisíaco, recompondo o anthropos andrógino primordial:
"O macho e a fêmea em sua complementaridade recriam a unidade do ser andrógino e, de fato, sua união sexual é um reflexo terrestre deste êxtase paradisíaco que pertencia ao anthropos andrógino"(Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, State University of New York Press, 1989, p. 177)
E mais:
"Não é sem razão que a sexualidade é o único meio aberto para os seres humanos, não prendados com o dom da visão espiritual, para experimentar "o Infinito" através dos sentidos. Embora por alguns fugidios momentos, e que a sexualidade deixa uma tão profunda marca na alma do homem e da mulher e os afeta em um modo muito mais duradouro que quaisquer outros atos físicos" (Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, State University of New York Press, 1989, p. 178)
Ainda recentemente, Olavo publicou um artigo, no qual afirma:
"Na religião islâmica, há uma série de práticas interiores das ordens místicas, que têm pouco a ver com as obrigações legais e rituais da religião coletiva, mais se destinam a utilizar a substância das paixões mais inferiores, mais violentas, como matéria-prima que, queimada no forno, no altar da prática mística, se converterá em virtude, em conhecimento espiritual, naquele sentido em que é possível dizer, com Sto. Agostinho, que as virtudes são feitas da mesma matéria dos vícios: partindo dos vícios, tomando-se como matéria-prima e queimando-os no forno da meditação e da concentração, o pecado se substitui pela graça."(Olavo de Carvalho, René Girard e a Coletividade Homicida, Transcrição de intervenção na mesa redonda em torno do pensamento de René Girard, realizada no anfiteatro da Universidade (Rio de Janeiro, 17- XI- 2.000, publicado em http//www.olavodecarvalho.org/textos/girad.htm. O negrito é meu)
Certamente você percebeu como Olavo coloca as paixões mais violentas, o vício, o pecado, como fonte de conhecimento espiritual, isto é, de Gnose.
Nesse texto de Olavo, fica patente, ainda, - apesar de uma vaga citação de Santo Agostinho, que não se sabe de onde foi extraída --, que ele acha possível a transmutação alquímica da matéria prima das paixões mais baixas em virtude, justificando o antinomismo, num misterioso "forno" místico-dialético.
O antinomismo pode ser definido como o anarquismo na moral, pois que não aceita que uma lei seja imposta aos homens, já que eles seriam, no fundo, partículas da Divindade aprisionadas na matéria pelo Demiurgo mau.
Ora, Olavo de Carvalho - e já citamos essa palavra dele em carta precedente - se afirma anarquista em moral:
"Em moral sou anarquista. Acredito que há princípios morais universais, permanentes, que a inteligência discerne por baixo da variação acidental das normas e costumes, e acredito, enfim, que há o certo e o errado. Mas por isso mesmo, impor o certo é errado, a não ser em caso de vida ou morte. O sujeito que faz o certo só por obediência e sem compreendê-lo acaba por transformar no errado. "Experimentai de tudo e ficai com o que é bom" recomendava S. Paulo Apóstolo, meu amado guru (sic???). É uma questão de viver e aprender. Mas como podemos aprender, se um tirano paternalista nos proíbe de errar? Por isto deve haver a mais ampla liberdade de escolha e de conduta, e a autoridade religiosa deve se limitar a ensinar o certo, com toda a paciência, sem tentar expulsar o pecado do mundo à força. E se nem os religiosos, que por sua dedicação à vida interior têm autoridade para falar dessas coisas, devem impor regras morais à força, muito menos deve fazê-lo o Estado, que afinal não passa de uma gerência administrativa, a coisa mais mundana e prosaica que existe. As leis devem fundar-se apenas em considerações práticas de ordem, segurança e interesse coletivo, muito corriqueiras, e jamais em motivos pretensamente elevados de ética, que terminam por fazer da burocracia estatal um novo clero, e do Código penal um novo Decálogo. A coisa mais nojenta que existe é a metafísica estatal." (Olavo de Carvalho, Fórmula de Minha Composição Ideológica, entrevista, 23- XII - 1998, Fórmula da minha composição ideológica.htm Página da W. O negrito é meu).
Como sempre, Olavo faz uma declaração escandalosa que, depois, ele procura atenuar com apostos escorregadios. Escandalosa é sua referência a São Paulo, como seu "querido guru".
Ora, São Paulo, como não podia deixar de ser, afirma uma doutrina oposta à de Olavo em matéria de moral e do direito do Estado de impor obrigações morais, fundadas na lei natural. O Estado legítimo, conforme ensina o Apóstolo, existe, não como mera "gerência administrativa", como diz Olavo, pois escreveu São Paulo:
"Toda a alma esteja sujeita aos poderes superiores, porque não há poder que não venha de Deus e os que existem foram instituídos por Deus. Aquele, pois, que resiste à autoridade, resiste à ordenação de Deus. E os que resistem, atraem sobre si próprios a condenação. Com efeito, os príncipes não são para temer pelas ações boas, mas pelas más. Queres, pois, não temer a autoridade? Faz o bem, e terás o louvor dela, porque ela é ministro de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, porque não é debalde que ela traz a espada. Porquanto ela é ministro de Deus vingador, para punir aquele que faz o mal" (São Paulo, Epístola aos Romanos, XIII, 1- 5).
Quando Pilatos disse a Cristo que tinha poder para perdoá-Lo ou para condená-Lo, Cristo não contestou a autoridade do Estado, mas declarou:
"Tu não terias poder algum sobre mim, se não te fosse dado pelo alto"(Jo. XIX, 11).
Portanto, Cristo afirma que o poder do Estado vem de Deus e que esse poder inclui o direito de condenar à morte.
Fica então provado que, de fato, Olavo defende, como o fazem certas seitas gnósticas, o antinomismo, que ele chama de anarquismo moral.
←VIII - 4. O 3o Ponto Secundário da Doutrina Gnóstica, segundo Olavo de Carvalho: o Milenarismo
O Milenarismo de Guénon
"Estamos em Kali yuga, na idade sombria na qual a espiritualidade está reduzida ao mínimo, pelas próprias leis do desenvolvimento do ciclo humano, dispondo uma espécie de materialização progressiva através de seus diversos períodos, dos quais este é o último; por ciclo humano, entendemos aqui unicamente a duração de um Manvantara. Indo ao fim desta idade, tudo está confundido, as castas estão misturadas, a própria família já não existe; não é isso exatamente o que vemos ao redor de nós? Há que concluir disto que o ciclo atual chega efetivamente a seu fim, e que logo veremos apontar a aurora de um novo Manvantara? Poder-se-ia ser tentado de acreditá-lo, sobretudo se se pensa na velocidade crescente com a qual os acontecimentos se precipitam; porém, quem sabe a desordem não tenha alcançado seu ponto mais extremo, quem sabe a humanidade deve descer ainda mais baixo, nos excessos de uma civilização totalmente material, antes de poder subir de novo até o princípio e até as realidades espirituais e divinas. Pouco importa por outro lado: quer seja um tanto mais cedo, ou um tanto mais tarde, esse desenvolvimento descendente que os ocidentais modernos chamam "progresso" encontrará seu limite, e então a "idade escura" [Kali yuga] terá seu fim; então aparecerá o Kalkin-avatara, aquele que está montado sobre o cavalo branco, que carrega sobre sua cabeça um tríplice diadema, símbolo da soberania nos três mundos, e que ostenta em sua mão uma espada flamejante como a estrela de um cometa; então o mundo da desordem e do erro será destruído, e, pela potência purificadora e regeneradora de Agni, todas as coisas serão restabelecidas e restauradas na integridade de seu estado primordial, o fim do ciclo presente, sendo ao mesmo tempo o começo do ciclo futuro. Os que sabem que deve ser assim não podem, inclusive em meio à maior confusão, perder sua imutável serenidade; por repugnante que seja viver em uma época de transtornos e de obscuridade quase geral, eles não podem ser afetados no fundo de si mesmos, e isto é o que faz a força da elite verdadeira. Sem dúvida, se a obscuridade deve ir estendendo-se cada vez mais, essa elite poderá, inclusive no Oriente, ficar reduzida a um número muito pequeno; porém basta que alguns guardem integralmente o verdadeiro conhecimento, para estar prontos, quando os tempos estejam cumpridos, para salvar tudo o que ainda poderá ser salvo do mundo atual, e se tornará o germe do mundo futuro" (René Guénon, O Espírito da Índia (1), publicado em "Le Monde Nouveau", junho de 1930, e, depois em "Études Traditionnelles", 1937, cap. II de "Études sur L’Induisme", Paris, Ed. Trad. 1968, pp. 21-22).
Como se vê claramente por esse longo texto, Guénon esperava que, depois de uma crise terrível, viria uma nova época - um novo Manvantara - no qual seria restabelecida a ordem primordial. Haveria um período de felicidade.
Também no livro O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, René Guénon defende essa concepção milenarista:
"Tudo o que descrevemos durante este estudo constitui, de modo geral, aquilo a que podemos chamar os "sinais dos tempos", segundo a expressão dos evangelhos, isto é, os sinais precursores do "fim do mundo" ou de um ciclo, que só aparece como "fim do mundo", sem restrições nem especificações de qualquer espécie, para aqueles que não vêem nada para além dos limites deste ciclo, (...)"
(René Guénon, O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, Dom Quixote, Lisboa, 1989, p. 257).
E pouco depois, nesse mesmo livro, Guénon adverte que este final de ciclo "é o final de um Manvantara completo, isto é, da existência temporal daquilo a que chamamos mais propriamente uma humanidade, o que, mais uma vez, não quer de modo nenhum dizer que seja o fim do mundo terrestre em si, já que, pela "recuperação que se opera no momento último, esse mesmo fim torna-se imediatamente o começo de outro Manvantara"(R. Guénon, op. cit., p. 257. O negrito é meu).
Guénon distingue o sonho evolucionista do racionalismo progressista de uma época perfeita no futuro - a utopia, embora ele não utilize esse termo - da recuperação de uma época de perfeição absoluta que existiu no passado _- o milênio, a Idade de Ouro, o Éden da primitiva felicidade.
Guénon não faz a distinção entre milênio e utopia, mas diz:
"A esse propósito, há ainda um ponto sobre o qual temos de nos explicar de modo mais preciso: os partidários do "progresso" têm o hábito de dizer que a "idade de ouro" não está no passado, mas no futuro; a verdade, bem pelo contrário, no que diz respeito ao nosso Manvantara é que ela é realmente do passado, visto que não é outra coisa senão o próprio "estado primordial" (René Guénon, O Reino da Quantidade, pp. 257-258).
Dizendo isso, Guénon se filia claramente à Gnose romântica e a seu milenarismo, esperando uma volta à "Idade de Ouro".
Essa expectativa em nada difere dos sonhos milenaristas de Joaquim de Fiore, dos sonhos do Reino de Deus dos Espirituais Franciscanos no século XIV. É exatamente o velho milenarismo de retorno à felicidade primordial defendido pelos escritores românticos e por Anna Katharina Emmerick, que Guénon apresenta, nesses parágrafos, em roupagem hindu. É um milenarismo de sari e de turbante, mas é milenarismo mesmo.
Outra mostra da tendência milenarista de Guénon se tem ao constatar sua ausência de crítica - e mesmo simpatia - pela revolução Tai Ping Tien Guo (Reino Celeste da Grande Paz), por ver nela uma ressonância da ação secreta do Taoismo.
Os Tai Ping foram revolucionários que, na China imperial do século XIX, procuraram estabelecer um Reino messíânico, igualitário e comunista.
O primeiro líder da revolução Tai Ping, Hong Xiuquan, foi influenciado por folhetos de propaganda protestante. Proclamou-se o "irmão mais jovem de Jesus Cristo", e levou os camponeses do grupo marginalizado Hakka a tomarem armas, e a procurarem estabelecer a igualdade à força.
Os Tai Ping tomaram Nankin, da qual fizeram a sua capital, e estabeleceram um reinado de terror. Instituíram uma reforma agrária radical, delirantemente sonhadora, que encantaria Frei Boff, e contra a qual Guénon não fez a menor crítica.
Assim proclamava a lei agrária dos Tai ping:
"A distribuição da terra é feita em conformidade com o tamanho da família, sem consideração de sexo, só levando em conta o número de pessoas: maior número, mais terras receberão(...) Todas as terras sob o Céu pertencem a todos os homens sob o céu. Se a produção for insuficiente numa parte, em outra será abundante. Toda a terra sob o Céu deve ser acessível em tempo de abundância e de fome". "Se houver fome em uma zona, tragam o excesso de onde reina a abundância, a fim de alimentar o esfomeado. Dessa maneira, todos os homens sob o Céu usufruirão da grande felicidade dada pelo Pai Celestial, Senhor Supremo e Deus Augusto. A terra será possuída por todos. o arroz comido por todos, as roupas vestidas a todos, o dinheiro será gasto por todos. Não haverá desigualdade e ninguém ficará sem alimento".(...)"Por todo o Império serão plantadas amoreiras ao pé dos muros. Todas as mulheres cultivarão bichos da seda, fiarão panos e costurarão roupas. No Império, cada família, sem exceção, possuirá cinco galinhas e dois porcos (...) A mesma regra aplicar-se-á ao trigo, ao feijão, ao linho, aos tecidos, à seda, aos pintos, aos cães, etc. Do mesmo modo em relação ao dinheiro. Pois tudo na terra pertence à grande família do Pai Celestial, Senhor Supremo e Deus Augusto. Ninguém no Império possuirá propriedade privada, tudo pertence a Deus, para que Deus de tudo possa dispor. Na grande família do Céu, todos os lugares são iguais e cada um vive na abundância. Tal é o edito do Pai Celestial, Senhor Supremo e Deus Augusto, que especialmente ordenou ao Verdadeiro Senhor dos Tai Ping que salvasse o mundo" (Lei Agrária dos Tai Ping, apud Jean Chesneaux, A Ásia Oriental nos Séculos XIX e XX, Ed. Pioneira, São Paulo, 1976p. 55-56).
Até parece que a Pastoral da Terra da CNBB passou por lá, pois o MST dos Stediles e Rainhas, atiçado pelos Bispos progressistas, não prega diferentemente.
Talvez seja conveniente informar também que a Reforma Agrária dos Tai Ping - precursora daquela que é preconizada pela ala "Tai Ping" da CNBB --, como não poderia deixar de ser, teve um resultado trágico; 30.000.000 de mortos, segundo informa o Chinese Cultural Studies, (Concise Political History of China, compeled from Compton’s Luring Encyclopedia, on American on line(August 1995).
E como os Tai Ping foram, segundo Guénon, manejados por trás pelas sociedades secretas "tradicionais" taoístas, ele não recrimina os horrores praticados por eles, pois sobre tudo isso diz apenas o seguinte:
"Não queremos, certamente, dizer que todos os membros dessas organizações relativamente exteriores devam ter consciência da unidade fundamental de todas as tradições; mas os que estão por trás dessas organizações e as inspiram possuem forçosamente, na qualidade de "homens verdadeiros" (Tchenn-jen), essa consciência, e é isso que lhes permite introduzir nelas, quando as circunstâncias o tornam oportuno ou vantajoso, elementos formais pertencentes de modo exclusivo a diferentes tradições" (René Guénon, A Grande Tríade, Ed Pensamento, São Paulo, 1957, p.9).
Depois desse texto obscuro, Guénon coloca a seguinte nota 9:
"9. "Inclusive, às vezes, até as que são mais completamente estranhas ao Extremo Oriente, como o Cristianismo, como se pode ver no caso da Associação da "Grande Paz" ou "Tai-ping", que foi uma das emanações recentes da Pe-lien-houei, que vamos mencionar mais adiante" (R. Guénon, idem p. 9, nota 9).
E só. Nenhuma crítica. Só porque os Tai Ping tentaram estabelecer um Reino milenarista por influência do protestantismo e dos manejos do Taoísmo "tradicionalista". Para Guénon, as 30.000.000 de vítimas dos "tradicionalistas", daqueles que ele chama "os homens verdadeiros" que se danassem! Vai ver que os 30 millhões de mortos não eram "homens verdadeiros".
Vimos que Guénon cooperou, por muito tempo, na revista "Il Regime Fascista".
Veja-se agora, a curiosa nota que ele insere num outro livro seu:
"A propósito da Tula atlântida, nós achamos interessante reproduzir aqui uma informação que nós destacamos numa crônica geográfica do Journal des Débats (22 de janeiro de 1929), sobre Os índios do ístmo do Panamá, e cuja importância certamente escapou ao próprio autor desse artigo: "Em 1925, uma grande parte dos Índios Cuna se rebelou, os índios mataram os soldados do Panamá que habitavam em seu território, e fundaram a República independente de Tulé, cuja bandeira é uma swastika sobre fundo alaranjado com borda vermelha. Esta república existe ainda na hora atual". Isto parece indicar que subsiste ainda, no que tange as tradições da América antiga, muito mais coisas que se seria tentado acreditar" (René Guénon, Formas Tradicionais e Ciclos Cósmicos, Gallimard, Paris, 1982, pp. 38-39, nota 1. Os itálicos são do autor).
