Religião-Filosofia-História
Escribas, Doutores da Lei e Fariseus
Orlando Fedeli
Vere mendacium operatus est stylus scribarum’(Jer. VIII, 8)
Nos Evangelhos, Nosso Senhor Jesus Cristo atacou com extrema energia os escribas, os doutores da Lei e os fariseus, lançando contra eles oito maldições solenes, que se opõem às oito bem-aventuranças. Normalmente ouvem-se a respeito apenas surrados chavões que reafirmam terem sido os fariseus hipócritas, acrescentando-se poucas informações.
Ora, a luta acirrada entre Cristo Redentor e os fariseus é um dos pontos centrais da narrativa histórica dos Evangelhos, luta que veio a culminar com o deicídio, no Calvário. Importa pois sobremaneira compreender o que foram e o que pensaram esses escribas, doutores da Lei e fariseus. Qual era a sua origem? Qual a sua doutrina ? Por que Cristo se lhes opôs com tanta força ? Por que recusaram eles o Messias ? Como se tornaram "cegos ao meio dia" (Is. LIX,10) ? Por que não aceitaram a Sabedoria, e por que fecharam seus olhos e ouvidos a Cristo, apesar de reconhecerem os seus milagres ( "Que havemos de fazer ? Este homem faz muitos milagres" (Jo.XI,41)). Por que não O viram, quando "lançaram o olhar para aquele a quem transfixaram" (Jo. XIX,37) ?
O crime do deicídio foi o resultado final de uma longa decadência e corrupção. Na própria Sagrada Escritura encontramos a prova de que o mal vinha de longe. Foram os grandes pecados do povo eleito que provocaram a ira de Deus e fizeram vir pesados sofrimentos sobre Israel e Judá. Por esses pecados, os principais responsáveis foram os sacerdotes e os soberanos. E, em conseqüência, Deus fez Jerusalém ser conquistada, o Templo ser destruído e o povo ser levado em cativeiro, servindo os pagãos.
Em 598 A.C., Nabucodonosor, rei dos caldeus, invadiu pela primeira vez a Palestina, a pretexto de que o rei de Judá, Joaquim, recusara pagar-lhe tributos. Jerusalém foi cercada e o rei Joaquim acabou por ser deposto, sendo colocado em seu lugar seu tio Sedecias. Tragédia maior, Nabucodonosor saqueou o Templo de Deus e levou o rei, seus familiares e muitas famílias nobres para o exílio, em Babilônia.
Anos depois, recusando os conselhos do profeta Jeremias e seguindo a falsa sabedoria de maus conselheiros, o rei Sedecias aliou-se aos egípcios do faraó Hofra, esperando da força humana a vitória sobre Nabucodonosor e a libertação dos exilados na Caldéia.
A rebelião de Sedecias causou uma segunda invasão caldaica. Nabucodonosor venceu os egípcios e cercou Jerusalém pela segunda vez. Após dezoito meses de luta, a cidade de Deus foi conquistada (junho de 587 A.C.). Desta vez, tudo foi destruído. Nem o Templo de Salomão foi poupado pelo incêndio. A população de Jerusalém foi levada para o cativeiro de Babilônia. Muitos outros judeus, que se haviam comprometido com a aliança egípcia, fugiram para as terras do faraó. Poucos puderam ficar na Palestina, mas, devido a novas intrigas políticas, os caldeus, pela terceira vez, tomaram o país, executando uma terceira deportação.
Qual foi a causa maior de tamanhas desgraças políticas e religiosas ? No livro do profeta Ezequiel se encontra a resposta a essa questão. Lá se lê que o próprio Deus mostrou ao profeta Ezequiel a razão da destruição de Jerusalém e do Templo de Deus: a idolatria a que secretamente entregaram os sacerdotes de Deus. Enquanto no Templo e publicamente eles diziam adorar o Criador do céu e da terra, nas trevas, secretamente, eles adoravam os ídolos do Egito. No capítulo VIII do livro de Ezequiel há uma descrição muito viva e curiosíssima desse culto secreto: Deus ordena ao profeta que raspe uma parede, e, quando ele o faz, aparece uma porta oculta. Deus e o profeta entram por ela e chegam a um local escondido, onde os sacerdotes do Altíssimo e os Anciãos da casa de Israel estavam adorando os ídolos (cfr. Ez. VIII,7-13).
Havia, pois, desde o século VI A.C., um culto secreto aos ídolos nos porões do Templo. Tal foi a causa da destruição do Templo e do reino de Judá. Essa idolatria secreta praticada pelos sacerdotes de Deus e pelos Anciãos do povo tinha que ser sustentada por uma doutrina religiosa que os sacerdotes e Anciãos não revelavam ao povo simples. Essa doutrina, muito provavelmente, era gnóstica.
Tendo perdido a pátria e o Templo, não tendo mais nem rei nem Estado nacional, deportados para Babilônia, exilados no Egito, dispersos entre os estrangeiros, estrangeiros em sua antiga terra, os judeus, agora, só tinham a religião como traço de união.
Os caldeus permitiram aos deportados uma certa liberdade, deixando-os ser dirigidos por seus próprios líderes e por seus profetas. Para manter o povo unido, o profeta Ezequiel e seus sucessores organizaram casas de oração - as sinagogas - e já que não era mais possível sacrificar no Templo (pois fora destruído), a sinagoga se tornou, desde então, o centro da vida religiosa judaica. Nelas se rezava, liam-se e comentavam-se as Escrituras. Junto a elas, logo se desenvolveram escolas para estudar a Lei e os Profetas. Segundo consta, o próprio profeta Ezequiel teria organizado também um órgão dirigente dos expatriados, constituído de setenta elementos, do qual se originará o Sinédrio.
O exílio de Babilônia durou de 587 A.C. até o edito de Ciro, rei dos persas, que, tendo vencido os caldeus, deu permissão a que uma primeira leva de judeus retornasse à sua pátria, em 538 A.C, organizando uma satrapia persa na Palestina. Já essa primeira leva teve licença para reconstruir o altar de Deus em Jerusalém. Em 520 A.C., Dario I permitiu a saída de um segundo grupo de judeus, sob a direção de Zorobabel, concedendo-lhes ainda o rei persa que reconstruíssem o Templo de Jerusalém. Este segundo Templo foi concluído em 515 A.C.
