Religião-Filosofia-História
A Vida da Liturgia... em agonia
Orlando Fedeli
Num dia desses, enquanto percorria as estantes de uma velha biblioteca à procura de um livro qualquer, caiu-me nas mãos um volume amarelado pelo tempo, de capa meio rasgada, que logo se me esfrangalhou entre as mãos, pelo manuseio.
Era uma obra do "século passado" -- tão longe vão os anos de Pio XII! -- anos que parecem, eles também, amarelecidos na memória, e esfrangalhados pelos erros que dominaram depois o mundo.
E o esfrangalhamento posterior foi tal, que muitos, bem erroneamente e bem ingenuamente, julgam que os tempos de Pio XII foram a antítese de nossos tempos.
Ora, nenhum terremoto se produz repentinamente. Ele exige séculos de preparação telúrica. O terremoto e as transformações provenientes do Vaticano II não puderam se realizar sem uma longa preparação anterior, que inclui necessariamente os tempos de Pio XII, quando havia ainda Monsenhores de Bom Senso, Monsenhores que rezavam.
Pois o livro esfrangalhado que me caiu repentinamente em mãos era dos tempos de Pio XII. Não era de um daqueles velhos e severos monsenhores piedosamente tradicionais. Parecia até ser de um autor atual. Atual, insinuante e "aggiornatto". De um Monsenhor Up to Date. Monsenhor Out Look.
O título do livro do Monsenhor "Out Look" é o que está entre aspas, encabeçando este artigo-resenha, e seu autor é um célebre especialista em liturgia, o Padre Louis Bouyer, da Congregação do Oratório. (Louis Bouyer, La Vie de la Liturgie, Cerf, Paris, 1956. (Faremos referências a esse livro, e a outros que citarmmos, dando as páginas da citação entre parênteses).
Completaremos nosso trabalho principalmente com citações de um outro autor de tendência oposta à do Padre Bouyer, um autor "tradicionalista", lefevrista, para demonstrar como certos sacerdotes, que não são "up to date", conservam uma mentalidade ingenuamente romântica, incapaz de compreender a História, e que, por isso mesmo, armam contra o modernismo uma muralha fofa, argamassada com açúcar e "inocência". Um tradicionalista, como tantos outros, que, de tanto se opor aos Papas conciliares, exaltam Pio XII a alturas querubínicas.
Referimo-nos ao incrivelmente ingênuo livro do padre lefevrista Didier Bonneterre intitulado El Movimiento Liturgico (Editorial Iction, Buenos Aires, 1982).
A obra de Bouyer era garantida por dois Imprimaturs e um Nihil Obstat. O que não obstava absolutamente que ela estivesse repleta de erros e de heresias escandalosas e mal disfarçadas.
O Padre Bouyer era de origem protestante. Convertido -- [???] -- ele se tornou um discípulo fervoroso do famoso modernista Dom Lambert Beauduin, a quem dedicou o seu livro.
Dessa obra, faremos resenha apenas de alguns capítulos, por serem os mais importantes, e para não alongar por demais o presente trabalho.
Bouyer, no Prefácio, diz que seu livro é o resumo de uma série de palestras, proferidas por ele, na Universidade de Notre Dame, em Indiana (USA).
Não seguiremos, os capítulos do livro tais como eles se apresentam, preferindo dar uma seqüência mais didática à nossa exposição. Com efeito, o Padre Bouyer começa tratando da liturgia no tempo do Barroco e do Romantismo, para só depois, no capítulo III tratar do seu conceito de liturgia e da concepção que ele tem de Igreja e do desenvolvimento histórico do culto. Para sermos mais facilmente compreendidos, inverteremos a ordem desses capítulos.
Lembramos -- antes de tudo -- que o Padre Louis Bouyer publicou esse seu livro em 1956, portanto, antes do Concílio Vaticano II (1962-1965), e muito antes de ser promulgada a Nova Missa de Paulo VI, em 1969.
No capitulo III, capítulo curiosamente intitulado "Do Qahal Judeu à Igreja Cristã", Padre Bouyer afirma inicialmente que, nos últimos 20 anos ( 1936 a 1956, reinados de Pio XI e de Pio XII), teria havido um progresso na Eclesiologia, permitindo uma progressiva inteligência do que é a Igreja, tal qual seria apresentada na revelação, a Igreja como "Povo de Deus" (p. 39).
Ora, essa será uma das novidades do Concílio Vaticano II, que preferiu considerar a Igreja mais como "Povo de Deus" do que como Corpo Místico de Cristo, como a definira Pio XII, na encíclica Mystici Corporis Christi, em 1943, baseando-se no texto do próprio São Paulo.
Portanto, Padre Bouyer fala da Igreja como Povo de Deus mesmo depois que Pio XII a definira, mais propriamente e de acordo com São Paulo, como Corpo Místico de Cristo.
Talvez pessoas suscetíveis a qualquer reparo ao Concílio Vaticano II -- Concílio Pastoral -- estranhem que ousemos escrever palavras que coloquem uma ressalva crítica à expressão "Igreja como Povo de Deus", usada por esse Concílio. Ousamos fazer essa alusão crítica com base no que disse dela o próprio Cardeal Ratzinger, autoridade insuspeita, nesse caso.
Sobre o uso e abuso da concepção de Igreja como Povo de Deus, que se tornou coisa comum depois do Vaticano II, disse o Cardeal Ratzinger:
"Existe aqui o perigo de se abandonar o Novo Testamento para se voltar ao Antigo. Com efeito, para a Escritura, "Povo de Deus" é Israel em seu relacionamento de oração e de fidelidade com o Senhor. Mas limitar-se unicamente a essa expressão para definir a Igreja significa não indicar plenamente a concepção que dela tem o Novo Testamento. Para este, na verdade, "povo de Deus" refere-se sempre ao elemento vetero testamentário da Igreja, à sua continuidade de Israel. Mas a Igreja recebe sua conotação neo testamentária mais evidente no conceito de "Corpo de Cristo". A Igreja existe e se faz parte dela não através de pertenças sociológicas, e sim através da inserção no corpo mesmo do Senhor, por meio do batismo e da Eucaristia"(Cardeal Joseph Ratzinger, A Fé em crise ? E.P.U. São Paulo, 1985, p.30).
É o próprio Cardeal Ratzinger -- que foi perito conciliar e hoje é o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé -- que faz crítica e restrição à expressão "Povo de Deus", usada pelo Concílio Vaticano II, para definir o que é a Igreja.
Padre Bouyer diz então que a Palavra de Deus se faz cada vez mais compreensiva -- progressivamente mais compreendida -- no decorrer da História, "Deus se fazendo escutar e compreender cada vez mais perfeitamente pelos homens"(p.39), visando fazer ver que toda a ação divina, na História, tem um objetivo claro: "a formação, fora da humanidade comum e decaída, de um povo que seja o próprio povo de Deus" (p. 39).
Evidentemente, essa concepção da História, com forte odor progressista e utopicamente otimista, faz perceber a mentalidade do autor.
Hoje, infelizmente, já se "progrediu" mais ainda: afirmam alguns que a Igreja é a Humanidade, não sendo necessário sequer ser batizado ou aderir a Cristo, nem mesmo por desejo implícito, para pertencer à Igreja. Até os que são ateus e os que recusam explicitamente Cristo e o Cristianismo fariam parte da Igreja, pelo simples fato de serem homens.
Padre Bouyer afirma então que os estudos teológicos unanimemente mostravam que a Igreja era a "perfeição última daquilo que, desde o início, a Bíblia hebraica havia chamado Qahal Yahwé, a "Assembléia de Yahwé" (p. 39).
Ora, o que no Antigo Testamento era o Povo de Deus tinha uma conotação nacional, que não existe na Igreja de Cristo, a qual não se restringe a um Povo. Cristo mandou pregar e a batizar a todos os povos, abolindo a idéia de uma "igreja nacional". Por isso a Igreja de Cristo é Católica, isto é, universal.
Padre Bouyer prossegue lembrando que o verbo grego "Kaleo" significa convocar, chamar o povo para que se reuna, para ouvir a Palavra de Deus. Conclui ele disso que entre o Qahal -- Assembléia do Povo de Deus -- e o ouvir a Palavra de Deus há uma relação essencial. A reunião do Povo de Deus era para ouvir a Palavra de Deus, para ouvir o Kérigma dos Apóstolos (p. 40). Portanto, para a Igreja Católica também, o essencial estaria na reunião da assembléia dos fiéis para ouvir a Palavra.
Evidentemente, essa concepção é protestante e não católica. Na Igreja Católica, os fieis se reúnem para renovar, por meio do sacerdote, o sacrifício do Calvário. A Missa é a renovação incruenta do sacrifício da Cruz, e não apenas uma assembléia do povo para ouvir a Palavra.
Padre Bouyer pretende dar, em seguida, três provas bíblicas do que ele afirma sobre a reunião do Qahal judaico para "ouvir a palavra de Deus":
1. A aliança no Monte Sinai (Ex. XIX) ;
2. A renovação da Aliança do povo judeu com Deus promovida pelo rei Josias ( II Reis XIII);
3. A renovação do pacto do Povo judeu com Deus feita por Esdras, ao retornar do Cativeiro de Babilônia (II Esdras VIII, 17).
Bouyer diz, então, que, em cada uma dessa três ocasiões, seguiu-se um esquema similar do qual eram traços característicos:
1. Uma convocação do Povo para que se reunisse;
2. A Palavra de Deus que era solenemente proclamada;
3. A aceitação da Palavra de Deus pelo povo (Aliança ou Pacto);
4. Um sacrifício então era feito, concluindo a aliança que tornava aquele povo o Povo de Deus. (p. 40-41).
No caso do Sinai, o Padre Bouyer não fala de sacrifício sangrento, que de fato, Moisés realizou, espargindo o povo com o sangue de um animal imolado a Deus. Ele fala apenas de "sacrifício", sem precisar se esse sacrifício foi um sacrifício de imolação ou só de ação de graças, de agradecimento (sacrifício eucarístico).
Na renovação da Aliança do povo judeu com Deus, promovida pelo rei Josias. Padre Bouyer diz que:
1. Houve uma convocação do Povo para ouvir, de novo, a Palavra de Deus;
2. O Povo ouviu essa Palavra;
3. O povo aceitou a Palavra de Deus;
4. Renovou-se a aliança com Deus por meio de um sacrifício pascal.(p. 41)
Já no episódio de Esdras se teria dado uma mudança fundamental --porque, então, não existindo mais o Templo que fora destruído por Nabucodonosor -- não se fez um sacrifício de imolação.
A cerimônia teria constado de:
1. Uma convocação solene do Povo;
2. Uma proclamação solene da Palavra de Deus que foi lida para o Povo;
3. Uma aceitação da Palavra de Deus por parte do povo.
4. Não houve, então, nenhum sacrifício de sangue, mas apenas um sacrifício de louvor e de ação de graças (um sacrifício eucarístico, apenas) (p. 42).
Este teria sido o modelo de cerimônia do Qahal judeu, no tempo da Sinagoga (a cerimônia realizada pelas pequenas comunidades judaicas em suas sinagogas):
1. Uma proclamação da Palavra de Deus
2. O povo ouvia a Palavra
3. A aceitação da Palavra pelo Povo
4. Uma ceia na qual se dividia o pão, e se davam graças a Deus.
Essa cerimônia é que teria sido herdada pela Igreja primitiva (p. 43).
Desse modo, fica insinuado que a própria destruição do Templo, e o exílio de Babilônia, impedindo o sacrifício cruento, teria favorecido um progresso litúrgico para uma forma mais elevada de liturgia, sem derramamento de sangue.
O ouvir a palavra de Deus e aceitá-la, e dar-lhe graças num banquete ou ceia, unindo o Povo ou comunidade, seria então o essencial da liturgia da Igreja primitiva.
Em vez disso, Padre Bouyer dá a sua definição de Liturgia:
"A Liturgia, na unidade de sua plenitude, deve portanto ser vista como a reunião do Povo de Deus reunido em assembléia, pela convocação da palavra de Deus, pelo ministério apostólico, para que este povo, tomando consciência de sua reunião, possa ouvir a própria Palavra de Deus em Cristo, possa aderir a esta Palavra por meio da oração e do louvor, no seio da qual a Palavra é proclamada, e assim selar pelo sacrifício eucarístico a Aliança realizada por esta mesma Palavra" (p. 44. O itálico e o negrito são nossos ).
Repare-se que nessa definição de Liturgia, Padre Bouyer não faz menção alguma de que, na Missa, o essencial é a renovação do sacrifício de Cristo no Calvário, de renovação do sacrifício de Cristo na Cruz, e que este sacrifício é propiciatório. Omitir isso configura violação do que definiu o Concílio de Trento.
Padre Bouyer vai acentuar que a Liturgia "é, antes de tudo, a descida da Palavra de Deus até nós, ela é fundamentalmente uma Liturgia da Palavra"(p.46).
Ora, este conceito de Liturgia é protestante e não católico. Para a Igreja Católica a ação litúrgica é fundamentalmente um sacrifício propiciatório. A Missa é a renovação do sacrifício do Calvário, e não a Liturgia da Palavra. Padre Bouyer, como os protestantes, exalta a leitura da Bíblia, e não a Consagração.
Ele repetirá esse conceito em várias passagens de seu livro: "A liturgia nos faz ouvir a Palavra de Deus em Cristo, e ela nos faz experimentar em nossas próprias vidas o poder dessa Palavra de Deus manifestada em Cristo"(p. 140).
Indo adiante, Padre Bouyer afirma que a Liturgia da palavra não se dá apenas na primeira parte da celebração, mas que "a missa é igualmente uma liturgia da Palavra na sua segunda parte" (p.46), que, segundo ele, seria uma parte de sacrifício sacramental, o qual é essencialmente constituído por palavras sacramentais "verba sacramentalia" (p. 46).
Será essa mesma exaltação da Liturgia da Palavra em detrimento da noção de sacrifício propiciatório -- ou seja, a aproximação da Missa católica da "liturgia" protestante -- que será levada a cabo por Monsenhor Bugnini, ao fazer a chamada Nova Missa de Paulo VI, em 1969...
A recusa em dar importância à noção católica de Missa como sacrifício propiciatório -- que é essencial -- será ainda mais acentuada por Padre Bouyer, em capítulos posteriores de seu livro.
Ainda nesse capítulo III, Padre Bouyer trata de alguns pontos que convém salientar para que fique bem clara sua doutrina modernista.
Em primeiro lugar, ele afirma que "a própria Revelação não deve ser considerada como uma abstração, como se ela se limitasse a comunicar do espírito de Deus ao do homem uma coleção de artigos do dogma" (p.47). Que "a Revelação não é apenas questão de idéias e noções, mas mais precisamente um apelo, uma vocação"(p. 47)
Evidentemente, há nessa afirmações de Padre Bouyer uma repetição do anti-dogmatismo modernista, hostil à idéia de verdade, assim como era contrário à noção católica de fé, virtude intelectual que exige a submissão do espírito humano às verdades reveladas por Deus.
Um outro ponto, é a noção de "Tradição Viva", noção proveniente, ela também, do pensamento modernista. Blondel explicitouessa noção,inspirando-se no modenista Efduardo Le Roy.
Para os hereges modernistas, condenados por São Pio X na encíclica Pascendi, uma tradição que se limitasse a transmitir uma série de verdades que deveriam ser cridas, seria uma tradição esclerosada e morta. Dizia Blondel que tudo o que é morto se torna imóvel. Uma tradição verdadeira deveria ser viva, e, portanto, de algum modo móvel. De algum modo evolutiva.
Padre Bouyer vai repetir essa noção modernista de uma "tradição viva", móvel, isto é, evolutiva, que se adapta às formas de pensamento de cada época.(Cfr. p. 48).
Outra idéia que o autor que analisamos vai salientar é a do sacerdócio dos fiéis, em detrimento do sacerdócio propriamente dito do padre.
Paradoxal e contraditoriamente, ao mesmo tempo que ele deixa à sombra, e omite a noção de sacrifício propiciatório na missa, -- portanto, omitindo a função essencial do celebrante, na missa -- Padre Bouyer vai exaltar a participação sacrifical dos simples fiéis ao dizer: "na assembléia da Igreja, o Qahal, cuja atividade própria é a mesma liturgia, fica claro que, se se compreende bem o que ela é, que cada um tem alguma coisa a fazer, tem seu papel próprio a desempenhar numa ação que é essencialmente comunitária, uma ação que não admite espectadores, mas apenas participantes ativos, engajados numa obra de conjunto." (p.48).
Está aí outra noção triunfante, hoje, e que era preconizada por Padre Bouyer, desde os tempos de Pio XII: o povo é, de fato, co-celebrante da Missa.
Falando, noutro capítulo, do bem da liturgia anglicana, Padre Bouyer diz que "Os ofícios não deveriam ser realizados por especialistas substituindo o povo, mas efetivamente pelo povo". (Padre Bouyer op. cit. p. 66. O negrito é nosso). Embora estivesse ele falando dos ofícios anglicanos, o elogio que ele faz do princípio de que o povo é o celebrante tem repercussão também na sua visão da Liturgia Católica, tanto mais que ele estava apresentando a liturgia anglicana como modelo para a católica.
Na mesma ocasião, o autor em foco afirma a necessidade e conveniência da adoção da língua vulgar na liturgia (cfr. op. cit. p. 66) pois que, se é o povo quem celebra, é necessário que ele entenda as palavras que pronuncia. Portanto, a língua da Missa deveria ser a vulgar e não o latim.
Essa igualdade sacrifical entre povo e sacerdote é contrária à doutrina Católica e diminui --se não nega -- o valor do Sacramento da Ordem. Essa noção igualitária do sacerdócio contraria a doutrina de que a Igreja é uma sociedade hierárquica.
(Estávamos concluindo este trabalho, quando foi divulgado um discurso do Papa João Paulo II aos membros da Sagrada Congregaçao dos Ritos, defendendo exatamente o oposto do que diz Padre Bouyer; o Papa confirma que só o sacredote é o verdadeiro celebrante na Missa, e não o povo. Resumo desse discurso, tal qual foi noticiado, poderá ser encontrado em apêndice a este trabalho).
Padre Bouyer encerra esse devastador capítulo III de seu livro modernista, afirmando que a encíclica Mediator Dei de Pio XII (1947) "colocou o selo de sua aprovação" no Movimento Litúrgico (p. 54):
"Nós podemos dizer bem que esse documento (a Mediator Dei) é em si mesmo um catálogo das verdades permanentes que têm sido propostas pelo movimento litúrgico contemporâneo, e que ela é por isso um produto característico desse próprio movimento" (p. 54-55).
Se esse comentário de Bouyer fosse verdadeiro, então teria havido uma completa continuidade histórica e doutrinária entre a ação do pontificado de Pio XII em matéria litúrgica, e a ação do pontificado de Paulo VI. Essa continuidade histórica inegavelmente pode ser comprovada pelos fatos, se levarmos em conta que quem nomeou, em 1948, Monsenhor Bugnini para presidir a Comissão para Reforma da Liturgia, que triunfará em 1969 com Paulo VI, foi o próprio Pio XII.
Entretanto, doutrinariamente, essa continuidade não pode ser aceita completamente, visto que Pio XII, se elogiou o Movimento Litúrgico, condenou também muitas de suas teses mais ousadas.
Como exemplos do apoio dado pela Mediator Dei às idéias do chamado Movimento Litúrgico, Padre Bouyer cita o elogio de Pio XII, nessa encíclica, ao próprio Movimento Litúrgico. O Papa, além disso, teria dado a sua aprovação às procissões do ofertório, à consagração de pães em lugar de hóstias, à defesa de uma simplificação da Missa, ao uso do vernáculo na Missa e à discriminação de devoções pessoais na missa, como por exemplo a recitação do rosário (p. 75-76).
Ora, examinando a encíclica Mediator Dei, não se encontra exatamente o que diz Padre Bouyer. Se é verdade que Pio XII elogiou o Movimento Litúrgico, não é verdade que Pio XII tenha apoiado as idéias citadas e defendidas por Bouyer. Antes, o contrário.
Comecemos por registrar no que Padre Bouyer disse a verdade: o elogio de Pio XII ao Movimento Litúrgico.
Escreveu Pio XII o seguinte elogio ao Movimento Litúrgico, que era embebido de idéias modernistas:
"Ora, de todos vós é conhecido, Veneráveis Irmãos, o singular afervoramento dos estudos litúrgicos que, nos fins do século passado [XIX] e princípio do atual [XX], foi promovido, já pelo louvável esforço de alguns particulares, já sobretudo, pela aturada e persistente diligência de alguns mosteiros da ínclita Ordem Beneditina; donde, não só em muitas nações da Europa, mas ainda nas terras de Além Atlântico, surgiu, neste capítulo, uma louvável porfia, cujos efeitos salutares são patentes, tanto no campo das disciplinas eclesiásticas, em que os ritos litúrgicos da Igreja Ocidental e Oriental foram mais e mais profundamente estudados e conhecidos, como até na vida espiritual e particular de muitos cristãos" (Pio XII, Mediator Dei, N0 4, ed cit. p. 4-5).
Não há dúvida então que Pio XII elogiou e incentivou o Movimento Litúrgico, que viria a causar tantos desastres na Igreja, a ponto de o Cardeal Ratzinger criticar muito do que se faz hoje em matéria de liturgia, chegando a dizer que há um "anarquismo litúrgico", em nossos dias.
Vejamos, porém, agora, os pontos em que Padre Bouyer não disse a verdade.
