Religião-Filosofia-História
Antropoteísmo na Atualidade: A importância do estudo do tema
Marcos Ramos
I – Objetivo do texto
O pensamento antropoteísta é complexo e possui aplicações extremamente vastas. Está presente não só em seitas e religiões falsas, como também se oculta em várias ideias inicialmente encaradas como inofensivas ou até virtuosas, o que torna o tema muito difícil de ser identificado em sua totalidade. Algumas formas desse “germe herético” estão tão escandalosamente visíveis em nosso cotidiano e, no entanto, ignoramo-las quase inconscientemente, analisando o objeto em que reside o problema de forma superficial ou indiferente. Nisso consiste a importância de estudar o Antropoteísmo com cautela para que não aceitemos o erro ingenuamente.
O princípio da minha conversão foi o encontro com as definições precisas do Prof. Orlando Fedeli e da Montfort sobre esse tema tão estudado por mim desde sempre, pois, mesmo vindo de família católica, após a minha Crisma, afastei-me completamente da Igreja e me aprofundei diretamente no pensamento gnóstico, por meio de várias seitas esotéricas de caráter ocultista e mágico, como Gnosis Brasil, AMORC (Rosacruz) e Astrum Argentum (Thelema). Enquanto pertencia a uma dessas seitas, foi parte de um trabalho pessoal estudar e identificar o pensamento gnóstico como raiz de todas as religiões (uma visão claramente perenialista). Após identificar de fato a Gnose em muitas religiões amplamente conhecidas, como Budismo, Judaísmo, Espiritismo e inúmeras outras, deparei-me com a tarefa de identificá-la no Cristianismo. Inicialmente, obtive sucesso em diversas denominações protestantes, como Calvinismo e Luteranismo, até que alguns amigos católicos e leitores do site Montfort, que há tempos lutavam pela minha conversão (e estavam à beira da desistência), indicaram-me o livro “Antropoteísmo: A Religião do Homem” do Prof. Orlando Fedeli, além de diversas cartas do site Montfort.
Ler aquele livro e ver uma descrição tão condizente com o que eu realmente acreditava causou-me espanto e admiração pelo fato de que um homem católico tinha uma noção tão profunda (e maior que a minha) sobre essas ideias às quais eu me consagrava. Após ver claramente os erros metafísicos grosseiros e propriamente satânicos da Gnose e do Panteísmo, graças a Deus, reneguei tais ideias e novamente voltei para o seio da Una e Santa Igreja do Deus verdadeiro.
II – Conceito geral de Antropoteísmo
O artigo que se segue não pretende realizar uma explicação profunda das filosofias gnóstica e panteísta, dado que tal objetivo demandaria uma capacidade intelectual que não me arrogo, além de que o tema já foi ostensivamente explicado pelas inúmeras cartas e artigos do site. Portanto, aqui procuro demonstrar como essas ideias se manifestam de forma muitas vezes explícita na mídia, cultura e pensamento contemporâneos.
O Antropoteísmo (do grego anthropos, “humano”, e theos, “deus”) tem seu significado de forma simples exposto em sua etimologia, “homem-deus”, o homem deificado, seja tornando seu corpo divino (Panteísmo), seja tornando sua alma divina (Gnose). Sendo o homem divino, ele ficaria livre para viver uma utopia perfeita, onde a presença de Deus seria ofuscada pela divindade do homem.
“Nessa cidade terrestre, não haveria lugar para os cavaleiros do Apocalipse, a peste, a fome e a guerra. Não haveria tribulações, nem tiranias, nem conflitos. Por meio do racionalismo naturalista ou da magia e da divinização do humano, alcançar-se-ia o reino messiânico, o milênio paradisíaco.” (FEDELI, Orlando. Antropoteísmo: A Religião do Homem. São Paulo: Editora Celta, 2011) – grifou-se.
O Panteísmo (do grego pan, “tudo”, e theos, “deus”), um dos dois ramos do Antropoteísmo, como sua etimologia mostra, é a divinização do “todo”, sendo por vezes a divinização do aspecto puramente material da criação, apegando-se exclusivamente à razão (não aliada à fé) ou ao prazer hedonista como fim último do homem, não reconhecendo nenhuma realidade espiritual transcendente. Por vezes, identifica um “todo” como fonte de toda a criação, chegando ao desejo de perder-se nesse todo (perceba-se como Gnose e Panteísmo se cruzam em suas doutrinas levando ao mesmo fim comum de ódio à realidade e a Deus).