Em 458 A.C., Esdras trouxe o resto do povo para Jerusalém e fez uma solene promulgação da Lei de Moisés, renovando o pacto do povo judeu com Deus. Os judeus acreditam que, o que eles chamam de A Grande Sinagoga, foi constituída no tempo de Esdras, porém esta tradição é carente de fundamento histórico (cfr. A.Merk S.J. Introductionis in S. Scripturae Libros, Lethielleux, Paris, 1940, Vol. I , p.95).
Os setenta anos de exílio em Babilônia não corrigiram totalmente o povo. Até pelo contrário, ao que parece, alguns judeus trouxeram de Babilônia muitas idéias religiosas pagãs, que iriam provocar a formação de uma gnose judaica.
Além disso, o fato de terem ficado tantos anos sem pátria, sem Estado e sem Templo, fez com que os judeus passassem a centrar sua religião na pura prática escrupulosa da Lei e em seu estudo. Disto nasceu um desvio que supervalorizou a letra da Lei em detrimento de seu espírito.
Até o cativeiro de Babilônia, os próprios sacerdotes eram os guardiães da Torah (a Lei de Moisés, isto é, o Pentatêuco). Depois do exílio, começaram a ganhar cada vez mais autoridade e importância como mestres explicadores e guardiães da Lei os chamados sábios ou escribas , os Soferim .
Em conseqüência da centralização da religião na Lei, formaram-se, pouco a pouco, especialistas na interpretação da Lei e em sua aplicação judicial: eram os mestres ou doutores da Lei. A aplicação casuística da Lei, a jurisprudência legalista, a adaptação dos princípios aos casos concretos foram paulatinamente dando supremacia à letra sobre o espírito. Foi a esta deturpação da religião que São Paulo fez referência, quando escreveu: "A letra mata, é o espírito que vivifica" ( II Cor. III.6)
Em breve, uma jurisprudência foi se formando segundo as chamadas "tradições dos Antigos" ou "tradições dos anciãos". Essas tradições e costumes formaram a Lei Oral - a Torah Oral - que, aos poucos, ganhou tal força que suplantou em valor e respeito a própria Torah de Moisés, da qual ela tinha se originado. É a essa "tradição humana" que farão referência condenatória Cristo e o Apóstolo São Paulo: "E assim, vós, por causa de vossa tradição, mudastes o mandamento de Deus" (Mt. XV, 6). E ainda: "É em vão que me honram, ensinando doutrinas e mandamentos dos homens." (Mt.XV,9). São Paulo escreveu aos Colossenses: "Vede que ninguém vos engane por meio da filosofia inútil e enganadora, segundo a tradição dos homens" (Col., II,8).
Que a chamada Torah Oral superou em respeito e valor a própria Torah mosaica é confirmado por todos os testemunhos históricos e pelos estudiosos da questão . Na Mishnah se lê :
"Maior obrigação se aplica à (observância) das palavras dos escribas do que às palavras da Lei (escrita)" (Mishnah, Sanhedrim, XI, 3).
"Se um homem disser: 'Não há obrigação de usar filactérias', ele transgride as palavras da Lei, e ele não é culpado; mas, se ele disser: 'Deve haver nelas [nas filactérias] cinco repartições', então ele acrescenta algo às palavras dos escribas, e é culpado" (Mishnah, Sanhedrim, XI,3).
A respeito da Torah Escrita e da Torah Oral diz G.G. Scholem: "De acordo com o uso comum nas fontes talmúdicas, a "Torá escrita" é o texto do Pentatêuco. A Torá Oral é a soma total de tudo o que foi dito por eruditos ou sábios a título de explicação deste corpus escrito, pelos comentadores talmúdicos da Lei e por todos os demais que interpretaram o texto. A Torá oral é a tradição da Congregação de Israel, ela desempenha o papel necessário de completar a Torá escrita e torná-la mais concreta. De acordo com a tradição rabínica, Moisés recebeu, ao mesmo tempo, ambas as Torás, no monte Sinai, e tudo quanto um erudito subsequente encontra na Torá ou legitimamente dela deduz, já estava incluído nesta tradição oral fornecida a Moisés. Assim, no judaísmo rabínico, as duas Torás são uma só. A tradição oral e a palavra escrita completam-se mutuamente, uma não é possível sem a outra" (G.G. Scholem, A cabala e seu simbolismo, Perspectiva, São Paulo, 1978, p.61).
A autoridade extraordinária alcançada pelos escribas e doutores da Lei diante do povo ganhou-lhes um título de respeito. A forma costumeira com que o povo começou a chamá-los foi a de "meu senhor', isto é, Rab, que em grego se disse Rabbi. Com o tempo, esse termo passou a ser um verdadeiro título, como se verifica nos textos evangélicos. Porém, antes dos tempos evangélicos, não se tinha estabelecido ainda o costume de chamar os grandes mestres de Rabi. Assim, por exemplo, jamais se usou chamar chefes de escola, tais como Hilel ou Shammai, de Rabi (cfr.Emil Schürer, The History of the Jewish people in the age of Jesus Christ (175B.C.-135A.D.), T.&T. Clark, Edinburgh, 1979, vol. II, 325-326-327).
A tradição hebraica costuma enumerar os grandes mestres, chefes de escola, aos pares, sendo um de uma tendência mais rigorista, e o outro, de uma corrente menos exigente. Entre Esdras e Cristo, essa tradição cita apenas dez mestres, que teriam sido: Yosef ben Ioezer e Yosef ben Iochanan ; Yoshua ben Parachiah e Mattai de Arbela; Iehuda ben Tabai e Simeon ben Satach; Shammai e Hilel. A estes mestres não era ainda costume atribuir o título de Rabbi.
Os estudiosos da Lei - os escribas e doutores da Lei - atribuíam-se uma tríplice missão :
1a. - Definir e aperfeiçoar os princípios legais decorrentes da Torah, a Lei Escrita.