Bouyer defende a idéia de que há uma igualdade sacerdotal entre o povo e o celebrante. Pio XII, longe de aprovar essa idéia, a condena, em várias passagens da encíclica citada.
"Contudo, o fato de participarem no Sacrifício não confere aos fiéis o poder sacerdotal. É muito necessário explicar isto bem ao vosso rebanho.
"79. Efetivamente, Veneráveis Irmãos, não falta quem em nossos dias, aproximando-se de erros já condenados (Cfr. Concílio de Trento, sess. XXIII, cap. 4), ensine que no Novo Testamento não há mais que um só sacerdócio respeitante a todos os batizados; e que o projeto dado por Jesus aos Apóstolos na última Ceia, de fazer o que Ele fizera, se refere diretamente à Igreja ou assembléia dos fiéis, e só posteriormente daí nasceu o sacerdócio hierárquico. Sustentam, portanto, que o povo goza de verdadeiro poder sacerdotal e que o sacerdote age como mandatário da comunidade; consequentemente, o Sacrifício Eucarístico é uma autêntica "concelebração" e é preferível que os sacerdotes "concelebrem" juntamente com o povo presente, a celebrarem privadamente, na ausência do povo" (Pio XII, Mediator Dei, n* 78-79, Vozes, Petrópolis, 1959, p. 33-34. O negrito é nosso).
Pio XII disse palavras claríssimas condenando essa idéia de que o padre sacrifica só em nome do povo, como seu representante, ou, como se aceitou dizer, como "Presidente da Assembléia dos fiéis", e não como ministro de Cristo, atuando in "persona Christi".
"Para não dar lugar a erros perigosos neste importantíssimo assunto, é necessário precisar com exatidão em que sentido se entende esta oblação. A imolação incruenta, por meio da qual, depois de pronunciadas as palavras da consagração, Cristo se torna presente sobre o altar no estado de vítima, é levada a cabo somente pelo sacerdote, enquanto representante da pessoa de Cristo e não enquanto representante da pessoa dos fiéis." (Pio XII, Mediator Dei, N0 87 p. 36).
Essas idéias errôneas estão, hoje, muito disseminadas. Afirma-se que o sacerdote é apenas o "Presidente da Assembléia". Se assim fosse, o sacerdote não atuaria in persona Christi, na consagração. Desse modo, quem consagraria não seria Cristo pela voz do sacerdote, e sim o povo, em cujo nome falaria o Presidente da Assembléia. O sacerdote não agiria in persona Christi mas "in persona populi".
O que levantaria imensos problemas sobre a própria Consagração...
De qualquer modo, sem entrar nesses problemas teológicos mais profundos, nos quais não somos especialistas, constatamos que o Padre Bouyer não disse a verdade sobre o que afirmou Pio XII na Mediator Dei, a respeito do sacerdócio dos fiéis.
Também com relação a outros pontos citados por Padre Bouyer como aprovados por Pio XII, na mencionada encíclica, não se chega à conclusão de que ele disse a verdade. Assim, não se acham, nessa encíclica, elogios de Pio XII às chamadas procissões do ofertório, nem preconiza o Papa que se consagrem pães em lugar de hóstias, e, muito menos, que se use o vernáculo na Missa, coisa que Pio XII reprova explicitamente, a exemplo do que já haviam feito muitos outros Papas.
É claro que Padre Bouyer desejava que a Missa fosse rezada na língua do povo porque, segundo ele, se o povo era o celebrante, era evidente que seria melhor; mais, seria necessário adotar a língua do povo na Missa. Acontece que não é o povo que celebra o sacrifício da Missa, e sim o sacerdote. Portanto, não é necessário que o povo entenda a língua sacrifical. Por isso, e por outras razões, Pio XII condena o uso da língua popular na Missa, defendendo o uso do latim, na Liturgia, como necessário e conveniente.
Eis o que ensinou Pio XII sobre esse problema:
"Claro que a Igreja é um organismo vivo, mesmo no que respeita à Sagrada Liturgia e sem prejuízo da integridade do seu ensino, cresce e progride, adaptando-se e conformando-se às circunstâncias e exigências que se verificam com o andar dos tempos; é, no entanto, temerária e absolutamente reprovável a ousadia daqueles que, de propósito, introduzem novos costumes litúrgicos ou fazem reviver ritos já caídos em desuso e que não concordam com as leis e rubricas vigentes. E que isso sucede, Veneráveis Irmãos, com não pequena dor o constatamos, e não só em coisas de pouca monta, mas até em pontos de gravíssima importância. Com efeito, não falta quem use da língua vulgar na confecção do Sacrifício Eucarístico, quem mude para outras datas festas já fixadas por ponderosos motivos, quem, finalmente, suprima dos livros oficiais da oração pública os escritos do velho Testamento, sob pretexto de pouco adaptados e oportunos para os nosso tempos"(Pio XII, Mediator Dei, N0 56, pp. 25-26. O negrito é nosso).
E, prosseguindo, Pio XII dá as razões pelas quais o latim deve ser mantido na Missa:
"O uso da língua latina, conforme está em vigor em grande parte da Igreja, é um claro e nobre indício de unidade, e um eficaz antídoto contra todas as corruptelas da pura doutrina." (Pio XII, Mediator Dei, N0 56, p. 26).
Essa recomendação de usar o latim na Missa e não a língua vulgar foi mantida pelo próprio Concílio Vaticano II. Aliás, nem poderia ser diferente, já que o Concílio de Trento -- concílio dogmático e infalível -- anatematizou quem pretendesse substituir o latim pela língua vernácula, na Missa:
"Cânon 9 : Se alguém disser que o rito da Igreja Romana pelo qual parte do cânon e as palavras da consagração se pronunciam em voz baixa, deve ser condenado; ou que deve celebrar-se a Missa em língua vulgar, ou que não deve misturar-se água com o vinho que há de se oferecer no cálice, por razão de ser contra a instituição de Cristo, seja anátema" (Concílio de Trento, Cânones sobre o Santíssimo Sacrifício da Missa, Cânon 9, Denzinger 956).
Como se vê o Concilio de Trento condenou com excomunhão quem pretende que a missa deve ser rezada na língua do povo, e que as palavras da consagração devam ser ditas em voz alta.
E por que excomungou essas propostas ?
O Concílio de Trento, concílio infalível que continua -- é claro ! -- em pleno vigor, condenou essas duas idéias, porque, por trás delas, está o princípio herético que é o povo quem celebra a Missa, e não o Padre sozinho, o qual seria um mero representante do povo e não de Cristo, o ‘Presidente da Assembléia", como se diz hoje.
Outro ponto louvável da "Mediator Dei" foi a condenação daqueles que, por arqueologismo, -- arqueologismo, porém, que Pio XII elogia -- queriam fazer o altar voltar à forma de mesa:
"É certamente de boa sabedoria e muito para louvar o voltar, de alma e coração, às fontes da Sagrada Liturgia; o seu estudo, remontando às origens, ajuda muito a compreender o significado das festas e a indagar com maior profundeza e segurança o sentido das cerimônias; mas, não é igualmente bom e louvável reduzir tudo e de todos os modos ao antigo. Assim, para exemplificar, está fora do reto caminho aquele que quer restituir ao altar a antiga forma de mesa; aquele que quer eliminar dos paramentos litúrgicos a cor preta; aquele que quer excluir dos templos as imagens e estátuas sagradas; aquele que quer suprimir, na representação de Cristo Crucificado, as dores acerbas que sofreu; aquele que repudia e reprova o canto polifônico, ainda quando conforme às normas emanadas da Santa Sé" (Pio XII, Mediator Dei, N0 58. O negrito é meu).
Esse texto é típico de Pio XII: faz o elogio, em tese, do princípio do arqueologismo litúrgico - que poderia ser válido, enquanto estudo das fontes originais --, e depois condena algumas de suas aplicações práticas, de modo que todos ficavam, ao mesmo tempo, contentes e insatisfeitos. E, principalmente, não se trancava a porta para o Cavalo de Tróia, pois, condenada uma prática a porta permanecia aberta pelo princípio admitido, válido, em tese, enquanto princípio de estudo. O Cavalo entrou. E entrou por essa porta do princípio aceito vagamente, sem precisões maiores e sem nenhuma ressalva.
Hoje, o altar foi trocado por uma mesa, fazem-se desaparecer as imagens sagradas, não se respeitam as normas sobre as cores dos paramentos, e nem mesmo os paramentos; praticamente se suprimiu quer o canto polifônico, quer o canto gregoriano, substituindo-os pelo rock, ou por canções populares de baixo nível, por danças escandalosas, etc.
O Cavalo de Tróia entrou na Cidade de Deus.
Doutrina do Padre Bouyer sobre a Missa
É no capítulo VI de seu livro, que Padre Bouyer expõe sua doutrina sobre a Missa. Relembramos que o livro é de 1956, em pleno reinado de Pio XII, publicado nove anos depois da promulgaçãoda Encíclica Mediator Dei, e treze anos antes do Novus Ordo MIssae de Paulo VI. Ver-se -á bem por essas datas que Bouyer foi um precursor da Nova Missa de Monsenhor Bugnini, aprovada por Paulo VI.
Curioso é que Padre Bouyer -- para justificar a rebelião contra o que determinava Pio XII -- defendia então que, em matéria litúrgica, haveria uma grande independência com relação à autoridade eclesiástica, e até mesmo com relação à autoridade papal, coisa que hoje os reformistas recusam com indignação e terminantemente.
"Assim, como o compreenderam claramente todos os canonistas que escreveram sobre a liturgia durante os séculos XVII e XVIII, desde um autor privado como Le Brun até o grande Pontífice que era ao mesmo tempo um canonista de gênio como Bento XIV, a autoridade ligada à liturgia não depende completa e unicamente da autoridade dos Papas ou dos Bispos que canonizaram tal ou tal livro com suas rubricas, ou que garantiram tal ou tal resposta de uma comissão, desde a Sagrada Congregação dos Ritos até a Comissão nomeada por Balduino de Péréfixe para a reforma da liturgia parisiense. Não, a autoridade ligada à liturgia, era, para esses homens, fundamentalmente a da própria tradição, e é somente para garantir a tradição sob esses dois aspectos de permanência e de adaptação que a autoridade dos Papas e dos Bispos dava sua sanção a tal ou tal forma de liturgia" (Padre L. Bouyer, op. cit. p. 90. O negrito é nosso).
Hoje, esse princípio é recusado do modo o mais peremptório e autoritário, exatamente por aqueles mesmos que combatem o autoritarismo e defendem a liberdade...
Padre Bouyer diz mais:
"A tradição católica não é uma coisa do passado fixada uma vez por todas, segundo uma fórmula redigida em detalhe, que não deve jamais mudar nem progredir, e ela não é também uma coisa que possa se mudar, sendo remodelada arbitrariamente, seja por indivíduos, seja por uma autoridade que, agindo assim, estaria tão isolada e irresponsável quanto um indivíduo"(p. 98. O negrito é nosso).
Quem diria isso hoje?
E afirma, mais ainda, o Padre Bouyer:
"Nessa comunidade viva, os Papas e os Bispos não vão fazer não importa o quê, enquanto os outros não teriam senão que aceitar seus decretos de um modo puramente passivo, tanto quanto os indivíduos não têm o direito de agir como bem lhes parece." (Bouyer, p. 98).
Sem aceitar esse princípio tal como está aí formulado, nós o citamos apenas para demonstrar como os modernistas são volúveis, defendendo o que mais lhes é oportuno, conforme as circunstâncias. Se alguém defender isso hoje, com relação às reformas de Paulo VI, será acusado imediatamente de cismático, enquanto Pio XII, tido como autoritário e conservador, jamais condenou o Padre Bouyer.por dizer isso...
Para o Padre Bouyer, que nessa questão confessa seguir o pensamento de um Bispo protestante luterano, Brilioth, a liturgia deve constar dos seguintes elementos constitutivos fundamentais e irredutíveis:
1. a comunhão;
2. o sacrifício;
3. a eucaristia propriamente dita;
4. o memorial (p. 101).
Não se engane o leitor, porém, com as palavras. Para o Padre Bouyer essas palavras não tem o mesmo sentido que para o comum das pessoas. Normalmente, por comunhão se entende a recepção da hóstia consagrada, isto é, a recepção pelo fiel do Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Cristo, presente na hóstia consagrada. Para Padre Bouyer, comunhão é outra coisa.
"A comunhão, tal qual a palavra é empregada aqui, não deve ser compreendida em seu uso moderno, isto é, como a recepção do sacramento por um crente individual. É necessário antes compreendê-la, assim como a palavra koinonia foi sempre empregada pelos Padres da Igreja, como significando a "comunhão com outros numa participação comum nos mesmos dons" ( p. 102. O negrito é meu).
Ao falar em comunhão, Padre Bouyer entende a formação de uma união coletiva com toda a "comunidade", como se diz hoje, formando uma união de todos através da "solidariedade", simbolizada no comer junto.
Veja-se como ele explicita uma idéia, absolutamente diferente da católica, sobre o que é a comunhão e o que é a Missa:
"Assim, o elemento de "Comunhão" significa que a eucaristia é uma refeição, uma refeição de comunidade na qual todos os participantes estão reunidos para participar, em comum, em bens comuns. Esses bens comuns começam por ser o pão e o vinho de um verdadeiro banquete humano, qualquer que seja a sua significação mais profunda" (Padre Bouyer op cit p. 102).
Ora, o Concílio de Trento, ao condenar a noção protestante de Missa como ceia, anatematizou a tese pregada pelo Padre Bouyer, declarando:
"Se alguém disser que no sacrifício da Missa não se oferece a Deus um verdadeiro e próprio sacrifício, ou que o oferecê-lo não é outra coisa que Cristo se nos dar a comer, seja anátema" (Denzinger, 948 ).
Nesse anátema se excomungam os que defendem que a Missa é uma mera ceia ou banquete, frase muito comumente ouvida, hoje em dia, para definir Missa. Por exemplo, os líderes do Neo Catecumenato, Kiko Arguelo e Carmem, seguidores confessos das teorias do padre Bouyer, defendem e ensinam essa mesma tese excomungada pelo Concílio de Trento. Até em cânticos populares, infelizmente, se canta isso, que foi condenado dogmaticamente pelo Concílio de Trento.
Quanto ao elemento "sacrifício", para o Padre Bouyer, ele é tudo, só não é o sacrifício da Cruz. Bouyer divaga longamente sobre o que é o "sacrifício", mas jamais afirma que o sacrifício da missa é a renovação do sacrifício do Calvário, nem que haja um sacrifício propiciatório de Cristo, na Missa (Cfr. p. 102-103-104).
Sobre a ação de graças ou eucaristia, ele afirma que ela acha sua expressão central na grande oração dita pelo "presidente da synaxe"(assembléia), isto é, pelo sacerdote, e que ela é "um agradecimento a Deus por todos os seus dons"(p. 104) "a partir do pão e do vinho", e não do Corpo e do Sangue de Cristo. ( cfr. p. 104).
A respeito do que é o Memorial, Padre Bouyer se estende dizendo que ele é o memorial da cruz -- mas não fala de renovação do sacrifício da cruz --e o memorial da Ressurreição.
Finalmente, Padre Bouyer trata do Mistério da Missa, e trata desse tema tão misteriosamente que, depois de ler várias páginas e páginas de seu livro, não se atina o que é o tal "Mistério". Ele afirma que o Mistério consta de tudo o que foi dito sobre os quatro elementos constitutivos da Missa. Diz então com todas as letras que "a Missa toda não é senão uma só liturgia da Palavra, que começou por falar ao homem, que lhe falou de modo cada vez mais íntimo, que finalmente lhe falou ao coração enquanto Palavra feita carne, e que agora, do próprio coração do homem se dirige a Deus Pai pelo Espírito" (p. 106).
Perambulando pelo que é Mistério --sem nunca dizer claramente em que ele consiste -- Padre Bouyer acaba por escrever o seguinte:
"Se cada um dos elementos constitutivos da Missa que examinamos é melhor descrito do que definido, como não será mais difícil ainda dar uma definição do Mistério ! Sempre fiel às linhas de pensamento propostas por Brilioth -- [Um "Bispo" protestante ! Eis a quem é fiel o Padre Bouyer !] -- mas empregando agora nosso próprio vocabulário, podemos dizer que o Mistério concretiza a tríplice convicção da Igreja quando ela celebra a eucaristia... (1) Ela crê que o Cristo está presente de modo inexprimível na celebração (Sic !) -- [Não nas espécies consagradas ? ] -- (2) Ela crê que o que ela faz hoje, é ele mesmo que está fazendo por ela. (3) Ela crê que esta ação hoje, que é dele, como ela é dela, é finalmente a única ação salvadora de Deus pelo Cristo, através da história, isto é que a Missa é a Cruz, mas a Cruz sempre vista na perspectiva total da qual falamos quando examinamos a noção de memorial"( P. 106). Isto é do memorial da cruz unido à idéia "da Ressurreição, da glorificação de Cristo e que inclui a efusão do Espírito Santo, a edificação da Igreja e finalmente a consumação de todas as coisas no divino agapê" ( p. 107).
Por todas essas razões Padre Bouyer acaba tendo uma doutrina sobre a Missa que se afasta da doutrina da Igreja, e que se aproxima muito da noção de Ceia protestante. Não foi à tôa que Padre Bouyer quis se manter fiel ao protestante Brilioth.
Por isso, como adepto do conceito de Ceia do protestantismo, Padre Bouyer vai atacar a doutrina da presença real de Cristo nas sagradas espécies, assim como todas as cerimônias em louvor de Cristo no Santíssimo Sacramento.
"Em certas formas do catolicismo moderno, sem nenhuma dúvida, se colocou um acento exagerado sobre a presença real (que de uma certa maneira corresponde ao primeiro aspecto do Mistério como o dissemos mais acima) fez perder o justo sentido da eucaristia, como comunhão, sacrifício, ação de graças e memorial, e mesmo desviou mais do que exaltou o sentido cristão do próprio Mistério"(Padre Louis Bouyer, op cit. p. 107. o negrito é nosso).
Está exposta aí de modo escandaloso a tese péssima desse Padre que inspirou muitos liturgicistas atuais: a idéia da presença real de Cristo na hóstia "fez perder o justo sentido da eucaristia", e "desviou mais do que exaltou o sentido cristão do próprio Mistério".
Como um Padre que escreveu tais heresias não foi condenado por Pio XII ?
Hoje, essa doutrina é um dos pontos centrais das heresias de Kiko Arguelo e praticada pelo Neo Catecumenato. Kiko e Carmem repetem quase palavra por palavra esse texto do padre Bouyer em suas Apostilas aos Catequistas.
Continuando a seguir o protestante Brillioth, Padre Bouyer diz:
"‘Nós não devemos concentrar nossa contemplação exclusivamente sobre o pão e o vinho sacramentais, mas também sobre duas outras realidades. Se é necessário antes de tudo considerar a presença de Cristo como vítima nos elementos eucarísticos, nós não devemos, por essa razão, negligenciar em primeiro lugar sua presença enquanto grande sacerdote de toda hierarquia. Cristo não estará presente nos elementos senão porque ele está presente no homem encarregado de presidir a synaxe e de pronunciar a ação de graças em nome de Cristo, esta presença sendo realizada pelo fato da sucessão apostólica. Por outro lado, Cristo deve finalmente estar presente em todo o corpo da Igreja, porque a Igreja não goza da presença eucarística senão por ser una em Cristo e com Cristo, pela celebração eucarística, e especialmente pela consumação desta na refeição sagrada" (p. 108).
"O próprio Brillioth explica isso insistindo sobre a idéia que o Mistério, se bem que ele seja a qualidade que dá o caráter o mais fortemente cristão à eucaristia, pois que ele torna Cristo presente tudo em todos pode entretanto ser olhado de um outro ponto de vista como um traço da eucaristia aparentado à religião natural, e mais particularmente, no mundo greco-romano contemporâneo do cristianismo primitivo, às religiões que se chamavam exatamente "religiões de mistérios""(p. 108. O negrito é meu).
Desse modo, ainda que Padre Bouyer diga que Cristo está presente nas espécies eucarísticas, ele salienta que Cristo está presente nelas por estar presente no sacerdote, "presidente da assembléia", na Igreja e na própria assembléia, na qual Cristo é tudo em todos.
Daí se dizer que "Ele está no meio de nós", em vez de lembrar que Cristo está realemente presente na hóstia consagrada...
Entretanto, no capítulo VII de seu livro, Padre Bouyer mostra como a associação da Missa aos mistérios pagãos é falsa, e como certos autores, como Dom Casel, erraram, até certo ponto, ao aceitar pura e simplesmente, essa relação.
Contudo, Padre Bouyer tem a sua própria explicação do "Mistério" cristão.
No capítulo II do livro que focalizamos, diz Padre Bouyer:
"Digamos com uma palavra o conteúdo do "mistério". É a re atualização na, para e pela Igreja, do ato de Nosso Senhor que realizou nossa salvação, isto é, sua Paixão e sua morte na plenitude de seu efeito último: a Ressurreição, a comunicação da graça salvadora à humanidade e a consumação final de todas as coisas. Nessa perspectiva, a propriedade central da Liturgia, e portanto o que é preciso captar, antes de tudo, para compreendê-la, é o modo único pelo qual o ato redentor de Cristo é renovado e distribuído de modo permanente pela Igreja. Compreender bem este modo, que é inteiramente diferente daquele de uma representação teatral ou imaginativa, ou de toda repetição fisicamente realista, é a chave desta inteligência da liturgia cuja perda começa durante a Idade Média. E é esta chave que o período barroco perdeu tão profundamente que guardou sob seu olhar somente a casca vazia da liturgia, uma casca tanto mais descorada e sobrecarregada exteriormente quanto mais a realidade interior tendia a ser esquecida" (P. 33).