“O Panteísmo é, em geral, monista e racionalista, pois crê que a razão é a mais alta manifestação da matéria universal. Por ser racionalista, ele utiliza, via de regra, o discurso filosófico como meio de comunicação doutrinária, como aconteceu, por exemplo, com o Panteísmo filosófico da Grécia Antiga.” (FEDELI, Orlando. Antropoteísmo: A Religião do Homem. São Paulo: Editora Celta, 2011).
A Gnose (do grego gnosis, “conhecimento”), segundo ramo do Antropoteísmo, por sua vez, diviniza a alma humana, negando a realidade material em seu aspecto metafísico, desprezando o corpo e a vida. Leva à busca por um conhecimento salvífico que redimiria o homem e o levaria a realidades superiores, libertando-o da prisão dos sentidos, apresentando-se como uma doutrina profundamente permeada pelo orgulho.
“A Gnose é costumeiramente dualista, no sentido de que afirma uma oposição radical e absoluta entre matéria má e espírito divino. Por isso, ela é antirracional e se expressa normalmente por meio de mitos, como nas seitas orientais, por exemplo, e visa ser captada não pela inteligência do homem, mas por uma misteriosa intuição alógica.” (FEDELI, Orlando. Antropoteísmo: A Religião do Homem. São Paulo: Editora Celta, 2011).
O Antropoteísmo surge diversas vezes na história, aparecendo como um rio cársico e se alastrando em grandes manifestações filosóficas. Em seu livro, o Professor Orlando Fedeli enumera grandes surtos de aparecimento do rio cársico do Antropoteísmo na história, tais como:
1. A religião egípcia, a hindu (bramanismo e budismo), o mandeísmo persa, a religião caldaica, principalmente;
2. Os mitos e os Mistérios da Grécia;
3. Os grandes sistemas filosóficos gregos, especialmente os de Heráclito, Parmênides, Platão, o estoicismo, o neoplatonismo;
4. As seitas gnósticas dos primeiros séculos do cristianismo: simonianos, menandrianos, barbeio-gnósticos, ofitas, naassenos, etc.;
5. Muitas grandes heresias pós constantinianas do império oriental, como o Docetismo, o Monofisismo e a heresia iconoclasta;
6. No século VIII, há grande proliferação de doutrinas gnósticas entre os paulicianos, no Oriente, e nas obras de Scoto Erígena, de Isaac lsraeli, neoplatônico judeu do norte da África, e entre os xiitas ismaelitas.
7. No século X, Bogomilas e Búlgaros foram gnósticos dos Bálcãs;
8. No século XII, registram-se os primeiros círculos cabalistas do Languedoc e da Catalunha;
9. No século XIII, na Espanha, foi escrito o "Zohar", principal obra cabalista. Houve os movimentos gnóstico-panteístas dos Amauricianos, de Davi de Dinant, dos Fraticcelli e dos Irmãos do Livre Espírito;
10. No século XIV, desenvolveram-se as seitas gnósticas dos Begardos e Beguinos, os Fedeli d'Amore, na Itália, os Wyclefeanos e, especialmente, as doutrinas místicas de Mestre Eckhart;
11. O fim da Idade Média registra grande número de seitas e doutrinas de fundo gnóstico-panteísta, como, por exemplo, os Lollardos, na Inglaterra, os Hussitas, os Taboritas, o Nominalismo, o Misticismo alemão nascido de Eckhart, o Humanismo italiano, proveniente dos Fedeli d'Amore;
12. No século XVI, no Oriente, a maior expressão do gnosticismo foi a escola cabalista do Safed de Isaac Luria. No Ocidente, a Reforma e o Renascimento foram movimentos impregnados de espírito gnóstico e panteísta. Esses dois movimentos são, na verdade, duas das maiores manifestações do Antropoteísmo na História;
13. No século XVII, a grande figura gnóstico-cabalista no Ocidente foi Jacob Boehme de quem derivam o movimento pietista e o Romantismo alemão. No oriente foi Sabatai Tzvi o messias cabalista;
14. Do Romantismo alemão, vieram as Gnoses de Hegel, o antropoteísmo marxista, assim como a Gnose nazista.
15. Outros movimentos mais claramente gnósticos de nossos dias são o Existencialismo, as teorias freudianas e a Arte Moderna. (FEDELI, Orlando. Antropoteísmo: A Religião do Homem. São Paulo: Editora Celta, 2011).