A lei mosaica, como toda lei escrita, requeria, em muitos casos, uma interpretação, para ser aplicada com mais justiça. Os escribas e doutores da Lei examinavam os casos concretos e aplicavam as determinações da Torah procurando harmonizá-las aos costumes, à realidade concreta de cada caso, e à jurisprudência que, aos poucos, se formou. Disto tudo nasceu um intrincado sistema legal casuístico, que, a princípio, foi transmitido apenas oralmente, e que, por seu crescimento cada vez maior, exigiu, afinal, ser redigido.
2a. – A segunda missão que os escribas se arrogavam era a de ensinar não apenas a Lei escrita, mas também, e principalmente a jurisprudência casuística que eles haviam elaborado e que tomou o nome de Torah Oral ou "Tradição dos Antigos", ou dos "Sábios".
Enquanto a Lei Oral não foi codificada e redigida, o método utilizado pelos escribas para transmiti-la foi a memorização e a repetição. Repetir e ensinar são palavras equivalentes na linguagem rabínica. Os discípulos dos mestres (Rabis) tinham a obrigação de decorar a Torah Oral, assim como as soluções legais adotadas pelos Antigos, sem nada alterar do que fora recebido. O discípulo, por isso, era obrigado a expressar-se usando sempre as mesmas palavras de seu mestre. Desse ensino mnemônico e repetitivo é que proveio a palavra Mishnah, que significa repetição. Os mandamentos dessa Tradição Oral dos antigos eram chamados os Mishnaioth.
3a. - A terceira missão que os escribas e doutores da Lei se impuseram e assumiram foi a administração da justiça pela aplicação escrupulosíssima dos Mishnaioth.
Cada mestre dava uma interpretação da Lei. As várias interpretações eram cotejadas, preponderando a interpretação da maioria ou a dos mestres de maior autoridade. O esforço mnemônico foi se tornando imenso e, por fim, impraticável. Cada mestre ou doutor começou a fazer anotações que, afinal, tiveram que ser codificadas. Foi a codificação da tradição legalista dos vários escribas, doutores da Lei, isto é, dos grandes Rabinos que se chamou de Mishnah. O sentido literal da palavra Mishnah é doutrina ou tradição, segundo explica A. Merk S.J. (Cfr, A. Merk, op. cit. vol I , p.89).
A invasão grega, no século IV A.C., trouxe novas complicações ao processo religioso que os judeus atravessavam. A dominação grega, graças à força e ao prestígio de sua cultura e de sua filosofia, pouco a pouco, influenciou largas e importantes camadas do povo judeu. Os vencidos tendem, apesar do ódio, a admirar os vencedores. Entre os judeus começou-se a adotar a língua, os modos de ser e os costumes dos gregos, mesmo quando alguns desses costumes eram contrários à Lei Mosaica. Diante do invasor cheio de prestígio, os judeus se dividiram. Formaram-se partidos. O partido dos saduceus mostrou-se aberto às influências estrangeiras, procurando conciliar judaísmo e helenismo, teologia hebraica e filosofia grega. Este partido teve forte penetração entre os sacerdotes. O partido fariseu, pelo contrário, opôs tenaz resistência aos costumes e ao pensamento grego, entrincheirando-se na observância zelosa e rigorista da letra da Lei escrita e oral. A grande maioria dos escribas e doutores da Lei aderiu ao farisaismo e obteve o apoio quase total do povo judeu, graças ao prestígio moral e religioso que alcançaram.
As principais diferenças doutrinárias entre saduceus e fariseus foram:
1ª. A questão da Ressureição :
Os fariseus admitiam a imortalidade da alma, a existência de uma recompensa e de um castigo após a morte, assim como a ressureição dos corpos, depois de um juízo universal.
Os saduceus, pelo contrário, negavam a ressureição e a existência de uma vida eterna após a morte, afirmando que a alma perecia junto com o corpo. Nos Atos dos Apóstolos (XXIII,6) se lê que São Paulo se aproveitou dessa divergência entre saduceus e fariseus para dividir o Sinédrio que ia julgá-lo.
2ª. Os anjos:
Enquanto os fariseus acreditavam na existência dos anjos, os saduceus a negavam.
3ª. A questão do destino, (predestinação e livre- arbítrio).
Os saduceus tendiam a dar mais importância ao livre-arbítrio do que à ação de Deus, através da graça, nas ações humanas. Os fariseus, em contraposição, davam tal importância à ação da providência divina, na decisão dos atos humanos, que alguns autores os acusam de defender a idéia do destino, isto é, que as ações humanas não são livres, dependendo unicamente do querer de Deus, sem cooperação do livre-arbítrio humano.
4ª. A "Tradição dos Antigos"
Os fariseus se distanciavam dos saduceus também na valorização da chamada "Tradição dos Antigos". Eles faziam a Lei Oral suplantar em valor e respeito até a própria Lei de Deus, codificada por Moisés. Diziam eles que a Torah Oral era o mais correto e perfeito desenvolvimento e expressão da Torah escrita. Os saduceus, de seu lado, não aceitavam as tradições farisaicas que não tivessem claro e certo apoio no texto da Escritura. Como testemunha Flávio Josefo, "os fariseus impuseram ao povo muitas leis provenientes da tradição dos Antigos, que não estavam escritas na Lei de Moisés" (Flávio Josefo,Antiguidades judaicas, XIII, 10, 6 ).
5ª. Posicionamento político
O partido saduceu era principalmente sacerdotal e aristocrático, enquanto os fariseus recrutavam seus membros nas classes populares. Os saduceus sempre mantiveram um posicionamento político-religioso, enquanto os fariseus sempre foram muito mais religiosos do que políticos. É absolutamente certo que os fariseus dominaram doutrinariamente as escolas rabínicas e eram eles que determinaram as principais opções religiosas do povo judeu.
A redação da Mishnah foi realizada pelos mestres chamados Tannim ou Tanaítas, termo que deriva da palavra hebraica que significa ensinar ou transmitir (uma tradição). Os Tanaitas viveram entre o século I e o III depois de Cristo. A primeira tentativa de codificação da casuística rabínica é atribuída a Rabi Akiva (50-130), e uma segunda, a Rabi Meir (entre 130 a 160 D.C.).