Vê-se bem por esse texto que Padre Bouyer não centraliza a Liturgia na renovação do sacrifício do Calvário, mas que este foi apenas o caminho para um objetivo maior: a Ressurreição como salvadora do homem.
Ora, isto contraria o que Pio XII havia já escrito na Mediator Dei, e o que o Concílio de Trento fixara dogmaticamente, como lembra Pio XII na Mediator Dei: "Facilmente se compreende, pois, o motivo porque o Concílio de Trento afirma que, com o Sacrifício Eucarístico nos é aplicada a salutar virtude da Cruz, para apagar os nossos pecados cotidianos( cfr. Sessão XXII, c. 1).( Pio XII, Mediator Dei, n0 71).
Pio XII ensinou também que :
"O augusto Sacrifício do altar não é pois uma pura e simples comemoração da Paixão e Morte de Cristo, mas um verdadeiro e propriamente dito sacrifício, no qual, imolando-se incruentamente, o Sumo Sacerdote faz o que fez uma vez sobre a Cruz, oferecendo-se totalmente ao Pai eterno como hóstia gratíssima. "Uma e mesma é a vítima: e Aquele que agora oferece pelo ministério dos sacerdotes é o mesmo que , outrora, se ofereceu na Cruz, divergindo, apenas, o modo de oferecer"(Conc. de Trento, sessão XXII, cap. 2, apud Pio XII, Mediator Dei, n0 64. O negrito é meu, evidentemente.).
Padre Bouyer não hesita em afirmar que foi um erro ter centrado a Missa na Paixão de Cristo:
"E, finalmente, essa idéia de que a Missa seria uma contemplação de Nosso Senhor unicamente na Paixão, sem nenhum pensamento voltado para a sua Ressurreição e a glória final de todo o seu Corpo Místico, com a redução de todo o mistério litúrgico a um simples memorial da Paixão, não é senão a conclusão última de desvios tipicamente medievais: absorção, de um lado, somente no sofrimento de Cristo; de outro lado, desaparecimento progressivo da verdadeira idéia da liturgia como mistério sacramental, sepultada debaixo de uma lembrança puramente sentimental e alegórica do passado nas Expositiones Missae "(p. 62).
Como se constata por essas palavras, Bouyer diverge frontalmente do que ensinou infalivelmente o Concílio de Trento e do que ensinou Pio XII.
Pior ainda. Ele discorda e vai contra o próprio texto de São Paulo, que ensinou o seguinte:
"Todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciareis a morte do Senhor, até que Ele venha"( I Cor. XI, 26).
Anunciareis a morte e não a ressurreição do Senhor, como pretendem Bouyer e os seguidores de Kiko, contra o que ensinou São Paulo.
Para Padre Bouyer, "o Mistério deve ser contemplado, antes de tudo, como a Palavra de Deus por excelência, assim como ele é exatamente designado por São Paulo. Porque o mysterion é definido por ele como um apocalypsis da sophia divina, isto é, como um mistério que é revelação da divina sabedoria" (p. 134. Os itálicos são do autor).
Não é possível deixar de observar que essas palavras têm um forte sabor de gnose, enquanto colocam o mistério da salvação no conhecimento da Palavra, e não no sacrifício redentor de Cristo na Cruz..
Pouco depois, Bouyer afirma que "o Mistério, portanto, tal como São Paulo o vê, é um desígnio divino, mais exatamente, ele é a chave de todo o desígnio de Deus com relação à humanidade, uma chave que o homem não poderia obter de outro modo senão pela revelação do próprio Deus, porque ele é o ponto exato onde a inacessível e inescrutável Sabedoria de Deus confunde a sabedoria dos homens". "Podemos dizer que o Mistério jaz nos abismos da essência de Deus" (p. 134).
Padre Bouyer dá um sentido mais do que antropológico ao Mistério divino: um sentido cósmico.
"Pode-se dizer que, para ele [São Paulo], o Mistério inclui todo o plano de Deus a respeito do homem, e não apenas do homem, mas através do homem, sobre todas as criaturas, isto é, todos os seres espirituais, e também sobre o próprio mundo material" (p. 135).
Daí, Bouyer afirma que, segundo São Paulo, Cristo é o pleroma, a plenitude. E pergunta Padre Bouyer:
"Que significa isso ? Inicialmente, que a obra de Deus com relação ao homem e a toda criatura não é alguma coisa que seja puramente exterior a Deus, mas alguma coisa à qual, se podemos falar assim, Ele está pessoalmente interessado, como qualquer operário está interessado naquilo que faz. Não só Deus está interessado, como o operário em seu trabalho, mas este trabalho, especialmente em seu acabamento final, não pode ser separado Dele. O que ele faz é não só uma misteriosa revelação de suas idéias, mas dEle mesmo. De uma maneira misteriosa (e, precisamente, lá está o mistério para falar propriamente), ele se põe a Si mesmo em sua obra. Cristo, ao mesmo tempo que revela, ele é o Mistério na sua plenitude, porque nele encontramos, ao mesmo tempo, Deus e o homem, não como dois seres, duas realidades separadas, mas como uma só realidade. Assim, o próprio homem não pode ser conhecido em sua plenitude, senão na revelação da plenitude de Deus. As duas revelações, as duas plenitudes são uma só" (p. 135-136. Os itálicos são do original. O negrito e o sublinhado são meus.).
Que quer dizer isso: que o próprio homem só pode ser conhecido na revelação da plenitude de Deus ? E que quer dizer a revelação e a plenitude de Deus são uma só coisa com a revelação e a plenitude do homem.
Que significa que, no Mistério, encontramos Deus e o homem como uma só realidade ?
É bem difícil não ver nessas palavras a afirmação de uma tese gnóstica.
Não há dúvida de que estes pensamentos expressos pelo Padre Bouyer parecem concordar com a idéia de que a revelação de Cristo, no fundo, foi o revelar o mistério do homem, ao homem. O que era, de certo modo, uma novidade... em 1956.
E que esse mistério do homem que teria sido revelado por Cristo ?
Esse mistério do homem permanece ... misterioso, pois não se diz claramente o que ele é, mas nele se insinua muito fortemente uma doutrina gnóstica
Ademais, a palavra "Mistério" conforme ensina o Catecismo é uma verdade revelada por Deus, e que está acima do conhecimento natural do homem, e que o homem, por sua simples inteligência natural, é incapaz de vir a conhecer e de compreender.
Exemplos de Mistérios citados pelo Catecismo são a Unidade e Trindade de Deus, e a Encarnação, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo
Se houvesse um "Mistério do Homem" revelado por Cristo, mistério esse de que jamais se falou no catecismo e na Teologia, esse suposto e misterioso Mistério do Homem estaria acima da compreensão natural do homem. Haveria, então, na própria natureza do homem, algo acima de sua natureza. O que é contraditório e absurdo.
Ora, isto confundiria a ordem natural e a ordem sobre-natural, heresia condenada várias vezes pela Igreja, e heresia defendida pelos Modernistas condenados por São Pio X.
Mas, se no homem -- portanto em todo homem -- há algo de sobrenatural, por essa mesma razão todo homem, sendo homem, só pelo fato de ser homem, já estaria salvo.
Também esse algo em que consisitiria o Mistério do Homem, esse algo acima da natureza humana, mas imanente no homem, seria a fonte da revelação divina , já que o "Mistério do Homem" coincide com o "Mistério de Deus", e faria com que houvesse uma só realidade em Deus e no homem. Daí, seguir-se-ia que todas as religiões seriam válidas, pois cada uma delas seria resultante da manifestação do Mistério de Deus, no Mistério do Homem.
Mais ainda: a afirmação de que a "plenitude de Deus" e a "plenitude do Homem" são coincidentes levaria à apocatastasis, isto é, à necessidade ontológica de que todos os homens necessariamente se salvam, porque, perdendo-se um só deles, não haveria a "Plenitude de Deus". Para usar a palavra empregada por Padre Bouyer, o "Pléroma" divino só se constituiria com a salvação universal, tese, hoje, defendida mais ou menos explicitamente por vários autores importantes.
Conseqüência desse pensamento que faz coincidir o mistério de Deus com o mistério do homem é que Deus nos amaria por nós mesmos, pouco importando se pecamos ou não. A razão desse amor é que Deus, desejando naturalmente sua própria plenitude, tem que desejar e efetivar a salvação universal, sem levar em conta os pecados ou as boas ações dos homens. Por isso, todos estaríamos salvos. Verifica-se, desse modo, um ressurgimento do origenismo e da apocatastasis.
"E é a Cruz que é a grande revelação da divina agapê, porque é na Cruz que podemos ver claramente que o amor de Deus não espera que nós o mereçamos, mas que ele é um amor puramente generoso e criador, que ele não precisa achar o bem em nós para nos amar, mas antes ele nos torna bons amando-nos, como só Deus pode amar"(p. 137). Essa é uma formulação que insinua que Deus não exige que pratiquemos o bem, e que Ele nos ama de qualquer modo, ainda que o rejeitemos, ainda que não cumpramos a sua lei.
Breve História da Liturgia segundo o Padre Bouyer
Padre Bouyer lembra que, se houve necessidade de um movimento litúrgico foi porque, na Igreja, muitos se deram conta de que algo fora perdido em matéria de Liturgia.
"A verdadeira natureza da própria Liturgia, o que ela devia significar na vida quotidiana da Igreja e dos cristãos, tinha sido negligenciado durante longo tempo a ponto de cair em um esquecimento aparentemente desesperado"(p. 58).
É por isso que Bouyer pretende recolocar a Igreja na compreensão verdadeira da liturgia, pois diz ele:
"É dessa maneira apenas -- [estudando os dados bíblicos e os dogmas de Revelação e da Redenção] -- que poderemos esperar recolocar a liturgia em seu verdadeiro lugar na história da economia cristã e numa visão teologicamente bem fundamentada do que é a natureza permanente do cristianismo, e do que ela será sempre"( p. 37 . O negrito é nosso).
Pretender "Recolocar a Liturgia em seu verdadeiro lugar" é afirmar indiretamente que a Liturgia perdeu seu verdadeiro lugar na Igreja.
E como isso poderia ter acontecido ? Teria o Espírito Santo deixado de guiar a Igreja numa questão tão importante quanto essa, já que "Lex orandi, lex credendi"?
É o que pensa e diz Padre Bouyer:
"A verdadeira natureza da própria Liturgia, o que ela deveria significar na vida cotidiana da Igreja e dos cristãos, foi negligenciado durante longo tempo, a ponto de cair num esquecimento aparentemente desesperado"(p.58)
É uma constante de todo movimento herético afirmar que a Igreja, em certo momento de sua história, teve uma queda imensa que a desviou e a corrompeu, sendo então, necessária uma reforma. No movimento litúrgico -- auxiliar do Modernismo -- se nota a mesma doutrina para acusar a Igreja, e para tentar justificar suas posições e seus erros.
Depois de dizer que o culto sinagogal se centrava na escuta e adesão à Palavra, na celebração de uma partilha do pão num banquete, ou ceia comunitária, seguida por uma ação de graças -- (culto eucarístico) --Padre Bouyer afirmará que Cristo seguiu esse modelo sinagogal, nada instituindo de realmente novo.
Vejamos, então, conforme o Padre Bouyer, como teria se desenvolvido o culto cristão, a partir do rito sinagogal, praticado no tempo de Cristo e aceito por Ele.
"No tempo de Nosso Senhor, vemos, pois, na vigília de cada festa sabbat e de cada festa do ano judaico, as famílias e as piedosas comunidades (Habouroth) se reunirem para uma refeição em comunidade que se abria pela fração do pão. Depois da refeição propriamente dita tinha lugar o mais importante: a eucaristia solene, a oração de ação de graças sobre a "taça da benção", na qual todos os dons de Deus no passado seriam comemorados apenas como uma promessa e uma garantia dos dons futuros, no fim dos tempos"(p. 43).
Não havia, então sacrifício propiciatório.
Segundo Padre Bouyer, Cristo seguiu esse ritual, não criou um novo rito, somente lhe deu novo significado:
"As pesquisas recentes mostram com uma perfeita clareza que, bem longe de criar um novo rito, Jesus contentou-se em cumprir uma vez mais um rito inteiramente tradicional no judaísmo, mas nele infundindo um novo significado e uma nova realidade. Esse fato, como vamos ver, torna totalmente inútil a hipótese de uma influência fundamental do paganismo sobre o Mistério cristão e nos obriga a encarar esse Mistério, e a liturgia do qual ele é o coração vivo, conforme linhas puramente judaicas"(p. 113).
Padre Bouyer não afirma que Cristo não instituiu um sacrifício propiciatório na última Ceia, mas nada diz sobre isso, afirmando que o rito estabelecido por Cristo era o da sinagoga, a qual não tinha sacrifício propiciatório.
A Igreja primitiva, por sua vez, teria seguido esse mesmo modelo sinagogal, também sem nenhum sacrifício propiciatório.
Para fundamentar a sua tese, Bouyer cita os Atos dos Apóstolos que dizem do ritual dos primeiros cristãos: "E eles se mostravam assíduos ao ensinamento dos Apóstolos, fiéis à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações"(Atos, II, 42, Cfr. p. 43)..
E Bouyer entende a "fração do pão" não como a Igreja sempre a entendeu e como São Paulo a explica: como a distribuição do Corpo de Cristo. Mas simplesmente como dividir o pão em comum, para comê-lo em comum.
Ora, São Paulo, diz coisa inteiramente diferente e que não se encaixa na explicação do Padre Bouyer. São Paulo distingue explicitamente a refeição comum -- que cada família deveria fazer em sua casa -- do "pão" que se comia na cerimônia nas igrejas, e afirma que quem não distinguir o pão comum do Corpo de Cristo, "come e bebe sua própria condenação, não distinguindo o Corpo do Senhor" ( I Cor. XI, 29).
E São Paulo, para descrever o que os cristãos faziam em suas reuniões, narra o que Cristo fez em sua última Ceia. (Cfr I Cor XI, 23-30)..
Padre Bouyer -- que garante que suas afirmações se fundamentam nas "pesquisas mais recentes", se esqueceu de pesquisar o que está óbvio e explícito, na I epístola de São Paulo aos Coríntios.
É fácil enganar o público escudando-se em "pesquisas mais recentes", que o leitor não tem tempo de verificar, e que normalmente não se cita quais sejam. Ou então remetendo a um modernista à citação de outra sumidade modernista, fabricada pela propaganda da seita herética do Modernismo.
No livro em foco neste artigo, Padre Bouyer não trata muito claramente em que momento da História da Igreja ter-se-ia dado a falha que a desviou da tradição litúrgica original. Uma vez ele fala vagamente na Idade Média. Entretanto, em outros livros, ele deixa entrever qual teria sido o momento histórico do desastre eclesial, momento em que teria falhado a promessa de Cristo de assistir a Igreja todos os dias, até o fim do mundo.
Ele trata disso em outro livro: (Louis Bouyer, Architecture et Liturgie (Ed. Cerf, Paris, 1991).
Neste livro, ele diz que: "Não é surpreendente que esta antiga igreja síria nos apareça como uma versão cristianizada da sinagoga judaica" (L. Bouyer, Architecture et Liturgie, p.28), e afirma que a cerimônia sagrada consistia na leitura ou proclamação da palavra, em sua aceitação, na fração comunitária do pão, e na ação de graças. No primitivo edifício religioso cristão, havia a mesma estrutura da sinagoga, com um lugar especial para a leitura e outro - uma mesa em semi círculo -- para a ceia comunitária.
Noutro capítulo, porém, ele mostra que, ao ser libertada pelo edito de Constantino, a Igreja sofreu profundas modificações também em sua liturgia. Ela teria se tornado imperial e triunfalista.
Multidões de pagãos teriam aderido, quase sem preparação, quase sem fé e sem doutrina, ao novo culto protegido pelo Estado Imperial Romano. A religião decaiu ao nascer a Igreja Constantiniana, como a Igreja Católica de sempre é chamada pelos modernistas.
Carmem e Kiko repetiram essas afirmações quase ipsis litteris.
Assim descreve Bouyer essa nova Igreja e seu novo estilo de arquitetura religiosa:
"Nessas igrejas, a característica mais impressionante é que a cadeira do Bispo foi levada para o centro da abside e que ela é agora um trono, não simplesmente mais uma cathedra de doutor, mas a cadeira de honra de uma alto dignatário. É claro que isso não é senão um efeito da utilização pela Roma antiga da basílica para um fim oficial. Como a cadeira do Imperador no Senado, a cadeira do magistrado, sobretudo quando a basílica era usada como tribunal, era desse gênero e tinha a mesma colocação. Em torno dele, sentados ou de pé conforme o seu nível, achavam-se seus assessores ou funcionários subalternos. O lugar ocupado pelo Bispo de Roma e por seu clero é, por sua vez, um reflexo do fato que no início da época constantiniana, o Bispo de Roma inicialmente, e todos os demais Bispos com ele, foram oficialmente assimilados aos altos funcionários do Estado. A concessão (ou a adoção) dessa cadeira quase imperial ia de par com o emprego de candelabros e do incenso levado diante deles nas procissões, como era o caso, há muito tempo, para os dignatários imperiais. Tudo isso não era senão o início daquilo que se chama correntemente o "triunfalismo"; a origem estava no fato de que os Bispos se haviam tornado autoridades desse gênero"( L. Bouyer, Archicteture et Liturgie, p. 43. Os negritos apenas são meus).
A conseqüência disso, segundo Bouyer, é que os bispos vão ser considerados como chefes da Igreja, acima da Igreja, acima do povo ( Cfr Bouyer, Archicteture et Liturgie, p. 44) . A Igreja deixava de ser democrática passando a ser monárquica e aristocrática. Abandonou-se o igualitarismo da Igreja primitiva. Padre Bouyer não usa o termo, mas é patente que ele pensa que a Igreja, aceitando ser constantinizada, se corrompeu. Se ele não o diz, outros o dirão com todas as letras, repetindo modernisticamente a acusação dos gibelinos, cátaros e protestantes.
O Clero se separa então do povo.
"O Bispo, tendo se tornado um grande senhor, provido agora de todo o cerimonial e das insígnias próprias a seu novo estado, os demais ministros, em vez de ser, como primitivamente, os laços de sua solidariedade com todo o povo, tiveram a tendência de se tornar um desdobramento de lacaios, realçando a sua própria dignidade ao mesmo tempo que a separavam do vulgum pecus [do rebanho vulgar]. O Bispo ocupando agora uma posição quase imperial, seu clero se torna sua corte, que o separa da populaça" (Bouyer, Archicteture et Liturgie, p. 44).
A Igreja ganhou estruturas, isntitucionalizou-se, tornou-se rica. Tudo o que causa horror ao Modernismo e à Gnose. Numa palavra, os modernistas acusam a Igreja de ter se corrompido. E que teria permanecido corrompida até o Vaticano II.
Alguns, mais atrevidos, hoje, dizem isso com todas as letras; e outros o repetem à boca pequena.
Na Idade Média, segundo o Padre Bouyer, se deu uma progressiva incompreensão da Liturgia:
"No maior trabalho de erudição de nossa época sobre a história da Missa Romana Missarum Sollemnia de Jungmann, vemos com uma evidência indiscutível que a história da missa romana durante a Idade Média, é a história da maneira pela qual ela começou a se desintegrar por culpa dos próprios liturgistas medievais (...) uma insistência por demais unilateral sobre a presença real na santa Eucaristia, e a noção muito sentimental dessa presença que devia desempenhar um papel tão desastroso no culto do período romântico, assim como no período barroco.. Ambos podem ser considerados como o desembocar de uma tendência que já se acha nas explicações sentimentalmente realistas da missa, segundo as quais a missa teria por finalidade reproduzir a Paixão por meio de uma espécie de reprodução mímica, cada ação da missa representando uma ação da própria Paixão. Por exemplo, o padre que passa do lado da epístola para o lado do evangelho representaria o itinerário de Jesus indo de Pilatos a Herodes, ou o Lavabo, Pilatos se lavando as mãos. Além de seu intrínseco absurdo, tais explicações contribuíram para dissolver a concepção tradicional da presença sacramental em uma noção anedótica e patética das ações litúrgicas, como se a liturgia tivesse por fim reproduzir materialmente e teatralmente os atos pelos quais nos fomos salvos, como se ela tivesse querido sugerir não só a presença física mas uma presença carnal de nosso Senhor que devia ser captada pela imaginação mais do que pela fé"( pp. 30-31. O negrito é meu).
Vê-se como Padre Bouyer combate explicitamente o dogma da presença real de Cristo nas espécies eucarísticas, assim como a doutrina católica de que a Missa é a renovação do sacrifício do Calvário. Essas são as duas principais heresias que ele favorece ou insinua de modo muito pouco velado.
A crença na presença real de Cristo na hóstia consagrada é exigida pela Fé, como o demonstra a história do herege Berengário, e como o impôs, sob anátema, o Concílio de Trento.