Nesse texto de Guénon, queremos chamar a atenção sobre três pontos:
1) A simpatia com que ele fala da Swastika;
2) A simpatia com que ele fala de Tulé, lembrando que a Tule Geselschaft, foi uma das sociedades secretas que prepararam o triunfo do Nazismo, na Alemanha;
3) Que a Swastika e Tulé estão relacionados com o Agartha, misterioso centro secreto de onde os "Superiores Desconhecidos", de que falavam os martinistas - e nos quais Guénon acreditava de pés juntos-- dirigiriam o mundo magicamente. O Agartha, segundo Guénon e os esotéricos, seria o centro Iniciático de nosso universo. Um lugar oculto, no centro da Ásia "misteriosa", onde viveria o Rei do Mundo, que de seu esconderijo dirigiria magicamente os governantes de todo o mundo, por meio dos "Superiores Invisíveis". Esse delírio foi escrito no estapafúrdio livro de Guénon "O Rei do Mundo".
Acredite quem quiser.
Mas, vizinho do Agartha, deve morar Papai Noel. Cujo trenó deveria ser puxado, em vez de renas, pelos centauros do Mundo Imaginal de Olavo.
Acredite quem quiser...
Guénon acreditava.
Acreditava tanto no Agartha, quanto no Rei do Mundo, que lá morava.
Acreditava até que os Superiores Desconhecidos lhe falassem, e que eram entidades do mundo "imaginal". Era dessas "entidades" do outro mundo, que Guénon tomava os seus pseudônimos. Ele mesmo conta isto:
"Numa carta de 17 de junho de 1934, Guénon escreve a um seu correspondente - depois de ter feito, entre outras coisas, referência aos ensaios publicados em La Gnose e na La France Antimaçonique --"Toda vez que me servi de outras assinaturas, houve razões particulares para isso, as quais não devem ser referidas a R.G., pois que estas assinaturas não são simplesmente "pseudônimos" ao modo "literário", mas representam, se assim se pode dizer, "entidades" realmente distintas" (Cfr. Jean Robin, René Guénon, Ed. Il Cinabro, p. 325. O negrito é meu).
Então, como Fernando Pessoa, Guénon assumia "entidades". Coisa comum na Bahia.
E Robin explica que essas entidades seriam Tulkous. Segundo os tibetanos, o tlkoul "é ou a reencarnação de um santo, ou de um sábio falecido, ou ainda a reencarnação de um outro ser não humano: deus, demônio etc."(Jean Robin op. cit., p. 325-326).
Então, Guénon acreditava que era instruído por um ou vários tulkous... Que existiriam no mundo astral ou imaginal. E que poderiam ser espíritos de sábios ou santos falecidos, deuses ou demônios...
Advinha, você, Felipe, quem acho eu que baixava em Guénon para ensiná-lo, dizendo-se um tulkoul "Superior Desconhecido"? Creio que não é difícil de advinhar...ë alguém bem conhecido. Principalmente, sabendo-se que esse tulkoul era subordinado ao "Rei do Mundo"...
E Olavo? Em que acredita?
Olavo acredita no que Guénon acredita.
Portanto para Olavo existe mesmo esse "Centro Iniciático" mundial.
Olavo, que acredita em centauros, djins, e nos monstros do Zodíaco, porque não acreditaria na existência desse "Centro" geográfico terrestre do esoterismo tradicional?
Olavo acredita. Julga-se um homem de fé.
E você, Felipe, não acredita que Olavo acredite no que Guénon acredita?
Que falta de "fé"!
Pois leia, você mesmo, a prova de que Olavo acredita no "Centro" iniciático, de onde os "Superiores Desconhecidos" dirigem a política mundial:
"Existe uma Tradição Primordial, universal e eterna, que é o depósito da sabedoria revelada. Existe a manifestação humana e terrestre dessa Tradição, e portanto uma organização tradicional que a representa. Existe um centro geográfico que é a localização dessa organização em algum ponto da Terra, em cada ciclo temporal. Tudo isso é inquestionável" (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, ed. Nova Stella, Coleção Eixo, [La bien nommée] São Paulo, 1986, p. 13).
Então, Olavo crê:
1) Que existe uma organização encarregada de guardar a Tradição Primordial revelada e eterna.
Como se chama essa organização? Nem Guénon diz seu nome. Portanto, Olavo não sabe o nome dela.
2) Essa organização estaria sediada em um misterioso ponto da Terra, que alguns esotéricos - inclusive os nazistas - chamam de Agartha
3) Olavo não diz nada do Rei do Mundo que moraria lá, no Agartha, no centro da Ásia, talvez numa gruta, no Himalaia. Guénon fala desse Rei. Até escreveu um livro - um delírio - sobre isso. Mas escreveu. Escreveu e publicou. E se Guénon escreveu, Olavo leu e acreditou, ainda que não diga uma palavra sobre o tal Rei do Mundo.
E Olavo critica Santo Afonso!
E Olavo, defende ele algo parecido com o milenarismo de Guénon?
Tudo o que diz Olavo de mais "original", pode ser encontrado nos seus mestres tradicionalistas. Se Guénon disse que esperava uma crise universal no final do Kali yuga, à qual se seguiria um novo Manvantara, causador do retorno à ordem primeva, pode-se contar que Olavo vai defender a mesma coisa, em algum de seus livros esotéricos.
Olavo afirma a doutrina dos ciclos cósmicos ensinada por Guénon, e diz que estamos no final de uma era. Os indícios deste fim de era são descritos nos livros hinduístas, e Olavo acredita que eles se assemelham ao que profetiza o Apocalípse (!!!).
Imagine!
Olavo - parecendo certos crentes de seitas malucas que aguardam o fim do mundo para depois de amanhã - chega a dar os sinais da crise tremenda do fim do período em que vivemos e que precederá a renovação do mundo. Ele diz que tirou esses sinais premonitórios do livro Hindu chamado Baghavata Purana - Eta nome feio! - Livro XII, S1, 24 a 44.
Veja lá que "precisão" profética a do Baghavad Purana apud Olavo de Carvalho:
"Durante esse período, os homens têm a inteligência curta e poucos recursos. [De fato, vendo a TV, parece hoje...]. Eles são glutões, libidinosos, indigentes. As mulheres são libertinas e más."
"Os campos são devastados pelos assaltantes. os livros sacros são profanados pelos heréticos". [Parece São Paulo, do MST e de certos clérigos, seus protetores...].
‘As mulheres são de talhe exíguo, mas vorazes, de uma fecundidade excessiva, [Não é hoje...], sem pudor, tagarelando sem parar [Isto, dirão más línguas tagarelas, sempre foi assim. E alguns temem que será assim até no reino milenarista predito por Guénon, no pós Kali yuga], ladras, turvas e de um grande descaramento".
"O comércio estará nas mãos de gente miserável, de mentirosos convictos. Mesmo não sendo em caso de necessidade, as ocupações ilícitas serão consideradas lícitas". [É hoje! Sem dúvida!]
"Os homens abandonarão os pais, irmãos, amigos e parentes, serão dados à luxúria e às afeições ilícitas.
"Os Shudras (homens grosseiros e materialistas) disfarçados em ascetas, viverão deste disfarce, captando oferendas"
"Os homens terão a alma sempre perturbada: estarão atormentados pela escassez e pelo fisco’ [É o Brasil atucanado! Sem sombra de dúvida! E no escuro do "Apagão"]
"A riqueza substituirá vantajosamente a nobreza de origem, a virtude, o mérito.
"No casamento, os homens só buscarão o prazer, e, nos negócios, o lucro fácil"
"O objetivo de todos será encher a barriga. A insolência passará por sinceridade’
"A lei dos heréticos prevalecerá. Todas as castas serão parecidas com a dos Shudras"
(Apud Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, Nova Stella, São Paulo, 1986, pp. 52-53).
São "profecias" que não significam nada, porque são aplicáveis a qualquer tempo. Parecem ter sido feitas por alguém que sofria do fígado, ao despertar, numa chuvosa segunda feira.
Entretanto, elas indicam a mentalidade de um crente na expectativa da chegada do ‘Reino" do Messias. Só falta alugar um "out door" luminoso, na perfumada marginal do Tietê, anunciando: "O Kali yuga está no fim. Um Avatara vai chegar. Você, que está aí parado no trânsito engarrafado, não desespere. Vai começar um novo Manvantara. Aguarde. É para breve."
Com as garantias do Purana, de Guénon e de Olavo.
O Rei do Mundo vem aí.
Acredite se quiser.
Acha que exagero?
Pode ser, se se considera que nem um Avatara - que bicho será esse? - conseguirá solucionar o trânsito paulistano.
Mas veja o que escreveu Olavo:
"Face a isto é preciso dizer que em nosso tempo uma multiplicidade de ciclos cósmicos e históricos está chegando ao seu fim, prenunciando uma mudança de muito maiores proporções do que um simples arranhão na crosta das instituições do nosso moderno Ocidente industrial e materialista. De fato, coincidem por volta desta época o encerramento da Era de Pisces, o encerramento de um ciclo polar de 21.600 anos e o encerramento da Idade do Ferro [deve ter começado a Idade de Plástico...] (era de decadência iniciada aproximadamente em 4. 450 A C.) (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, p. 51).
E prossegue, impertérrito, Olavo qual profeta anunciando a chegada do Avatara:
"Para que se compreenda bem o que isto quer dizer, é preciso saber que a doutrina hindu - como, aliás, todas as doutrinas tradicionais - encara o desenvolvimento temporal da espécie humana como um processo de queda progressiva, que de intervalo a intervalo é sustado por uma intervenção providencial dos céus, com o surgimento de um Avatara ou Profeta, que restaura até certo ponto as possibilidades espirituais anteriores, mas sem nunca poder elevar a humanidade ao nível pleno de perfeição espiritual de antes." (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, pp. 51-52).
Não disse?
Aí está Olavo, qual profeta tupiniquim, anunciando o advento do Avatara, o Restaurador, que chegará montado num cavalo branco, qual Dom Sebastião. E com uma coroa na cabeça, segundo Guénon, que se entendia de avataras e manvantaras. (Cada nome feio achanam esses hindus!).
Não há dúvida, então: Olavo adota uma teoria milenarista. E também nesse ponto secundário ele é gnóstico.
Aliás, ele foi do Partido Comunista que, como mostram vários autores, entre eles Eric Voegelin e Alain Besançon, é um "ersatz" da religião, prometendo um Reino messiânico na terra. E Olavo diz que, apesar de combater a burrice dos esquerdistas, ainda "compartilha de vários ideais da esquerda"...
Assim fica patente que Guénon e seu Olavo são milenaristas, em que pesem os ataques atuais de Olavo ao utopismo da esquerda, da qual, porém, ele confessa "compartilhar certos ideais".
E isso nos leva a um... interlúdio...político
←VIII - 5 - Um interlúdio político: Quem não tem Cão, caça com Gato
Atribui-se a Lenin a frase: "O fruto natural do comunismo é o anti comunismo. Antes que os anti comunistas se organizem, organizemos nós mesmos o anti comunismo".
"Se non é vero, é bene trovatto", dizem os italianos.
Se a frase não é verdadeira, ainda que ela não tenha sido dita por Lenin, é exatamente isso o que se tem visto na História do século XX.
Mussolini sempre foi anarquista, e durante anos foi Diretor do jornal "socialista" "Avanti". De repente, se arrependeu, e se declarou anti-comunista. Tomou o poder, depois da heroicamente ridícula "Marcha sobre Roma", e fez um governo estatizante, isto é, socialista. Foi um tirano à la macarroni, e, depois de deposto e libertado pelos nazis, fundou uma republiqueta socialista até no nome: a Republica Socialista de Saló.
Hitler é tido como anti comunista, mas o Partido nazista se chamava Partido Nacional Socialista Operário Alemão. E primitivamente o nome desse Partido fora Partido dos Trabalhadores Alemães, e seu programa era socialista, exigindo a socialização da economia, a estatização dos bancos, a Reforma Agrária, a educação estatizada, etc. Parece até o programa do PT de Dom Arns e de Lula.
Um historiador insuspeito, François Furet, mostra que fascismo, nazismo e comunismo não eram incompatíveis, havendo estranhas e paradoxais similitudes entre eles:
"De resto, imitação e hostilidade não são incompatíveis: Mussolini copia Lenin, mas é para vencer e impedir o comunismo, em Itália. Hitler e Estaline irão oferecer vários exemplos de cumplicidade beligerante" (François Furet, Ernst Nolte, Fascismo e Comunismo, Gradiva, Lisboa, 1999, p. 14).
E Hobsbawn, outro historiador insuspeito afirma: "Nessa medida, os apologistas do fascismo provavelmente têm razão de sustentar que Lenin gerou Mussolini e Hitler"(Eric J. Hobsbawn, lL’Âge des Extrêmes, Histoire du Court XXème Siècle, Éd. Complexe,1994, p. 172).
De algum modo, pois, Lenin Gerou Hitler e Mussolini. O comunismo gerou, de algum modo, o chamado "anti-comunismo" socialista de direita.
Costumo dizer que fascismo e comunismo são gêmeos dialéticos siameses. É difícil distinguir um do outro. São gêmeos especulares. Ambos filhos da revolução Francesa e do liberalismo. O comunismo, pretendendo levar a igualdade liberal às ultimas conseqüências econômicas, pela abolição da propriedade privada. O nazismo e o fascismo, fazendo triunfar o nacionalismo da Revolução de 1789, de modo radical e completo.
Além disso, há a questão tática, para a qual a frase atribuída a Lenin, ou de Lenin, aponta: impossibilitado de triunfar diretamente, o comunismo procura vencer pela manobra pseudo direitista.
Comunismo esquerdista e fascismo pseudo direitista se assemelham as duas pontas de uma barkana (duna de areia no deserto).
A duna é impelida pelo vento em uma certa direção. Os grãos de areia alcançam o topo da duna, antes nas pontas - mais baixas - do que no centro, mais alto. Isto faz com que as pontas da duna avancem mais rapidamente, dando à duna um aspecto de meia lua, na qual as pontas ficam bem mais avançadas que o centro, mais alto e mais volumoso.
Porém, ambas as pontas avançam na mesma direção: a que é imposta pelo vento. O centro, mais volumoso, - "reino da quantidade"-- avança mais devagar, mas vai ele também, embora mais lentamente, na mesma direção que as extremidades, quer da direita, quer da esquerda da duna.
O processo político, no liberalismo, segue um modo de avançar análogo.
O vento do orgulho impele os grãos de areia da "massa" popular em direção à esquerda, isto é, em direção à uma igualdade cada vez maior. Os líderes radicais têm mais facilidade de assumir as alturas de comando, nas extremidades da duna popular. A oposição dos líderes radicais - de esquerda e de direita - é puramente aparente, porque a duna segue, nas duas pontas, na mesma direção: para a esquerda, isto é, para a igualdade e para a estatização.
A massa dos moderados, sempre assustada, e sempre anti radical, vai lentamente na mesma direção que as pontas da duna política. Por isso, um moderado de hoje adotará, depois de amanhã, o que os extremados exigiam ante ontem.
Veja o papel da moderada e anti-radical Democracia Cristã, na Itália: começou combatendo o PC. Depois, fez a "apertura a sinistra". Que foi uma sinistra abertura. Amasiou-se politicamente ao socialismo. E acabou sendo alijada do consórcio do poder.
"Mane pulite" alijaram o socialista Bettino Craxi até a Tunísia, e levaram aos Tribunais antigos líderes demo cristãos, suspeitos de aliança com a Maffia...
Aplique tudo isso ao Brasil... E você verá líderes católicos da Democracia cristã saindo do plenário da Câmara para não votar contra o divórcio...
Você verá os membros da antiga Ação Católica, aliando-se ao PC, e ajudando a guerrilha de Marighela. Hoje, vários deles fizeram crescer, em seu nariz, um bico de tucano.
Como ficaram feios... E que papel feio!
Aplique tudo isso ao Brasil, repito.
No Brasil, em 1964,os militares deram o golpe para impedir o triunfo do comunismo. Mas, imediatamente fizeram uma Reforma Agrária mais radical que a de Jango. Criaram o Incra, e as leis que agora o socialista FHC aplica, pela mão de Jungmann - um ex membro do PC - docemente cedendo às pressões do MST, sob o olhar e o sorriso socialista de Dona Ruth Cardoso para Stedile e Rainha. Sob a benção aposentada, mas sempre dulçurosa, do Cardeal Arns, aquele que mandava telegramas ao seu "queridíssimo Fidel...".
Os militares deram o golpe para impedir a vitória comunista, que faria a estatização da economia. E, depois de anos de governo anti comunista-- sob a tutela de Geisel e Golberi, um amigo de Dom Arns - o Brasil estava mais socializado do que a Yugoslávia de Tito. Com o divórcio, imposto pelo protestante General Geisel.
Parece regra: os anticomunistas, a pretexto de evitar o avanço da esquerda, fazem o que os comunistas anunciavam que queriam fazer. Veja, nos USA: foi Nixon quem fez os acordos com a China Comunista, que eram pedidos por Kennedy.