É fato que a revolta antimetafísica teve sua primeira manifestação bem antes de existir a humanidade, com a queda de Lúcifer e dos demais anjos revolucionários. Na história humana, o Antropoteísmo (refiro-me tanto aos pensamentos gnósticos quanto aos panteístas) surgiu com o pecado original, quando Adão e Eva, tentados pela serpente, além de duvidarem da sabedoria e bondade infinitas de Deus, creram em Satanás quando este indicou uma prática capaz de tornar o ser humano um ser divino. Para muitos, isso soa absurdo se dito dessa forma, mas é justamente o que o homem, caído profundamente em pensamentos gnósticos ou panteístas, almeja até hoje.
III – O Antropoteísmo na antiguidade
Após essa visão geral dos princípios antropoteísta, podemos ver esse pensamento ser aplicado durante a história de forma tanto generalizada, por pensamentos propriamente demoníacos presentes na alma humana em decorrência do pecado original, quanto de forma específica e estruturada, por meio de correntes filosóficas e religiões específicas criadas pelos inimigos da Igreja e filhos das trevas.
Desde a antiguidade se pode observar pensamentos como o Orfismo na Grécia Antiga, de caráter gnóstico. Pregava o ascetismo, o vegetarianismo e acreditava na reencarnação como o ciclo que nos prende à matéria. Afirmava que uma vida ascética e a realização de rituais em círculos iniciáticos para compreensão dos “mistérios órficos” traria a libertação deste ciclo material e a comunhão com o divino na eternidade. O Estoicismo e o Cinismo gregos, panteístas, pregavam uma superação dos sofrimentos do mundo por meio da razão; as Escolas Hedonistas e Epicuristas gregas faziam o mesmo, porém pregando tal superação por meio da vontade materialista. O Catarismo, nascido na Europa na Idade Média, profundamente gnóstico, extremamente ascético e contrário à natalidade, infiltrava-se nas comunidades cristãs da época, pregando que Deus possuía dois gêneros simultaneamente, incentivando a igualdade de gênero nas comunidades. Acreditava na reencarnação como ciclo que nos prende à matéria; seus adeptos eram vegetarianos, celibatários e incentivavam o suicídio como sacramento último em seus ritos. Nota-se como o laço da Gnose e do Panteísmo une em crenças extremamente similares seitas de diversas épocas e locais.
IV – O Antropoteísmo na era moderna
Seguindo para a Idade Moderna posterior à Revolução Francesa, temos na Gnose a explosão das seitas esotéricas e mágicas. Como exemplo disso, a Teosofia, com sua visão gnóstica da queda do homem e dos anjos e sua fixação pelas religiões pagãs, principalmente o hinduísmo, e por práticas mágicas antigas, ajudou a popularizar a magia no ocidente. A Thelema, seita esotérica com ligações intrínsecas com a maçonaria, com seu caráter revolucionário e ocultista explícitos, foi pesadamente influenciada pelos pensamentos do monge franciscano humanista François Rebelais, que escreveu ficções sobre uma abadia utópica chamada “Abadia de Thélème”, onde os habitantes possuem apenas uma regra a seguir: “Fay ce que vouldras”, em português: “Faze o que quiseres”. Com tais pensamentos, muitos membros dessa seita se referem a ele como “O primeiro Thelemita”. Essa seita mágica prega o início do “novo aeon”, uma nova era espiritual para a humanidade, na qual as ideias restritivas e hierárquicas do passado seriam destruídas e substituídas por um culto ao “ego” (eu) e um iluminismo radical e esotérico. Suas práticas são inicialmente ascéticas, mesmo tendo como mote “Faze o que tu queres, há de ser o todo da lei”. Suas crenças se fundamentam no pensamento de que, ao restringir suas vontades carnais, realizar práticas mágicas e encontrar sua verdadeira e única vontade espiritual, que é inerentemente alinhada com a vontade de Deus, o magista se tornaria o próprio Deus. Então, poderia fazer o que quiser, pois tudo o que ele fizesse seria um ato divino. O Espiritismo, mascarando-se de ciência, traz o pensamento evolucionista para o campo espiritual, exatamente conforme a Gnose de certa forma sempre fez.