Quando o herege Berengário de Tours negou a presença de Cristo na hóstia consagrada, tendo sido condenado por vários Papas, e reincidindo sempre na mesma heresia contra a presença real de Cristo na Eucaristia, o Papa São Gregório VII, depois de condená-lo duas vezes, em Concílios Romanos, em 1078 e 1079, o obrigou a jurar a seguinte fórmula:
"Eu, Berengário, creio de coração e confesso por minha boca que o pão e o vinho que se colocam no altar, por mistério da sagrada oração e pelas palavras de nosso Redentor, se convertem substancialmente na verdadeira, própria e vivificante carne e sangue de Jesus Cristo Nosso Senhor, e que depois da consagração são o verdadeiro corpo de Cristo, que nasceu da Virgem Maria e que, oferecido pela salvação do mundo, esteve pendente da cruz e está sentado à destra do Pai; e o verdadeiro sangue de Cristo que foi derramado de seu lado, não apenas pelo signo e virtude do sacramento, mas em propriedade da natureza e verdade da substância, como neste breve se contém, e vós ouvistes. Assim eu o creio, e doravante não ensinarei contra esta fé. Assim Deus me ajude e estes santos evangelhos de Deus"(Denzinger, 355).
Teria sido muito bom que Pio XII tivesse exigido do Padre Bouyer que fizesse juramento igual, e retirasse de circulação seus livros, que até hoje favorecem a heresia que busca, até pouco veladamente, negar a presença de Cristo na hóstia e no cálice consagrados.
No século XVI, o heresiarca Lutero, fundador do protestantismo, assim como vários outros hereges como Calvino e Zwinglio, voltaram a negar que Jesus Cristo está realmente presente na hóstia e no cálice consagrados. Por isso, o Concílio de Trento -- que é dogmático e que continua valendo, e que vale para sempre -- determinou:
"Se alguém negar que no santíssimo sacramento da Eucaristia se contém verdadeira, real e substancialmente o corpo e o sangue, juntamente com a alma e a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, e portanto, Cristo inteiro; mas se disser que só está nele como em sinal e figura, ou por sua eficácia, seja ANÁTEMA". (Concílio de Trento. Cânon 1, sobre o Sacramento da Eucaristia, Denzinger, 883).
Com também foi condenada, nesse mesmo Concílio de Trento, a idéia de que na Missa só se dá um sacrifício eucarístico -- isto é, de ação de graças -- e não um sacrifício propiciatório, idéia que Bouyer insinua, com vigor, defendendo quase explicitamente a heresia:
"Se alguém disser que o sacrifício da Missa é apenas sacrifício de louvor e de ação de graças, ou mera comemoração do sacrifício cumprido na cruz, porém não propriamente propiciatório; ou que só aproveita a quem o recebe; e que não deve ser oferecido pelos vivos e defuntos, pelos pecados, penas, satisfações e outras necessidades, seja ANÁTEMA" (Concílio de Trento, Cânones sobre o Santo Sacrifício da Missa, Cânon 3, Denzinger, 950).
Vê-se bem por esses textos que as doutrinas propagadas por Padre Bouyer, em pleno reinado de Pio XII, sem que ele sofresse qualquer sanção, se propagaram, e são hoje defendidas por muitos católicos , assim como por líderes de movimentos religiosos importantes, como, por exemplo, como já dissemos, por Kiko Arguelo e Carmen, líderes do movimento Neo Catecumenal, que propagam essas heresias em suas apostilas semi secretas, para os "catequistas" de seu Movimento.
Prosseguindo no exame do livro em foco do Padre Bouyer, constatamos que ele afirma que "O erro fundamental da Idade Média, quando se a compara à Antiguidade cristã, consistiria, conforme o Abade de Maria Laach [Dom Herwegen], no fato que ela se desviou de um modo objetivo de piedade, em direção a um modo subjetivo. É nisso, em sua opinião, que se deve buscar também a raiz de todos os erros posteriores, pois que o verdadeiro e autêntico espírito da liturgia é absolutamente objetivo, enquanto que o da piedade medieval e pós medieval tende cada vez mais a um subjetivismo invasor. e essa tendência vai de par com uma mudança de acento que passa da união de toda a Igreja com Deus à união do homem individual com Ele. É a razão que explica o título de um livro pequeno mas muito substancial de Dom Herwegen, Kirche und Seele (A Igreja e a Alma), no qual ele apresenta a oposição entre a piedade da Igreja e a piedade da alma como paralela à oposição entre objetividade tradicional e subjetivismo moderno"(p.31).
Noutras palavras, a doutrina de que na Missa, Deus está presente na assembléia do povo, se opõe à idéia de que Cristo está realmente presente na hóstia consagrada, idéia esta que leva o fiel a desenvolver uma piedade pessoal, e não "eclesial", que Bouyer e Dom Herwegen chamam de objetiva.
Segundo Bouyer, os erros introduzidos na Liturgia durante a Idade Média provocaram uma reação natural e contrária dos humanistas do Renascimento e dos reformistas protestantes. Padre Bouyer, portanto, de certo modo, justifica a posição litúrgica dos reformadores protestantes e de "humanistas", como Erasmo de Roterdam.
É curiosa essa constante dos modernistas: eles estão sempre prontos a admirar e a aceitar qualquer coisa proveniente dos hereges, mas sempre fazem restrições ao que é católico. Bouyer não escapa a essa regra.
"Certamente, havia alguma coisa nas sugestões dos primeiros reformadores protestantes que se teria podido reter com proveito" (Bouyer, p. 62).
Parece que, para Bouyer, a Igreja, na Idade Média, não contou com a assistência do Espírito Santo para guiá-la, apesar do grande número de santos que o Espírito Consolador suscitou naquele tempo.
Pois diz Bouyer:
"Depois do que já foi dito concernente à lenta mas contínua desintegração da liturgia que se produziu durante a Idade Média, nós não estaremos surpresos por constatar que as origens de um verdadeiro movimento litúrgico tal como nós acabamos de definí-lo devem ser encontradas no século XVI. No humanismo cristão do primeiro quarto desse século, nós vemos se manifestar o desejo de um mais largo e mais profundo acesso à Bíblia e aos Padres. Nós aí encontramos também o desejo de um mais puro e mais autêntico tipo de piedade, fundado sobre um melhor conhecimento e uma melhor inteligência da liturgia e acompanhando uma prática mais perfeita desta. Como uma bela expressão desses desejos, temos por exemplo o texto de Erasmo, nos seus Colóquios, nos quais ele ensina a um jovem a maneira de assistir à Missa"( Bouyer, p. 60).
"Belo" exemplo, o de Erasmo, um homem que foi filho de padre, que fez votos monacais, que provavelmente foi ordenado padre, e que, segundo consta rezou Missa uma única vez na vida, no dia de sua ordenação, e nunca mais quis rezá-la. Erasmo é exatamente o exemplo certo de "piedade" litúrgica própria do Humanismo; um homem cujas críticas anti-eclesiásticas, cheias de veneno, prepararam a Reforma, tanto quanto Voltaire preparou a Revolução Francesa.
Contraditoriamente, diz depois Bouyer:
"Desgraçadamente, foi entre os aderentes deste movimento litúrgico nascente que a Reforma protestante encontrou seus promotores" (Bouyer, p. 60).
Mas é pelos frutos que se conhece a árvore ! Se o humanismo deu início ao movimento litúrgico, e se dele a Reforma Protestante extraiu seus promotores, é que nesse movimento litúrgico e humanista estavam já as sementes da heresia protestante. De má semente, mau fruto. De víboras, só nascem víboras. De hereges, hereges.
Bouyer critica, a seguir a apostasia dos humanistas e dos liturgicistas do século XVI, que, a pretexto de voltar à Igreja primitiva, acabaram por abandonar a Igreja de seu tempo (Cfr. p. 61). Conselho sábio, que deveria ser aplicado aos liturgicistas atuais.
Entretanto, ele não perde o vezo de querer salvar algo do protestantismo, pois que Padre Bouyer é daquele tipo de pessoas que "dans toute hérésie trouvent quelque charme". Pessoas que só procuram o bom fruto em árvores más, enquanto que, nas árvores boas, só vêem maus frutos. Pessoas que sempre procuram ver "o lado bom" em doutrinas más, e que só não agem assim, quando compram automóveis, ou tomates, na feira...
Em contra partida, essas pessoas estão sempre atentas a qualquer falha, mesmo involuntária, dos bons.
Pior, ele se atreve até mesmo a criticar os santos canonizados.
De São Francisco de Sales, Padre Bouyer critica o fazer orações particulares durante a Missa:
"São Francisco de Sales, ele mesmo, na hora de receber a consagração episcopal, não tomava ele a resolução de sempre rezar seu terço, quando as funções o obrigassem, a assistir uma missa solene ? Como explicar uma tal resolução, se não se compreende que o santo doutor estava verdadeiramente persuadido que não era necessário, para uma piedade profunda e espiritual, não fazer mais do que tomar uma parte puramente exterior nessa celebração pública ? Se essa era a opinião de um grande santo e de um doutor da Igreja dessa época, que podia pensar o bom povo dos ofícios da Igreja ? "( Bouyer, p. 12).
Como pode um padre arrogar-se a criticar "um grande santo e um Doutor da Igreja", confiando apenas no seu próprio saber histórico ou litúrgico ? "Scientia inflat, charitas vero aedificat", diz a Escritura (I Cor. VIII, 1).
Mas ,na mesma página, Padre Bouyer elogia o herege Crammer:
"É bem desconcertante para nós constatar agora que era o futuro herege era aquele que tinha a reação que nos parece mais verdadeiramente católica", ao dizer: "Como é triste que o povo que enche a nave da igreja não compreenda nada do que aí se celebra no santuário !"(Bouyer, p. 12).
"Ái de vós, escribas e fariseus hipócritas, que coais um mosquito e engolis um camelo" (Mt. XIX, 24).
Veja-se o mosquito que Bouyer coa, na Contra Reforma, e o camelo que ele engole, na Reforma.
"A fraqueza da Contra Reforma está na sua longa incapacidade de realizar com a crítica da Reforma a crítica de suas causas, e o resultado dessa incapacidade foi o catolicismo barroco"(Bouyer, p. 63). Bouyer nem vê os santos da Contra Reforma -- nem Santo Inácio e os Jesuítas, nem Santa Teresa, nem o Concílio de Trento, nem os Seminários, nem a promulgação da Missa de São Pio V. Só tem olhos para criticar o barroco
Mas, para os protestantes, ele tem olhares cheios de compreensão e simpatia. Ele fala dos "piedosos pastores anglicanos" (P. 63). E diz:
"Na Igreja da Inglaterra -- [conforme a doutrina Católica, não há Igreja na Inglaterra, pois os anglicanos não têm sacerdócio] -- encontraram-se também alguns homens que, antes que outros, perceberam que a via conduzindo a um verdadeiro renascimento litúrgico não se acha nem no protestantismo, nem na mentalidade barroca. Não tenhamos medo de reconhecer esse fato, porque os piores hereges podem, por vezes, ter preciosíssimas verdades a nos dizer, verdades que basta recolocá-las num contexto católico para apreciar seu pleno valor" (Bouyer, p. 64).
Não dissemos que Bouyer era dos que estão sempre procurando coisas encantadores nos hereges ?
E na página seguinte de seu livro, Bouyer elogia o anglicano Laud, (p. 65), para, na página 68 afirmar:
"Mas, a despeito de suas falhas, devemos francamente admitir que os ofícios de oração da manhã e da tarde, tais como são celebrados hoje ainda em São Paulo [de Londres] em Windsor, ou em York Minster, não são apenas uma das formas mais impressionantes, mas também uma das formas mais puras da oração pública cristã que se possa achar hoje"(p. 68).
Para Padre Bouyer, sendo herege, que beleza !
Por isso, Padre Bouyer procura inocentar ou pelo menos diminuir a culpas dos jansenistas, eles também favoráveis ao "Movimento Litúrgico" dos séculos XVII e XVIII. Bouyer elogia o Missal do jansenista Voisin, apesar de ele ter sido condenado pelo Papa Alexandre III, em 1661( p. 71), baseando-se em sua crítica do ato do Papa, no que diz o modernista Henri de Brémond, um amigo de Maurice Blondel e de muitos outros modernistas.
Bouyer elogia ainda os jansenistas Letourneux-- que teria sido injustamente condenado, diz Bouyer -- e o jansenista Jubé (p. 74).
"O mais famoso desses pioneiros liturgicistas do século XVII foi denunciado, mais tarde, por Dom Guéranger, como tendo sido uma combinação viva de heresias de toda espécie, ainda que, na realidade, tudo o que se possa censurar nele seja de ter assinado o apelo contra a Bula Unigenitus -- [Excuser du peu ! ] -- como o tinham feito muitos dos mais respeitáveis eclesiásticos desse tempo. [ Os "respeitáveis" eclesiásticos jansenistas ou filo jansenistas...]. O nome desse pioneiro era Jubé, e ele era vigário de Asnières, na época, pequena localidade perto de Paris, na margem oeste do Sena. Jubé insistia, antes de tudo, sobre o caráter público e coletivo da Missa. Em conseqüência, ele jamais usará o altar mor de sua igreja, fora os domingos e dias de festas, nos quais a comunidade paroquial se reunia. Ele restaurou também o velho costume romano (que se tinha prolongado na França mais tempo do que na própria Roma) de não colocar a toalha sobre o altar senão logo antes da Missa, e de não ter outra cruz nem outros candelabros senão os das procissões, que eram colocados no seu lugar, no início da Missa. Jubé começava a Missa dizendo o salmo Judica e o Confiteor junto com o povo.[Como se faz, hoje, na Missa de Paulo VI]. Então, ele se assentava no lado da epístola, e escutava a epístola e o evangelho cantados pelos ministros, depois de ele mesmo ter cantado a coleta. Ele cantava o Kyrie, o Gloria, e o Credo junto com o povo, em vez de dizê-los, em voz baixa, de seu lado. Ele restaurou também a procissão do Ofertório (que nunca tinha desaparecido totalmente das igrejas francesas, e, nessa procissão, se faziam oferendas de todo tipo que ele abençoava, em seguida, na oração Per quem omnia, no fim do Cânon, segundo o costume antigo. Ele jamais começava o Cânon antes que o Sanctus tivesse sido inteiramente cantado, e ele dizia as orações do Cânon bastante alto para serem ouvidas por toda a assembléia de sua pequena igreja. Dito de outra maneira, ele desejava fazer, de novo, das leituras, do canto, das orações, do ofertório, ações reais mais do que convencionais, e ele desejava que o sacrifício fosse oferecido com a participação plena, se bem que sempre hierarquicamente ordenada, do povo cristão. Mais tarde, Dom Guéranger considerará todas essas práticas de Jubé como tantos outros motivos de horror e de espanto" (Bouyer, pp.74-75)
A Missa do jansenista Padre Jubé era praticamente muito parecida com a adotada, depois de 1969.
Para sermos justos com Padre Bouyer, é preciso reconhecer que ele considera ter sido um erro de arqueologismo dos liturgicistas franceses desse tempo (século XVII) tentar por em prática "a idéia tipicamente jansenista de reintroduzir a penitência pública da antiga igreja" (Bouyer p. 74).
Pois então, nesse ponto devemos agradecer a Bouyer: ele confessa que a penitência - o tentar restaurar a confissão pública -- foi uma idéia tipicamente jansenista... prática essa que ficou muito em voga, depois de 1969.
Chegamos, agora, ao ponto em que Padre Bouyer critica a liturgia no tempo do Barroco, isto é, ao tempo de Luís XIV.
Padre Bouyer faz críticas pertinentes à mentalidade barroca, mostrando-a como neo pagã. De fato, o Renascimento foi um retorno ao paganismo, e o Barroco, como uma fase desse movimento, tinha a mesma mentalidade, naturalista e humanista do Renascimento. Bouyer mostra como o homem barroco queria, antes de tudo, viver para este mundo que a Renascença apontava como "bello". Também é correta a acusação de Bouyer de que o homem barroco -- sendo humanista -- tinha em vista muito mais o sobre humano do que o sobrenatural. Com efeito, a mentalidade do mundo moderno -- humanista e naturalista -- é essencialmente voltada para este mundo em que o homem vive, não concebendo nada além da natureza. No máximo, o Renascentismo e o humanismo visam o sobre-humano, jamais o sobrenatural. Com razão, pois, o Syllabus condenou a tese de que a Igreja deve se conciliar com o mundo moderno, essencialmente naturalista. Como Nosso Senhor mandou, a Igreja sempre se opôs claramente ao mundo. Até o Vaticano II e a Gaudium et Spes, que explicitamente pregaram a abertura da Igreja para o mundo moderno, o que era também explicitamente apontado como erro pelo Syllabus (Cfr Pio IX, Syllabus, erro LXXX). E quem afirma isso que a Gaudium et Spes é um anti Syllabus é o próprio Cardeal Joseph Ratzinger:
"Se se deseja emitir um diagnóstico global sobre esse texto, poderia dizer-se que significa (junto com os textos da liberdade religiosa e sobre as religiões mundiais) uma revisão do Syllabus de Pio IX, uma espécie de Antisyllabus" ( Cardeal J. Ratzinger, Teoria de los Princípios Teológicos, Herder, Barcelona, 1985, p. 457). E ainda:
"Contentemo-nos aqui com a comprovação de que o documento [a Gaudium et Spes] desempenha o papel de um Antisyllabus, e, em conseqüência, expressa a intenção de uma reconcilação oficial da Igreja com a nova época estabelecida a partir so ano 1789" [o ano da Revolução Francesa] ( Cardeal J. Ratzinger, op. cit. p. 458).
E Padre Bouyer, tão contrário ao barroco, não condena a abertura ao mundo moderno.
Finalmente, Padre Bouyer afirma que o barroco foi católico, mas não foi cristão:
"O período barroco foi católico por uma lealdade instintiva para com a Igreja, e entretanto ele não foi verdadeiramente cristão"(Bouyer, p. 17).
Quereria Bouyer dizer, desse modo, que é possível então ser católico sem ser cristão ? Mas se isso fosse possível, catolicismo e cristianismo não se identificariam. O que é herético.
Bouyer mostra que o barroco foi teatral, e que, por isso mesmo, sua criação mais típica foi a opera. E ele afirma que, nesse tempo, a teatralidade barroca foi transferida para a liturgia também.
"As igrejas vieram a se assemelhar a teatros por seu plano e sua decoração. As pompas litúrgicas que aí se desenvolviam tendiam a abafar o texto tradicional da liturgia sob uma polifonia cada vez mais profana, esse texto não tendo mais importância para os atores ou para os espectadores, do que têm os poemas de Da Ponte, para os admiradores ferventes de Mozart. Afinal das contas, a liturgia foi embalsamada em produções que a tratavam com tanto respeito e indiferença como se tratava o cadáver de um rei, em seus solenes funerais. Ela se tronou, por assim dizer, um pretexto para uma pompa profana, exatamente como uma noitada, na corte, tornada amável por um ‘divertimento’ de Lulli." (Bouyer, p. 18).
Se a crítica de Bouyer tem algo de verdadeiro contra o espírito barroco, as conseqüências que ele vai tirar dessa crítica são absolutamente inaceitáveis, porque elas servem apenas de pretexto para atacar o culto ao Santíssimo Sacramento da Eucaristia, e à fé na presença real de Nosso Senhor Jesus Cristo nas espécies consagradas. O que é absolutamente intolerável e absolutamente inaceitável.
Diz Bouyer:
"O polo da vida litúrgica, em conseqüência, cessou de ser a missa, que comportava elementos numerosos demais não assimiláveis para a mentalidade da época. Em contra partida, a exposição solene do Santíssimo Sacramento, cerimônia criada e desenvolvida precisamente nesta época, para satisfazer os novos gostos, era perfeitamente organizada para assimilar o cerimonial da Corte,então na moda. Na presença do Grande Rei, uma espécie de grande ópera celeste podia ser aí representada, com todo o desdobramento de luzes, de jóias( falsas, na maioria das vezes), cantos polifônicos e figurações teatrais que acompanham normalmente uma recepção, na corte. Tudo isso, certamente, era envolvido por uma espécie de piedade sentimental, divinos langores amorosos capazes de rivalizar triunfalmente com as expressões extáticas do amor humano, (...) ( Bouyer, p. 18).
Evidentemente, essa crítica é diretamente contrária ao Culto do Santíssimo Sacramento, e especialmente a Cristo Rei.
Se o autor fosse sinceramente contrário a que a Igreja não cedesse à moda do tempo, ele -- e seus seguidores atuais -- deveriam se insurgir, ainda mais, à moda dos dias atuais, à introdução do rock, do samba, da cuíca e do pandeiro na Missa, que, além de se constituírem num anticulto, como disse o Cardeal Ratzinger do Rock (Cfr. Cardeal Joseph Ratzinger, Introduzione allo Spirito della Liturgia, Ed San Paolo, Milano, 2001, p. 144), se constituem numa degradação estética.
Ademais, será verdade que o culto ao Santíssimo Sacramento foi uma "novidade" barroca ?
A festa de Corpus Christi foi instituída na Idade Média. São Tomás de Aquino escreveu o Ofício para a festa de Corpus Christi, compondo os hinos para louvor do Santíssimo Sacramento, salientando --- como não podia deixar de ser -- a presença real de Cristo na Hóstia consagrada. Como prova disso veja - se a letra do hino Adoro Te devote, feito por São Tomás, como também o Pange língua.
O que diz Padre Bouyer, sobre a introdução do culto eucarístico e a Cristo Rei pelo espírito barroco, é falso. Basta ouvir as aclamações carolíngeas proclamando Christus vincit, Christus regnat, Christus imperat, para compreender que esse culto sempre existiu na Igreja, atestando a falsidade da argumentação do Padre Bouyer.
Bouyer, no II capítulo do livro em foco, passa a analisar a liturgia católica no período romântico.
A Revolução Francesa fizera uma sangrenta perseguição à Igreja da qual os livros correntes pouco falam, como os livros de história não falariam dos horrendos crimes de Auschiwitz, caso -- por desgraça -- o nazismo tivesse vencido a guerra. A Revolução dominou o mundo. Os livros correntes calam seus crimes.