A compilação definitiva da Mishnah se deve ao famoso Rabi Yehudah Ha-Kadosh (o santo), intitulado também de Yehudah, o Príncipe, ou o Patriarca, no século II D.C., já que esse rabino viveu entre 135 a 220 D.C. Ele foi sucessor de Gamaliel II, na liderança de uma das escolas rabínicas. Evidentemente, a Mishnah de Rabi Yehudah reflete sua doutrina. Diz-se que ele tendia mais para o racionalismo do que para o misticismo. Daí ter ele eliminado da sua codificação as interpretações místicas da Lei que, vieram a formar a Baraita (material externo ou excluído) e a Tossefta (suplemento ou adição). Atribui-se a Tossefta a Hiia bar Abba, amigo e discípulo de Rabi Yehudah. Deve-se distinguir a Tossefta dos Tosaphot, explicações acrescentadas ao Talmud de Babilônia pelos doutores judeus dos séculos XII e XIII de nossa era.
A Mishnah apresenta a substância da Torah Oral e se divide em seis partes, os Sedarim, as quais, por sua vez dividem-se em tratados.
As seis partes da Mishnah são :
A - Zeraim (Sementes): versa sobre questões agrícolas, colheitas, partes atribuídas aos sacerdotes, etc.
B - Moed ( Festas).
C - Nashim (Mulheres).
D - Nezikim (Prejuízos,danos): trata do direito de propriedade, indenizações, processos legais para reparações.
E - Kodashim ( Ofertas de sacrifícios).
F - Tohoroth (purificações): versa sobre as complicadas leis de purificação.
A Mishnah pretendia ter a mesma fundamentação que a Torah de Moisés e, como já mencionamos, uma força para obrigar ainda maior do que a da Lei revelada. Não se admitia que pudesse haver contradição entre a Torah e a Mishnah, embora esta última não precisasse ter apoio em um texto determinado da Escritura.
As leis da Tradição dos Antigos contidas na Mishnah são chamadas de Halakhoth, termo que significa via, caminho, norma que deve ser seguida porque é um costume deduzido da Escritura por um doutor ou pelo consenso dos Doutores ou Antigos Sábios.
Pode-se distinguir :
a) Os Halakhoth atribuídos a Moisés.
b) Os Hallakhoth propriamente ditos, conjunto das lei tradicionais elaboradas pelos escribas e doutores da Lei
c) as ordenações dos escribas
Enquanto os Halakhoth visam expor ou definir uma lei tradicional, a chamada Haggadah, termo que significa narração, é constituída por comentários expondo e intrepretando a Escritura, tendo em vista a edificação da alma do judeu. Tais comentários não são muito encontrados na Mishnah, aparecendo em geral no final de alguns tratados. A Haggadah analisa o texto da Escritura, fazendo relações com outros passos, interpretando-os de modo alegórico, mais do que buscando o sentido literal e primeiro do texto.
Sendo a Hallakhah uma codificação da lei costumeira e da jurisprudência rabínica, dado também seu caráter tradicional, consideravam os fariseus que ela jamais poderia ser definitivamente concluída, pois sempre se agregariam novas regras. Por outro lado, eles afirmavam ainda que a Hallakhah era imutável, daí sua preocupação em guardá-la, primeiro de memória, e depois codificá-la. É evidente que a codificação feita pelos Rabinos se fundamentava numa doutrina que só pode ter sido a dos fariseus.
Ora, é certo que, quando a Toral Oral começou a se formar nas sinagogas, em tempos anteriores ao nascimento de Cristo, já existia entre os escribas (Sofer) e os doutores da Lei uma doutrina secreta . Prova disto é que na Mishnah se lê :
"Os graus proibidos [Cfr Lev. XVIII, 6-18; graus de parentesco que eram impedimentos para o casamento, e que tornavam a relação sexual incestuosa] não podem ser expostos diante de três pessoas, nem a história da criação diante de duas pessoas, nem a Merkabah [visão do carro de Deus em Ez, I,4] diante de uma só pessoa, a não ser que ela seja um Sábio que compreende com seu próprio entendimento" ( Mishnah , Hagigah, II, 1).
Gershom Scholem, o grande especialista na Kabbalah afirma:
"Sabemos que já no período do segundo Templo, uma doutrina esotérica era ensinada em círculos farisaicos. O primeiro capítulo do Gênesis, a história da Criação (Maassei Bereshit) e o primeiro capítulo de Ezequiel, a visão do trono-carruagem de Deus (Maassei Merkabah)- eram os temas favoritos de uma discussão e intrepretação que aparentemente não convinha tornar pública" (G.G. Scholem, A mística judaica, Perspectiva, São Paulo, 1972, pp. 41-42).
E esse mesmo autor, de autoridade indiscutida, considera que a mística da Merkabah - que vai ser uma das raízes da Kabbalah medieval - já tinha nascido nos tempos de Rabi Akiva (Séc. I e II D.C.) e que essa mística era , sem dúvida gnóstica.
"The logical conclusion seems to be, given the historical circumstances, that, initially, Jewish esoteric tradition absorbed Hellenistic elements similar to those we actually find in Hermetic writings. Such elements entered Jewish tradition before Christianity developped, or at any rate before Christian Gnosticism as a distinctive force came into being. Later, when Judaism and Christianity finally parted ways, these elements, whose development, once borrowed, had been within and in the manner of a distinctly Jewish esoterism, were taken over into Christianity and into early Gnostic circles, rather than the reverse" (G.Scholem, Jewish Gnosticism, Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition, The Jewish Theological Seminary of America, New York, 5725-1965, p. 34).