Via de regra, são ex membros do Partido comunista, são ex marxistas, que tomam a direção da política, quando o PC fracassa nas urnas, ou na tomada do poder, por outras vias...
Dê uma espiada pelos atuais governos da Europa neo capitalista: no poder você encontrará vários trânsfugas do naufrágio socialista e comunista, que sem terem pulado por cima do Muro da Vergonha - o de Berlim-- pularam, sem vergonha, por cima do muro da Ideologia.
Verifica-se precisamente a realização da manobra apontada por Lenin: são comunistas e socialistas que organizam o anticomunismo de "direita".
Nada se parece mais com a extrema esquerda do que a extrema direita. Elas são tão parecidas como as duas pontas da duna.
E o centro vai escorrendo - sempre moderadamente, é claro! - na direção apontada pelos líderes radicais de ambas as pontas. Sem radicalismos. Moderadamente. No Centro está a virtude...Moderadamente cúmplice!
Não foi o moderado Partido do Zentrum de Monsenhor Kaas, que deu a Hitler a Chancelaria, e, em seguida, plenos poderes, e depois desapareceu?
Foi. Foi o Zentrum moderadíssimo que preparou a tirania nazista e possibilitou os crimes de Auschwitz.
Veja ainda a cooperação da burguesia capitalista com a esquerda.
Em toda revolução marxista, se encontram líderes provenientes da burguesia plutocrata que, "arrependidos" de seu "pecado original" capitalista, fazem questão de se fazerem de socialistas sinceros.
Vão até passar alguns dias em barracos de favelas, para "vivenciarem" uma "experiência" de pobreza. Por três dias.
E bancam Robespierres de subúrbio: incorruptíveis paladinos da "ética" e da "virtude", em toda CPI que apareça.
Ou em que apareçam.
Burgueses com complexo de culpa capitalista.
Via de regra, são capitalistas burgueses que pagam os intelectuais e jornalistas que se "convertem" do marxismo, para liderar cruzadas anti comunistas.
Já Lenin dissera também:
"Quando chegar a hora, serão os banqueiros capitalistas que nos darão a corda com a qual os enforcaremos".
"Profético".
Ouvi dizer que Olavo concorda inteiramente com essa idéia, pois costumaria dizer: "Os capitalistas são os porquinhos que os comunistas engordam o ano todo, para ceá-los no Natal".
Se Olavo, não disse textualmente isso, é verdade assim mesmo,
Tendo em vista o acima considerado, pode-se perguntar, como hipótese de estudo apenas, sem afirmação de que seja tese comprovada, se isso tudo é aplicável ao caso concreto de Olavo de Carvalho.
Atualmente Olavo, montado num Pão de Açucar metafórico, proclama-se o único jornalista anti comunista a escrever nos grandes periódicos nacionais.
E escreve artigos ardidos, desancando a esquerda laica e clerical. Descendo a pua na intelectualidade esquerdista uspiana.
Com isso, recolhe as simpatias do público cansado da parolagem tucana, farto do palavreado moralizante do centrismo, sempre moderado, que cohabita com uma corrupção imensa, bem como recebe o apoio do público que exige mais lógica, e reação contra a falta de segurança.
Como hipótese, repito, e tendo em vista o que acabamos de ver, pode-se perguntar: será que quando Olavo se diz anti comunista - hoje - é para valer mesmo?
Tantos outros, no passado, cantaram a mesma canção!...
A hipótese tem que ser levada em conta.
Olavo foi do PC.
E declara que ainda compartilha de certos ideais da esquerda. E se diz anarquista em moral... Anarquista em educação. E mantém conceitos e esperanças milenaristas.
Numa entrevista perguntaram a Olavo:
"O sociólogo Manuel Castells fala que, hoje, se alguma utopia pode servir para refletir a realidade, é o anarquismo, ou seja, a atomização completa dos poderes. O que o senhor pensa disso?
Respondeu Olavo : "Olha, se pegarmos a ideologia anarquista e retirarmos dela um fundo verdadeiramente demoníaco e mórbido, de ódio às religiões, podemos dizer que eu sou anarquista" (Olavo de Carvalho, A Miséria do Materialismo, in República, Fevereiro de 2.000. ano IV, no 40, P. 97. O negrito é meu).
Olavo é pois um anarquista religioso.
Boff é um religioso anarquista.
Será que, de fato, eles são tão diferentes?
Para completar, nessa mesma entrevista, ele declarou: "Eu defendo uma idéia não porque ela seja de direita ou de esquerda, mas porque coincide com a realidade do momento. Eu não tenho a pretensão de chefiar movimento, de orientar política. Se o Brasil quiser um ideólogo, que vá procurar outro ".(Olavo de Carvalho, A Miséria do Materialismo, entrevista in, República, Fevereiro de 2.000, ano IV, no 40, p. 62".O negrito é meu).
Olavo diz defender uma idéia, porque coincide com "a realidade do momento"... Huum...
Essa defesa parece bem instável...
E se mudar "a realidade do momento"...?
Olavo diz que tudo é fluxo.
Humm...
Tomar atitudes conforme a "realidade do momento" pode ser traduzido como ser oportunista...
E Olavo previne: "(...) a palavra esquerda é ambígua e abrange muitas coisas boas também" (Olavo de Carvalho idem p. 97. O itálico é do autor. O negrito é meu).
Quais coisas boas a esquerda defende, Olavo não explicita: mantém em segredo esotérico...
Como se vê, Olavo não pode ser tido como um anti esquerdista radical...
Nessa mesma entrevista, foi dito a Olavo :
"Esse seu pensamento é muito parecido com o de parte da esquerda.
Ao que Olavo respondeu: "Não tenha a menor dúvida! Mas nenhuma fundação americana me paga para isso. As minhas idéias são experimentais: pode ser que a situação mude amanhã ou depois mude ou eu perceba que entendi errado. Agora, o ideólogo não pode mudar de idéia, porque senão acaba o partido" (Olavo de Carvalho, A Miséria do Materialismo, República, no 40, p. 66 O negrito é meu).
Viu?...
Pode ser que "a situação mude amanhã"...
"Ou mude eu"... Por ver que "entendera errado" ao se dizer contra a esquerda...
Olavo não repele a hipótese que levanto.
Nem sequer esconde a hipótese de que ele pode mudar.
Ele a afirma, escreve e subscreve.
Não se pode acusá-lo, então, de falta de sinceridade nesse problema.
O oportunismo de Olavo parece muito com o que é habitual em políticos brasileiros.
Já havíamos constatado: Olavo é mobile. Tudo é fluxo, para ele. E ele está no tudo. Portanto, pode "fluxar"
Por isso, ele não quer ser "ideólogo". Sabe que vai mudar...
Será ele sempre um anti comunista?
Ele mesmo previne que pode mudar...
Acreditar em seu anti comunismo é, então, uma questão de confiança...no fluxo...
Para completar a canção, já parodiada anteriormente, poder-se-ia cantar:
Olavo è mobile...
Por isso...
"Ma non è furbo chi a lui s’ afida,
Chi in lui confida e in suo mistero."
Olavo se diz católico - judeu- maometano, e não é nada disso. É gnóstico.
Ao dizer isso, Olavo procura se colocar como o "sábio" gnóstico, como diz Ibn Arabi:
"O verdadeiro sábio não se vincula a nenhuma crença" (Mohyidin- din- Ibn- Arabi, apud Luc Benoist, El Esoterismo, p. 46).
Que confiança merece um gnóstico com essa ambigüidade religiosa e política?
Estará Olavo se fazendo de anti comunista como se faz de católico?
"Chi lo sa?"
Mas não é prudente confiar... no fluxo.
Há quem se divirta - e se engane - com a violência estilística do anti comunismo de momento de Olavo. Que pode ser apenas de momento, isto é, oportunista. Que já garante que não será assim para sempre...
Depende do momento...ou da oportunidade.
De minha parte, não creio em quem é mutável
Creio em Deus, que não muda.
←IX - Ciências Esotéricas e Gnose: Astrologia e Alquimia
←IX - 1. A Defesa da Astrologia por Olavo
Como vimos anteriormente, o esoterismo sempre inclui a Gnose, conforme disse Antoine Faivre.
Também Gusdorf mostra que "a palavra esoterismo evoca, por sua etimologia, a conversão ao espaço interior; ela designa uma ciência secreta, mas não apenas por seu conteúdo que se refere a procedimentos mágicos, a conhecimentos ocultos; mas também por seu estatuto. Há ensinamentos esotéricos, mas as instruções dadas e recebidas não concernem senão ao envelope exterior daquilo que está em questão" (G. Gusdorf, Le Romantisme, Vol I, p. 846).
Noutras palavras, o esoterismo não pode ser transmitido apenas teoricamente: ele tem que ser vivido numa iniciação secreta, pessoalmente. Ele é intrinsecamente secreto.
Em seu AVISO 2, O. de C. reconhece que o gnosticismo, ao longo dos tempos, impregnou, com alguns de seus elementos, várias atividades humanas, mas que esses elementos da Gnose foram incorporados com significado variado, "conforme o lugar e a função que recebam nas estruturas de pensamento que os acolhem. Isto é óbvio sobretudo no que se refere às ciências simbólicas da natureza - astrologia e alquimia - que já pelo simples fato de serem simbólicas, não remetem por si mesmas a um sentido unívoco, mas recebem o seu sentido do teor geral das concepções doutrinais que os integram e utilizam. Só para dar um exemplo, a mesmíssima teoria da influência dos astros sobre as paixões humanas se encontra, idêntica, em Santo Tomás de Aquino e em Robert Fludd. É cristã no primeiro e gnóstica no segundo, não porque apresente aí qualquer diferença interna, mas pelo lugar que ocupa nas concepções globais de um e de outro."(Olavo de Carvalho, AVISO 2, 17- IV - 2.001).
Como você bem percebe, meu caro Felipe, Olavo está preocupado em sustentarr que a Astrologia que ele praticou durante muitos anos, e defende até hoje, não é a que tem ligação com a Gnose. Seria mais uma "Astrologia tomista, cristã", do que Fluddiana e gnóstica.
Veremos.
Comecemos por fixar como Olavo e seus mestres, os pensadores gnósticos chamados "tradicionais" ou "perennialists", conceituam o que Olavo chamou de "ciências simbólicas da natureza", e como elas se diferenciam da ciências comuns.
Olavo distingue a Astrologia natural, ou "científica", - que ele não chama de Astronomia - da "Astrologia espiritual" ou "sapiencial":
"(...) teremos não uma, porém duas ciências - complementares, é verdade - porém distintas e inconfundíveis. Tradicionalmente esses dois domínios chamam-se "astrologia natural" (ou, podemos admitir, "científica"), e "astrologia espiritual" (ou sapiencial). (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 27).
São pois duas Astrologias mesmo. Olavo não fala da Astronomia.
Ele explicitou mais que uma distinção, estabeleceu uma separação, entre Astronomia e Astrologia, e o fez de modo ainda mais claro, num artigo escrito para a Revista Planeta em 1978, no qual afirma que Astrologia tem muito pouco a ver com Astronomia:
"Na realidade, não é preciso conhecer muita astrologia para ver que ela tem muito pouco a ver com a astronomia. Pode-se estudar astrologia com conhecimentos relativamente rudimentares de astronomia (o suficiente para calcular latitudes e longitudes, ascenção reta e declinações), mas não se pode fazê-lo sem sólidos conhecimentos de mitologia, de psicologia, de religiões comparadas, de heráldica, de simbologia, de arte sacra, e sem a vivência prática, concreta, de pelo menos uma das muitas vias de auto conhecimento e transcendência criadas pelas tradições espirituais do Oriente e do ocidente, como a cabala e a ioga, as várias formas de meditação e experiência mística, etc. " (Olavo de Carvalho, artigo Cadeia para os Astrólogos, in Planeta, Dezembro de 1978, no 75, p.31).
Como Olavo era sincero quando escrevia na Planeta!
Nesse artigo, ele confessa que, para ser astrólogo, não é preciso entender de Astronomia, mas sim que é preciso ter "vivência da Cabala ou da ioga", isto é, da Gnose judaica ou da Gnose hindu!
Ora, Olavo foi astrólogo.
Logo, ele teve "vivência" da doutrina gnóstica.
Portanto, Olavo é um gnóstico.
Pela própria boca, ele se condenou.
E ainda ele se espanta que eu o tenha acusado de defender a Gnose e de ser gnóstico! E ainda me desafia - ele que foi astrólogo profissional - a provar que ele tem doutrina gnóstica, sob pena de me taxar de "impostor"!
Noutro livro, Olavo faz a mesma distinção que já vimos:
"A distinção que assinalei acima evidencia a necessidade de dois enfoques diversos, que constituem por assim dizer duas astrologias opostas e complementares: a astrologia como ciência natural estuda a influência dos planetas; a astrologia como hermenêutica estuda as significações dos fenômenos planetários como símbolos de potências superiores. Esta última forma demanda, por certo, conhecimentos de ordem metafísica e cosmológica que transcendem o campo habitual do astrólogo; ela desemboca numa angeologia e numa teologia" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 48).
A Astrologia natural seria aquela que trata da influência dos astros sobre as paixões humanas, podendo, ou não, prever o futuro, por exemplo.
A Astrologia espiritual que desemboca numa angeologia e numa teologia, exigiria "conhecimentos de metafísica".
Ora, para Olavo, o termo "Metafísica" significa, como vimos, Gnose.
Olavo pretende que é astrólogo espiritual.
Logo, ele tem que ser gnóstico.
De novo, se prova que ele é gnóstico pelas próprias palavras dele.
Olavo diz isso mesmo de modo bem transparente:
"Prolongando e precisando essa advertência, é preciso esclarecer que a astrologia de que se trata neste livro é aquilo que mais propriamente se denomina "astrologia espiritual", ou seja, a utilização do simbolismo astrológico como suporte para a compreensão de doutrinas tradicionais de ordem cosmológica e metafísica, e também como instrumento hermenêutico para a interpretação correta e tradicional de ritos e símbolos. Não se trata, de maneira alguma, de astrologia preditiva - científica ou não, dá na mesma --, nem de astrologia psicológica no sentido tão amplamente disseminado pelos junguianos. Falo da astrologia como auxiliar da mística, e não como instrumento para a predição ou como muleta psicológica travestida de auto-conhecimento" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 16).
É claríssimo: a Astrologia de Olavo é instrumento para o conhecimento de doutrinas metafísicas tradicionais, que como vimos, equivale à Gnose.
Logo, Olavo é gnóstico mesmo.
É também astrologicamente gnóstico.
Olavo é astrologicamente gnóstico tal como Robert Fludd, que ele afirmou defender uma astrologia gnóstica.
Repare ainda, caro Felipe, que Olavo, no texto acima citado, condena a "astrologia preditiva", seja ela científica ou não. Entretanto, noutra passagem desse mesmo livro, ele escreveu:
"A noção de que as pessoas tenham um destino estampado nos céus e de que o pré- conhecimento desse destino possa ser levar a um "aperfeiçoamento" individual não é em si mesma totalmente falsa, mas uma ênfase excessiva neste modo de ver as coisas misturadas a concepções fantasistas sobre o karma, das quais falarei mais adiante - pode levar a uma extinção de toda religiosidade autêntica e ao estabelecimento de uma nova astrolatria"(Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 77. O negrito é meu.).
Portanto, a Astrologia preditiva não seria, agora, totalmente falsa...
Alguma predição seria possível ser feita por meios astrológicos...
Variações olavianas...
Veremos, nos Apêndices desta carta - hélas!, ela terá Apêndices! Mas necessários. E excelentes, pois que são de São Tomás, na Suma Contra Gentiles e na Suma Teológica, ensinou que as predições astrológicas são falsas e demoníacas, obras daqueles "cherubini neri", de que falou Güido de Montefeltro a Dante no Inferno, que Olavo não leu, ou eruditamente "bolostrocou".
Noutra passagem de um de seus livros, Olavo diz:
" No que diz respeito às ciências tradicionais, como a astrologia, a geometria, a alquimia, etc., é evidente que nenhuma delas tem a menor possibilidade de ser corretamente compreendida fora do quadro de um esoterismo completo e vivente, ao qual sé se tem acesso, precisamente, por meio do compromisso com um exoterismo ortodoxo"(Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, p. 13).
Portanto, ele admite que só com um conhecimento esotérico - isto é gnóstico - se pode ter compreensão da Astrologia e das outras ciências "tradicionais".
Ora, Olavo proclama que tem um conhecimento esotérico - portanto, gnóstico - que lhe permite possuir a verdadeira e correta compreensão da Astrologia.
Logo, ele confessa, também desse modo, que é um gnóstico.
Por outro lado, Olavo previne que, no mundo moderno, há duas deturpações da Astrologia tradicional, castiça": a astrologia "ocultista", e a Astrologia dita "científica" (Cfr. Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 19).
A Astrologia ocultista, ele a condena, porque Guénon condenou o ocultismo de Papus, com quem brigara. A Astrologia científica moderna, por seu materialismo, e por seu racionalismo, ele não a aceita na medida em que a razão engana o homem, confinando-o no mundo da manifestação.