Os revolucionários instituíram uma Igreja Democrática Constitucional Revolucionária, separada de Roma. Os católicos que permaneceram fiéis ao Papa foram guilhotinados aos milhares.
Napoleão, constatando a impossibilidade de separar os católicos do Papa, mudou de tática: resolveu dominar o Papa, e fazer com que o Papa ordenasse aos fiéis a aceitação do liberalismo. Já que a força da Igreja reside no Papado, Napoleão decidiu usar essa mesma força, o Papado, para levar os católicos fiéis -- por obediência ao Papa -- a aceitar o que a guilhotina não conseguira impor..
Essa manobra napoleônica teve êxito.
Ela foi completada pela manobra romântica.
O Romantismo foi um movimento gnóstico, que sonhava retornar ao passado -- na verdade ao Éden original.
Tudo o que era do passado era visto com olhos idílicos. Daí, a defesa da Idade Média pelos românticos. Não, evidentemente, ao que era realmente católico na Idade Média, mas às lendas, à magia, ao trovadorismo, e, portanto ao catarismo medieval. Reconstruiu-se uma Idade Média de sonho, onde se moviam monges de uma inocência rousseauniana, e cavaleiros intrépidos defendendo damas castíssimos. O castelo de Neuschwanstein de Luís II da Baviera é o símbolo desse medievalismo católico romântico e de sonho.
O retorno ao gótico e à Idade Média ficou de moda, e contou com a aprovação de muitas autoridades da Igreja. A gnose entrou nos ambientes católicos, contrabandeada no sonho medieval, apresentado em cores cerúleas pelo Romantismo. Os católicos passaram a viver olhando para trás, sonhando com o milênio que reconstruiria a civilização do amor, tanto quanto os revolucionários racionalistas vivem olhando para o futuro, arquitetanto a utopia. Tanto os românticos gnósticos, quanto os racionalistas panteístas, se recusam a viver o agora.
Nesse ambiente romântico é que surgiu o movimento litúrgico moderno, que pretendia voltar à liturgia da Idade Média. E seu propugnador maior foi o Abade de Solesmes, Dom Guéranger, figura ambivalente: iniciador da revolução litúrgica atual -- Bouyer vai elogiá-lo e criticá-lo -- e visto como defensor da liturgia romana autêntica pelos tradicionalistas do tipo lefebvriano.
E por que essa ambi valência?
Ela provém do pensamento ideológico de Dom Guéranger, discípulo de Lamennais e de Joseph de Maistre, através de Madame Swetchine.
Joseph de Maistre foi católico e maçon martinista, seguidor da Gnose de Jacob Boehme. Foi defensor do Papa e da infalibilidade papal, mas só porque o Papa era um soberano, e para Joseph de Maistre todo soberano tem que ser infalível. Era monarquista, mas ele via a Revolução Francesa como uma obra da Providência, castigando o mundo, contra a qual não se deveria lutar. Era católico, mas esotérico. Era ultramontano, mas ecumênico. Acreditava nos milagres, mas praticava a teurgia martinista
Madame Swetchine foi chamada a primeira paroquiana de Joseph de Maistre, em São Petersburgo, onde o autor da Soirées de Saint Petersburg foi embaixador do Rei do Piemonte.
Era ela esposa do General Swetchine, que, tendo se desavido com o Tzar Alexandre I, emigrou para a França. Em Paris, Madame Swetchine montou seu salão, foco do ultramontanismo contra revolucionário, mas revolucionariamente romântico. Exatamente como De Maistre.
Nesse salão, ela recebia pessoas notáveis pelo saber, literatos, políticos padres e pessoas influentes.
No meio do salão, ela fez construir uma saleta separada, em madeira, onde ela falava, particularmente, com os que queriam consultá-la. Era o chamado ‘Confessionário" de Madame Swetchine, onde ela fazia "direção espiritual" para seus discípulos e seguidores no esoterismo maistriano e martinista. Até mesmo padres a tinham como "diretora espiritual". Dois desses padres foram amigos. Ambos haviam sido discípulos de Lamennais: Dom Guéranger e o Padre Lacordaire O . P
Dom Guéranger ficou "direitista". Lacordaire, esquerdista. Ambos eram dirigidos por Madame Swetchine que, assim, segurava em suas mãos espirituais a direita e a esquerda religiosa francesa dos tempos do romantismo.
Dom Guéranger restaurou a Abadia de Solesmes, da qual se tornou o Abade, e deu início ao movimento litúrgico romântico, que -- como não podia deixar de ser, tratando-se do Romantismo -- quis voltar á liturgia da... Idade Média.
Ora, esse princípio romântico de retorno ao passado medieval, podia encantar os monarquistas franceses, saudosos do Ancien Régime e inimigos da Revolução Francesa, mas tinha a falha de passar por cima da Missa instituída por São Pio V, visando combater a heresia protestante, negadora da presença real de Cristo na Hóstia consagrada.
Voltar à Idade Média passou a ser a palavra de ordem.
"Daí a mania de colocar algo de gótico em toda a parte: edifícios góticos, paramentos góticos, cânticos góticos, poesia gótica, e assim por diante."(Bouyer, p. 23)
Mas voltar a que Idade Média?
A Idade Média foi um período que durou cerca de 1000 anos. Queria-se voltar a que fase da Idade Média? Ao século XV, decadente ? Ao século XIII de São Luís, de São Tomás, das Catedrais e das Cruzadas ? Ou à Idade Média românica e beneditina das Abadias de Cister, ou de Cluny ? Ou ainda ao tempo de Carlos Magno ? Por que não, antes? Por que não voltar à patrística ? Por que não voltar, então -- já que se queria voltar ao passado -- por que não retornar à liturgia da Igreja primitiva, pré constantiniana? Por que não retornar à liturgia dos Apóstolos, se era no passado que estava a liturgia autêntica? Por que não retornar então à liturgia da Sinagoga ?
Desse modo, poderia se voltar à liturgia de Melquisedec ou de Abel...
E foi o que se defendeu.
O princípio romântico posto por Dom Guéranger, de volta ao passado medieval, desencadeou um cascata de retornos, cada vez mais longínquos.
Padre Bouyer tem uma atitude ambi valente diante da figura ambi valente de Dom Guéranger: de um lado, o elogia como o fundador do movimento litúrgico moderno; de outro, o critica, considerando-o insuficiente e incoerente com seus próprios princípios.
Vejamos, primeiramente, as críticas.
Logo no Prefácio de seu livro -- que, como já dissemos, foi resultante de suas palestras sobre Liturgia, realizadas na Universidade de Notre Dame, em Indiana, (USA) -- Padre Bouyer cita a exclamação de um ouvinte de suas palestras, diante da apresentação que ele fez de Dom Guéranger: "What a rascal, that Guéranger! "(Bouyer, p. 9). E "rascal", em inglês, quer dizer, segundo o dicionário, "pessoa que age mal, ou desonestamente".
Depois, Bouyer afirma:
"E é o momento de lembrar que essa concepção geral de uma liturgia constituindo um cerimonial de corte transcendente foi aceita, sem nenhuma objeção, pelos primeiros pioneiros do movimento litúrgico no século XIX, tanto por Dom Guéranger, como por Dom Gréa. A permanência dessa concepção explica porque a restauração beneditina, tal qual ela foi empreendida por Dom Guéranger, foi, desde a origem, uma tentativa de restaurar o monaquismo medieval com todos o seu desdobramento de construções góticas, de cerimônias faustosas, de canto elaborado: toda a pompa característica dos últimos dias de Cluny -- uma pompa estranha às bênçãos primitivas" (Bouyer, p. 15).
Nota-se nessa crítica de Padre Bouyer a Dom Guéranger, que, tendo aceitado o princípio do retorno ao passado, ele não aceita que esse retorno seja até Cluny e seu fausto. Bouyer quer retornar às "bênçãos" e à simplicidade da Igreja primitiva, pré constantiniana. Portanto, a primeira crítica de Bouyer a Dom Guéranger é por considerá-lo insuficiente em seu retorno, como também de aceitar o fausto cluniacense que vai ser, afinal, uma forma de triunfalismo monárquico, contrário à simplicidade primitiva.
Uma segunda crítica de Bouyer a Dom Guéranger vai ser a de manter a noção "sentimental" da presença de Cristo no centro da Liturgia.
"O período romântico não só endossou a filosofia tradicional já latente nas idéias do período barroco. Ela manteve também, como sendo o próprio coração da liturgia, a noção sentimental da divina presença de Cristo que se tinha desenvolvido durante esse período. Com efeito, é somente durante a renascença romântica que essa noção, ela também, cessou de ser implicitamente admitida para encontrar sua expressão explícita e obter assim o assentimento comum. Em seu livro, Les Institutions Liturgiques, Dom Guéranger considera sempre como coisa evidente que o foco da liturgia cristã não é a ação sacrifical, mas antes a presença física de Nosso Senhor na santa Eucaristia. Uma conseqüência evidente dessa perspectiva é percebida nas proporções anormais tomadas pelo volume dedicado à festa de Corpus Christi, compilado pelos sucessores de Dom Guéranger para O Ano Litúrgico." (Bouyer, p. 26. O negrito é meu).
Se Bouyer não nega explicitamente a presença real de Cristo na Eucaristia, ele a coloca , por assim dizer, à sombra. O que produz, à primeira vista, uma idéia de que a presença de Cristo, para ele não é tão importante, se, para Bouyer, ela existir de fato. O texto de Bouyer, pelo menos, tem sabor de heresia, senão mesmo ser suspeito de heresia. Aos teólogos especialistas nessas questões o julgamento mais autorizado da qualificação teológica exata do erro de Bouyer. Mas, as frases de Bouyer, realmente, escandalizam.
Veja-se como Bouyer diminui a noção da presença real de Cristo na sagrada hóstia:
"Deseja-se que a Missa apareça lá também, antes de tudo, como produzindo a presença eucarística de Cristo e permitindo a adoração dela. De fato, isso não era outra coisa senão erigir em teoria as mudanças realizadas durante o período barroco e pelas quais, a exposição do santíssimo Sacramento introduzida no coração do culto cristão, a própria missa tinha sido cada vez mais subordinada ao culto da presença, repelindo para segundo plano inicialmente o ato comunitário dos fiéis e finalmente a própria ação sacerdotal" (Bouyer, p. 26).
Ora, o que se vê e o que se faz, hoje, é exatamente o oposto: a colocação da ação comunitária em tal realce, que a crença na presença real está quase desaparecendo...Com o resultado desastroso que se deveria esperar.
Outra crítica que Bouyer faz a Dom Guéranger, assim como ao romantismo, é o da falta de espírito crítico.
"O primeiro ponto que é preciso sublinhar aqui, é a ausência total de crítica com a qual os homens do período romântico adotaram de fato, sem se aperceber do que faziam, um grande número de erros os mais graves do barroco(...)Assim , o lealismo do catolicismo barroco para com uma tradição que não era mais entendida, nem captada vitalmente, se desenvolvia agora numa pretensa filosofia do catolicismo.(...) No domínio da liturgia, a adoção de teorias como as de De Bonald e de Maistre conseguiu confundir toda fidelidade real para com a Igreja e seus modos de oração com o arcaísmo e o arqueologismo, e em muitos casos o arqueologismo mais fantasista" (Bouyer, p. 24).
Essa mesma crítica, Bouyer faz ao próprio Dom Guéranger:
"Não podemos negar também que esse culto [restaurado por Dom Guéranger] foi uma restauração de antiquários, e uma restauração de uma autenticidade bem duvidosa, em muitos pontos essenciais. De um lado, ele [ Dom Guéranger] havia perdido esse contato com a mentalidade de seu tempo, que o culto barroco certamente havia possuído, mas, que, de outro lado, a antigüidade, que ele recreava, não era também o que ela imaginava ser, assim como a arquitetura gótica enganadora de Viollet-le-Duc e de Pugin não era verdadeiramente gótica." (Bouyer, p. 25).
E Bouyer considera que a restauração feita por Dom Guéranger foi a que ele imaginou ser uma restauração monástica, com o risco de se reduzir a ser apenas "uma imagem fantasmagórica de Cluny" (Bouyer, p. 25).
Bouyer critica, ainda, Dom Guéranger pela "incrível fraqueza de sua erudição" (p.27)
"Dom Guéranger, conforme o neo ultramontanismo que ele tomava emprestado diretamente de Lamennais, queria exaltar a liturgia romana como sendo a única pura e perfeitamente católica, entre todas as liturgias cristãs. Agindo assim, ele negligenciava quase completamente o fato de que o Missal de São Pio V não representava sempre a própria liturgia romana, na sua forma mais pura e mais verdadeiramente tradicional (...) "(Bouyer, p. 27).
E com essa pontada contra a Missa de São Pio V, Bouyer preparava a demolição futura da liturgia estabelecida solenemente pela Bula Quo Primum Tempore.
Ainda outra crítica feita por Bouyer contra Dom Guéranger consistiu em acusá-lo de ter caricaturado as liturgias galicanas, que , por sinal, eram barrocas, mas enquanto galicanas, Bouyer as defende:
"As liturgias chamadas neo galicanas foram completamente caricaturadas e ridicularizadas pelas Instituitions Liturgiques de Dom Guéranger" (Bouyer, p. 76).
Convém ainda assinalar que, no âmbito da crítica de Bouyer à liturgia romântica dos tempos de Dom Guéranger, o que Bouyer mais detesta é a permanência do culto a Jesus Cristo presente na hóstia consagrada. Assim apesar da condenação da Mediator Dei aos que combatiam o culto eucarístico, Bouyer não hesita em escrever:
"É preciso acrescentar outras críticas a estas primeiras considerações. O período romântico não somente endossou a filosofia tradicional, já latente nas idéias do período barroco. Mas, ele manteve também, como sendo o próprio coração da vida litúrgica, a noção sentimental da divina presença de Cristo que se tinha desenvolvido durante esse período. De fato, é somente durante a renascença romântica que essa noção, ela também, cessou de ser implicitamente admitida para encontrar sua expressão explícita,e obter, assim, o assentimento comum. Em seu livro Les Instituitions Liturgiques, Dom Guéranger considera sempre como provado e admitido que o foco da liturgia cristã não era a ação sacrifical, mas antes a presença física de Nosso Senhor na Santa Eucaristia. Uma conseqüência evidente dessa perspectiva é percebida pelas proporções anormais tomadas pelo volume consagrado à festa de Corpus Christi, compilado pelos sucessores de Dom Guéranger para L ‘ Année Liturgique (...) deseja-se que a Missa apareça lá também, antes de tudo, como produzindo a presença eucarística de Cristo e permitindo a adoração desta. De fato, isto não era senão erigir em teoria as mudanças realizadas durante o período barroco, e, pelas quais, a exposição do Santíssimo Sacramento introduzida no coração do culto cristão, a própria missa tinha sido cada vez mais subordinada ao culto da presença, repelindo para segundo plano inicialmente o ato comunitário dos fiéis, e finalmente a própria ação sacerdotal"( Bouyer, p. 26)
Note-se que Bouyer se atreveu a escrever esse ataque velado à presença real de Cristo na Eucaristia seis anos depois de a encíclica Mediator Dei ter ensinado: "Deste culto introduziu a Igreja, através dos tempos, várias modalidades, sempre mais belas e salutares, por exemplo, as visitas ao Santíssimo, impregnadas de piedade e repetidas até diariamente; as bênçãos do Santíssimo sacramento; as solenes procissões, sobretudo por ocasião dos Congressos Eucarísticos, que levam Jesus-Hóstia em triunfo através de aldeias e cidades; as adorações solenes do Augusto Sacramento publicamente exposto"( ...) "esses exercícios de piedade têm contribuído de modo admirável para o aumento da fé e da vida sobrenatural da Igreja militante, que, assim, como que se faz eco da Igreja triunfante" (Pio XII, Mediator Dei, n* 127, p. 50).
"É, porém, particularmente louvável o costume de concluir vários exercícios de piedade em uso entre o povo cristão, com a Bênção do Santíssimo Sacramento" (Pio XII, Mediator Dei, N0 130, p. 51).
Se Pio XII não escreveu isso contra o Padre Bouyer, então foi Padre Bouyer que escreveu, de propósito, o contrário da Mediator Dei, em seu livro. E cinicamente ainda ousou dizer que a Mediator Dei apoiava as mudanças propostas pelo Movimento Litúrgico.
Única coisa a lamentar é que, tendo o Padre Bouyer ousado desafiar o ensinamento de Pio XII, ele não tenha sofrido nenhuma punição por ter escrito o oposto do que Pio XII havia ensinado.
Embora tenha feito todas essas críticas a Dom Guéranger, Padre Bouyer não deixa de elogiá-lo, e, mais ainda, de admirá-lo, e até de considerá-lo como o responsável por tudo o que foi feito depois, em matéria de liturgia
"O resultado acabado do romantismo litúrgico é entretanto o tipo posto a cabo nos mosteiros restaurados por Dom Guéranger. Ninguém negará que esse tipo de culto era muito mais satisfatório que o do período barroco. A restauração do canto Gregoriano, a observação escrupulosa das rubricas e, acima de tudo, a maneira sóbria e digna de uma celebração desembaraçada de todas essas adições teatrais pelas quais a prática barroca tinha desfigurado e arruinado as linhas da liturgia -- todas essas reformas fizeram desse culto monástico uma das realizações mais impressionantes que se possa achar na época moderna"( Bouyer, p. 25).
E mais ainda:
"Conforme o que foi dito especialmente no último capítulo, alguns leitores poderiam supor que Guéranger, ao longo de nosso relato, se viu atribuir o papel do traidor. Nada poderia estar mais afastado da verdade. Somos constrangidos a assinalar seus erros mais graves, para que nós mesmos evitemos suas necessárias e desastrosas conseqüências. Mas isso não nos deve impedir de ver o fato que não há nenhuma realização no movimento litúrgico contemporâneo que não tenha sua origem, de um ou de outro modo, em Dom Guéranger."( Bouyer, p. 79. O negrito é nosso).
As palavras dessa declaração que colocamos em negrito são importantíssimas: para Bouyer - e ele é insuspeito na questão -- Dom Guéranger é o responsável por tudo o que se fez no movimento litúrgico contemporâneo.
Como isso pode acontecer ?
O tradicionalismo romântico e maçônico de Joseph de Maistre e de Lamennais tinha que produzir seus frutos, naturalmente maus. A árvore má tem que dar mau fruto.
O Movimento Litúrgico Contemporâneo
O Movimento Litúrgico Contemporâneo é dividido por Padre Bouyer em três fases:
1. Fase Belga, de 1909 até 1918;
2. Fase Alemã, de 1918 a 1945;
3. Fase Francesa, de 1945 a 1962;
Poderíamos, hoje, acrescentar mais uma quarta fase, correspondente às reformas desencadeadas depois do Vaticano II:
4. Fase Montiniana, de 1963 até o fim do século XX.
Primeira Fase do Movimento Litúrgico: a Fase Belga (1909-1918)
Para Bouyer, a reviravolta no Movimento Litúrgico se deu em 1909, quando da realização do Congresso Católico de Malines.
Estava-se no auge da crise modernista, e o Papa reinante era São Pio X que, com a encíclica Pascendi e o Decreto Lamentabili, dera um golpe mortal na heresia modernista. O Movimento Litúrgico Contemporâneo foi, de fato, uma ação dos Modernistas, no campo litúrgico.
Assim como Bouyer apresentou a Mediator Dei de Pio XII como a sancionadora da revolução litúrgica, quando ela, na verdade, condenou muitas idéias desse movimento, -- e idéias preconizadas por Bouyer-- agora esse autor apresenta o Próprio São Pio X como o causador do Movimento Litúrgico Modernista. O que é um contra senso absurdo.
Bouyer diz que São Pio X, ao determinar a reforma do Breviário Romano, ao favorecer a comunhão freqüente, e ainda por ter preconizado e regularizado o cântico litúrgico, fez redescobrir a Liturgia. Ora, fazer valorizar a liturgia não significa impulsionar um movimento destruidor da Liturgia.
Aproveitando-se do incentivo de São Pio X, visando a correção de abusos na liturgia, os modernistas desencadearam uma reforma litúrgica sorrateira, que, ocultando astuciosamente seus verdadeiros fins, se apresentava como obediente aos desígnios de um Papa santo.
O homem que arquitetou esse movimento astucioso e praticamente clandestino, para não dizer secreto, foi Dom Lambert Beauduin, a quem Padre Bouyer dedica seu livro, homem do qual ele foi discípulo, e a quem elogia sobremaneira.
Diz Bouyer que a reforma correta da Liturgia exigia "a alma de um contemplativo e a de um sacerdote. A tarefa exigia um homem impregnado pela percepção e o amor da Igreja como mistério vivo, um homem para o qual, também, a vida litúrgica fosse a própria vida, e que fosse inspirado por um desejo intenso de permitir a todos os seus irmãos em Cristo gozar da mesma experiência. Esse homem, esse padre se achou na pessoa Dom Lambert Beauduin. Nele, devemos reverenciar uma das figuras mais desnudadas de pretensão, e entretanto, uma das maiores figuras da Igreja, no século XX. Seu largo espírito, dotado, ao mesmo tempo, de clareza e de profundidade, seu coração aberto, sua devoção intensa a Nosso Senhor e à sua Igreja, sua percepção aguda das necessidades dos fiéis tanto como do clero, tornaram esse humilde monge capaz de conduzir um dos mais corajosos e providenciais empreendimentos da Igreja de nosso tempo, empreendimento cujo valor durável não pode ainda ser apreciado"(Bouyer, p. 81)
Dom Lambert Beauduin foi amigo de Monsenhor Angelo Giuseppe Roncalli, o futuro João XXIII, do qual ele dizia, quando morreu Pio XII: "Se elegerem Roncalli, tudo estará salvo".