Foram exatamente as doutrinas sobre o Bereschit e sobre a Merkabah que deram origem às teses gnósticas fundamentais da Kabbalah medieval. É claro que, nos tempos rabínicos, essas doutrinas ainda não tinham adquirido o desenvolvimento que depois apresentaram. Porém, desde a sua introdução nas escolas da velha Sinagoga, elas continham já, certamente, os princípios fundamentais que desabrochariam posteriormente, provavelmente já nos tempos de Cristo, em gnose elaborada. É o que conclui também A. E. Waite ao escrever: "O ponto de partida (para a formação da Kabbalah) tem sido colocado por um criticismo moderado, antes do nascimento de Cristo" ( A. E. Waite, The Holy Kabbalah , University Books, Secaucus, New Jersey, 1975, p. 26).
Por tudo isso, fica bem claro o porquê o profeta Jeremias asseverou contra os escribas:
"Como dizeis : ‘Somos sábios e a Lei do Senhor está conosco’? Verdadeiramente, o ponteiro mentiroso dos escribas gravou a mentira" (Jer. VIII,8).
Codificada a Mishnah, ela se tornou, por volta dos III e IV séculos D.C., o livro fundamental, em matéria legal, para todos os judeus. Eles a ensinavam e discutiam em suas escolas. É claro que novos materiais casuísticos foram aos poucos sendo acrescentados à Mishnah, dando afinal origem ao Talmud.
Essencialmente o Talmud (ensinar por meio de uma discussão) é um comentário da Mishnah, e, por isto, ele segue a mesma seqüência de seções e tratados que a Mishnah. No Talmud, o texto da Mishnah é seguido e comentado passagem por passagem. O Talmud inclui as opiniões dos Amoraim - termo que significa porta-vozes- mestres do período pós-mishnaico (séculos III-IV D.C.) Pode-se encontrar ainda, no Talmud, ensinamentos citados em hebreu e aramaico, que provem do período mishnaico, mas que não foram conservados na Mishnah ; os baraytoth .
As discussões dos mestres amoraitas registradas no Talmud formam a Gemara, isto é, coisas a ensinar, ou complemento. Além do comentário das Hallakoth ou leis tradicionais registradas na Mishnah, o Talmud contém ainda interpretações de textos da Escritura, em forma haggádica.
Há dois Talmuds: o de Jerusalém e o de Babilônia. O Talmud Ierusalmi ou Talmud da terra de Israel é o menor dos dois, e nele faltam os comentários de algumas partes da Mishnah. Ele foi concluído antes do ano 400 D.C.
A Mishnah teria sido levada para Babilônia por Abba Areka, conhecido como Rab, um discípulo de Rabi Iehudah, o Príncipe, o codificador da Mishnah. O Talmud Babli -Tamud babilônico- é mais completo, mais considerado e muito mais extenso que o Talmud de Jerusalém. Ele foi escrito no dialeto aramaico de Babilônia, e concluído no século VI. Ele contém uma porcentagem bem maior de textos haggádicos do que o Talmud de Jerusalém.
No Talmud, ainda mais do que na Mishnah, é possível encontrar traços de esoterismo gnóstico e uma doutrina antinomista. É o que assevera Gerschom Scholem em muitos textos de suas obras.
"The Talmud speaks of sitrei torah and razei torah ("secrets of the Torah"), and parts of the secret tradition are called ma'aseh bereshit (literally,"the work of the creation") and ma'aseh merkabah (the work of the charriot")." (G.G.Scholem, Kabbalah, Ketter, Jerusalém, 1974. p. 6).
"The future abolition of the commandements mentioned in the Talmud (Nid. 61 b) was taken by the kabbalists to refer to the complete spiritualization of the commandements that would take place under the dominion of the Tree of Life". (G.G.Scholem, Kabbalah , Ketter, Jerusalém,1974,pp.166-1670).
"Both Mishnah and Talmud (Hag.2:1 and the correspondent Gemara in both Babylonian and Jerusalem Talmud) show that, in the first century of the common era, esoteric traditions existed within these areas, and severe limitations were placed on public discussion of such subjects: "The history of creation should not be expounded before two persons, nor the chapter on the Charriot before one person, unleess he is a sage and already has an indenpendent understanding of the matter".[Talmud,Haggigah2,1]. Evidence concerning the involvement of Johanan b. Zakkai and his disciples in this sort of exposition proves that this esoterism could grow in the very center of a developing rabbinic Judaism, and that consequently this Judaism had a particular esoteric aspect from its very beginning. On the other hand, it is possible that the rise of Gnostic speculations, which were not accepted by the rabbis, made many of them tread very warily and adopt a polemical attitude. Such an attitude is expressed in the continuation of the Mishnah quoted above: "Whoever ponders on four things, it were better for him if he had not come into the world: what is above, what is below, what was before time, and what will be hereafter". Here we have a prohibition against the very speculations which are characteristic of Gnosticism as it is defined in the "Excerpts from the writtings of [the Gnostic] Theodotus" (Extraits de Théodote, ed.F.Sagnard(1948),para.78). In actual fact, this prohibition was largely ignored, as far as can be judged from many statements of tannaim and amoraim dealing with these matters which scattered throughout the Talmud and the Midraschim." (G.Scholem, Kabbalah, ed. cit. p.12).
Um tema essencialmente gnóstico é o da redenção de Deus. Conforme a gnose, a divindade teria decaído e ficado aprisionada no exílio do mundo material do qual precisaria ser salva. Ora, esse tema aparece no Talmud, segundo afirma Scholem: "The Zohar too takes the position that the crux of the redemption works itself out in the uninterrupted conjunction of Tiferet and Malkult, and the redemption of Israel is one with the redemption of God Himself from His mystic exile. The source of this belief is talmudic and can be found in both the Palestinian Talmud, Sukkah 4,3, and in the Midrash lev.R.9,3: "The salvation of the Holy One, blessed be He, is the salvation of Israel" (G.G.Scholem, Kabbalah , ed. cit. p. 166).
"In Pharisaic and tannaitic circles, Merkabah mysticism became an esoteric tradition of which differents fragments were scattered in the Talmud and the Midrash, interpreting Haggigah 2,1" (G.G.Scholem,Kabbalahed.cit.p.373).
Ora, Scholem demonstrou, em várias de suas obras, que o misticismo da Merkabah era gnóstico (cfr.G. Scholem ,Jewish Gnosticism, Merkabah Mysticism, and Talmudic Tradition, The Jewish Theological Seminary of America, New York, 5725 - 1965).