A astrologia tradicional ou espiritual defendida por Olavo de Carvalho é uma ciência esotérica, isto é, gnóstica.
Logo, mais uma vez, ele confessa que é gnóstico.
Queremos salientar, agora, o ponto de vista anti científico e anti racional das ciências esotéricas.
Por se oporem ao mundo real, compreensível pela razão, elas não aceitam a relação natural de causa e efeito. Olavo salienta que jamais os astrólogos pretenderam aplicar à Astrologia essa relação de causa e efeito, quanto às ações dos homens:
"(..) por toda parte se explica a relação entre os astros e os homens como um processo de semelhança, de analogia, de simpatia, de correlação, de sincronismo, e nunca de causa e efeito.
"E completaram [os astrólogos]: nenhum astrólogo jamais disse que os astros causam as ações humanas, pela simples razão de que o princípio de causa e efeito, tão importante para o cientista materialista, é, para os astrólogos, um princípio menor e secundário. O princípio maior é a lei da analogia, mediante a qual o grande e o pequeno, o macrocosmo e o microcosmo, a matéria e a consciência, têm uma estrutura e uma dinâmica semelhante, já que são apenas faces diversas do mesmo fenômeno" (Olavo de Carvalho, Os Astrólogos Estão de Volta, in Planeta, Janeiro de 1978, no 64,p. 23).
Não seria então pela relação de causa e efeito que os astros influenciariam as ações humanas, mas sim pela relação da analogia esotérica.
Ainda outra citação mostrando que o significado que Olavo dá à expressão "Ciência tradicional", que ele aplica à Astrologia e à Alquimia, é realmente ligado à noção de Gnose:
"Todas as ciências tradicionais da natureza - astrologia, alquimia, geomancia, etc. - mobilizam poderosas forças psíquicas que não podem ser governadas pela mente do indivíduo, e cujo domínio cabe somente a Deus. Todos os tratados de alquimia (e a alquimia não é outra coisa senão uma astrologia "operativa") insistem claramente na necessidade absoluta da prece. E não há prece sem a filiação regular a uma religião tradicional" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 83).
Fica sempre mais patente que a noção de ciência tradicional, para Olavo é religiosa, mas religiosa enquanto relacionada com o núcleo comum de todas as religiões, que seria a Gnose.
E guardemos bem a identificação de Astrologia como Alquimia operativa...
Olavo garante que o verdadeiro astrólogo - o "astrólogo de raça" - só pode ser um homem "espiritual":
"Essas observações preliminares fornecem ao leitor, desde já, um critério seguro para saber se está falando com um conhecedor do assunto ou com um charlatão, ignorante e falsário (envernizado ou não das tinturas acadêmicas): o astrólogo de raça há de saber, por um lado, enunciar os princípios metafísicos, cosmológicos e teológicos em que se fundam as regras astrológicas que aplica, e, por outro, converter essas regras nos seus eqüivalentes gramaticais, lógicos, estéticos, etc."
Reparou o desprezo dele pelos que têm envernizamento acadêmico, e que, de fato seriam charlatães, e que ele usa para salientar a superioridade do "astrólogo de raça", ainda que ele seja - como Olavo - um auto-didata?... E coloquei em negrito as palavras que comprovam que Olavo liga a Astrologia à Teologia. O que é muito significativo.
E Olavo prossegue:
"Mas é preciso, ademais, que esse homem de erudição - [Homem de valor extraordinário! Especialmente por sua humildade] - seja ainda um homem de espiritualidade, marcado pela vocação de convergência de todos os conhecimentos na luz unificante do Intelectus primus, ou Logos, ou Verbo Divino. Pois aqui não se trata de conhecimentos esparsos, mas de um saber perfeitamente integrado, no eixo de uma realização espiritual pessoal (...)"(Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 21).
Observe, caro Felipe, como Olavo usa expressões do código tradicionalista para exprimir que o verdadeiro astrólogo deve ser um Gnóstico e um iniciado. Porque, "realização espiritual pessoal" significa, no jargão da gnose tradicionalista, ter realizado a união com a Divindade por meio do Conhecimento unificante e salvador, o qual não tem nada que ver com o saber racional acadêmico.
Por isso, também, Olavo previne que esse "conhecimento integrado, por ser integrado, não tem como ser expresso em modo extensivo. O contrário, ele demanda a síntese, ele tende antes à intensidade intelectiva do que à extensividade discursiva. Daí o amplo uso do simbolismo" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 27).
O astrólogo "de raça", "castiço", como Olavo pretende ser, não pode ter os "conhecimento esparsos", próprios da formação racional universitária, mas deve ter os conhecimentos integrados, esotericamente unificados, como exige a gnóstica definição de Filosofia de Olavo.
Olavo explica que o estudante de astrologia espiritual precisa atingir um "estado de integração continuada, isto é, um estado de claridade e de evidência -
[estado de clarividência, como se diz no maçônico rito de Misraim] - que lhe permita assimilar conhecimentos extremamente complexos sem maior dificuldade"(...)Precisa conquistar..."um estado permanente de evidência intuitiva" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 27).
Não preciso salientar que Olavo está insinuando que o principiante em "Astrologia espiritual" deve ser iniciado, para obter o Conhecimento, a Gnose, que lhe permita alcançar a "realização espiritual pessoal".
E recorda-se você que ele afirmara que para ser astrólogo era preciso ter "vivência da cabala ou da ioga"...
Olavo, por fim, diz expressamente:
"O corpo de técnicas que concorrem para esse fim é o que se denomina esoterismo, como sinônimo de "interiorização, e que não se confunde de modo algum com o "ocultismo", a magia, a bruxaria, os poderes psíquicos reais ou fingidos, etc."(olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, pp. 27-28).
O esoterismo, como vimos, implica em gnose, conforme explica Antoine Faivre. Note ainda que a distinção entre esoterismo e ocultismo é o eco do que diz Guénon, com raiva de Papus. Portanto, Olavo ecoa a doutrina de Guénon também neste ponto.
Concluindo, diz Olavo que a Astrologia "é via de acesso ao Ser" (Olavo de Carvalho, Astros e Simbolos, p. 28). E Ser, para Olavo, é a Divindade. Portanto, a "Astrologia espiritual" de Olavo é meio para, através do Conhecimento, atingir a ‘realização espiritual pessoal’, unindo-se ao Ser, à Divindade, o que permitiria reconquistar "certas capacidades humanas originárias, como por exemplo, um estado permanente de evidência intuitiva e, portanto, de certeza e de paz"(Olavo de Carvalho, astros e Símbolos, p. 28).
Há que se concordar com Olavo neste ponto: a "Astrologia espiritual", que ele defende, está bem longe da vulgar e supersticiosa Astrologia dos horóscopos de jornal. A Astrologia de Olavo exige admitir a Gnose.
A "Astrologia espiritual", ciência esotérica e via para a Gnose preconizada por Olavo, está então inteiramente de acordo com a Astrologia do cabalista e gnóstico Robert Fludd, que Olavo admitiu ser gnóstica. E é contrária ao que ensina São Tomás de Aquino, cujo prestígio Olavo tentou puxar para a sua sardinha astrológica.
Com efeito, Olavo de Carvalho procura insinuar que não há contradição entre o que ele diz da Astrologia e o que ensinou São Tomás sobre esse tema.
Ele começa afirmando corretamente a doutrina de São Tomás dizendo:
"Segundo São Tomás, os astros não influem em nosso entendimento, mas sim no nosso aparato corpóreo; se, portanto, agem sobre nosso psiquismo, não é a título de causas essenciais, mas de causas acidentais" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 63).
"Enquanto corpos, diz S. Tomás, os planetas só atuam sobre corpos. Isto significa que, se a atuação sobre os entes corporais como a água ou os minerais é direta e causal, e abrange estes corpos na totalidade de seu ser, o mesmo não se poderia dizer com relação ao ser humano, pois este possui qualidades próprias que ultrapassam o domínio corporal e portanto não poderiam estar à mercê da influência de quaisquer corpos, inclusive os planetas. Isto não quer dizer, porém, que os planetas não atuem sobre o homem de maneira alguma, mas sim que eles agem apenas sobre o que neles há de corporal, sem atingir suas faculdades superiores, como a vontade, a razão e o entendimento" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, pp. 45-46).
Se não fosse a imprecisão final entre vontade, razão e entendimento, se poderia dizer que Olavo, desta vez, exprimiu bem o que ensina São Tomás.
De fato, São Tomás ensina que os astros não têm influência nem sobre nossa inteligência, nem sobre nossa vontade, mas apenas sobre nossos corpos, sem afetar nosso livre arbítrio. Portanto, para São Tomás, é falsa a astrologia, quando pretende que os astros determinam nossas ações.
Entretanto, se Olavo, nesses trechos citados, ensina o que diz São Tomás, mais adiante ele acrescenta:
"Se, enquanto corpos, os planetas só atuam sobre corpos, podemos completar o raciocínio de São Tomás [???] dizendo que, enquanto símbolos, ao contrário, eles representam ou veiculam a atuação de potências espirituais e cósmicas que ultrapassam infinitamente os domínios do corpóreo. Neste caso, não são os planetas que agem, mas sim as potências angélicas das quais eles são somente a cristalização simbólica e sensível, por assim dizer" (Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 47. Os negritos são meus para salientar o absurdo do que escreveu Olavo).
E pouco adiante, ele diz que os astros são a "hierofania" dos anjos.
Olavo se arroga o direito de "completar o raciocínio de São Tomás"!
Haja pretensão!
E completar de tal modo que acaba por dizer o oposto do ensina o Doutor Angélico!
Olavo concorda com São Tomás que os planetas, enquanto corpos, só podem influir sobre nossos corpos. Mas, depois, extrapola - e não completa - o que diz São Tomás, afirmando que os planetas são "cristalizações" e veículos de "potências angélicas". No fundo, ele toma a suposta influência simbólica dos astros, como se os estes tivessem um efeito "sacramental".
Tendo começado por afirmar a verdadeira explicação de São Tomás sobre a influência dos astros apenas sobre os corpos, passando, a seguir, a "completar" o raciocínio de São Tomás, Olavo termina por dizer que São Tomás aceita a influência dos astros sobre os fatos humanos como veículos de potências angélicas:
"Ao contrário do que geralmente se pensa, a astrologia, enquanto estudo das relações entre os movimentos planetários e eventos terrestres e humanos, nunca foi propriamente "condenada" pela igreja, como aliás se vê pelas longas e belas páginas que São Tomás de Aquino, na Suma contra os Gentios, dedicou à explicação das influências dos astros como veículos das potências angélicas"(Olavo de Carvalho, Astros e Símbolos, p. 80).
(Como esta carta está imensa, publicarei em apêndice o texto integral das "longas e belas páginas" da Suma Contra Gentiles (Livro III, q. 84 e 85), a que Olavo se refere, assim como da Suma Teológica, em que São Tomás trata da influência dos astros, condenando a tese astrológica de que os astros influem em nosso intelecto e em nossa vontade).
Olavo diz - pelo menos no livro acima citado - que concorda com São Tomás que se os astros não influem na vontade humana, entretanto, eles influenciariam os ciclos históricos. Num artigo na revista Planeta, ele escreveu:
"A astrologia tem, sobre a ciência histórica corrente, justamente a vantagem de permitir um estudo mais amplo, pois o modelo dos ciclos planetários pode articular, numa moldura única e coerente, as várias correntes de causas - econômicas, políticas, culturais, etc. - que contribuem para a elaboração da história: onde o historiador comum se perde ante a variedade dos fatores, o astrólogo (ou o historiador versado em astrologia) elabora rapidamente uma síntese viva e dinâmica do conjunto" (Olavo de Carvalho, A Década de 80. Com que Direito estão Prevendo o Fim do Mundo?artigo in Planeta, Dezembro de 1979, no 87 p.40).
No mesmo artigo, ele escreve pouco depois:
"As grandes transições ocorridas sob o signo de Escorpião parecem evidenciar sempre o desgosto das potências cósmicas, que regem o destino humano, contra qualquer forma de equilíbrio estático que ameace eternizar um determinado status (...) "(Olavo de Carvalho, artigo A Década de 80..., Planeta, Dezembro de 1979, no 87, p. 42. O negrito é meu).
Dessa forma, segundo Olavo, os astros mais do que influir sobre os homens individualmente, influem nos ciclos históricos. Assim, eles ajudariam a explicar a História. Abandonando a "explicação" marxista da História, Olavo buscou, para substituí-la, uma "explicação" astrológica.
Concluímos, pois, que a Astrologia espiritual, tal como a expõe Olavo de Carvalho, tanto como a Alquimia, é uma pseudo ciência; é uma é uma "ciência" esotérica, ligada à Gnose, pretendendo ser veículo para o "Conhecimento salvador".
Essa conclusão minha é confirmada pelo que diz um dos mestres tradicionalistas gnósticos admirado e elogiado por Olavo: Titus Burckhardt.
Esse autor afirma em um de seus livros:
"É verdade que, durante um certo tempo, precedendo diretamente a época moderna, elementos de gnose verdadeira, que tinham sido rejeitados do domínio da teologia, ao mesmo tempo pelo desenvolvimento exclusivamente sentimental do misticismo cristão tardio e pela tendência apologética inerente à Reforma, acharam um refúgio na alquimia especulativa. Isto explica sem dúvida fenômenos tais como os ecos de Hermetismo que se podem distinguir na obra de um Shakespeare, de um Jacob Boehme ou de um Johann Georg Gichtel". (T. Burckhardt, op., cit. pp. 19-20. O negrito é meu.).
Mas isto é dito da Alquimia e não da Astrologia, objetaria alguém.
A resposta nos é dada pelo próprio Burckhardt, como veremos logo em seguida.
←IX - 2. Alquimia e Gnose
"A astrologia e a alquimia que, na sua forma ocidental, derivam ambas da tradição hermética, tem entre elas a mesma relação que o Céu e a Terra. Uma interpreta a significação do zodíaco e dos planetas, a outra, a dos elementos e dos metais" (Titus Burckhardt, Alchimie, ed. Thot, impresso na Itália, texto francês, Milano,1974, p. 73).
Burckhardt afirma então que Astrologia e Alquimia são ciências esotéricas, herméticas, portanto, gnósticas. E também Olavo havia relacionado todas as ciências esotéricas, especialmente a Alquimia e a Astrologia, com o esoterismo, isto é, com a Gnose.
Pontifica Burckhardt:
"Pela maneira "impessoal" pela qual ela considera o mundo, a alquimia se acha em relação mais direto com a "via do conhecimento" (a gnose) do que com a "via do amor" (T. Burckhardt, Alchimie, pp. 27-28. O negrito é nosso).
Burckhardt é explícito: a Alquimia é ligada à Gnose. E a palavra Gnose é do próprio texto de Burckhardt. O que Olavo mais ou menos camufla, Burckhardt proclama. A Alquimia é ligada à Gnose.
"Por sua integração à fé cristã a alquimia se achava espiritualmente fecundada enquanto que ela trazia à Cristandade uma via conduzindo à "gnose" através da contemplação da natureza" (T. Burckhardt, op. cit., p. 18)
Mais ainda. Como se não bastasse a relação da Alquimia com a Gnose, Burckhardt mostra que ela era cabalística. (E a Cabala é a Gnose judaica, conforme Scholem):
"Não se sabe, escreve Artéphius, célebre alquimista medieval, "que nossa arte é uma arte cabalística?" (T. Burckhardt, op. cit. p. 28).
Burckhardt diz ainda:
"(...) a Alquimia, apoiando-se sobre uma perspectiva puramente cosmológica, não pode ser transposta senão indiretamente ao domínio meta - cósmico ou divino. Mas, como ela pode representar uma etapa no encaminhamento em direção ao objetivo supremo, ela foi entretanto incorporada na gnose cristã e islâmica. A transmutação alquímica conduz o elemento central da consciência humana ao contato direto deste raio divino que atrai irresistivelmente a alma e direção ao alto e a faz entrever o Reino dos Céus" (T. Burckhardt, op cit., pp. 70-71).
Portanto, mais do que transmutar chumbo em ouro, a Alquimia visa colocar em contato a partícula divina oculta no homem com a própria Divindade, a fim de realizar a Identidade Suprema, isto é, transmutar o alquimista em Deus.
"Ora, a Grande Obra não limita sua ambição à pesquisa interessada de técnicas para a produção do metal precioso. O alquimista trabalha para a sua própria transmutação; sua tarefa externa é o símbolo de uma caça do ser, de uma ascese que lhe dará o domínio do absoluto. O enobrecimento dos elementos naturais é a figura alegórica da promoção espiritual do homem, o mais precioso de todos os elementos, assim como o manifestou o Fausto romântico de Goethe"(G. Gusdorf, Le Romantisme, Vol. I, p. 846).
Olavo deixara entrever que a Astrologia espiritual exige uma iniciação. Burckhardt vai dizer expressamente isso da Alquimia:
"Como toda arte sagrada no verdadeiro sentido da palavra (isto é, como todo "método podendo conduzir à realização de estados de consciência supra individuais) a alquimia depende de uma iniciação" (T. Burckhardt, op. cit. p. 32).