Ele, Beauduin, é quem dizia isso.
Esse homem, Dom Lambert Beauduin, a quem cabe a responsabilidade de ter desencadeado a revolução litúrgica que convulsiona a Igreja até hoje, além de ser elogiado por seu discípulo modernista Bouyer, é louvado também, em certo momento pelo menos, por um padre lefebvrista, o Padre Didier Bonneterre:
"É a Dom Lambert Beauduin (1873-1960) a quem cabe o mérito de ter compreendido todo o partido que se podia tirar do ensinamento de São Pio X. Porém, esse monge, durante todo a sua vida, não soube guardar a hierarquia dos fins da liturgia, (...)"(Pe Didier Bonneterre, El Movimiento Liturgico, Iction, Buenos Aires, 1982, p. 26. O negrito é meu).
Dom Lambert Beauduin ordenou-se padre pela diocese de Liège. Inicialmente, foi "capelão do trabalho", fazendo apostolado no ambiente operário, sob os auspícios dos ensinamentos de Leão XIII, na Rerum Novarum.
Em 1906, com 33 anos já, entrou para a abadia beneditina de Mont César, abadia essa fundada pela abadia de Maredsous -- um fundação ligada a Solesmes e a Dom Guéranger -- na diocese de Louvain, em 1899.
Ele procurou, inicialmente, utilizar a liturgia com uma finalidade didática, que não lhe é primariamente própria. A importância dessa mudança de fim na liturgia não foi logo percebida como uma deturpação do fim principal da liturgia: prestar honras a Deus através da renovação do sacrifício do Calvário. Não se percebeu que, transformar a liturgia num ato fundamentalmente didático é aproximar-se da visão protestante do culto.
Em seu pequeno livro La Pitié de l’Église, publicado em 1914, Dom Beauduin apresenta a Missa paroquial como "a grande reunião semanal do povo cristão, na qual, graças à ação do sacerdote visível, os homens são unidos por laços de fraternidade e são assimilados no Cristo total" (Bouyer, p. 82. O negrito é nosso).
As palavras do Padre Bouyer que pusemos em negrito mostram claramente a mentalidade e as tendências de Dom Beauduin: a Missa visa unir a comunidade, -- e unir fraternalmente --mais do que renovar o sacrifício do Calvário.
O próprio Padre Bonneterre, um lefevrista autor de um livro incrivelmente ingênuo, comenta: "sua mente [a de Dom Beauduin], por sua atividade anterior no clero secular, orientada para os problemas do apostolado e da pastoral, encarou a liturgia sob o ângulo das preocupações que lhe eram habituais, e muito rapidamente "descobriu" na liturgia, seguindo a São Pio X (Sic!?), um maravilhoso meio de formar os fiéis na vida cristã. Em 1909, inaugurou em Mont César um "Movimento Litúrgico" que conheceu, depois, um grande êxito" (Padre D. Bonneterre, op. cit. p. 26. O negrito é nosso).
Eis aí uma primeira e imensa ingenuidade do lefevrista Bonneterre: Dom Beauduin seguidor de São Pio X ! É difícil encontrar prova de ingenuidade mais estapafúrdia do que essa, em livros polêmicos. Ele deveria ter escrito que Dom Beauduin, deturpara o que São Pio X incentivara, ao escrever o Motu Próprio Tra le Sollecitudine, restaurando o canto litúrgico, e incentivando "a participação ativa dos fiéis nos sacrossantos Mistérios, e na oração pública e solene da Igreja".
Ainda em 1912, São Pio X, que constituíra uma Comissão para a reforma do Missal, teve que dissolvê-la, devido ao espírito destruidor de alguns peritos dessa comissão.
Dom Beauduin vai conseguir fazer o que esses peritos, por precipitação, haviam deixado de realizar.
A primeira grande ação de Dom Beauduin se deu no Congresso Católico de Malines, em 1909. Aí foi lançado o Movimento Litúrgico, quando Dom Beauduin propôs os seguintes pontos:
1. Que o Missal romano fosse traduzido, e que seu uso fosse largamente difundido entre os fiéis, como livro de devoção.
2. Que se procurasse tornar a piedade do povo mais litúrgica.
3. Que o canto gregoriano fosse desenvolvido, como o pedira São Pio X.
4. Que os participantes dos corais gregorianos de cada paróquia fossem incentivados a fazer retiros anuais, num centro de vida litúrgica, como, por exemplo, numa abadia beneditina.
É claro que esses pontos eram, em si mesmos, todos louváveis e recomendáveis. O problema ia se verificar no "tom" e no modo como eles seriam realizados.
Dom Beauduin contou imediatamente com o apoio do Cardeal Mercier e de muitos outros vultos importantes. À primeira vista, parecia que não havia por quê se preocupar com o Movimento Litúrgico.
O próprio Padre Bouyer mostra qual foi a tática maquiavélica de Dom Beauduin ao escrever:
"Com uma sabedoria que só podemos considerar de alto valor, ele [Dom Beauduin] sempre se ateve a um princípio que se poderia exprimir deste modo: a liturgia pertence à Igreja; tomêmo-la, portanto, tal como a Igreja de hoje a guardou para nós, e tal qual ela nô-la oferece. Tentemos conhecê-la, compreendê-la, realizá-la tal qual ela é, tão perfeitamente como pudermos; que este trabalho nos baste, agora. Quando tivermos feito isso do melhor modo, então virá o momento de ver se, e como, se pode ir mais adiante" ( Bouyer, p. 85. O itálico é do autor).
Noutras palavras, fazer, hoje, do modo mais perfeito possível o que a Igreja determina em matéria litúrgica, preparando o ambiente para, na ocasião oportuna, realizar reformas profundas. Ganhar a confiança das autoridades eclesiásticas por uma obediência estrita -- nada fazer sem licença -- mas, quando chegasse a hora, ir obtendo novas licenças para reformas cada vez mais profundas, mas nunca ousadas. Se necessário, saber sempre recuar, aceitando as imposições das autoridades da Igreja. Jamais rebelar-se. Confiar no tempo. Ser como a erva que se dobra ao vento que sopra, sempre retornando à posição anterior, depois que o vento tiver passado. Jamais querer imitar o carvalho, que, pretendendo enfrentar a ventania, pode acabar se quebrando, e perdendo a vida...
Dom Beauduin era um Cuntactor eclesiástico, habilíssimo, nunca perdendo de vista a realidade concreta.
Como veremos mais adiante, essa habilidade sorrateira ia explorar com grande êxito a personalidade de um Papa como Pio XII, cioso de sua autoridade, mas cedendo sempre, quando lhe pedissem algo respeitosamente.
Dom Beauduin sabia respeitar a autoridade. Ele conhecia bem a mentalidade clerical.
"Que adianta perder-se em sonhos, antecipando reformas que em todo caso viriam com o tempo, ou restaurando práticas do passado, antes de ter feito todos os esforços para empregar o que já existe no presente?"(Bouyer, p. 85)
Monsenhor Angelo Roncalli, o futuro João XXIII, dirá : "O método de Dom Lambert Beauduin é o bom" (Bouyer, Dom Lambert Beauduin, un homme d’ Église, Casterman, Paris, 1964, p.136).
Dom Beauduin lançou logo duas revistas, que alcançaram enorme sucesso: a "Questions liturgiques et Paroissiales" -- que logo teve 70.000 assinantes -- e a revista "Semaines Liturgiques".
Apesar da Guerra Mundial de 1914 -1918, e da ocupação da Bélgica e do nordeste da França por tropas alemãs, exatamente na zona ocupada, o movimento litúrgico se desenvolveu muito.
São Pio X morrera logo no princípio da Guerra, e fora sucedido por um de seus principais adversários, Bento XV, o antigo Monsenhor Della Chiesa, que sempre se opusera ao Papa Santo, e que iria combater sua linha de política eclesiástica. Os modernistas puderam respirar aliviados, quando foi eleito Bento XV, e quando ele nomeou o Cardeal Gasparri para a Secretaria de Estado. Gasparri que iria prestar um depoimento furiosamente contrário a São Pio X, no processo para a sua canonização...
O movimento litúrgico cresceu no tempo de Bento XV e de Pio XI, que mantiveram o Cardeal Gasparri, na Secretaria de Estado, até 7 de fevereiro de 1931, quando ele foi substituído, nesse posto, pelo Cardeal Pacelli, antigo auxiliar de Gasparri, e futuro Papa Pio XII.
O Cardeal Mercier pregou a resistência contra os alemães invasores de seu país, através de uma carta pastoral, cujo redator foi exatamente Dom Beauduin. Durante a ocupação da Bélgica pelos alemães, Dom Beauduin apoiou os movimentos de resistência patriótica, e, por isso, teve que fugir para Inglaterra, onde se envolveu com o movimento de aproximação entre católicos e anglicanos. Daí seu novo interesse: o ecumenismo. Vê-se então que, por baixo do liturgicismo e do ecumenismo de Dom Beauduin, havia uma doutrina que fundamentava todas essas políticas, e que era o Modernismo.
Chegada a paz, em 1918, Dom Beauduin retornou à sua abadia em Mont César, onde se encontrou com Monsenhor Stepticki, chefe dos católicos uniatas ucranianos, que despertou nele o interesse pelo monacato oriental.
Nesse tempo, Dom Beauduin manifestava desgosto com a vida em Mont César que, a seu ver, era demasiado Beuroniano e Guerengeriano, segundo informa Bonneterre.
O Abade o enviou então a dar aulas no Colégio Santo Anselmo, em Roma, onde Dom Beauduin vai encontrar o padre D’Herbigny S. J., que terá uma carreira fulgurante, em que a ascenção só não foi mais rápida que a decadência, ambas misteriosas.
Entre seus antigos colaboradores [de Pio XI], havia um jesuíta francês, Michel D’Herbigny, especialista em questões russas e muito atraído pela mística dos cismáticos. Sua tese de doutoramento fora sobre o filósofo e "místico" russo Soloviev, famoso por seu pietismo eslavófilo, e por sua teoria sobre a ressurreição do Profetismo, para equilibrar os poderes do Papa e do Imperador.
Michel d’Herbigny nascera em Lille, em 1880. Foi formado na Alemanha (Cfr. Anne Lacroix-Riz Armand Colin, Paris 1996, p.216) Tornara-se jesuíta, e fora ordenado em 1910. Inicialmente, lecionou no escolasticado jesuíta, em Enghien. Lá, ele forjou um embrião de seminário secreto para atuar na Rússia (Cfr. Riz, 216).
Nesse tempo, as idéias de d’Herbigny chamaram a atenção do Sodalitium Pianum, que o denunciou por idéias pró modernistas (cfr. Émile Poulat, Intégrisme et catholicisme intégral, Castermann, Paris,1969, p. 44). Em 1915, quando os documentos do Sodalitium Pianum caíram em poder dos alemães, que os entregaram ao Padre Höner, os papéis foram levados, por pouco tempo a Exaeten. Sabendo disso, o Padre D’Herbigny pediu ao Padre Pierre Dumont que fosse a Exaeten e os fotografasse.
D’Herbigny interessou-se pela vida religiosa da igreja russa. Em 1911, publicou uma obra intitulada "Um Newman russo, Vladimir Solovief". Dois anos depois, editou uma Theologia de Ecclesia. Em 1921, tornou-se professor da Gregoriana, em Roma, e o famoso Cardeal esquerdista de Malines, o Cardeal Mercier, prefaciou sua obra Theologie du Revelé. Ainda em Roma, apoiou os projetos de Dom Lambert Beauduin a respeito do apostolado com os russos e sobre o movimento litúrgico. Pio XI fez dele seu homem de confiança para questões orientais, e o nomeou presidente do Instituto Pontifício Oriental, em outubro de 1922. Em 1924, no congresso unionista realizado em Vehlerad, na Tchecoslováquia, d’Herbigny se fez notar por suas teses ecumênicas, favoráveis à união dos cristãos.
D’Herbigny foi convidado pelo metropolita Vedenski, chefe dos inovadores pró-soviéticos na URSS, para presidir o segundo sínodo do movimento. "Considerando-se os laços entre o movimento e os bolchevistas, era evidente que o convite só podia ter sido lançado de acordo com o governo [comunista]"( Sergio Trasatti, Vaticano-Kremlin. Les secrets d'un face à face, Payot, Paris, 1993,73). Foi a esse jesuíta denunciado por modernismo, que Pio XI vai confiar importante missão dentro da União Soviética. Deu-lhe licença para passar duas semanas na URSS. Nesse tempo, d' Herbigny teve a ocasião de participar de um debate entre Lunatcharski e o metropolita Vedenski, num teatro de Moscou, a respeito da religião.
Quando voltou, d’Herbigny confessou que ele sonhava um futuro no qual a URSS e o Ocidente teriam cessado de se combater, e no qual a espiritualidade cristã, livre de toda interferência política, poderia cristianizar as duas formas de materialismo: o materialismo comunista de Moscou e o materialismo capitalista de Londres e de Nova York" (Tras, 74). Como se vê, a política de Monsenhor Casarolli teve muitos pais...
D’Herbigny fez um relato de sua viagem à URSS, e Pio XI decidiu restaurar a hierarquia eclesiástica nesse país. Por um Motu Proprio de Pio XI, Monsenhord’Herbigny recebeu poderes para proceder a uma reorganização completa da hierarquia eclesiástica na URSS., sagrando clandestinamente novos Bispos russos. Para isto ser possível, ele mesmo deveria ser sagrado Bispo, antes. Pio XI nomeou-o Bispo titular de Ílião, a antiga Tróia. E o título era sintomático. (cfr. Riz, 218-219).
No dia 9 de Março de 1926, o Núncio Pacelli, em cerimônia secreta, na capela da Nunciatura, em Berlim, sagrou Bispo o Padre d’Herbigny, em presença de uma só testemunha, Mons Centoz, sem outro consagrante (Cfr.Sonya ª Quistlund, Beauduin, a Prophet Vindicated, Newman Press, New York, 1973, p.90). Na mesma noite, Mons. d’Herbigny partiu para Moscou, aonde chegou a 1 de abril de 1926.
Na URSS, ele sagrou, também secretamente, três Bispos: Mons Neveu, que seria administrador Apostólico em Moscou; Mons Sloskans, e Mons Frison. Depois disso, d’Herbigny retornou a Roma. Ele fez uma terceira viagem à URSS, ainda em junho de 1926. Em 13 de agosto, ele sagrou Bispo Administrador Apostólico de São Petersburgo [Leningrado] o Padre Maletski. No total, ele sagrou dez Bispos (Cfr. Eric Lebec, História Secreta da Diplomacia Vaticana, Vozes, Petrópolis, 1999, 55). Finda sua missão, voltou a Roma. Ele permaneceu ligado a Pacelli por forte amizade.(Cfr. Sp.86).
Pouco depois, em setembro de 1926, o encarregado de negócios da URSS em Berlim, Bratmann-Brodowski, entregou ao Núncio Pacelli a resposta do governo soviético aos pedidos de Roma: negava-se à Igreja, na URSS, personalidade jurídica, direito de propriedade e licença de dar educação religiosa às crianças. O conhecido talento diplomático do Núncio Pacelli, mais uma vez, fracassara.
O governo soviético deu então início a uma forte campanha persecutória da Igreja Católica, na antiga Rússia
Os anos de apogeu de Monsenhor d’Herbigny foram no final da década dos anos 20. Em 1928, a Encíclica Rerum Orientalium, em cuja redação ele cooperou, sublinhou a importância do Instituto Oriental que visava formar sacerdotes para atuar na URSS.
D’Herbigny instalou-se ao lado da Secretaria de Estado, o que era um indicador de sua crescente influência e poder. O Russicum contava, em 1929, com 66 seminaristas e 16 professores. Instalara-se num novo palácio de Santa Maria Maggiore. D’Herbigny definia então o Russicum como "uma das instituições destinadas a preparar um clero esclarecido e instruído para a Rússia" (Cfr. Riz 224-225). Dizia-se que o dinheiro para construir o novo Russicum viera de Lisieux. Moscou reagiu fortemente contra o Pró Rússia e contra o Russicum, por meio de uma dura campanha de imprensa.
Repentina e misteriosamente, porém, a carreira fulgurante e promissora de Monsenhor D’Herbigny foi cortada. Em dezembro de 1931, Monsenhor d"Herbigny foi substituído por outro jesuíta, o alemão Pe. Hermann, tanto no Instituto Oriental, quanto no Pró Rússia. (Cfr Riz 228). Mussolini fazia pressão contra ele, acusando-o de sabotar os acordos de Latrão.
Em 1938, sua desgraça chegou a ponto de fazer desaparecer seu nome do próprio Anuário Pontifício. Sobre a causa desta queda diz Lebec: "Talvez os arquivos russos conservem a verdadeira história de uma mulher provocadora – uma enfermeira encontrada na Holanda, a qual havia comprometido a reputação desse Bispo " (Lebec, 56).
Quando d’Herbigny morreu, em 1957, o Instituto Pontifcio Oriental celebrou Missa por sua alma, mas não a Missa pro defuncto Episcopo, mas apenas a Missa pro defuncto sacerdote. (CFr. Sonya A . Quistland, Beauduin, a Prophet Vindicated, p. 91).
Foi em Roma, sob um forte aguaceiro, que um guarda chuva abrigou juntos, Dom Beauduin e um antigo amigo do Modernista excomungado Ernesto Bonaiutti: Monsenhor Angelo G. Roncalli, o futuro Papa João XXIII. Sob o mesmo guarda chuva, conversaram amistosamente, e logo se entenderam.
"Na tarde chuvosa de 14 de Março de 1925, aquele [que se abrigava sob o mesmo guarda chuva] virou-se para Beauduin e disse: "Acabo de ser designado Delegado Apostólico em Sofia. Preciso de um secretário". O recém designado era Monsenhor Roncalli (que tinha perdido seu posto como professor no Ateneu por suspeita de modernismo). Beauduin sugeriu que um colega, Constantin Bosschaerts -- um monge de Afflighem que estava procurando por alguma coisa inusual -- poderia se interessar" (Sonya A. Quistland, op. cit. p. 55).
Monsenhor Roncalli manterá essa amizade, que começou casualmente, sob um guarda chuva, fiemlemente , por toda a vida, a Dom Beauduin, a "Dom Lamberto", como ele o chamava, muito amistosamente.
Dom Beauduin, em 1925, voltou à Bélgica onde fundou o "Mosteiro da União", em Amay sur Meuse, visando a união dos católicos e ortodoxos, além de ter vistas longas para a união com os anglicanos.
Segundo os estatutos do "Mosteiro da União", redigidos por Dom Beauduin, "Seus monges querem, com plena fidelidade à Igreja Romana, fazer-se uma alma oriental"(...) "para que o catolicismo já não possa ser confundido com latinismo". "Meios empregados: iniciação à oração litúrgica oriental; estudo aprofundado do Oriente, prestar atenção à aproximação em curso entre ortodoxos e anglicanos"
(Apud Bonneterre, op. cit. p. 36).
O resultado foi desastroso: muitos monges apostataram, aderindo à chamada Igreja Ortodoxa.
Em Amay, Dom Beauduin vai fundar a revista ecumênica "Irenikon". O irenismo dessa revista teria sido uma das causas da publicação da encíclica de Pio XI, "Mortalium Animos", que condenou os erros do ecumenismo.
Dom Beauduin, então, renunciou ao cargo de Prior de Amay. Viajou pelo Oriente, foi a Roma, a Strasburgo e, depois de ir a Roma, onde respondia a um processo, foi obrigado a residir na Abadia de Encalcat, e foi proibido de manter qualquer contato com Amay.
Em 1935, fundaram-se as edições du Cerf, assim como o semanário "Sept", sob a égide do Padre Chenu, um dos líderes da Nova Teologia modernista.
Beauduin, mantido sob vigilância, tornou-se capelão de um convento de freiras...Depois, residiu perto de Bourges, onde foi acolhido pelo Bispo diocesano. Lá, Beauduin cuidava de um reformatório para padres alcoólatras, ou com problemas de castidade. Foi nesse reformatório que o Padre Louis Bouyer encontrou Beauduin, pela segunda vez, como ele mesmo conta:
"[Beauduin] Convidou-me para um encontro em um desses lugares impossíveis para os quais ele tinha um olfato único para descobrir. Tratava-se de uma espécie de reformatório para eclesiásticos caídos na bebida ou na luxúria.(...) Aí, ele dava pequenos retiros -- à sua maneira , "retiros um pouco canalhas, como ele mesmo os chamava" (Apud Bonneterre, p. 47) -- para sacerdotes irrepreensíveis, mas que estavam, como ele mesmo dizia, "em nossas idéias", idéias que não eram então tão bem vistas dentro da Santa Igreja, como o foram desde que se instalaram na cátedra de Pedro". "Eu cai, de improviso, em uma dessas pequenas orgias íntimas de ecumenismo litúrgico".(Louis Bouyer, Dom Lambert Beauduin, un homme d’Église" apud Bonneterre , op. cit., pp. 47-48. O negrito é do autor).
Informa Bouyer que os sacerdotes que freqüentavam os retiros de Beauduin provinham de Paris, Chartres, e dos círculos de amigos do Padre Doncoeur S.J. (Cfr Bonneterre, p. 48).
Durante a Segunda Guerra Mundial, esse ambiente liturgicista, cultivava idéias ecumênicas, participava da resistência contra os nazistas, e mantinha simpatias pelo socialismo marxista. Os Cardeais Verdier e Suhard protegiam os sacerdotes desses círculos.