Não há pois qualquer dúvida que, desde os tempos do retorno do exílio de Babilônia, especialmente após a invasão grega da Palestina, difundiram-se entre os escribas, doutores da Lei e Rabinos idéias gnósticas que constituíram a origem do misticismo gerador, mais tarde, da Kabbalah medieval.
É importante salientar também ser tese, embora discutida por alguns, mas aceita entre os estudiosos da questão, que essas idéias gnósticas e esotéricas, já existiam, entre os rabinos fariseus, nos tempos de Cristo e que elas influenciaram as seitas gnósticas cristãs dos dois primeiros séculos de nossa era.
"To what extent the growth of Gnostic tendencies whithin Judaism itself preceded their development in early Christianity is still the subject of lively scholarly controversy. Peterson, Haenchen and Quispel, in particular, along with several experts on the Daed Sea Scrolls, have tried to prove that Jewish forms of Gnosis, which retained a belief in the unity of God and rejected any dualistic notions, came into being before the formation of Christianity and were centered particularly around the idea of primordial man (following speculation on Gen. I,26; "Adam Kadmon").(G.Scholem, Kabbalah, ed. cit. p. 21. O sublinhado é nosso).
"In an age of spiritual awakening and deep religious turmoil there arose in Judaism a number of sects with heterodox ideas resulting from a mixture of innner compultion and outside influence. Wether Gnostic sects existed on the periphrry of Judaism before the advent of Chrstianity is a matter of controversy: but there is no doubt that minim ("heretics") did exist in the tannaitic period and specially in the third and fourth centuries. In this period a Jewish Gnostic sect with definite antinomian tendencies was active in Sepphoris. [Conforme A. Merk, Séforis foi uma das cidades em que nasceu o Talmud palestinense.(cfr. A.Merk S.J., op.cit.,vol I, p.92]. There were also of course intermediate groups from which members of these sects gained an extended knowledge of theological material on ma'aseh bereshit and ma'aseh merkabah, and among these should be included the Ophites (snake worshipers) who were basicaly Jewish rather than Christian. From this source a considerable number of esoteric traditions were transmited to Gnostics outside Judaism, whose books, many of which have been discovered in our time, are full of such material - found not only in Greek and Coptic texts of the second and third centuries but also in the early stracta of Mandaic literature, which is written in colloquial Aramaic. Notwithstanding all the deep differences in theological approach, the growth of Merkabah mysticism among the rabbis constitutes an inner Jewih concomitant to Gnosis, and it may be termed "Jewish and rabbinic Gnosticism".(G.G.Scholem, Kabbalah, ed.cit.p.12. O sublinhado é nosso).
Quanto à influência dos judeus no desenvolvimento das seitas gnósticas cristãs, diz ainda Scholem: "In the second century Jewish converts to Christianity apparently conveyed different aspects of Merkabah mysticism to Christian Gnostics. In the Gnostic literature there were many corruptions of such elements, yet the Jewish character of this material is still evident, specially among the Ophites, in the school of Valentinus, and in several of the Gnostic and Coptic texts discovered within the last 50 years." (G.G.Scholem, Kabbalah, ed. cit., p. 376).
Já entre os primeiros hereges cristãos, todos de caráter gnóstico, tais como Simão Mago, os ebionitas e Mandeanos, os especialistas apontam elementos de origem judaica. "These scholars [Peterson, Haenchen e Quispel] have interpreted several of the earliest documents of Gnostic leterature as Gnostic Midrashim on cosmogony and Haenchen in particular has argued that their basic Jewish character is clearly recognizable in an analysis of the teaching of Simon Magus, apparently the leader of Samaritan Gnosis, a first-century heterodox Judaism. Even before this, M. Friedlander had surmised that antinomian Gnostic tendencies( which belittled the value of the Commandments) had also developed within Judaism before the rise of Christianity. Although a fair number of these ideas are based on questinable hypotheses, nevertheless there is a considerable measure of truth in them " (G.G.Scholem, Kabbalah, ed. cit. , p. 21-22. O sublinhado é nosso).
Vimos então que, no período do segundo Templo, surgiu e desenvolveu-se entre os escribas, doutores da Lei e fariseus, um sistema de pensamento esotérico e gnóstico. Mais tarde, essas idéias da gnose judaica influenciaram as seitas gnósticas cristãs. Cabe então perguntar se, entre os judeus contemporâneos de Cristo, não havia gnósticos, e se Cristo não os combateu. Se os combateu, que traços dessa luta podemos encontrar nos textos dos Evangelhos?
Um dos pontos álgidos da luta entre gnose e Cristianismo é a divergência absoluta quanto ao modo de considerar a matéria. Enquanto o Cristianismo considera toda a criação como boa, visto que Deus só pode fazer o bem, a gnose afirma que a matéria é má, e que a criação foi obra de um deus malévolo.
A Igreja Católica se funda não só em argumentos metafísicos, que fazem o ser se identificar com o bem, como também em textos escriturísticos. Com efeito, no Gênesis se lê que, ao criar cada coisa Deus dizia que ela era boa, e, ao final da obra criadora, "Deus viu todas as coisas que tinha feito, e eram muito boas ". (Gen. I,31).
Essa recusa de aceitar a matéria como criatura boa de Deus bom obriga os gnósticos a recusarem a Encarnação do Verbo de Deus. No Novo Testamento, esta é a verdade que mais se opõe a gnose. Com efeito, na Pessoa de Cristo, há duas naturezas: a divina e a humana. "O Verbo de Deus se fez carne" (Jo. I, 14). Em Cristo se dá a harmonia das coisas divinas e humanas, se encontram o céu e a terra, o Espírito de Deus e matéria. Na Encarnação do Verbo no seio virginal de Maria Santíssima, são condenados, quer o Panteísmo, quer a gnose. O Panteísmo materialista é condenado pois o dogma da Encarnação afirma a existência do Verbo. A gnose, por sua vez, é condenada pela assunção da natureza humana por Deus. Por isto se diz que Maria esmagou toda heresia. Será contra o dogma da Encarnação que se lançarão todos os ódios de todas as heresias, especialmente das seitas gnósticas dos primeiros séculos do Cristianismo.