Olavo admite que a Alquimia não é uma ciência racional. Isso se depreende do que ele diz, por exemplo, num artigo intitulado "Medicamento Alquímico", publicado na revista Alquimia Digital (http//:alquimia.vila.bol.com.br/medicamento/index.html.)
Nesse artigo delirante, Olavo explica como se pode obter o ouro potável, captando a "energia vital que move o universo e os seres vivos", energia que ele chama ainda de "energia cósmica".
"Sendo a forma mais universal de energia, a energia cósmica não se deixa, evidentemente isolar em laboratório. Por isso não se poderia "provar" cientificamente a existência da energia vital ou cósmica (pelo menos com os recursos habituais da ciência atual" (Olavo de Carvalho, art cit., p. 1).
E ele previne que os procedimentos alquímicos "são quase o inverso simétrico do procedimento científico atual"(Olavo de Carvalho, art. cit.p.2).
Há, pois, que acreditar na tal "energia cósmica". A alquimia exige um ato de fé.
E, descrevendo a experiência alquímica, Olavo conta que ela consta de várias etapas: "escolha do local e dos momentos para a colheita da matéria prima; alimentação da matéria prima com orvalho e flores; destilação, corrupção e incineração; obtenção final do "levedo" que, ao contato com o ouro, "abre" a estrutura energética íntima do metal, captando suas propriedades medicinais; testes clínicos e de laboratório". (Olavo de Carvalho, art. cit. p. 2).
Ele informa ainda que há que fazer "milhares de cálculos astrológicos" no decorrer da operação, além de analisar a "configuração astral pessoal do alquimista, que é uma espécie de catalisador" (Idem p. 2).
Pior ainda. A colheita da matéria prima e a escolha do local onde encontrá-la exigem uma operação "espírita":
"A escolha do local é determinada quase exclusivamente por clarividência. A mulher do alquimista, em estado de transe mediúnico, o conduz até determinado sítio, onde vê figuras que ele vai interpretando como indicações sobre o modo de colher a matéria prima" (Olavo de Carvalho, art. cit., p. 3. O negrito é meu).
Olavo diz ainda que o ouro e outros elementos são "apenas a sede material e aparente, disfarce e embalagem de forças invisíveis de natureza imaterial, puramente "espirituais", ou, digamos assim, energéticas" (Olavo de Carvalho, art. cit., p.3) Incrível, não?
Pois há mais.
"É também o mundo das forças obscuras do céu e da terra, que se juntam num inquietante trabalho de parto, ora aliadas, ora inimigas, e das quais o homem parece esperar algum sacramento secreto"(Olavo de Carvalho, art. cit., p.5. O negrito é meu).
É evidente que não é possível discutir seriamente com alguém que escreve tais coisas. Tal discussão eqüivaleria a debater com "Madame Pavlovna" que lê o futuro na bola de cristal, ou com a "cigana Manolita", que prometia desvendar o futuro lendo as cartas, "pois as cartas não mentem jamais", como garantia uma cançãozinha popular, em 1940.
É evidente que a "barafunda" de conceitos religiosos que Olavo ligou à Alquimia demonstra que ela exige uma atitude religiosa e mágica, simetricamente oposta à ciência racional, isto é, uma atitude gnóstica.
Releia agora o que Olavo escreveu em seu ameaçador AVISO 2:
"Uma mente afeita às técnicas da investigação erudita, mas pobre de discernimento filosófico, está sujeita a perder de vista a forma abrangente e a se confundir de tal modo na barafunda dos elementos de procedência gnósticos que, onde quer que os encontre isoladamente, acabe acreditando estar na presença de uma heresia justamente por incapacidade de atinar com a estrutura geral que lhes dá um sentido completamente diverso" (Olavo De Carvalho, AVISO 2).
Só "uma mente pobre de discernimento" de qualquer tipo não reconhecerá que Burckhardt disse a verdade: a Alquimia é ligada à Gnose.
Ora, são os próprios mestres que Olavo admira - e um tanto veladamente, até ele mesmo - que reconhecem que as ciências esotéricas são de cunho gnóstico.
Não é então essa concepção o resultado de um espírito uspianamente míope. É a própria visão iluminada dos mestres esotéricos de Olavo que vê Gnose nas ciências "simbólicas" citadas por ele.
Todas estas citações, tornam clarissimamente comprovado que tanto a Astrologia espiritual, quanto a Alquimia, são "ciências" esotéricas essencialmente ligadas à Gnose. E quem as pratica, realmente, ou as defende doutrinariamente, deve ser, e é, gnóstico. Olavo foi astrólogo, crê e defende a "Astrologia espiritual". Logo, Olavo é um gnóstico.
←X - Eclesiologia Gnóstica e Ecumenismo Radical
←X - 1. Indiferentismo religioso dos "tradicionalistas"
Vimos que os que se auto intitulam seguidores da "Philosophia perennis", os tradicionalistas esotéricos, colocam as religiões instituídas em plano secundário com relação ao que eles chamam de "Tradição Primeva", que, como vimos, é a velha Gnose de sempre.
Assim como a Gnose, esse desprezo pela Igreja, e pelas religiões em geral, não é novo na História.
Leszek Kolakowski estudou profundamente esse fenômeno da Ecclesia Spiritualis em seu livro Chrétiens sans Église.
Nessa obra, ele analisa - e critica --a classificação feita por J. Lindeboom na obra Les Bâtards du Christianisme (1929) com base no individualismo religioso.
Lindeboom distingue três tipos de individualistas religiosos:
1) os individualistas intelectuais, como os "discípulos de Boehme, os que procuram a sabedoria hermética secreta, todos aqueles para os quais os valores cognitivos são o essencial na religião, ainda que a eles acedam por fantasias especulativas - [e Olavo está inteirinho neste caso] --; eles são os herdeiros da gnose dos primeiros cristãos e têm os maniqueus em sua árvore genealógica" (Leszek Kolakowski, Chrétiens sans Église, Gallimard, Paris, 1965, p.18).
Certamente você notou - não é Felipe? - que Kolakowski também não faz nenhuma distinção entre a Gnose dos primeiros séculos do cristianismo e a Gnose posterior.
2) os individualistas místicos indiferentes às formas visíveis da vida religiosa, preferindo a experiência direta com o divino;
3) os socialistas que se preocupam mais em restaurar o que chamam de "comunismo primitivo"
Os três tipos desprezam o pertencer a uma Igreja instituída, dizendo-se cristãos sem Igreja.
Kolakowski considera que essa classificação de Lindeboom não é boa.
Para ele, o subjetivismo religioso é o critério que permite compreender melhor o desprezo dos reformadores pelas Igrejas instituídas:
"Não é, aliás, difícil notar que uma tal atitude, desde que ela chegue a uma forma completa e absolutamente consistente, conduz quase inelutavelmente à idéia da supressão completa das Igrejas existentes sob forma visível. A tendência a uma interiorização total da religião, a uma inclusão de todas os valores da vida religiosa na consciência individual, na personalidade vivida pelo fiel, deve obrigatoriamente conduzir à idéia de uma religião compreendida como fenômeno puramente moral, limitada a cada consciência humana tomada isoladamente. A religião enquanto instituição organizada se torna inútil então."(L. Kolakowski, op. cit. p. 29).
De todo modo, cremos que tanto o critério de Lindeboom como o de Kolakowski ajudam a compreender o problema da Gnose com relação às Igrejas instituídas.
Para a Gnose, tudo o que tem relação com o mundo material produzido pelo Demiurgo é mau. Desse modo, os gnósticos não aceitam as instituições existentes neste mundo, nem, muito menos, a Igreja instituída por Cristo sobre Pedro.
A heresia gnóstica pretende que a Igreja deve ser inteiramente espiritual. Ela seria constituída apenas por aqueles homens que alcançaram a união com a Divindade através do Conhecimento salvador, não importando a que religião instituída pertençam eles. A Igreja seria então invisível, ou puramente espiritual. Ecclesia Spiritualis, como diziam os hereges de todas as épocas.
←X - 2. Características da Ecclesia Spiritualis Gnóstica
A Ecclesia Spiritualis da Gnose teria as seguintes notas:
1a- Igreja pobre
A Igreja não poderia ter nada de material. Ela não poderia possuir nenhuma propriedade, nenhuma riqueza, pois toda propriedade ou riqueza são coisas materiais, e a matéria, produzida pelo Demiurgo mau, é sempre má, segundo eles. Nesse item se classificam os cátaros, os espirituais franciscanos, os Dolcinianos, os Irmãos do Livre Espírito, os Gibelinos, e, modernamente, os socialistas ditos cristãos, como Dom Casaldáliga, Frei Betto, e o ex frei Boff, assim como os "miserabilistas" do famoso Pacto das Catacumbas. Foram esses "socialistas cristãos", condenados por Pio XI na encíclica Quadragésimo anno, os pouco inocentes e muito úteis aliados de todas as ações marxistas nos últimos tempos, desde a propaganda na mídia, até a guerrilha.
2a- Igreja Igualitária
A Igreja gnóstica não admite hierarquia. Todos os homens teriam em si a partícula divina que os faz potencialmente divinizáveis. Portanto, todos os que chegam à "realização da unidade" com a Divindade, através do Conhecimento Libertador, são absolutamente iguais entre si. Não poderia haver qualquer desigualdade na Igreja dos divinizados. Quando eles fazem distinções são elas apenas designativas das etapas, ou graus, do processo de divinização em que os gnósticos se encontram. Desse princípio igualitário decorre o desprezo dos gnósticos pela Hierarquia eclesiástica, que, para eles, seria uma simples burocracia.
3a- Igreja sem dogmas
A Igreja Espiritual não admite dogmas, que seriam fórmulas racionalizadas e petrificadas da revelação. A Revelação seria dada a cada homem, interiormente, por meio de uma experiência intuitiva, que comunicaria ao indivíduo o Conhecimento salvador, absoluto, inefável e incomunicável, isto é, a Gnose.
Os homens, ao pretenderem traduzir essa revelação interior em palavras, sempre a deturpariam, porque a palavra humana é essencialmente incapaz de descrever o inefável, de "desenhar o invisível". Daí todos os credos serem inúteis e, mais ainda, nocivos. Daí, todos os dogmas serem incompletos e prejudiciais, enquanto se põem como verdades eternas petrificadas.
A verdade plena seria impossível de ser alcançada, e, por isso, nenhuma Igreja pode se arrogar o monopólio da verdade.
Como você bem percebe, essa idéia é a que foi defendida pelos hereges modernistas, no princípio do século XX, e que hoje ainda é propugnada por seus herdeiros progressistas.
4a- Igreja Ecumênica
Se os dogmas são incapazes de exprimir a verdade, e por isso são até prejudiciais, não interessa em nada a fé, a crença de cada religião. Todos os que alcançaram o Conhecimento Libertador, qualquer que seja a sua religião positiva, são membros de uma Igreja invisível, sem estruturas e sem dogmas: a Igreja do Amor. Com efeito, se a fé e a crença são secundárias, só importa o que se faz, não o que se crê. A Fé seria coisa de teólogos raciocinadores. O que vale é a intuição e a boa vontade. A única Igreja Espiritual seria uma espécie de federação de todas as religiões numa super religião - talvez presidida pelo Papa - e reunindo todos os Homens de Boa Vontade.
Muito atual isso, não é, Felipe?
E muito olaviano, já que Olavo se proclama "ecumênico radical"...
5a
A Ecclesia Spiritualis da Gnose considerando que toda a lei foi imposta pelo Demiurgo mau, recusa a obediência aos mandamentos. Os dez mandamentos seriam regrazinhas sem importância. Ensina-se, como fez Lutero, e como faz Frei Betto em seu Catecismo Popular, diretamente o antinomismo, que Cristo condenou no Sermão da Montanha: "Não julgueis que eu vim abolir a lei ou os profetas; não os vim destruir, mas sim para os cumprir (...) Aquele, pois, que violar um destes mandamentos mais pequenos, e ensinar assim aos homens, será considerado o menor no Reino de Deus"(Mt. V, 17 e 19).
Olavo faz o mesmo, na sua já citada aula: Crítica e Conselhos à Igreja Católica (Bloco 8), debocha das regrazinhas morais, e desvaloriza especialmente o nono mandamento.
Ou então se prega um ascetismo anti natural, que leva os sectários ao desespero moral, e, por reação, de novo, ao antinomismo. É o que faziam os gnósticos Irmãos do Livre Espírito, por exemplo.
←X - 3. A Concepção de Igreja em Guénon e Olavo
Vejamos então o que pensam Guénon e Olavo disto tudo.
Já citei esses textos na carta Silêncio Inteiro. Repito-os, agora, para facilitar a sua lembrança, sem você precisar consultar diretamente minha carta anterior.
Para Guénon "... o verdadeiro Esoterismo é outra coisa diferente da religião exterior, e que, se tem algumas relações com esta, só pode ser enquanto encontra nas formas religiosas um modo de expressão simbólico; pouco importa, aliás, que estas formas sejam as desta ou daquela religião, visto que se trata da unidade doutrinal essencial que se dissimula atrás da sua aparente diversidade. É essa a razão pela qual os antigos iniciados participavam indistintamente em todos os cultos exteriores, segundo os costumes estabelecidos nos diversos países onde se encontravam; é também porque ele via essa unidade fundamental, e não devido a um "sincretismo" superficial, que Dante utilizou indiferentemente, segundo os casos, uma linguagem própria do Cristianismo ou da Antigüidade greco-romana. A Metafísica pura não é pagã, nem cristã, é universal" (René Guénon, "O Esoterismo de Dante", Editorial Vega, Lisboa, 1978, p. 17.O negrito é meu).
Em minha carta "Silêncio Inteiro", citei o seguinte texto de Olavo numa entrevista:
"Eu sou ecumênico radical: católico- protestante- islâmico - judaico- budista- hinduísta. Eu acredito que essas religiões têm todas um núcleo de verdade metafísica que é eterno, revelado, que o ser humano não poderia ter inventado"(Olavo de Carvalho, A Miséria do Materialismo, entrevista à revista República, Ano IV, n* 40, fevereiro de 2000, p. 96).
Conforme Olavo - e nisso também ele faz eco ao que disse Guénon - haveria um núcleo comum a todas as religiões o qual permitiria reuní-las num ecumenismo mais profundo que o do Vaticano II.
Que seria esta núcleo comum?
O mesmo Olavo, em Fronteiras da Tradição, diz que esse núcleo comum é a "Tradição universal e primordial", à qual se chega por meio do esoterismo (Olavo de Carvalho, Fronteiras da Tradição, pp. 11-12)
Citei também que Olavo chama esse núcleo comum de todas as religiões-- pouco importa qual - de Sabedoria e de Gnose:
"... os primeiros princípios são conhecidos por um método próprio, que é o método da sabedoria ou Gnose" (Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, ed. Nova Stella, coleção Eixo, São Paulo, 1986, p. 24).
E ainda:
"Usa-se às vezes para nomeá-lo o termo gnose, mas esta palavra serve também para designar - de modo mais genérico e sem qualquer relação com a resistência greco - romana ao cristianismo - o elemento intelectivo e cognoscitivo de qualquer tradição religiosa e espiritual, cristã inclusive. Fala-se neste sentido numa gnose islâmica, budista, etc. e também de uma gnose cristã (por exemplo, em Clemente de Alexandria), que rigorosamente nada têm a ver com o fenômeno particular que estou estudando aqui, o qual por isto prefiro designar com o termo diferencial gnosticismo" (Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições, pp. 247-248, nota 127).
No Texto-Confissão de Olavo citado como epígrafe desta carta, Olavo afirma que a Gnose está acima das fés e crenças.
Essa superioridade seria tal que Olavo escreveu:
"Para algumas pessoas, buscar a sabedoria eliminaria a fé, o mistério. Mas a fé não tem importância nenhuma, isso é negócio kantiano, é tudo bobagem" (Olavo de Carvalho, Aula do Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho, 6 de Junho de 1998, Bloco 8, p. 21 da Apostila existente no site de Olavo de Carvalho, sem revisão do autor in"http://www.olavodecarvalho.org/forum/Forum17/HTLM./000053-2.html").
Tal como a Gnose dos Modernistas, Olavo afirma que a revelação divina em todas as religiões, é a mesma, embora "traduzida" em crenças diferentes, porque a Divindade é inefável. Embora seja uma só voz a que Se revela, os homens a traduzem em dogmas diversos, dando origem a credos e fés diferentes pela impossibilidade de manifestar o inefável:
"As religiões não falam da mesma coisa. É preciso ter compreendido isto para atinar que é a mesma Voz que fala por meio de todas elas" (Olavo de Carvalho, artigo Lembrete de Natal, in O Globo, 23 - XII- 2.000).
Você vê claramente, então, inesgotavelmente paciente Felipe, como todos esses textos se esclarecem mutuamente, tornando nítido que, para Olavo o que importa é a "Sabedoria" - a Gnose - que constitui o núcleo de todas as religiões, não importando a fé que elas pregam.
É esse núcleo comum que permitiria o ecumenismo radical de Olavo de Carvalho, que ultrapassa o ecumenismo do Vaticano II.