Aliás, o famoso modernista italiano, Padre Ernesto Boaniutti, excomungado várias vezes por suas heresias, e que foi amigo íntimo de Roncalli, na juventude, confessa que o Modernismo, desde o início, foi pró socialista:
"Desde que ele se espalhou em terra latina, terra de democracia e de aspirações sociais, o modernismo revelou suas relaçòes essenciais com as diversas correntes do movimento socialista e suas simpatias por elas.Os primeiros programas que ele esboçou declararam expressamente que uma regeneração do cristianismo deveria satisfazer não só as exigências intelectuais das novas gerações, mas também a necessidade geral de um sentimento de fraternidade e de igualdade social".(Ernesto Buonaiutti, Le Modernisme Catholique, Ed. Rieder, Paris, 1927, pp 39-40).
Beauduin voltou a participar diretamente no Movimento Litúrgico e na revista La "Maison Dieu".
Em maio de 1943, foi fundado o Centro de Pastoral Litúrgica, presidido por Dom Beauduin. Os principais colaboradores do CPL foram os Padres Chénu, Doncoeur, Daniélou, Bouyer, Duployé, entre outros. Muitos deles iriam se destacar no Vaticano II.
Que fazia então a Santa Sé?
O abbé Bonneterre, que mereceria chamar-se Abbé Simplice de la Bonnevolonté, quando trata de Pio XII, garante que o Papa eslava "mal informado", e muito ocupado com a questão da guerra, (Cfr. Bonneterre, op. cit. p. 52), para saber do que se passava no Movimento Litúrgico...
Deixando de seguir a ação de Dom Beauduin por um tempo, vejamos, agora, como, após o final da I Guerra Mundial, se desabrochou a segunda fase do movimento litúrgico, na Alemanha.
Segunda Fase do Movimento Litúrgico: a Fase Alemã (1918-1945)
A fase alemã do Movimento Litúrgico vai radicalizar o princípio romântico de Dom Guéranger de retorno ao passado medieval, saltando a liturgia tridentina anti protestante de São Pio V.
Bouyer mostra que Dom Guéranger ao colocar um princípio de retorno à liturgia medieval, agiu como um puro amador romântico, sem base histórica mais séria (Bouyer, p. 88). Os beneditinos alemães, adotando o mesmo princípio de retorno ao passado, vão procurar estabelecê-lo sobre uma base histórica mais cientificamente elaborada.
Serão dois os principais centros do Movimento Litúrgico, em sua fase alemã: o da Abadia de Maria Laach, que viverá sob a égide do Abade Dom Herwegen e de Dom Casel, e o da Abadia de Beuron, sob o impulso de Dom Pius Parsch.
Na Páscoa de 1918, o Abade da Abadia de Maria Laach, Dom Ildephons Herwegen OSB. lançou a coleção "Ecclesia Orans". Pretendia Dom Herwegen, por meio de um "esforço litúrgico", fazer os alemães retornarem à piedade litúrgica.
Dom Guéranger queria fazer a liturgia católica retornar à Idade Média. Mas, a que Idade Média ? Esse período durou mais de mil anos. Já perguntamos e o repetimos: Queria Dom Guéranger retornar ao século XV do nominalismo, ou ao século XII das Catedrais e do tomismo? Ou, ainda, ao século XI e XII das Abadias ?
Dom Herwegen tomou o mesmo princípio de retorno. Porém, ele queria voltar ao principio da Idade Média, à época patrística, quando a liturgia, segundo ele, era ainda pura, não estando recoberta pelas escórias com que a Idade Média posterior a obscureceu, insistindo demais na presença real de Cristo na Eucaristia.
Como se vê, desde o princípio, o movimento litúrgico se posicionou retritivamente, se não contra a presença real de Cristo na hóstia consagrada.
O Livro mais importante de Dom Herwegen sobre o tema foi Kirche und Seele (A Igreja e a alma). Para Dom Herwegen, a exagerada importância dada pela Idade Média, seguida depois pelo Barroco e pelo Romantismo, à presença de Cristo na Hóstia consagrada, fora responsável pelo surgimento de uma piedade subjetivista, que coloca o fiel individualmente face a Cristo. Seria preciso levar os fiéis a uma piedade "objetiva", na qual Cristo se identifica com a comunidade inteira, e na qual o fiel deve se inserir, e não cada sujeito colocando-se individualmente face a Cristo, na Hóstia consagrada, colocação individualista e subjetivista, pois mantém a distinção sujeito-objeto. A piedade verdadeiramente litúrgica seria comunitária, coletiva, nunca individual.
Do mesmo mosteiro de Maria Laach, fazia parte Dom Odon Casel que desenvolveu a idéia de Missa como Mistério, relacionando a Missa com os cultos de Mistérios do paganismo.
Se Dom Herwegen foi para um passado mais longínquo que Dom Guéranger, chegando à liturgia dos tempos patrísticos, Dom Casel continuou essa caminhada. Além da liturgia patrística, ele foi à liturgia bizantina e à dos primeiros séculos cristãos, que, segundo ele, mantinham o sentido da Missa como Mistério.
Isso é que foi mais importante: Dom Casel foi mais claramente contrário ao conceito tridentino de Missa como sacrifício de propiciação, substituindo-o pela noção de Mistério.
Segundo Waldstein, "Dom Casel nos fez sair do beco sem saída das teorias post tridentinas de sacrifício" (Wolfgang Waldstein, Hirtensorgeund Liturgiereform, Schan, Liechtenstein, 1977, apud Bonneterre, op. cit. p. 40).
Dom Casel, seguindo os estudos de Religião Comparada de seu tempo, que relacionaram o sacrifício da Missa com as religiões de Mistério (cultos órficos, mistério de Mitra etc,), e pretendeu apresentar o Cristianismo como uma forma de religião de Mistério, vendo a Missa como uma cerimônia de Mistério, análoga aos de Eleusis , por exemplo.
Na verdade, ao aceitar a tese dos pensadores das religiões comparadas, Ratzenstein, Bosset, e de seu discípulo, o excomungado modernista Alfred Loisy, Dom Casel entrava para a corrente dos modernistas, que reduziam, no fundo, o "fenômeno" cristão a um puro fato humano.
Para Dom Casel, os Mistérios pagãos teriam sido uma mera preparação feita pela Providência, para que a humanidade aceitasse mais facilmente o Mistério cristão. Este seria o triunfo da vida sobre a morte, através da Ressurreição de Cristo. A Missa seria a comemoração festiva desse triunfo ressurreccional de Cristo. Desse modo, Dom Casel salientava muito mais a Ressurreição do que a morte de Cristo sobre a Crua, no Calvário. A Missa deixava de ser um sacrifício de propiciação, para se tornar um ato de júbilo pela salvação e vitória já obtidas sobre a morte, pela Ressurreição de Cristo.
Começava a nascer a Missa como ato festivo da ressurreição... universal, ato de alegria, que acabaria incluindo o rock e outros ritmos modernos extravagantes, e se transformaria em missas--shows, como as que hoje se celebram em tantos lugares, como a promovida recentemente em Florianópolis, onde, numa Missa, se cantou -- e com coreografia de bailarinas - o samba "Aquarela do Brasil". (E que tem a ver o famoso "mulato inzoneiro", cantado pela "Aquarela do Brasil", com o sacrifício do Calvário ?)
Ora, essa idéia de Missa festiva, comemorativa da Ressurreição ... universal, tenderá a levar, logicamente à noção de que todos os homens já estão salvos.
Outra idéia de Dom Casel e que fará carreira -- como já vimos -- é a de que a Missa, como Mistério de Cristo, é uma ação que aconteceu no passado, e que não pode ser repetida, não pode ser renovada.
Para Dom Casel, "o Mistério (...) deve ser contemplado, antes de tudo, como a Palavra de Deus" (Bouyer, p. 134); "Mistério é o objetivo de Deus para a humanidade (Bouyer, p. 134); o "Mistério (...) jaz nos abismos da essência de Deus" (p. 134) ; "O Mistério (...) estando escondido em Deus" só pode ser "conhecido unicamente por Deus"(p.135); "o Mistério, finalmente, é uma só coisa com o próprio Cristo, e que o Cristo é a "plenitude", to pleroma ( P. 135). "Cristo é a plenitude e em si mesmo. Ele revela a plenitude do que Deus quis fazer, criando o mundo"( p. 135) "Mas é a plenitude do próprio Deus"( p. 135).
E lembremos que Bouyer identificara o Mistério de Deus com o Mistério do homem, a plenitude de Deus, com a plenitude do homem, chegando a afirmar identidade ontológica de Deus e do homem, ao garantir que Deus e o homem são uma idêntica realidade. ( Cfr. p.16 deste trabalho).
Repetimos a citação em Bouyer tarta disso por sua extrema importância, pois revela o "mistério"gnóstico oculto a doutrina de Bouyer e de muitos liturgicistas: :
"De um modo misterioso (e, para falar precisamente, exatamente nisso está o mistério) Ele [Deus] põe a Si mesmo em sua obra. Cristo é o Mistério em sua plenitude, ao mesmo tempo que ele o revela, porque nele, encontramos ao mesmo tempo Deus e o homem, não como dois seres, duas realidades separadas, mas como uma só realidade. Assim, o próprio homem não pode ser conhecido em sua plenitude, senão na revelação da plenitude de Deus As duas revelações, as duas plenitudes forma apenas uma" (Bouyer, p. 136. O negrito é nosso).
Cristo, então, ao revelar o mistério de Deus, revelou também o mistério do homem ao homem..
É claro também que, se o grande Mistério e a grande revelação consistem no fato de que a plenitude de Deus e a plenitude do homem coincidem, porque ambos são uma só realidade, então é também claríssimo que todo homem, por ser homem, já está salvo. Bouyer não usa as expressões que colocamos a seguir, mas elas são usadas por muitos, hoje. Todos salvos, para que Deus seja tudo em todos. Todos salvos. Ainda que desconheçam a Cristo. Ainda que resistam a Cristo.
Como vimos, no fundo da doutrina de Bouyer, se vislumbra a apocatastasis. Todos têm que ser salvos, porque só com a salvação universal Deus "será tudo em todos.
Veja-se como essa doutrina é colocada por Bouyer ainda que não tão explicitamente.: "(...) o amor de Deus não espera que nós o mereçamos, mas que Deus é um amor puramente generoso e criador, que ele não tem necessidade de encontrar em nós bem algum ("trouver en nous du bien"), para nos amar, mas antes que ele nos torna bons amando-nos como só Deus pode nos amar"(Bouyer, p. 137).
Como dirá explicitamente um outro ‘teólogo’ amigo de Paulo VI, Deus não exige nada de nós, nem exige que façamos boas obras. "Que faria Ele como nossa boas obras?" (Cfr Ramon M. de Pisón Liébanas, La fragilité de Dieu selon Maurice Zundel, Montréal, Bellarmin).
Como se vê, essas idéias, correntes em obras de certos teólogos modernistas na primeira metade do século XX, se tornaram muito difundidas, nos mais altos meios eclesiásticos, como base e exigência do ecumenismo, no final do século XX, e no início do Terceiro Milênio. Os líderes do Neo Catecumenato não têm doutrina diferente.
Além de Dom Casel com seu "Mistério" de coloração gnóstica, a segunda fase do Movimento Litúrgico, contou ainda com a cooperação de Dom Pius Parsch, em Klosteneuburg, na Áustria. Este procurou dar ao movimento litúrgico um fundamento mais bíblico.
Desse grupo de Pius Parsch nasceu a revista Bibel und Liturgie, que procurava mostrar "como uma compreensão viva da Liturgia romana pode ser efetivamente aprofundada e enriquecida por um conhecimento mais largo da Bíblia"(Bouyer, p. 89).
Desde 1922, Pius Parsch conta que fazia experiências litúrgicas que lembram as modificações triunfantes, depois de 1969. Ele conta que, em um círculo restrito, celebrou uma missa na qual o Kyrie, o Sanctus e o Agnus Dei foram cantados em alemão. Nessa cerimônia o sacerdote era já chamado por Pius Parsch de "o Presidente da Assembléia". O beijo da paz era simbolizado por um aperto de mãos ( o vulgar shake hands) ( Cfr Bonneterre, op. cit. p. 42).
E já que era princípio instaurado por Dom Guéranger o retorno ao passado, porque não voltar à liturgia da própria sinagoga como fonte primeira da Liturgia ? Assim, tomou-se como fonte primeira da Liturgia cristã, o exemplo da Sinagoga, deixando de lado o que Cristo instituiu no Novo Testamento.
Também neste ponto, o Neo Catecumenato vai imitar esse retorno à liturgia sabática da Sinagoga, adotando cantos, danças e orações judaicas na suas "liturgias".
Dessa fase alemã (de língua alemã) do Movimento Litúrgico fez parte também Romano Guardini com seu livro "O Espírito da Liturgia" que colocava um acento forte na "experiência", num sentido que lembra as teses modernistas de Henri de Brémond, o amigo de Maurice Blondel.
Romano Guardini vai influenciar o jovem Ratzinger, permanecendo essa influência no atual Cardeal responsável pela Congregação da Doutrina da Fé, como ele mesmo o diz, em seu recente livro "Introduzione allo Spirito della Liturgia" (Paulus, Milão, 2.001).
A rápida difusão do Movimento Litúrgico na Alemanha provocou reações. Dois livros foram publicados contra as reformas ousadas que se propagavam. Isso obrigou a Conferência Episcopal alemã, reunida em Fulda, a estabelecer uma Comissão para cuidar do problema. Como Chefe dessa Comissão foi nomeado um Monsenhor amigo de Romano Guardini, Monsenhor Stohr...
Contra as reformas litúrgicas propostas, reagiu Monsenhor Gröber, Arcebispo de Freiburg im Brisgau, por meio de uma carta circular aos Bispos alemães, em janeiro de 1943, carta na qual ele denunciava os principais erros doutrinários do liturgicismo.
A Carta de Monsenhor Gröber inquietou Pio XII, que mandou uma carta aos Bispos alemães, através do Presidente da Conferência Episcopal alemã, o Cardeal Bertram, conhecido por sua admiração por Hitler (Cfr. Antonio Spinoza, Lúltimo Papa, Mondadori, Milano,1984 e Anne lacroix-Riz, op cit.).
A carta era típica do Papa Pacelli: exigia vigilância por parte dos Bispos alemães, pedia que o informassem. de tudo sobre o liturgicismo, proibia toda a discussão desses temas, e -- claro -- declarava-se "disposto a examinar com benevolência certos privilégios que poderiam ser vantajosos, para o bem das almas"(Bonneterre, p. 56). Esses "privilégios" acabavam concedendo, a conta gotas, tudo o que exigiam os líderes do movimento litúrgico. Dom Beauduin tinha razão: não se devia nunca violar as proibições provenientes de Roma. Devia-se sempre acatá-las humildemente, e humildemente rogar a concessão de "privilégios especiais", que o Papa, benevolamente, concedia sempre -- excepcionalmente, e a conta gotas -- o que havia proibido, genericamente, pouco antes...
O Cardeal Innitzer, de Viena, o mesmo que levara o episcopado austríaco a apoiar Hitler e o Anschluss, tendo que se retratar depois, respondeu à Carta do Arcebispo Gröber, dizendo-lhe que era normal haver duas correntes com pensamentos contrários, e que se deveria dar liberdade aos teólogos. Já naquele tempo exigia-se dar liberdade aos teólogos...
O Cardeal Bertram, em 1943, enviou a Pio XII um Memorandum, em nome do Episcopado alemão, defendendo as principais teses do Movimento Litúrgico, e no qual se preconizava a atenuação do jejum eucarístico, por causa da guerra, uma nova tradução do saltério, a introdução de mais textos bíblicos na Liturgia, a reforma da Liturgia da Semana Santa. Todas essas medidas acabarão por ser atendidas por Pio XII...
Na resposta dada pelo Cardeal Maglione, Secretário de Estado, em nome de Pio XII, a esse Memorandum, se permitiu expressamente que a Missa fosse cantada em alemão, assim como se permitia a celebração de uma Missa conforme os ideais do Movimento Litúrgico.
Portanto, antes de condenar alguns erros do Movimento Litúrgico, na Mediator Dei, Pio XII já fizera concessões graves -- sempre excepcionalmente -- concessões que tornariam ineficaz a encíclica [Mediator Dei], corretora do Movimento Litúrgico. (Cfr Bonneterre, op. cit. pp. 86-87).
Ingenuamente comenta o Padre Bonneterre:
"O mal já estava feito, e já não existiria meio algum de controlá-lo. Pio XII se esforçará em vão para acrescentar todas as precisões doutrinárias desejadas, a revolução continuará ganhando terreno. A Secretaria de Estado sabia por acaso que os Bispos da Comissão Litúrgica alemã, à qual se confiava a responsabilidade das formas de celebração da Missa, estavam entre os elementos mais avançados do "Movimento" ? Estava Pio XII a par dos manejos do Cardeal Maglione ? Tantas perguntas às quais não é possível responder". (Bonneterre, op. cit. p. 87).
É possível imaginar "inocência" maior do que a desse padre lefevrista ?
É claro que às perguntas que ele coloca é bem fácil dar resposta. Só ele não as dá, porque faz questão de não ver qual é a resposta evidente: Pio XII sabia muito bem o que se passava, pois era um homem tremendamente centralizador e exigente no controle de todos os atos da Cúria. Ele exigia informações detalhadas sobre tudo oq eu acontecia. Imaginar que os membros da Secretaria de Estado não soubessem o que acontecia, e com quem lidavam, parece ser história para ser contada para moçoilas românticas..., ou para freirotas "angelicais", tais como as que só se encontram em contos de fadas.
Pio XII escreveu, então, duas encíclicas, para tratar das questões em discussão: a Mystici Corporis Christi, na qual EXPRESSAMENTE ENSINA que a "IGREJA DE CRISTO É A IGREJA CATÓLICA", e a Mediator Dei (1947), corrigindo os erros do Movimento Litúrgico, encíclica na qual, contra o que diz Padre Bouyer, são condenadas as principais teses desse Padre, e que, apesar da encíclica, ele voltará a defender exatamente no livro "La Vie de la Liturgie", que é de 1956, e que examinamos, no início deste trabalho. Analisaremos, mais adiante, a encíclica Mediator Dei e suas conseqüências.
Terceira Fase do Movimento Litúrgico: a Fase Francesa (1945-1962)
A Segunda Guerra Mundial, eclodindo em 1939 e estendendo-se ate 1945, veio, naturalmente, fazer todo esse movimento "marcar passo", no que tange à política eclesiástica oficial ou institucional. O que não significa que o Movimento Litúrgico ficou marcando passo também no que se refere à sua penetração nos pequenos grupos religiosos e nos indivíduos. Pelo contrário, foi nos núcleos de Ação Católica que ele penetrou mais profundamente.
Ora, nos tempos da Guerra, na França especialmente, os membros da Ação Católica encontraram-se com os membros do Partido Comunista nas fileiras da Resistência. A luta contra o Nazismo e o Fascismo colocou, durante muito tempo, ombro a ombro, os ativistas católicos com a militância marxista. Vistos os princípios liberais e modernistas que informavam muitos ambientes da Ação Católica, propensos a aceitar o socialismo, foi fácil a contaminação marxista atingir o âmago dos movimentos da Ação Católica. Nesse ambientes, a penetração liturgicista revolucionária grassou com força.
Foi principalmente depois da Guerra, que o Movimento Litúrgico retomou impulso no seio da Igreja, desta vez liderado por liturgicistas franceses, quase sempre ligados ao movimento pró socialismo cristão surgido das fileiras da Resistência.
O grande problema desse Movimento Litúrgico era, como diz muito bem o Padre Bouyer, conciliar o retorno à Liturgia primitiva sem cair num arqueologismo que o afastasse da Igreja tal como ela existia, em concreto, no presente. Ou então, com precipitado desejo de reforma lançar a Liturgia em experiências individuais que a separariam do passado.
"Não era para se considerar a Liturgia como alguma coisa estabelecida de uma vez por todas nas formas atualmente em vigor, como uma coisa que, de qualquer forma, jamais poderia ser mudada. Mas o único meio de escapar a uma anarquia mortal, devemos procurá-lo numa renovação da própria tradição que lhe dê, ao mesmo tempo, a força e a maleabilidade de um organismo verdadeiramente vivo"(Bouyer, p. 92). Eis aí a noção de Tradição viva, que nascida em Blondel, vai ter grande sucesso entre os novos teólogos triunfantes no Vaticano II.
Finda a Segunda Guerra Mundial, cessados os combates, o centro da política eclesiástica voltou a ter por foco as questões internas da Igreja.
Em 1945, as edições du Cerf lançam o livro "História do Movimento Litúrgico" de Dom Rousseau OSB , um discípulo de Dom Beauduin, no mosteiro de Chevretogne.. Dom Rousseau prevenia contra a tentação arqueológica, que pretende levar a Igreja a um passado fixo, como também prevenia contra a tentação de pretender fazer a Igreja sempre recomeçar. como se ela não tivesse um passado (Cfr. Bonneterre, p. 59).
Dom Lambert Beauduin, em janeiro de 1945, no n* 1 da revista La Maison- Dieu, escreveu um editorial intitulado:"Normas Práticas para as Reformas Litúrgicas", no qual ele traça as diretrizes gerais que o Movimento Litúrgico deveria seguir.