Por outro lado, foi a coexistência da natureza divina e humana em Cristo que levou os judeus a repelirem o Messias. Quando Caifás perguntou, com a autoridade de Sumo Pontífice, e em nome de Deus, se Cristo era o Filho de Deus vivo, e Nosso Senhor confirmou que sim, Caifás rasgou hipocritamente suas vestes, acusando Cristo de ter blasfemado. A Encarnação do Verbo foi o ponto que o judaísmo recusou aceitar e que, por isto, procurou sempre combater insuflando a formação de seitas que negavam esta verdade fundamental.
Por que Israel resistiu tanto contra esta verdade? Por que recusava Cristo, Deus-Homem, quando era patente que só Deus podia fazer o que ele fazia?
Nicodemos, "um dos principais entre os judeus" e "homem da seita dos fariseus" (Jo.III,1), quando foi ver Jesus à noite, escondido, por medo dos seus companheiros de seita e do Sinédrio, disse a Jesus: "Mestre, sabemos que foste enviado por Deus para ensinar; porque ninguém pode fazer estes milagres que tu fazes, se Deus não estiver com ele" (Jo. III2). Note-se que Nicodemos fala na primeira pessoa do plural: "sabemos". Quem é o nós desse "sabemos"? Só pode ser o "nós" que designa o Sinédrio judaico. Os príncipes de Israel sabiam que Deus estava com Cristo. Foi, aliás, o que reconheceram os Pontífices e fariseus do Sinédrio, quando Cristo ressuscitou Lázaro: "Que havemos de fazer? Este homem faz muitos milagres" (Jo. XI,47).
Por que Israel resistiu com tanta pertinácia à evidência da Encarnação ? Por que não aceitaram a prova escriturística dada por Cristo a eles, quando lhes mostrou que o próprio Daví, num salmo, o havia chamado de Senhor, isto é, de Deus: "Disse o Senhor a meu Senhor" (Mt. XXII.44) ?
Ora, é bem conhecido que a Kabbalah - a gnose judaica medieval - interpretou o primeiro versículo do Gênesis de modo surpreendente. Esse primeiro versículo diz: "No princípio criou Deus os céus e a terra", em hebraico: "Bereschit bara Elohim etc.". Para a Kabbalah, o sujeito dessa primeira frase da Escritura não é Elohim e sim Bereschit, o Princípio. Para a Kabbalah medieval, a palavra Bereschit designaria a divindade superior a Elohim, o Nada absoluto, o Deus Absconditus, do qual emanara Elohim, este sim, o demiurgo rigoroso e mau, criador dos céus e da terra perecíveis. Assim, a Kabbalah medieval - como autêntica gnose - distinguia uma divindade superior e verdadeira divindade oculta, de Elohim, o criador do mundo material.
As seguintes citações comprovam o que dissemos :
"...o Zohar, e de fato a maioria dos cabalistas mais antigos, questionavam o significado do primeiro verso da Torá: Bereschit bara Elohim, "No princípio criou Deus"; o que na realidade isto significa? A resposta é bem surpreendente. É-nos dito que significa Bereschit - por meio do "princípio", isto é, dessa existência primordial que foi definida como a sabedoria de Deus,- bara , criou, isto é, o Nada oculto que constitui o sujeito gramatical da palavra bara , emanou ou desdobrou-se, - Elohim , isto é, sua emanação é Elohim. É o objeto e não o sujeito da sentença. E o que é Elohim ? (...) Elohim é o nome dado a Deus depois de ocorrida a disjunção do sujeito e do objeto, mas no qual este abismo é continuamente transposto ou fechado. O Nada místico que se encontra antes da divisão da idéia primária no Conhecedor e no Conhecido, não é considerado pelo cabalista como um verdadeiro sujeito" (G. Scholem, A mística judaica , p. 223).
No Zohar pode-se ler: "...se o mundo tivesse sido obra da essência divina chamada Jehováh, tudo nesse mundo teria sido indestrutível; mas como o mundo é obra da essência divina chamada Elohim, tudo está sujeito à destruição; e é porque a Escritura diz : "Vinde e vede as obras de Elohim que estão sujeitas à destruição (schamoth) sobre a terra" (...) "Rabbi Issac disse: (...)se o mundo tivesse sido criado pelo nome de misericórdia, isto é, pelo nome de Jehovah, todo o mundo teria permanecido indestrutível; mas como o mundo foi criado pelo nome do rigor, isto é, pelo nome de Elohim , tudo é perecível nesse mundo" (Zohar , I,58, b ).
É certo que esta doutrina estranha e cheia de contradições só foi plenamente elaborada na Idade Média. Mas, se já no período do segundo Templo, quando uma "uma doutrina esotérica era ensinada em "círculos farisaicos", conforme diz Scholem, e quando já o Maassei Bereshit e a Maassei Merkabah" eram temas favoritos de uma discussão e interpretação que aparentemente não convinha tornar pública" (G.G.Scholem, A mística judaica p.41-42), pode-se perguntar, se, nos tempos da elaboração da Mishnah - portanto, antes de Cristo- já existia essa doutrina esotérica do Bereschit, interpretado como o Nada primordial, Deus absconditus, do qual teria se originado Elohim, o criador do mundo perecível .
Alguns indícios de que a resposta a essa pergunta deve ser afirmativa se acham nos Evangelhos especialmente no de São João.
Um indício muito importante nós o temos no próprio prólogo do Evangelho de São João que começa exatamente afirmando: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio em Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e nada do que era feito foi feito sem ele" (Jo. I,1-3).
Caso se aceite a afirmação de Scholem de que já no período do Segundo Templo corria entre os fariseus uma doutrina esotérica sobre o Bereschit, então o paralelismo feito pelo primeiro versículo do Evangelho de São João ao primeiro versículo do Gênesis pode ser visto como uma resposta às doutrinas esotéricas dos fariseus a respeito do Bereschit. Daí se deveria concluir que o Evangelho de São João quis combater expressamente as doutrinas gnósticas já existentes entre os judeus, no tempo de Cristo.