Se a Fé e as crenças não têm valor maior, o ecumenismo se torna facílimo de ser radicalmente realizado.
Numa entrevista à rádio Europa Livre, perguntou-se a Olavo:
"Você acha que é bom existir uma crença religiosa sem Igreja?"
Respondeu Olavo:
"Certamente. O alto clero mentiu muito aos fiéis no século XX e eles têm o direito de guardar uma certa distância da Igreja, certamente sem renegá-la, mas num espírito de espera prudente até que Deus se digne de lhes dar novas luzes."
(Olavo de Carvalho, Deus acredita em você? Entrevista à Rádio Europa Livre, repórter Cristina Poienaru, Bucarest, 21 de outubro de 1.998, p. 1).
Apesar de ligeira ressalva, Olavo diz explicitamente que poderia ser possível ser cristão sem ter Igreja, que é a tese herética da Igreja espiritual defendida pelas seitas gnósticas.
Boff e Betto estão unidos a Olavo, nesse ecumenismo.
Por outro lado, Olavo distingue a Igreja enquanto burocracia, e a Igreja enquanto reunião dos cristãos, mesmo com crenças divergentes, visto que "... a fé não tem importância nenhuma, isso é negócio kantiano, é tudo bobagem" (Olavo de Carvalho, Aula do Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho, 6 de Junho de 1998, Bloco 8, p. 21 da Apostila existente no site de Olavo de Carvalho, sem revisão do autor, in"http://www.olavodecarvalho.org/forum/Forum17/HTLM./000053-2.html").
"A partir daí algo aconteceu e quando se fala em Igreja, pode-se falar em dois sentidos: a Igreja no sentido Vaticano, uma organização centralizada, no registro civil, etc... e por outro lado, Igreja como conjunto de cristãos que inclui os protestantes, ortodoxos, etc. etc. ë claro que a Igreja neste último sentido está com a verdade, mas só neste último sentido. E no outro sentido? Os caras piraram já há muito tempo!" (Olavo de Carvalho, Crítica e Conselhos à Igreja Católica, Aula do Seminário de Filosofia Olavo de Carvalho, junho de 1998, Bloco 8, p. 24).
Pode haver maior desprezo pela Igreja, enquanto Instituição? E pode haver posicionamento mais claro de desprezo pela fé e pela ortodoxia?
Eis-me chegado ao fim. Graças a Deus, que não mais agüentava ler os textos de Guénon - que são monótonos-- e, pior ainda, os de Olavo, que ademais são empoladamente chatos.
Ao ler os brumosos, obscuros e vagos textos desse "filósofo" auto didata, e suas páginas teológicas tipo "caruru", me vinham à mente uns versos de Dante, proferidos na Divina Comédia, quando ele fixa o olhar nas espessas trevas de certo círculo infernal:
"Oscura e profonda era e nebulosa,
tanto che, per ficar lo viso a fondo
io non vi discernea alcuna cosa"... [proveitosa].
(Dante Alighieri, Divina Commedia, Inferno, IV, 10-12).
As obras de Olavo de Carvalho me lembram o que disse Talleyrand da cabeça de Siéyès, que alguém elogiava como "profunda": "Profunda... mas vazia", retorquiu o "Príncipe" de Benevento.
O chiste de Talleyrand não cabe bem à "Filosoia" de Olavo, visto que confusa não quer dizer profunda.
Além disso a literatura de Olavo é vazia de qualquer conteúdo sério. Mesmo a sua Gnose é astrologicamente mal alinhavada. Olavo é apenas um eco da Gnose "Tradicionalista" da escola guénoniana. Praticamente tudo o que ele diz se encontra em Guénon, em Schuon, ou em qualquer outro dos membros dessa escola gnóstica.
Pobre Olavo que, depois de um misterioso eclipse, quis passar de astrólogo a filósofo, e até mesmo a "teólogo"!
Não é fácil subir das estrelas para o céu de Deus, dos anjos e dos santos! Pelo "Conhecimento" - pela Gnose - isso é impossível.
Agora, só me restará fazer uma pequena biografia de René Guénon, para enterrar esse assunto de vez. Eu a farei, no futuro, apenas para informar melhor os que, tendo ouvido e lido Olavo de Carvalho, ignoram, de fato, quem foi Guénon, do qual Olavo escreveu uma biografiazinha pífia, omitindo coisas bem importantes e bem esotéricas, numa revista tipo gibi.
Mas, ainda vai demorar um tanto para que eu comece a redigir essa biografia. Mereço umas férias. Chega de esoterismo gnóstico. Por um mês, pelo menos.
Certamente, Olavo dirá que escrevi uma carta demasiado longa. Entretanto, ele mesmo comentou, certa feita, que o erro grave pode ser breve, ser dito numa frase bem curta, e, para refutá-lo, serão necessárias muitas páginas.
Como, então, poderá ele reclamar de minha prolixidade, se ele foi quem difundiu erros numerosos, e bem graves, em muitos livros e artigos?
Para refutá-los, foi-me necessária esta "lettre fleuve", que levei quase dois meses redigindo. O que é bem menos que a eternidade que Olavo me concedera.
De tudo isso que lhe escrevi, nesta carta verdadeiramente "amazônica", que concluir?
A conclusão é óbvia. Ela resulta quase de cada citação. E resulta, mais ainda, do sistema formado por esse conjunto de citações, todas elas se apoiando umas às outras: tanto René Guénon quanto Olavo de Carvalho são gnósticos.
Guénon, mais elaboradamente, é um gnóstico de tipo romântico, que mistura hinduísmo, taoísmo e sufismo.
Olavo de Carvalho, muito mais limitado, e, politicamente mais oportunista, junta guénonismo, astrologia e sufismo, tudo numa miscelânea, que como já disse, parece um caruru mal feito.
Guénon ensina a Gnose com um estilo cansativo, é verdade, mas que tem certa elegância. E ele nunca baixa a grosserias. Estas são comuns em Olavo, chegando mesmo à brutalidade. O que é lamentável.
Olavo até me pareceu inteligente e hábil, e mesmo, por vezes, ter uma certa verve. Mas há algo nele - que se reflete em seus textos - estranhamente confuso. Por vezes, ele é tão pouco claro, tão inseguro em sua terminologia, que ele mesmo perde o pé, escrevendo textos que raiam pelo caótico, e sem unidade. É como se ele perdesse o rumo, quando escreve...
Nota-se ainda, nos escritos de Olavo, um conhecimento apressadamente lido, bastante mal digerido, sofregamente assumido, sem muito cuidado, nem exame.
Talvez a sofreguidão do jornalista, que precisa escrever o artigo para a "próxima edição", e não tem tempo de verificar suas citações, o tenha afetado, porque, citando de memória ou por ouvir dizer, comete erros primários. Como o que analisei a respeito de um verso de Dante, que ele comenta erradamente, quando seria bem fácil evitar o erro. Bastaria uma consulta ao texto de Dante. A pressa e o descuido, por auto confiança excessiva, o perderam.
Lendo os livros e artigos dele, lembrei-me da frase jocosa de um jornalista sagaz - Antonio Carlos Fon --, ao me entrevistar, anos atrás:
"Jornalista é um homem que sabe tudo de nada, e nada sobre tudo".
Evidentemente era uma brincadeira, porque jornalistas os há, de grande saber e cultura.
Mas, em Olavo, o talento, que ele inegavelmente tem, é perturbado por um acúmulo de informações mal concatenadas, defeito comum em auto didatas.
Esse auto-didatismo parece gerar nele, no fundo, uma grande insegurança, que ele procura mascarar de duas maneiras:
Fazendo afirmações, sem base, camufladas com aparente firmeza e afetando uma tal "segurança", que leva seus leitores ou ouvintes mais desavisados, a crer no que ele diz, sem examinar, nem conferir suas afirmações. São os "chutes" que ele dá, simulando uma segurança fria, imitadora da certeza absoluta, que ele não tem. É o caso que vimos do verso de Dante, que, ao que parece, ele cita sem ter, nem lido o canto da Divina Comédia em que o verso se localiza. Esse caso é típico. Olavo, muitas vezes, cita de "ouvido"...
2) Usando de uma violência brutal contra os que ousam contestá-lo. Ele busca intimidar, afim de que não se lhe sejam exigidas provas de suas afirmações gratuitas e sem base.
E depois... Digamos que ele não é muito... respeitoso.
Quer se impor no grito, na ofensa, na injúria, e pela ameaça.
Nesse ritmo, não, meu caro.
Ainda que violentando a métrica por amor da verdade, parodiando Corneille, eu lhe diria:
"Souffrez, que je ne l’ aprouve, ni ne l’ imite pas".
Sobretudo não o imitarei, descendo ao terreno pessoal, e muito menos, no tom grosseiro que ele emprega.
Sequer quero aludir ao que outros inimigos pessoais dele, ultimamente, têm publicado. Não é nem elevado, nem digno, fazer isso.
Non raggionam di loro...
Escutemos - anotemos - e passemos.
Não fui eu quem provocou essa polêmica. Foi Olavo quem se apresentou inicialmente me elogiando, depois, me atacando, e, a seguir, ainda, me injuriando.
Visei tão somente demonstrar que Guénon - e Olavo - são gnósticos. Preocupei-me apenas com a doutrina. Olavo pode se dizer o que bem entender: Astrólogo aposentado, ou até "filósofo" auto nomeado. Católico ele não é. Olavo é gnóstico.
Ele se mostrou preocupado em defender três coisas: Guénon, o seu próprio prestígio pessoal, e a doutrina de ambos, que é a Gnose.
Eu defendo a doutrina da Igreja Católica Apostólica Romana, e quis ajudar moços confundidos por uma "tradição" esotérica enganadora.
Espanta constatar como "indivíduos" gnósticos, defensores de um ecumenismo radical, mantenham "links" com "capelas" tradicionalistas, que se dizem anti ecumênicas, e com a benção de quem coloca como prior-idade sua raivinha pessoal, acima mesmo da defesa da fé.
Sejamos, uma vez, "obscuros": parece, essa, uma triste coligação de sufismo com surfismo, só porque é verdade que os astros influem nas ondas e nas marés...
Deixemos...
"Non raggionam di loro, ma guarda e passa"
(Dante, Divina Commedia, Inferno, III, 51).
Preocupei-me em dizer que o errado é errado, e que o mal é mal.
O mais não me interessa.
E, meu caro Felipe, se sofremos injúrias por defender a Fé, seremos bem aventurados, porque, se nosso Mestre, Cristo, foi injuriado e crucificado, como poderíamos esperar coisa diversa para nós?
Se Olavo ousou, blasfemamente, comparar a Virgem Maria a Maomé como se ambos tivessem sido portadores do Verbo (Cfr. Olavo de Carvalho, Críticas à Igreja Católica, Bloco 8, já citada), como poderíamos ser respeitados por ele?
Pelo contrário, é grande honra ser injuriado por defender a Igreja e sua doutrina sacrossanta.
"Amor mi mosse che mi fè parlare"
Por isso, meu caro Felipe, se você também foi injuriado por defender a Nosso Senhor, siga o conselho que há nestes versos que Dante colocou na boca de Virgílio:
"Vien dietro a me, e lascia dir le genti:
sta come torre ferma che non crolla
già mai la cima per soffiar dei venti"
(Dante, Divina Commedia, Purgatorio. V, 13-15).
Deixe-me finalizar. despedindo-me, com as palavras com que a doce Santa Catarina de Siena terminava suas cartas:
"E più non dico... E più non rispondo...
Gesù dolce. Gesu amore"
Que a verdade de Cristo nos una...
...in Corde Jesu, semper, et semper, Orlando Fedeli.
São Paulo, na festa de Nossa Senhora Rainha., 31 de Maio de 2.001.
A posição de São Tomás ante a Astrologia
Suma Contra Gentiles, Livro III, Questão LXXXIV
Os Corpos Celestes Não Influem em nossos Entendimentos
Como resultado do que foi dito, manifesta-se à primeira vista que os corpos celestes não podem ser causa de quanto se refere a nosso entendimento. Pois já demonstramos que, segundo a ordem da Divina Providência, os corpos superiores regem e movem aos inferiores. É assim que o entendimento está naturalmente acima de todos os corpos, segundo consta do que foi dito (I.2, q. 49 ss.). Logo, é impossível que os corpos celestes atuem diretamente sobre o entendimento. Portanto, não podem por si ser causa de quanto se refere ao entendimento.
Nenhum corpo age prescindindo do movimento, conforme se prova no Livro VIII da "Física"(c. 69; 259 b). Porém, as coisas imóveis não são causadas por movimento; porque nada é causado pelo movimento de um agente senão enquanto que ele, enquanto se move, move a quem o suporta. Logo, tudo quanto está à margem do movimento não pode ser causado pelos corpos celestes.
Ora, o que se refere ao entendimento está, falando com propriedade, à margem do movimento, como o manifesta o Filósofo no Livro VII da "Física"(c.3, 7; 247b); cf. 246 a) porque, - como se diz alí - "unicamente pela ausência de movimento se torna a alma prudente e sábia". Em conseqüência, é impossível que os corpos celestes sejam, por si, causa do que se refere ao entendimento.
Se nada é causado por um corpo senão enquanto que, ao se mover, move, é preciso que tudo o que recebe a impressão de algum corpo se mova. Porém, unicamente se move o que é corpo, como se prova no Livro VI da "Física"(c.4,1; 234b).
Será, pois, necessário que tudo o que recebe a impressão de algum corpo seja corpo, ou alguma potência corporal. Entretanto, no Livro II (c. 49 sqq.) se demonstrou que o entendimento não é corpo, nem potência corporal.
Por conseguinte, é impossível que os corpos celestes influam diretamente no entendimento.
Tudo o que é movido por outro é reduzido de potência a ato. Mas nada é reduzido por outro de potência a ato, se esse outro não está em ato.
Assim, pois, é preciso que todo agente e motor esteja de algum modo em ato com relação a aquilo que o paciente e movido se ache em potência.
É assim que os corpos celestes não são inteligíveis em ato, porque são certos singulares sensíveis.
Logo, como nosso entendimento só está em potência com respeito aos inteligíveis em ato, é impossível que os corpos celestes atuem diretamente sobre ele.
A operação própria de uma coisa corresponde à sua natureza, a qual nas coisas geradas, se adquire juntamente com a operação da geração.
Vemos isso nas coisas pesadas e leves, as quais no termo de sua geração, têm imediatamente o próprio movimento, se algo não o impede; por isto, o gerante se chama movente.
Conforme a isto, o que em conformidade com o princípio de sua natureza não está sujeito às ações dos corpos celestes, tampouco o está quanto à sua operação.
Ora pois, a parte intelectiva não é causada por determinados princípios corporais, mas procede totalmente de algo extrínseco, segundo o provamos (I, 2c. 86 e ss).
Logo, a operação do entendimento não está sujeita diretamente aos corpos celestes.
As coisas que são causadas pelos movimentos celestes estão sujeitas ao tempo, que é "o número do primeiro movimento celeste"(Livro IV da "Física", c.11; 218 b).
Em conseqüência, as coisas que prescindem totalmente do tempo não estão sujeitas aos movimentos celestes.
Porém, o entendimento prescinde totalmente do tempo em sua operação, como também de lugar, porque considera o universal, que está separado do tempo e do espaço.
Portanto, a operação intelectual não está sujeita aos movimentos celestes.
Nada rebaixa sua espécie quando age.
É assim que o entendimento transcende a espécie e a forma de qualquer corpo agente, porque toda forma corpórea é material e individualizada, e o entender recebe a espécie de seu objeto, que é o universal e imaterial.
Portanto, nenhum corpo pode entender por sua forma corpórea.
Logo, muito menos poderá um corpo qualquer causar o entender em outro.
O que é meio de união com o superior não pode estar sujeito ao inferior.
Mas nossa alma, enquanto entende, se une às substâncias intelectuais, que por índole natural são superiores aos corpos celestes; porque nossa alma não pode entender senão enquanto que dalí recebe sua luz intelectual.
Assim, pois, é impossível que a operação intelectual esteja sujeita diretamente aos movimentos celestes.
Este fato acredita-se se consideramos o que disseram os filósofos sobre o particular. Porque os antigos filósofos naturalistas, como Demócrito, Empédocles e seus seguidores, afirmaram que o entendimento não se diferencia do sentido, conforme consta no Livro IV da "Metafísica" (3, c. 5, 7;1009 b) e no Livro III "Da alma"(c.3 1, 2; 427 a).
Resultando disso que, como o sentido é certa potência corporal obediente à mudança dos corpos, o entendimento também seria igual. E por isso eles disseram que, como a mudança dos corpos inferiores responde a dos superiores, a operação intelectual responde ao movimento dos corpos celestes, conforme o que diz Homero: "Tal é o entendimento nos deuses e nos homens terrenos qual determinou em seu dia o Pai dos homens e dos deuses", isto é, o sol, ou, mais propriamente, Júpiter, a quem chamavam deus sumo, entendendo por tal todo o céu, segundo consta por Santo Agostinho, no Livro da "Cidade de Deus" (I, 4, c. 11; I, 5, c.8).