Já no Panteísmo da Idade Moderna, vemos a igual explosão das ideologias políticas como o Liberalismo e o Socialismo, que propõem de forma utópica um paraíso terrestre, onde Deus é expulso e o homem é tornado divino, além da explosão da filosofia moderna, que caminha numa linha tênue entre a Gnose e o Panteísmo. Para exemplificar, cita-se o Existencialismo, o qual, em certas manifestações como no Absurdismo de Kierkegaard, prega o total esvaziamento de sentido e de valor da existência material (pensamento claramente gnóstico), reduzindo a vida humana a sentimentos de angústia e desespero. Mas, por outro lado, no Niilismo Ativo de Friedrich Nietzsche, diferente de existencialistas pessimistas como Kierkegaard ou Arthur Schopenhauer, vemos verdadeiramente uma oposição ao sentimento niilista clássico, pois, ao mesmo tempo em que esvazia a realidade de sentido e de valor, propõe a criação de novos valores individuais pelo homem por meio de sua vontade. Também vemos no Absurdismo de Albert Camus que, após o esvaziamento de sentido da vida, propõe-se uma continuidade da existência por meio da aceitação da realidade, como exposto em seu Magnum Opus “O Mito de Sísifo” (sendo os dois últimos – Camus e Nietzsche – muito semelhantes aos antigos panteístas gregos). Percebe-se como em uma mesma corrente de pensamento se cruzam muitas vezes harmoniosamente a Gnose e o Panteísmo, mesmo que sejam, à primeira vista, diametralmente opostos, pois conduzem para um mesmo objetivo (para os antropoteístas, sua deificação, mas, na realidade, a perdição das almas e o ódio a Deus e ao ser).
V – O Antropoteísmo na era contemporânea
Finalmente, na era contemporânea, tem-se a Gnose e o Panteísmo expostos de muitas formas, com a disponibilidade tão rápida da informação. O acesso às ideias tanto da antiguidade quanto da era moderna é muito difundido e quase instantâneo, porém o hábito intelectual é pouco comum nesta sociedade tão informatizada. O acesso rápido tornou o conhecimento profundo uma tarefa muito árdua para o homem, pois, habituado com informações recebidas em “flashes” nas telas das televisões, computadores e celulares, o estudo que demanda tempo e paciência não é tão estimulante, mesmo sendo mais acessível do que outrora. Assim, a Gnose passou a ser difundida muitas vezes em ideias ou mesmo em simples (porém perigosas) impressões nas artes populares, como música e cinema, ou nas infinitas batalhas sociopolíticas das redes sociais, com a nova onda de ideologias surgindo e ressurgindo em uma gigantesca disputa por qual regime será tido como capaz de criar o paraíso na terra.
“A julgar por nossa literatura, nós entramos numa era gnóstica”. Simone de Pétrement (1907-1992), Le dualisme chez Platon, les gnostiques et maniquéens.
Claros exemplos da Gnose na contemporaneidade são vistos nos vários manifestos da arte moderna, como no Surrealismo, e sua ideia de rompimento com a realidade por meio da imaginação, do abstrato e do irreal, para que assim a razão sobre as coisas reais seja subjugada por uma intuição que eleva o homem. Muitas práticas artísticas do surrealismo, como a escrita automática popularizada pelos dadaístas e posteriormente difundida pelo surrealista André Breton (prática que consiste em uma escrita fluida e desconexa, que busca eliminar os pensamentos da mente consciente e produzir textualmente os pensamentos do inconsciente, os quais escapam das ideias e vontades do autor), são nada além de imitações de práticas gnósticas anteriores, como a psicografia, travestidas de “arte”.
Músicos como Raul Seixas, The Beatles e Zé Ramalho, extremamente populares em sua época e até hoje, difundiram não só ideias gnósticas, como de fato propagaram seitas sem nenhum pudor. Os membros da banda The Beatles e de muitas outras de seu mesmo tempo e estilo (Rock Psicodélico) eram de fato usuários de várias substâncias alucinógenas como o LSD (Dietilamida do Ácido Lisérgico), o DMT (Dimetiltriptamina) e a Psilocibina (presente em cogumelos alucinógenos), drogas essas que desde sempre foram utilizadas por seitas gnósticas em seus rituais, acreditando-se serem portais que permitem à consciência entrar em contato com outras realidades. Os próprios Beatles, em seu famoso álbum “Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band”, trazem na capa do disco uma imagem dos membros da banda e, atrás deles, há uma plateia composta por diversas figuras famosas que os membros consideravam importantes para a história. Uma das figuras é o mago fundador da corrente ocultista Thelema, Aleister Crowley, e, em frente aos membros da banda, no centro da imagem, encontra-se uma estatueta da deusa hindu pagã da destruição Shiva.