Nesse sentido, ganha grande luz a passagem em que Cristo, discutindo com os fariseus que lhe perguntam quem Ele é:
"Se não crerdes quem eu sou, morrereis no vosso pecado. Disseram-lhe, pois, eles: "Quem és tu ? "Jesus disse-lhes: o princípio, eu que vos falo" (Jo. VIII,24-25).
Nesse texto, Cristo se afirma o Princípio, o Bereschit. E nota São João que então "muitos creram nele" (Jo.VIII,30).
Portanto, dessas duas passagens do Evangelho de São João se pode - pelo menos - aventar a hipótese de que a doutrina gnóstica a respeito do Bereschit já existia entre os fariseus combatidos por Cristo.
Não se julgue – erroneamente - que a tese de que nos próprios Evangelhos podem ser encontrados traços de uma polêmica anti-gnóstica seja inaudita. Em vários autores antigos e modernos ela pode ser encontrada. Ela já foi afirmada pelos primeiros Padres da Igreja :
"Anunciando esta fé [na divindade de Cristo], João, o discípulo do Senhor, pelo anúncio do evangelho, quis arrancar o erro que fora semeado entre os homens por Cerinto, e muito antes por aqueles que são chamados de Nicolaítas, e que são um ramo deles, erro que falsamente chamam de ciência, para confundí -los e persuadí-los que o Deus único que tudo fez por meio de seu Verbo, e não do modo como eles dizem um ser o fabricador e outro ser o Pai do Senhor(...)Querendo, portanto, o discípulo do Senhor circunscrever todas estas coisas e constituir a regra da verdade na Igreja, porque há um só Deus onipotente, que por meio de seu Verbo fez todas as coisas, as visíveis e as invisíveis, significando também, porque pelo Verbo, pelo qual Deus fez a criação, neste também propiciou a salvação para os homens aqueles que estão na criação... ( S.Irineu, Contra Haereses ,III, 11, 1).
O mesmo Santo Irineu, que morreu em 202, e que foi discípulo de São Policarpo, o qual o foi de São João, escreveu em sua obra Contra Haereses a respeito dos Ebionitas:
"Aqueles que se denominam Ebionitas consentem, na verdade, que o mundo foi feito por Deus (...) utilizam somente o que está no evangelho de São Mateus e recusam o Apóstolo Paulo dizendo que ele foi apóstata da Lei. Esforçam-se por expor mais cuidadosamente as coisas proféticas, e perseveram em seus costumes que são de acordo com a Lei e levam uma vida de caráter judaico, de modo que veneram Jerusalém como se fosse casa de Deus" (S. Irineu, Contra Haereses, I, XXVI, 2; Migne,P.G.Vol., VII, col. 686-687).
Vê-se por esses testemunhos de Santo Irineu - repetidos por S. Hipólito (cfr.Philosophumena,VI,34) - que os hereges Ebionitas eram tidos, pelos primeiros cristãos, como judaizantes. Ora estes Ebionitas, assim como o gnóstico Cerinto, da mesma forma que os judeus, negavam a divindade de Cristo e afirmavam que o Criador de todas as coisas era o deus do mal.
"E também, na Ásia, Cerinto ensinou que o mundo não foi feito pelo primeiro Deus, mas por por uma certa Virtude (ou força) separada e distante daquela Principalidade [o Bereschit distinto do Elohim dos judeus?] que está sobre todas as coisas e ignorando aquele Deus que está sobre todas as coisas. Colocavam pois Jesus abaixo [dessa Divindade Primeira] e afirmavam que Ele não nascera de uma Virgem [diziam que, na opinião deles, isto era impossível], mas que fora filho de José e de Maria de modo semelhante a todos os restantes homens, e que fora mais poderoso que os demais homens pela justiça, prudência e sabedoria. E que, após o batismo, desceu sobre ele, enviada por aquela Divindade que esta sobre todas as coisas, o Cristo em figura de pomba, e então anunciou o Pai incognoscido, e praticou as virtudes perfeitamente. E que, afinal, partiu de novo o Cristo de Jesus, e Jesus padeceu e ressuscitou. O Cristo, porém, continuou impassível e existente espiritualmente".(S.Irineu, Contra Haereses,I,XXVI,1,Migne,P.G. vol VII, col. 686).
Outra prova de que São João escreveu o seu Evangelho também para atacar os hereges se acha no próprio texto do Evangelho: "Estas coisas foram escritas para que creiais, porque Jesus é o Cristo Filho de Deus: e, para que crendo, tenhais a vida eterna em nome dele" (Jo. XX,31).
Também na sua primeira Epístola São João alude aos hereges que recusam a Encarnação do Verbo: "Nisto se conhece o espírito de Deus: todo o espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo o espírito que divide Jesus não é de Deus; mas ele é um Anticristo, do qual vós ouvistes que vem, e agora está já no mundo" ( Jo. I, IV, 2-3).
Vê-se claramente que, "por essas afirmações, esclarece o Apóstolo [João] querer lutar contra os hereges que saíram da Igreja e ensinavam [que havia] uma separação entre Jesus e Cristo, isto é, o Filho de Deus. Portanto, pelo Evangelho de S. João e por sua Epístola se conhece que esse Evangelho foi escrito para prevenir os fiéis contra os falsos doutores". (Augustin Merk, S.J., Introductionis in S. Scripturae Libros , Lethielleux, Paris, 1940, vol. II , p.749).
Não há dúvida pois, de que o Evangelho de S. João foi escrito para combater os gnósticos e de que esses hereges eram influenciados pelos judeus e repetiam suas heresias.
O que perguntamos é se nas próprias palavras de Cristo é possível encontrar indícios de que Nosso Senhor atacava o esoterismo e a gnose já existente entre os fariseus daquele tempo.
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Para citar este texto:
"Escribas, Doutores da Lei e Fariseus"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/cadernos/religiao/escribas1/
Online, 21/11/2024 às 08:46:36h