Isto deu origem também à opinião dos estóicos, os quais diziam que o conhecimento intelectual era causado em nós pela impressão das imagens dos corpos em nossas mentes, como em um espelho ou em uma página, que recebe as letras impressas sem fazer nada por sua parte. Refere-o Boécio no Livro V do "Sobre a Consolação".
Em conformidade com esta sentença, seguia-se que nossas noções intelectuais ser-nos-iam impressas principalmente pela influência dos corpos celestes.
Daqui que os estóicos foram os primeiros em sustentar que a vida dos homens é guiada por certa necessidade fatal.
Mas a grande falsidade desta opinião aparece desde o momento em que vemos que - como diz Boécio em dito Livro --o entendimento compõe e divide, e compara o supremo com o ínfimo, e conhece os universais e as formas simples, que não se acham nos corpos.
E isto demonstra que o entendimento não é somente um recipiente das imagens dos corpos, mas que tem uma potência superior a elas; porque o sentido externo, que unicamente recebe as imagens dos corpos não alcança realizar o que se disse acima.
Entretanto, todos os filósofos posteriores - que distinguiam o entendimento do sentido - atribuíram a causa de nossa ciência às coisas imateriais e não a determinados corpos. Platão, por exemplo, colocou como causa de nossa ciência as "idéias"; Aristóteles, entretanto, colocou como causa o "intelecto agente".
Todo o que dá a entender que o supor que os corpos celestes são a causa de que entendamos é seguir a opinião de quem sustentava que o entendimento não se diferencia do sentido, como se vê também pelo que diz Aristóteles no Livro "Da alma"(1, c.).
Porém esta opinião é abertamente falsa.
Logo, é claramente falso afirmar que os corpos celestes são causas diretas de nosso entender.
Por isso, a Sagrada Escritura atribui também a causa de nosso entender, não a corpo algum, mas a Deus:
"Onde está Deus que me criou, que dá cânticos na noite, que nos dá inteligência maior que aos animais da terra e nos faz mais sábios que as aves do céu? (Ps. XCIII,10). "Ele que dá ao homem a sabedoria" "Que ensina ao homem a sentença"
Não obstante, deve-se saber que, ainda que os corpos celestes não possam ser diretamente causa de nossa inteligência, em troca influem algo indiretamente. Porque, ainda que o entendimento não seja uma potência corporal, entretanto em nós não pode efetuar-se a operação intelectual sem a cooperação das potências corporais que são a imaginação, a memória e a cogitativa, conforme consta pelo que foi dito anteriormente (Suma Contra os Gentios, I, Livro II, c. LXVIII, fin.). E isto é de tal modo que, impedidas as ações desta potências, por alguma indisposição corporal, impede-se também a operação intelectual, como se vê nos frenéticos e letárgicos, etc.
Por isso, a boa disposição do corpo humano o torna apto para bem entender, já que por ela se robustecem ditas potências. De onde se diz no II Livro "Da alma" (c. 9,2) que "os homens que tem carnes moles, como se vê, tem boa aptidão para entender"
Ora pois, a disposição do corpo humano está sujeita aos movimentos celestes. Pois diz Santo Agostinho No Livro V da "Cidade de Deus" (c. 67) que "não é totalmente absurdo o afirmar que as irradiações siderais possam produzir pelo menos mudanças nos corpos". E São João Damaceno no "Da Fé ortodoxa" (Livro II, c.7), diz que os distintos planetas "provocam em nós diversos temperamentos, hábitos e disposições"
Portanto, os corpos celestes cooperam indiretamente para a bondade da inteligência. E assim como os médicos podem julgar da bondade do entendimento pela complexão corporal, tomada como disposição próxima, assim o pode fazer também o astrólogo, tomando os movimentos dos corpos celestes como causa remota de tal disposição. E deste modo pode ser verdade o que diz Ptolomeu no "Centilóquio" (Sent. 38):
"Quando Mercúrio se acha em alguma das moradas de Saturno, dá inteligência capaz de penetrar as coisas, fazendo robusto a quem então nasce". (O negrito é meu).
Capítulo LXXXV: Os corpos celestes não são causa de nossas volições nem de nossas decisões.
Isto demonstra, ao mesmo tempo, que os corpos celestes não são a causa de nossa volições, nem de nossas decisões.
A vontade está na parte intelectiva da alma, conforme consta pelo Filósofo no Livro III "Da Alma"(c. 9, 3; 422 b).
Logo, se os corpos celestes não podem influir diretamente em nosso entendimento, como se demonstrou, (no capítulo precedente), tampouco poderão influir, diretamente, em nossa vontade.
Toda eleição e volição atual, em nós, é causada imediatamente pela apreensão inteligível, porque o bem entendido é o objeto da vontade, como se vê no Livro III do "Da Alma" (c. 10) e por isto não pode seguir-se transtorno algum ao eleger, a não ser que o entendimento falhe no elegível particular, conforme manifesta o Filósofo no Livro VII " Dos Éticos" (c. 3, 6; 1146, b).
Portanto, se os corpos celestes não são causa de nossa inteligência, tampouco podem ser causa de nossa eleição.
Tudo quanto ocorre nos corpos inferiores por influência dos corpos celestes ocorre naturalmente, posto que estão naturalmente colocados sob eles. Conforme isto, se nossas eleições ocorrem por influência dos corpos celestes, é necessário que sucedam naturalmente; quer dizer que o homem elege realizar suas operações à maneira como agem os brutos por instinto natural, e como se movem naturalmente os corpos inanimados.
Logo, os princípios agentes não serão dois, a intenção e a natureza, mas somente um, que é a natureza. Porém, Aristóteles demonstra o contrário no II Livro "Dos Físicos"(c. 5,2; 196 b).
Portanto, não é verdade que nossas eleições provenham da influência dos corpos celestes.
As coisas que se fazem naturalmente são conduzidas ao fim por determinados meios; e por isso sucedem sempre de igual modo, porque a natureza está determinada invariavelmente.
É assim que as eleições humanas tendem ao fim por diversas vias, tanto nas coisas morais como nas artísticas.
Logo, as eleições humanas não se fazem instintivamente.
As coisas que se fazem naturalmente se fazem quase sempre retamente, porque a natureza só falha em casos contados.
Ora bem, se o homem elegesse naturalmente, suas eleições seriam quase sempre retas. E isto é claramente falso.
Logo, o homem não elege naturalmente. O que teria que ser assim, se ele elegesse sob o influxo dos corpos celestes.
As coisas que são de uma mesma espécie não se diversificam nas operações naturais conseqüentes à natureza da espécie. Por isso, todas as andorinhas fazem o ninho da mesma maneira e todos os homens entendem de igual modo os primeiros princípios, que são naturalmente claros.
Porém, a eleição é uma operação conseqüente à espécie humana.
Portanto, se o homem elegesse naturalmente, todos os homens teriam que eleger do mesmo modo. O qual é evidentemente falso, tanto nas coisas morais como nas artísticas.
Logo, o homem não elege naturalmente. O que teria que ser assim, se ele elegesse sob o influxo dos corpos celestes.
As virtudes e os vícios são os princípios próprios das eleições, porque o virtuoso se diferencia do vicioso no fato que ambos elegem coisas contrárias.
Mas nós temos as virtudes políticas, como os vícios, não por natureza, mas por costume, como o prova o Filósofo no II Livro "Dos Éticos", partindo de que nos habituamos àquelas operações a que nos fomos acostumando principalmente na infância.
Logo, nossas eleições não são por natureza. Por conseguinte, tampouco são causadas pela influência dos corpos celestes, segundo a qual as coisas procedem naturalmente.
Os corpos celestes só influem diretamente nos corpos, segundo se demonstrou (no capítulo precedente).
Se eles fossem, pois, a causa de nossas eleições, ou isto seria enquanto influem em nossos corpos, ou enquanto nos influenciam desde fora.
Porém, de nenhuma das duas maneiras podem ser suficientemente causa de nossas eleições. Pois não é causa suficiente de nossa eleição que se nos apresentem exteriormente certas coisas; porque consta que ao encontro de algo deleitável, a saber, uma comida ou uma mulher, se o imoderado se move ao elegê-lo, o moderado não se move.. De igual modo, tampouco basta para nossa eleição qualquer mudança que possa ocorrer em nosso corpo por influência de um corpo celeste, porque a única coisa que isso ocasiona em nós são certas paixões mais ou menos veementes; paixões que, ainda que veementes, não são causa suficiente da eleição, já que, se arrastam o incontinente, em troca, não movem o homem continente.
Logo, não se pode afirmar que os corpos celestes são a causa de nossa eleições.
A nenhuma coisa se dá um poder em vão.
Ora bem, o homem tem o poder de julgar e consultar sobre tudo quanto é capaz de fazer, quer se trate do uso das coisas externas, quer se trate de admitir ou repelir suas paixões internas. E isto seria em vão se os corpos celestes causassem nossa eleição, caso ela não estivesse em nosso poder.
Portanto, os corpos celestes não são causa de nossa eleição.
O homem é por natureza "animal político ou social" (I Ética, 7,6 1097 b). Evidencia isso o fato de que um homem não se basta a si mesmo, se vive sozinho, posto que a natureza em poucas coisas o proveu suficientemente, dando-lhe razão pela qual pode se procurar todo o necessário para viver, como são a comida, o vestuário e coisas parecidas, para cuja produção não basta um só homem.
Por isso, o homem vive em sociedade por imposição da natureza.
Mas, a ordem da Divina Providência não tira a uma coisas o que lhe é natural, antes bem provê a cada qual em conformidade com sua natureza, segundo consta pelo que foi dito (Cap. 71).
Logo, pela ordem da Providência não está o homem ordenado de modo que a vida social desapareça. Mas ela desapareceria, em troca, se nossas eleições, como os instintos naturais dos outros animais, proviessem das influências dos corpos celestes.
Se o homem não fosse dono de suas eleições, em vão se fariam leis e normas para viver. Igualmente, se não pudéssemos escolher entre isto ou aquilo, em vão se acrescentariam castigos para os maus, e prêmios para os bons. E, faltando estas coisas, a vida social imediatamente se corrompe.
Portanto, conforme a ordem da Divina Providência, o homem não foi criado de modo que suas eleições provenham dos movimentos dos corpos celestes.
As eleições humanas versam sobre coisas boas e más. Se, pois, nossas eleições proviessem dos movimentos das estrelas, seguir-se-ia que elas seriam a causa própria das más eleições. Porem, o que é mau não tem causa na natureza, porque o mal ocorre por defeito de alguma causa, conforme se demonstrou (cap. 4 e ss.).
Não é possível, pois, que nossas eleições provenham direta e propriamente, como de suas causas, dos corpos celestes.
Entretanto, alguém pode objetar contra isto, dizendo que toda ação má provém do apetite de algum bem, conforme se demonstrou (cap. 5,6); tal qual a eleição do adúltero provém do apetite do bem deleitável que há nas coisas venéreas, a cujo bem universal move na realidade uma estrela determinada. E isto é necessário para a realização das gerações dos animais; bem comum que não se devia descuidar pelo mal particular daquele que, impulsionado por tal instinto, elegeu o mal.
Porém esta resposta não é suficiente, se não se supõe que os corpos celestes são a causa própria de nossas eleições, como se influenciassem diretamente no entendimento e na vontade. Porque a influência da causa universal é recebida por cada um conforme o seu modo de ser. Logo, o efeito da estrela que move ao prazer ocasionado pela união destinada à geração será recebida em cada qual conforme seu modo próprio de ser, como o confirma o fato de que diversos animais tem diversos tempos e maneiras de unir-se em conformidade com a sua natureza, segundo diz Aristóteles em seu livro "História dos Animais".(I, 5, c. 8; 542 a).
Conforme isto, o entendimento e a vontade receberiam a influência de tal estrela a seu modo. É assim que, quando se apetece algo em conformidade com o modo de ser do entendimento e da razão, não intervém pecado na eleição, que, na realidade, é má sempre que contraria a reta razão.
Logo, jamais nossa eleição seria má se os corpos celestes fossem a causa de nossa eleições.
Nenhuma virtude ativa ultrapassa a espécie e a natureza do agente, porque todo agente age por sua forma.
É assim que tanto o querer como o entender transcendem toda espécie corpórea; pois como entendemos o universal, assim também nossa vontade é atraída por algo universal, por exemplo, quando "odiamos aos ladrões em geral", como diz o Filósofo em sua "Retórica" (I.2, c. 4, 31; 1382 a).
Em conseqüência, nosso querer não é causado por um corpo celeste.
As coisas que são para um fim estão proporcionadas ao mesmo fim.
Ora bem, as eleições humanas estão ordenadas, como a seu último fim, à felicidade. Felicidade que não consiste em alguns bens corporais, mas em que a alma se una pelo entendimento com as coisas divinas, como antes se demonstrou (c. 25 e ss.) conforme o testemunho da fé e as opiniões dos filósofos.
Portanto, os corpos celestes não podem ser causa de nossas eleições.
Daqui que se diga em Jeremias: "Não temais pelo prognósticos celestes, que atemorizam aos gentios, porque as leis dos povos são vãs"(Jer. X, 2 e 3).
Com isto se refuta a opinião dos estóicos, os quais afirmavam que todos nossos atos, assim como nossas eleições, se dispõem de acordo com os corpos celestes (cfr. cap. precedente: "Daqui também...").
E se diz também que esta foi a antiga opinião dos fariseus da Judéia. Inclusive os priscilianistas foram vítimas deste erro, conforme se diz no livro "Dos hereges"(Santo Agostinho, Haeresibus, 70).
Esta foi também a opinião dos antigos filósofos naturalistas, os quais afirmavam que o sentido não se diferencia do entendimento. Pelo que disse Empédocles que "a vontade é infundida" nos homens, como nos diversos animais, instantaneamente", isto é, conforme o momento presente, pelo movimento celeste, que é causa do tempo. É o que Aristóteles faz constar no livro ‘Da Alma"(I. 3, c. 3, 1’427 a).
Entretanto, deve-se saber que, ainda que os corpos celestes não sejam diretamente causa de nossas eleições, como se influíssem diretamente em nossas vontades, podem ser, não obstante, indiretamente causas ocasionais, enquanto têm influência sobre nossos corpos.
E isto de dois modos:
Primeiro, quando a influência dos corpos celestes nos corpos exteriores é para nós uma causa de alguma eleição, por exemplo, quando por disposição dos corpos celestes se esfria o ar intensamente, elegemos aquecer-nos junto ao fogo, ou outras coisas, em consonância com o tempo.
Segundo, quando eles influem em nossos corpos, por cuja mudança despertam em nós alguns movimentos passionais, ou nos sentimos dispostos pela influência de certas paixões como os coléricos se inclinam à ira, ou também, quando por sua influência se produz em nós certa disposição corporal que é ocasião de alguma eleição, como quando, ao adoecer, escolhemos tomar remédio.
Por vezes, os corpos celestes são também causa do ato humano, enquanto que alguns, por indisposição corporal se tornam loucos, privados de razão. Porém, nestes não há propriamente eleição, pois se movem por certo instinto natural, como os brutos.
Porém, é evidente e experimentalmente conhecido, que tais ocasiões, tanto externas como internas, não são causa necessária de eleição, porque o homem pode, pela razão, resistir a elas ou obedecê-las. Não obstante, são muitos os que seguem os impulsos naturais, e poucos, isto é, os sábios, os que não seguem as ocasiões de agir mal nem os impulsos naturais. E, por isso, diz Ptolomeu no "Centilóquio" que "a alma sábia colabora com a obra das estrelas", e que "o astrólogo não pode julgar da influência dos astros se não conhece bem a capacidade da alma e o temperamento natural", e que "o astrólogo há de prognosticar vagamente sem detalhar" (Sent. I). Isto é, porque a influência dos astros surte seu efeito em todos os que não resistem à sua própria inclinação corporal; porém, não se dá neste ou naquele que, porventura, resiste pela razão à inclinação natural" (Os negritos são meus).
São Tomás: Suma Teológica
I q. 115, art. 4:Se os corpos celestes são causa dos atos humanos.
Resposta:
Os corpos celestes atuam sobre os corpos terrestres diretamente e por si mesmos, como ficou dito.
Mas, sobre as potências da alma que funcionam mediante órgãos corpóreos agem direta, mas acidentalmente, porque os atos de tais potências necessariamente são impedidos na medida dos impedimentos de seus órgãos. Assim, se os olhos estão turvos, não se vê bem.
Se, pois, o entendimento e a vontade fossem faculdades dependentes de órgãos corpóreos, como pensaram alguns que diziam que o entendimento não se diferenciava dos sentidos corporais, seguir-se-ia necessariamente que os corpos celestes pudessem ser causa das eleições e dos atos humanos.
Disto se seguiria, por sua vez, que o homem pudesse ser impelido a sua operações pelo instinto natural da mesma forma que os demais animais, nos quais não há potências da alma não dependentes de órgãos corpóreos., porque, o que se realiza nestes seres inferiores pelo influxo dos corpos celestes, se faz naturalmente, e, portanto, seguir-se-ia também que o homem não teria livre arbítrio, mas que teria ações determinadas como as que têm os demais seres naturais. Tudo o que é evidentemente falso e contrário ao que vemos continuamente na vida humana.