Nesse editorial-programa, Dom Beauduin fala do "Povo de Deus" e ataca uma "liturgia mumificada". O "Cuntactor" do Movimento Litúrgico prudente e audazmente recomendava: "É preciso libertar-se prudentemente da disciplina demasiado estreita das regras litúrgicas atuais e devolver aos signos sacramentais e às instituições cristãs toda a sua virtude e sua eficácia" (Apud Bonneterre, p. 62).
Como bom guerrilheiro eclesiástico, Dom Beauduin examina a situação concreta, recomendando fazer só o que fosse possível.
"Se a Santa Sé está justamente preocupada pela manutenção integral das observações litúrgicas e muito severa para com todo empreendimento ou toda iniciativa contrária às suas leis -- [Estava-se no tempo de Pio XII...] -- ela se mostra, por outro lado, muito compreensiva e muito acolhedora de todos os esforços feitos dentro do marco das leis atuais e incentiva sem reserva os trabalhos históricos que investigam a origem e a evolução de nossos ritos -- [ Estava-se no tempo de Pio XII...] -- (...) Será preciso proceder hierarquicamente: não tomar como iniciativa prática senão o que está em conformidade com as regras atuais da liturgia. Agir pacientemente: utilizar modestamente o que é legítimo hoje e preparar o futuro fazendo desejar e amar todas as riquezas contidas na liturgia antiga; preparar as mentes: Roma teme acima de tudo o escândalo dos fiéis. Agir metodicamente: fazer estudos sérios de vulgarização ( Ofícios da Semana Santa, Noite Pascal, Concelebração). Acentuar também o aspeto moral e prático: Comunhão freqüente, jejum eucarístico, horas da Missa: a Igreja não teme modificar sua disciplina para o bem de seus filhos"(Apud Bonneterre, pp. 69-70).
E finalmente dizia Beauduin: "O C.P.L. deve tomar a si o trabalho de fazer conhecer e apreciar suas obras pelos consultores da Sagrada Congregação, pelos membros da Academia litúrgica, etc... Se nunca se deve permitir adiantar-se à decisões das autoridades competentes, (o C.P. L.) tem o direito e o dever de fazer conhecer por estas os "desiderata" e os bons e motivados desejos dos pastores mais zelosos e do povo fiel, em particular dos abnegados membros da Ação Católica"(Dom Lambert Beauduin, editorial citado, Apud Bonneterre, p. 64).
Em 1946, na Alsácia uniram-se os esforços litúrgicos do Movimento alemão e do francês.
Padre Duployé acentuava então que o Movimento Litúrgico estava estreitamente unido ao Movimento Ecumênico:
"Também temos contatos com os representantes das diferentes Igrejas cristãs. Dom Beauduin nos ensinou para sempre a não dissociar ecumenismo e liturgia".
O Movimento Litúrgico, na França, invadiu os seminários, tendo profunda influência no seminário dominicano do Saulchoir, já bem dominado pelas idéias modernistas da Nova Teologia, como também pela aceitação do "socialismo cristão".
Os liturgicistas tinham plena consciência que eram uma minoria que devia utilizar as táticas da guerrilha eclesiástica adotadas pelos modernistas e por Dom Beauduin.
Escreveu o liturgicista Padre Duployé:
"Constituímos uma ponta avançada no clero francês. Não falamos a mesma linguagem que a da maioria dos párocos, e, se a maior parte do episcopado segue nossos esforços com simpatia, não devemos ocultar-nos que essa simpatia, cuja sinceridade não ponho em dúvida, pode coincidir muito bem com uma ignorância quase completa dos princípios que nos guiam...Entre essa ponta avançada e a maioria do clero francês, devemos vigiar, conforme a tática que foi muito bem posta em realce pelo Padre Doncoeur, para que não se criem intervalos... Os temidos intervalos se produzirão se não procedermos a uma dispensação econômica e pedagógica da verdade descoberta por nós... Devemos saber calar e saber esperar... Em Ligugé ou em Vannes, não se trata senão de uma etapa de nosso trabalho... Porém seria terrivelmente perigoso, e seria simplesmente estúpido tirar da cabeça do clero francês essas aporias tais como estão. Publicamente não podemos apresentar-lhe senão pão bem cozido. Desde o começo de nosso esforço falamos de adaptação e de evolução litúrgica. Pergunto-me, por vezes, se não nos enganamos com essas palavras... Estamos em uma máquina lançada a grande velocidade. Somos ainda capazes de conduzí-la ? Confesso-lhes, para terminar, o meu cansaço e meus temores" (Padre Duployé, "Les origines du C.P. L." pp. 310-312, apud Bonneterre, pp. 65-66).
Numa reunião dos líderes do Movimento Litúrgico em 1946, na qual estiveram presentes quarenta superiores de seminários franceses para ouvir falar Beauduin, Duployé, Congar, Martimort, entre outros, esteve também presente Monsenhor Bugnini, -- o mesmo que vai dirigir a comissão que instituiu a Nova Missa de Paulo VI -- e que, tendo ouvido tudo o que dizíam os liturgicistas, comentou: "Admiro o que vocês fazem, porém o maior serviço que lhes posso prestar é o de não dizer nunca uma palavra, em Roma, de tudo o que acabo de ouvir" (Apud Bonneterre, p. 67).
No ano seguinte (1947), era publicada a encíclica Mediator Dei de Pio XII, na qual se condenavam vários erros do Movimento Litúrgico, mas que fazia também algumas concessões importantes.
A Atuação de Pio XII face ao Movimento Litúrgico
Sobre o papel de Pio XII no problema da reforma da Liturgia, seguiremos, e comentaremos, os textos e observações do Abbé de Bonneterre, que procura defender sempre esse Papa, atribuindo concessões e fraquezas registradas com relação à reforma da Liturgia, à ignorância e à traição dos auxiliares mais próximos do Papa Pacelli. Fazemos questão de citar mais longamente esse autor, porque ele é insuspeito na questão, já que é um lefevrista, e um admirador cego do Papa Pacelli.
Diz Bonneterre, para justificar as falhas de Pio XII: "Pio XII era atraiçoado e estava mal informado" (Bonneterre, p. 67).
Pio XII era muito cioso de sua autoridade. Mas, como notara sagazmente Dom Beauduin, se lhe pedissem com todas as formalidades, e para o "bem das almas", ele concedia o que havia proibido.
Foi assim que, no crepúsculo da Guerra, a 24 de Março de 1945 -- Pio XII autorizou uma nova tradução dos salmos para a recitação das horas canônicas. Tal tradução foi concedida graças aos pedidos do episcopado alemão e do confessor de Pio XII, o Padre Bea, que vai ser mais tarde Cardeal, e um dos modernistas mais avançados do Vaticano II, especialmente em matéria de ecumenismo.
O Padre Bea era confessor e amigo de Pio XII desde 1931, e fazia parte de sua entourage de confessores e auxiliares alemães.(No tempo de Pio XII, a língua correntemente usada no círculo mais íntimo do Papa Pacelli era o alemão, graças à influência da todo poderosa irmã Pascoalina).
Em 1947, Pio XII publicou sua famosa encíclica Mediator Dei, com o fim de corrigir os erros e tendências más que se manifestavam no Movimento Litúrgico. O que não impediu o Papa de elogiar esse Movimento, logo no início de sua encíclica (Cfr p. 7 deste trabalho).
Vimos, também, como o Padre Bouyer deturpou o que ensinou Pio XII na Mediator Dei, para justificar, sem base alguma, suas doutrinas erradas, que Pio XII condenou nessa citada encíclica. Vimos como Pio XII condenou claramente muitos erros do Movimento Litúrgico com relação à Missa e à negação da presença real de Cristo na Hóstia consagrada (Cfr. pp. 7-8-9-10-14-30-31-33-34 deste trabalho).
Entretanto, o proprio Padre Bonneterre, sempre tão pronto a inocentar Pio XII, reconhece que ele teve muitas fraquezas e falhas nessa questão.Eis o que diz esse autor::
"A encíclica "Mediator Dei’, uma das mais longas que já tenham saído da Chancelaria Pontifícia, é indiscutivelmente um dos mais belos ensinamentos do Papa Pio XII. Com um discernimento e uma habilidade extraordinários, o Papa vai reter tudo o que há de bom no "Movimento Litúrgico’, e a condenar energicamente seus desvios. Vamos resumir esse documento único, submetendo-nos em tudo a seu juízo, porém lamentando, ao mesmo tempo, que ele não tenha sido acompanhado de realizações concretas e de sanções precisas contra os desvios da liturgia"( Abbé Bonneterre, op. cit. p. 67).
E mais:
"Esta encíclica é admirável e recomendamos a todos os nossos leitores que a leiam e a meditem. É uma verdadeira "Suma Litúrgica". É em todo o caso a última recomendação da Igreja a seus filhos antes de penetrar nessa misteriosa e imensa noite da qual ainda não vemos a saída. Não temos senão uma pena, nós o dizíamos um momento atrás, é que essa carta tão formosa não tenha sido acompanhada por medidas concretas, inclusive por sanções. Por acaso o Grande Pio XII -- [E a palavra "Grande" escrita com maiúscula é do Padre Bonneterre] --não emprestou intenções demasiado puras, intenções na medida de sua santidade, aos dirigentes do "Movimento Litúrgico"? Está claro que ele não viu nesses homens os "bandidos" que eram. Acreditou estar tratando com intelectuais um pouco extraviados, quando se tratava, ao menos quanto a alguns, de verdadeiros dirigentes revolucionários. E podia ter sido de outro modo, quando esses dirigentes eram apresentados, sustentados, animados por influentes prelados?" (Abbé Bonneterre, op. cit., p. 70).
É difícil conceber maior ingenuidade do que a revelada pelo Abbé Bonneterre! Haja "inocência" !...É o resultado de fazer História partindo de um preconceito: Pio XII era um santo, e há que justificar tudo o que ele fez. Bonneterre chama de "bandidos" os dirigentes do "Movimento Litúrgico", e vai chamá-los de hereges, mas, ao mesmo tempo, contraditoriamente, admite que havia coisas boas no que esses "bandidos" e "hereges" faziam. Toda ingenuidade preconceituosa causa contradições.
No máximo, o abbé lefevrista solta um tímido gemido de lamentação contra Pio XII:
"São Pio X não se contentou com escrever a encíclica "Pascendi", havia excomungado Tyrrel e Loisy, havia feito prestar o juramento anti modernista. Lamentamos que Pio XII não tenha feito outro tanto frente à heresia anti litúrgica. Porém repitamo-lo. poderia ser de outro modo, quando o papa era traído e mal informado, e quando muitos modernistas tinham se infiltrado nos postos chaves da Igreja ?"(Bonneterre, op. cit., pp. 70-71).
Se os ‘bandidos" e "hereges" tinham se infiltrado nos postos chaves, haveria que perguntar: Mas nomeados por quem? Tolerados e mantidos nesses postos, por quem ?
Bonneterre nem se faz essas perguntas: elas seriam um pecado lesa pacelliano.
Para o Padre Beauduin, a Mediator Dei, apesar de suas condenações tão justas e claras contra os erros do liturgicismo, a "Mediator Dei" "havia posto em movimento, no mundo inteiro, um ressurgimento litúrgico inaudito" (La Maison- Dieu, N 0 13, Cerf, 1948, pp. 7-25, apud Bonneterre, op. cit. p. 71).
E por isso chora e lamenta Bonneterre:
"E sim ! Esse é o drama: utilizou-se da "Mediator Dei" para a subversão litúrgica. Utilizar um documento pontifício para um fim contrário às intenções do Papa, aí temos a marca de Satanás. O Cavalo de Tróia estava, sim, dentro da Cidade de Deus...[Quem será que lá o introduziu ? Porque ele não entrou sozinho. Alguém abriu a porta, ou a brecha, da Cidade de Deus, para que o cavalo passasse. E é isso que a ingênua inocência do Abbé Bonneterre não pode conceber].
"Já nada deterá a marcha para a frente do "Movimento Litúrgico" extraviado, e não podemos senão lamentar a criação, em 18 de Maio de 1948, de uma Comissão Pontifícia para a Reforma da Liturgia". Não porque tal reforma, dentro das proporções dadas, fosse em si impossível, senão porque, dentro do contexto da época, o Papa não podia suspeitar, isso era entregar-se de pés e mãos atados ao Adversário"( Bonneterre, op. cit., p. 71. O negrito é nosso).
E o "Adversário" com A maiúsculo a que alude Bonneterre, evidentemente, é o diabo. Que Pio XII não via...porque era "um santo".
E os santos, para o Abbé Bonneterre, só vêem coisas celestiais.
Em 1948, Pio XII instituiu uma Comissão Pontifícia para a Reforma da Liturgia, para a qual nomeou Monsenhor Anibale Bugnini, (que foi acusasdo de ser maçon), o mesmo que presidirá a redação do Novus Ordo Missae de Paulo VI, junto com seis pastores protestantes. Portanto, foi o próprio Pio XII que abriu caminho para a chamada Missa de Paulo VI, ou Missa Nova.
Para justificar Pio XII por esse ato, Padre Bonneterre, se desdobra em explicações de uma "inocência romântica" realmente inexcedível:
"Pois bem, digamô-lo e repitamô-lo, o Papa Pio XII não percebia a tempestade que sacudia então a barca de Pedro. Pio XII não sabia que o "Movimento Litúrgico" estava nas mãos dos mais temíveis adversários da Igreja. Como teria podido suspeitar de tão cruel realidade, quando eram os maiores príncipes da Igreja que revestiam esses lobos com pele de cordeiro ? Como se dar conta, NESSA ÉPOCA, SEM A PERSPECTIVA DA HISTÓRIA de tal situação ? [Simplesmente informando-se da História de seus assessores mais chegados, como Montini, Bea, Kaas, etc.].Era algo impossível. É fácil julgar isso em 1980, agora que os modernistas, há tempos, retiraram a máscara e nos revelaram suas manobras subterrâneas, mas em 1948, quem poderia saber que sob essa púrpura cardinalícia, sob esse hábito branco ou negro se escondia um discípulo de Loisy?
"Dom Beauduin havia dado a senha em 1945: fazer apresentar nossos pedidos por meio dos Bispos e pelos sacrificados membros da Ação Católica. Havia escrito também: "A Igreja não teme modificar a sua disciplina para o bem de seus filhos". Por isso, nessa época, os Bispos multiplicaram as súplicas a Roma para obter reformas litúrgicas e suavização da disciplina sacramental: reformas do jejum eucarístico, missas vespertinas, reforma da Semana Santa, introdução da língua vernácula na administração dos sacramentos. As necessidades pastorais eram, amiúde, reais. Pio XII acreditou que deveria aceitar esses pedidos"(Padre Bonneterre, op. cit. p. 90.As maiúsculas são de Bonneterre).
Pelo que diz Bonneterre, parece que Pio XII não conhecia mesmo História. O Papa Pacelli não sabia que grandes heresiarcas foram exatamente Bispos. Se eram Bispos que pediam -- com fins pastorais, note-se -- Pio XII só podia atendê-los, pois que Bispos, para quem não sabe a História, só pedem coisas "boas". Como por exemplo, o Cardeal Innitzer, que pediu ao povo austríaco um crime: que apoiasse Hitler e o Anschluss.
E vai adiante impavidamente nosso Bonneterre que deveria chamar-se Abbé Bonnintention:
"Pio XII empreendeu, pois, com toda pureza de intenção, as reformas exigidas pelas necessidades das almas, sem dar-se conta -- E NÃO PODIA --que descarrilhava a liturgia e a disciplina em um dos períodos mais críticos de sua história e, sobretudo, sem imaginar que colocava em prática o programa do "Movimento Litúrgico" descarrilhado. Os Desiderata apresentados por Monsenhor Harcouet ou pelo Cardeal Bertram [o filo nazista Cardeal de Breslau] eram elaborados por Dom Beauduin e por Romano Guardini... e Pio XII não poderia nem sequer suspeitar disso, tal era o espantoso drama que vivia a Igreja durante esta parte do pontificado do Pastor Angélico" (Bonneterre, op. cit. pp. 90-91. As maiúsculas -- INOCENTÍSSIMAS -- são do autor. O negrito é meu.).
Como o lefebvrista Bonneterre pode saber que Pio XII tinha "toda a pureza de intenção"? As intenções não são conhecidas apenas por Deus ? Será que Bonneterre possui um "ultra som" capaz de captar as intenções? Da intenção real de Pio XII só Deus tem conhecimento. Nós não podemos dar a ninguém nem um atestado de boa intenção, nem de má intenção. Na História, estudam-se os fatos, não as intenções.
Depois de dar a Pio XII um atestado de boa intenção, era normal que Bonneterre lhe desse também -- sem o dom da infalibilidade -- a auréola da santidade:
"Vamos ter então que situar-nos nesse plano duplo para compreender essas primeiras reformas romanas: são, por um lado, a expressão da vontade de um Papa que é um santo -- o que garante a sua perfeita ortodoxia --; são, por outro lado, as etapas da realização de uma conspiração urdida para a morte da Igreja" (Bonneterre, op. cit. P. 91. O negrito é meu).
Para salvar Pio XII -- que ele julga "um santo" -- o lefebvrista Bonneterre tem que explicar como esse Papa "santo" apoiou as reformas litúrgicas condenadas pelos lefebvristas. A saída de Bonneterre é a de afirmar que um santo é um cego, ou um ingênuo, que pode ser enganado com um pirolito...litúrgico. Daí, a imaginação dos tais dois planos em que se deveria considerar as reformas litúrgicas: sendo aprovadas por Pio XII, elas são ortodoxas. Sendo promovidas por Dom Beauduin, essas mesmas reformas ortodoxas visavam matar a Igreja Católica. Realmente, uma contradição típica de um sentimental romântico.
Em 6 de Janeiro de 1953, pela Constituição Apostólica "Christus Dominus", Pio XII reduziu o tempo do jejum eucarístico antes da Missa ou da Comunhão, para três horas, apenas, para os alimentos sólidos, e de um hora, para os líquidos não alcoólicos. Essa reforma disciplinar custou muito a Pio XII que se atormentou com escrúpulos que não lhe permitiam dormir.
Eis o que conta Madre Pascoalina: "Aliviar a lei do jejum a ser observado para receber a santa Comunhão, foi uma coisa que certamente custou muito a Pio XII; com efeito, um dia, eu o ouvi dizer que alguém lhe confiava que achava que isso ia quase longe demais, e testemunhava pouco respeito para com a imensa santidade de Jesus no Santíssimo Sacramento: "Mesmo se doravante a autorização é dada de estar em jejum senão três horas antes da Santa Comunhão, a senhora e eu -- e espero ainda que muitas outras pessoas conosco -- deveríamos agir como sempre". Quando ele soube, mais tarde, pela boca de um Arcebispo de além mar, que tinha uma grande diocese industrial, que agora centenas de operários se aproximavam, mesmo durante a semana, da Santa Comunhão, porque não lhes era mais necessário estarem jejum senão três horas, o Santo Padre teve não só um alívio, mas uma alegria profunda. Em todas as ocasiões, ele via inicialmente a salvação das almas"(Pascalina Lehnert, Pie XII, mon Privilège fut de le Servir", ed Téqui, Paris1982, p. 188).
Se se levasse em conta, hoje, quanto isso está longe da verdade...
Do jejum "de três horas se passará ao jejum de uma hora, para chegar ao "quarto de hora" de Paulo VI"( Bonneterre, op. cit. p. 92)
Pelo Motu Proprio, "Sacram Communionem", de 19 de Março de 1957, Pio XII concedeu a permissão de celebrar a Missa vespertina.
Pelo Decreto "Maxima Redemptionis", de 18 de Novembro de 1959, Pio XII aprovou a reforma litúrgica da Semana Santa.
Comenta o inocente Padre Bonneterre: "Pio XII considerou que as vantagens -- [da reforma da Semana Santa] -- eram mais consideráveis que os inconvenientes; não nos permitiremos questionar seu julgamento, porém, recordamos simplesmente a nosso leitor que, durante esse tempo, o "Movimento Litúrgico" descarrilhado marcava pontos"(Bonneterre, op. cit p. 94). E para provar isso, Bonneterre cita uma frase do Padre Duployé contada pelo Padre Congar: "Se conseguimos restaurar em seu valor primigênio a vigília pascal, o movimento litúrgico terá vencido; dou dez anos para isso" (Apud Bonneterre, op cit. p. 94)
E foi o que aconteceu.
Em 23 de Março de 1955, Pio XII instituiu uma última reforma: a do Breviário. Claro que a reforma pretendia ter um fim elevado: tornar o Breviário mais "leve", simplificando as rubricas.
Resultado: foi o primeiro passo para aliviar tanto os Padres do Breviário, tanto que, hoje, ele foi abolido, aliviando definitivamenteos padres. E No Vaticano II, houve um Bispo que exigiu sua abolição, para que os Padres tivessem mais tempo... para rezar...
É claro que o angelical Padre Bonneterre, continuou de olhos semi cerrados a contemplar, numa luz doce de aurora, a figura ascética e mística daquele que ele chama de "Pastor Angélico", título que, segundo a profecia apócrifa de São Malaquias, atribuía, a um Papa futuro, o epíteto que os hereges espirituais franciscanos davam ao Pontífice que iria fundar a Igreja do Terceiro Milênio, o Milênio do Espírito Santo, o da Civilização do Amor..
Só que o Terceiro Milênio -- o do Amor -- chegou com o Boeing de Bin Laden, nas Torres do World Trade Center.
São Paulo, 19 de outubro de 2.001
Orlando Fedeli
Para citar este texto:
"A Vida da Liturgia... em agonia"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/cadernos/religiao/bouyer/
Online, 21/12/2024 às 14:22:48h