Há que se admitir, entretanto, que as influências dos corpos celestes podem chegar, indireta e acidentalmente, até o entendimento e a vontade, a saber: na medida em que tanto o entendimento como a vontade se servem em algum modo das faculdades inferiores que dependem de órgãos corpóreos.
Porém, há nisto uma diferença grande entre ambas as potências. Porque o entendimento recebe necessariamente o que lhe servem as faculdades apreensivas inferiores. E assim, perturbadas a imaginação, estimativa, ou a memória, necessariamente disso se ressentirá também a ação do entendimento.
Porém, em troca, a vontade não segue necessariamente a inclinação do apetite inferior, pois que ainda que as paixões irascíveis e concupiscíveis não deixem de ter certa força para inclinar a vontade, esta, entretanto, permanece com o poder de seguí-las ou recusá-las.
A isto se deve que a ação dos corpos celestes, pela qual podem ser alteradas as potências inferiores, seja menos efetiva com relação à vontade, causa imediata dos atos humanos, do que com relação ao entendimento.
Portanto, o supor que os corpos celestes são causa dos atos humanos, é próprio dos que dizem que o entendimento não se distingue dos sentidos materiais. Assim, diziam os alguns deles que "tal era a vontade dos homens qual a modelava diariamente o pai dos homens e dos deuses". (Homero, Odisséia, I, 18 v. 138).
Porém, como é absolutamente certo que o entendimento e a vontade não são faculdades dependentes dos órgãos corpóreos, não é possível que os corpos celestes sejam causa dos atos humanos".
[E, nesse mesmo artigo, São Tomás havia levantado a seguinte objeção favorável à Astrologia preditiva ]
"3. Os astrólogos predizem por vezes coisas verdadeiras sobre as guerras e outros acontecimentos humanos que procedem do entendimento e da vontade. Eles não poderiam fazer isto se os asrtros não fossem causa dos atos humanos. Logo, os corpos celestes são causa dos atos humanos".
Esta falsa objeção foi refutada por São Tomás do seguinte modo:
"São muitos os homens que seguem as paixões, que são movimentos sensíveis nos quais podem influir os corpos celestes. Em troca, são poucos os sábios que resistem às paixões.
Esta é a razão pela qual os astrólogos podem, predizer, o mais das vezes, coisas verdadeiras, e, mais ainda, se eles falam de modo genérico.
Não ocorre assim se falam de modo particular, porque sempre resta a possibilidade de que qualquer homem resista às paixões por seu livre arbítrio. É de se notar que os próprios astrólogos afirmam que "o homem sábio domina os astros" ao dominar as suas paixões.(Ptolomeu, Centilóquio, proposição 5; Alberto Magno, In Sententiarum, 2 d. 15, a. 4).
I -2, q. 9, a. 5: Se a vontade humana é movida por algum corpo celeste.
Resposta:
Por via de moção do objeto, é evidente que a vontade humana pode ser movida pelos corpos celestes, enquanto os objetos exteriores os quais são percebidos pelos sentidos, movem a vontade e mesmo os órgãos da vida sensível, recebem a influência dos corpos celestes.
E alguns sustentaram que os corpos celestes podem também influir diretamente na vontade humana segundo o modo de moção de exercício que a vontade recebe de um agente exterior.
Isto, entretanto, é impossível. "A vontade, diz Aristóteles, está na razão"(Da Alma, III), e a razão é uma faculdade da alma não ligada a órgão corporal, pelo que a vontade também é imaterial, incorpórea.
É também verdade evidente que nenhum corpo pode influir nos seres imateriais e incorpóreos, senão ao contrário, já que estes estão dotados de virtude operativa mais pura e universal que todas as coisas corporais.
Portanto, é impossível que os corpos celestes atuem diretamente na inteligência e na vontade.
Por isto, Aristóteles, expondo a opinião dos que dizem que "tal é vontade dos homens qual ela é infundida diariamente pelo pai dos deuses e dos homens", isto é, Júpiter, que simbolizava todo o céu, atribui esta opinião a quem não admitia diferença entre o entendimento e o sentido.
Com efeito, as faculdades sensitivas que informam os órgãos corporais podem receber indiretamente a influência dos movimentos celestes, ao serem movidos os corpos que elas atuam.
E como, segundo se disse, o apetite intelectual recebe uma certa moção do apetite sensitivo, indiretamente os movimentos celestes redundam na vontade, ao ser esta movida pelas paixões do apetite sensível".
Também nesta questão, São Tomás alude aos astrólogos, e às suas previsões na terceira objeção que reza assim:
"Os astrólogos predizem, pela observação dos corpos celestes, certos fatos referentes aos atos humanos movidos pela vontade. Isto não seria possível se os corpos celestes não movessem a vontade humana. Logo, de fato, os astros movem a vontade".
[Este sofisma é assim refutado por São Tomás]:
"3. Como já se disse, o apetite sensitivo é obra de um órgão corporal. Por isto, pode acontecer que, por influência dos corpos celestes, alguns homens sejam mais inclinados à ira, à concupiscência ou a outras paixões; assim como acontece que tantos homens mal inclinados por sua complexão natural se entreguem às paixões, às quais somente os sábios resistem, E daí provém que muitas vezes se cumpram os prognósticos sobre os atos humanos, fundados na observação dos astros. Não obstante, conforme declara Ptolomeu em seu Centilóquio, "o sábio se sobrepõe aos astros" porque, resistindo às paixões, frustra os efeitos desses corpos celestes pelo predomínio de sua vontade livre, em nada submetida ao movimento planetário.
Ou, como dizia Santo Agostinho, "temos de confessar que, quando os astrólogos predizem a verdade, fazem-no em virtude de um instinto ocultíssimo, que, inconscientes, recebem as mentes humanas, e quando isto está destinado a enganar aos homens, é obra dos espíritos maus e sedutores" (Os negritos são meus).
2-2, Q95, a. 1: Se a advinhação é pecado.
"Resposta:
A palavra advinhação significa anúncio antecipado de acontecimentos futuros, os quais se podem conhecer de duas maneiras: em suas causas e em si mesmos.
As causas dos acontecimentos futuros são de três classes.
Umas produzem sempre e necessariamente seus efeitos. Estes podem ser previstos com certeza e anunciar-se com anterioridade pelo simples exame de suas causas, como os astrólogos anunciam os futuros eclípses.
Outras causas há que não produzem sempre e necessariamente seus efeitos, mas apenas na maioria das vezes, e raramente falham. Os futuros acontecimentos deste gênero não podem ser conhecidos com certeza em suas causas, mas apenas por certas conjeturas. Assim, os astrônomos, atentos aos fenômenos estelares, podem conhecer e anunciar uma época de chuvas ou de seca, da mesma forma que o médico, seguindo o curso da enfermidade, prevê a saúde ou a morte do doente.
Existem, por fim, outras causas que, consideradas em si mesmas, são indiferentes à produção deste ou daquele efeito. Isto acontece principalmente nas potências racionais, as quais, segundo Aristóteles, tendem a objetos opostos. Os efeitos deste gênero de causas, assim como os que provém raras vezes e por acidente fortuito de causas naturais, não podem ser descobertos pela simples análise de suas causas, já que estas não têm inclinação determinada a produzir tal classe de efeitos.. Portanto, somente podem ser conhecidos em si mesmos, o qual no caso do homem exige os objetos presentes, à maneira daquele que vê Sócrates atualmente passear ou correr.
O conhecer estes efeitos em si mesmos antes que aconteçam é algo próprio e exclusivo de Deus, que vê desde a eternidade todos os acontecimentos futuros como se fossem presentes. Por isso exclama Isaías: "Anunciai-nos o porvir, para que saibamos assim que sois deuses" (Is. XLI, 23).
Portanto, se alguém pretende conhecer e predizer tal classe de acontecimentos por qualquer meio distinto da revelação divina, usurpa um direito divino. E daqui provém o nome de "advinho", pois, como diz Santo Isidoro, "eles são chamados de advinhos como se estivessem cheios de Deus; pois eles mesmos fingem que estão repletos da Divindade e com fraudulenta astúcia profetizam aos homens as coisas futuras.
Por conseguinte, não se chama advinhação quando o homem conhece e anuncia de antemão aqueles acontecimentos que procedem necessariamente, ou pelo menos geralmente, de suas causas. Tampouco quando conhece e anuncia os fatos contingentes por revelação divina. Então, não é o homem quem "advinha" ou faz um ato divino, mas antes recebe o divino.
A advinhação se dá unicamente quando alguém usurpa de modo indevido a predição de acontecimentos futuros. É evidente que isto é pecado.
Portanto, a advinhação é sempre pecado; pelo que a palavra "advinhação", diz São Jerônimo, "sempre se toma em mau sentido"
2-2, Q. 95, a. 2: Se a advinhação é uma espécie de superstição.
"Resposta.
Indicamos antes (Q. 92, a. 1 e 2) que a superstição implica o exercício do culto devido divino feito indevidamente.
De duas maneiras pode uma coisa pertencer ao culto da Divindade.
Em primeiro lugar, a modo de oblação, que se costuma fazer sob a forma de sacrifício ou de simples oferenda.
Em segundo lugar, como apropriação ou uso de algo divino; é o caso já exposto do juramento(Q.89, a. 4 ad 2).
Por isso, a superstição compreende não só a imolação idolátrica de sacrifícios aos demônios, como também a toda essa classe de auxílios que se solicitam aos demônios, com o fim de conhecer ou de realizar alguma coisa.
Ora, a advinhação provém sempre da ação dos demônios, seja porque se os invoca expressamente para que manifestem o futuro, ou porque eles mesmos se intrometam nessas inúteis inquisições para envolver em vaidade os espíritos.
Canta o salmista: "Bem aventurado o homem que não dirige seu olhar sobre as coisas vãs e as loucuras enganadoras"(Ps. XXXIX, 5).
Uma vã indagação é querer descobrir os acontecimentos futuros, quando nos é completamente impossível. Por isto, se faz patente que a advinhação é uma espécie de superstição".
Nota do Sr. de Carvalho:
COMENTÁRIO
No dia, o Sr Olavo de Carvalho, ao fazer seus primeiros ataques a mim por ter eu criticado René Guénon, comentara ele o livro de Marie-France James -- Ésoterisme et Christianisme autour de René Guénon (Nouvelles Éditions Latines, Paris, 1981) -- dizendo:
"Mas, ao fazê-lo, V. Sa. cai ainda no erro de citar como única fonte (pois as demais mencionadas são alheias a esse ponto) a obra de Marie-France James, "Esotérisme et Christianisme Autour de René Guénon" (Paris, Nouvelles Éditions Latines, 1981), aliás sem consulta direta mas somente através da citação obtida de outro autor. Conheço bem essa obra, que li e anotei há mais de dez anos, e conheço também alguns dos personagens que ela menciona. Posso assegurar que a Srta. James, malgrado toda a sua pesquisa de arquivo, desconhece a tal ponto esses personagens que chega a confundir uns com os outros, não sabendo, pôr exemplo, que aqueles que ela menciona com os nomes de Martin Lings e Sidi Abu-Bakr são, fisicamente, a mesma pessoa, ou, noutras ocasiões, atribuindo a Martin Lings episódios que se passaram com Titus Burckhardt e vice-versa. Sei dessas coisas por ter convivido durante algum tempo com o sr. Lings e conversado muito com ele a respeito desses episódios, dos quais a Srta. James ignora praticamente tudo. Ao ler depois a obra da Srta. James não deixei de dar boas risadas com as confusões que ela fazia."
Ele se limitava, em suma, a criticar um equívoco da autora, que julgara serem duas pessoas distintas, o Sr. Martin Lings, um gnóstico amigo de Olavo, e Abu Bakr, quando este era o nome adotado pelo sr Lings ao apostatar o cristianismo, para tornar-se um esotérico maometano.
Nessa ocasião, o Sr. Olavo nem citou o nome de Paterson, a quem a Srta James atribuiu o nome de Abu Bakr.
Olavo -- que diz ter convivido com Martin Lings, e rido com ele da confusão feita pela Srta. James -- também não citou então, os equívocos dessa autora ao identificar erradamente as pessoa que aparecem nas fotos da capa de seu livro, assim como numa foto da página 129.
Só agora, passados meses, nessa nota publicada dia 27 de junho, Olavo se "lembrou" de criticar esses equívocos da Srta. James.
Por que será que o sr. Olavo não fez isso antes?
Por que o fez só agora?
Se o tivesse feito então, teria fundamentado um pouco melhor a sua crítica, quanto a esse ponto, colateral e secundário, da obra da Srta James.
Não quero pensar que ele não tivesse o livro, porque Olavo declarou que o lera e anotara, e me recriminou por citar esse livro em segunda mão...
Vai ver que ele tinha outra edição do livro...que não tinha fotos na capa.
Mas o livro só teve uma edição !
Vai ver que Olavo só tinha uma cópia xerox dele... sem a foto da capa, claro.
Sejamos generosos em nossa interpretação dos fatos.
Quero ter essa boa vontade para com ele, porque não posso crer que ele não possuísse a obra, e a citasse...em segunda mão...Não é possível que Olavo me recriminasse por um "falta" que ele mesmo estava cometendo.
Não quero crer que Olavo tenha comprado e recebido o livro da Srta James só agora, muito depois da polêmica ter se iniciado.
Mas, se ele já tinha o livro, como só agora ele notou esse equívoco das fotos, ele que conhecia o rosto de Martin Lings ? Por que não disse nada de um erro que fundamentaria mais fortemente sua crítica?
Estranho...
Vai ver que Olavo esquecera das fotos que vira, e do livro que anotara, há mais de dez anos! Certamente, ele se esqueceu das fotos, que observara o equívoco, e até o anotara... mas ... o olvidara...
Que pena !...
***
Desse equívoco secundário da autora, Olavo concluiu que ela não é confiável como historiadora.
Mas que exagero, seu Olavo !
O livro da Srta. James é documentadíssimo. Mais de 450 obras constam de sua bibliografia, assim como são citadas mais de 250 obras, além de umas cinqüenta revistas e artigos Mais: ela cita uma impressionante lista de documentos inéditos de René Guénon e de outros.
A essa enorme massa de documentos, Olavo contrapõe dois equívocos:
1) que ele não sabia que Lings adotara o nome Abu Bakr;
2) que errou ao identificar as pessoas que aparecem em duas fotos.
Daí, Olavo conclui que ela dizer--baseada em documento, e eu citá-la -- que Guénon tomava ópio e haxixe, seria "induzir em falso testemunho".
Já disse: a questão fundamental é a doutrinária: Guénon é gnóstico. E Olavo também o é.
Essa conclusão doutrinária não muda, nem com confusão de fotos, nem de nomes árabes ou ingleses.
Se Olavo é tão severo em seu critério, que o leva a concluir que não é confiável uma historiadora tão documentada, que pensar dele que, na mesma hora em que faz essa crítica, ERRA ao copiar o nome de Jacques-Albert Cuttat, chamando-o de JEAN - Albert Cuttat ?
Só por isso iremos desqualificar Olavo?
Só por isso, nunca.
Mas que pensar de Olavo por suas citações dantescamente "chutadas"?
***
René Guénon e Olavo de Carvalho são gnósticos "tradicionalistas'".
Essa é a conclusão comprovada por uma enorme documentação irrefutável de textos deles dois.
O mais é vã tentativa de Olavo para despistar os leitores.
C'est fini, Monsieur.
Na festa da Visitação de Nossa Senhora, 2 de Julho de 2.001.
Orlando Fedeli.
(Dante, Divina Commedia, Inferno, II 72). - Igreja antinomista ou anti naturalmente ascética.
, exclama o demônio ao perplexo visitante florentino: "Não imaginavas que eu também fosse lógico! " (cfr. op. cit., p. 16-17. O negrito é meu). na qual ele toma a liberdade de louvar os méritos do ópio do qual ele se mostrará guloso durante toda a sua vida, depois, na revista La Haute Science, consagrada "à Tradição esotérica e ao simbolismo religioso" (Marie-France James, Ésoterisme et Christianisme autour de René Guénon, Nouvelles Éditions Latines, Paris, 1981, pp. 77-78. O negrito é meu).
é absolutamente distinto do mundo, pois que a ele não se pode aplicar nenhum dos atributos determinativos que convém ao mundo, toda a manifestação universal sendo rigorosamente nula em vista de sua infinitude; e observar-se-á que tal irreprocidade de relação acarreta a condenação formal do "panteísmo", bem como de todo "imanentismo" (René Guénon, Introdução às Doutrinas Hindus, Ciências Tradicionais, Michel F. Veber, São Paulo, 1989, p. 295). Há uma questão colateral que convém a analisar. Antes de examinar esse item, conviria tratar da causa mais profunda da Gnose, que é o problema do mal.
(Olavo de Carvalho, "A Autoridade Abalada. A Crise do Catolicismo" - II, in Planeta, no 111, Dezembro de 1981, p. 27). ←