Uma das letras mais populares de John Lennon, compositor e cantor dos Beatles, é a música denominada “Imagine”, na qual o cantor descreve durante toda a música como seria boa uma sociedade formada por sonhadores que destruíram a ideia de Deus, de Céu e de Inferno e vivem como uma irmandade de homens (curioso como a Gnose sempre se cruza com o Panteísmo).
“Imagine que não existe paraíso
É fácil se você tentar
Nenhum inferno sob nós
Acima de nós apenas o céu
(…)
E nenhuma religião também
E nenhuma religião também
Imagine todas as pessoas
Vivendo a vida em paz
(…)
Imagine que não existam propriedades
(...)
Sem ganância ou fome
Uma fraternidade do Homem” – Imagine, John Lennon.
Uma clara declaração da vontade de criação do paraíso terrestre, onde Deus foi expulso e o homem deificado.
No Brasil, Raul Seixas trazia toda essa influência do Rock Psicodélico do exterior, com a ajuda do seu amigo escritor Paulo Coelho (ambos grandes entusiastas das ideias de Aleister Crowley). Juntos, tentaram fundar uma sociedade esotérica chamada “Sociedade Alternativa”. Na música de mesmo nome, Raul Seixas faz as seguintes declarações:
“Viva o novo aeon!
(…)
Faz o que tu queres
Pois é tudo da lei!
(…)
Todo homem, toda mulher
É uma estrela
(…)
O número 666
Chama-se Aleister Crowley
(…)
A lei do forte
Essa é a nossa lei e a alegria do mundo” – Sociedade Alternativa, Raul Seixas.
As frases são, em sua maioria, citações ipsis litteris de frases de Aleister Crowley em seus diversos livros. O “Raul Seixismo” ocorreu no Brasil assim como a “Beatlemania” ocorreu nos países de língua inglesa, consistindo em um fanatismo e idolatria aos cantores, mesmo por pessoas que nada entendiam sobre ocultismo, Gnose ou sobre o que as letras queriam dizer. Muitas outras músicas de Raul Seixas são extremamente gnósticas, como “Gita”, que é uma releitura da obra “Bhagavad Gita”, texto considerado sagrado para os hinduístas escrito em forma de diálogo com Krishna (divindade superior dos hindus), música essa que é uma aula prática do pensamento dialético do Antropoteísmo:
“Eu, que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando
Foi justamente num sonho que Ele me falou
(…)
Eu sou a vela que acende
Eu sou a luz que se apaga
(…)
Sou raso, largo, profundo
(…)
Eu sou os olhos do cego
E a cegueira da visão” – Gita, Raul Seixas.
Além dessas, baseiam-se na seita thelemita muitas outras músicas do mesmo autor. Em “A lei”, simplesmente uma declamação do livro “Liber Oz” de Aleister Crowley, o cantor muitas vezes o abria no palco e o declamava ao público, enquanto as baterias soavam repetidamente na tentativa de uma indução a um transe em massa. Na música “Eu Sou Egoísta”, que é uma orgulhosa afirmação do Ego acima de todas as outras coisas, Seixas claramente se baseou em ideias gnósticas da Thelema.
A Gnose também está presente, mais atualmente, de forma profunda, em jogos e animações para o público jovem, como no jogo Assassin’s Creed, no qual o jogador faz parte de uma seita de assassinos (baseada literalmente na Ordem dos Assassinos, seita gnóstica islâmica criada por Hassan-i Sabbah). Sua tarefa no jogo é eliminar seus eternos rivais, os templários, jogo esse que carrega como lema a divisa: “Nada é verdadeiro, tudo é permitido”, mesmo lema da Ordem dos Assassinos e da Magia do Caos (corrente mágica contemporânea criada pelo ocultista Peter J. Carroll influenciado pelas práticas do mago Austin Osman Spare).
Outro exemplo contemporâneo é a animação japonesa “Shin Seiki Evangelion”, traduzido como “O Evangelho do Novo Gênesis”, cujo enredo apresenta a humanidade atacada por seres monstruosos chamados de “Anjos” e a luta contra esses seres utilizando máquinas e práticas mágicas. A animação tem inúmeras referências esotéricas, como simbolismos da Cabala, personagens como Lilith etc. e a série termina com a destruição da realidade como ela é e sua substituição por uma realidade utópica.
Outras animações japonesas como “Fullmetal Alchemist” ou “O Alquimista de Metal” também possuem diversos simbolismos cabalísticos e alquímicos. Nesta, o enredo apresenta dois jovens alquimistas que juntos buscam encontrar uma criatura divina conhecida como “A verdade” para recuperarem seus membros que perderam em práticas alquímicas (o braço de um personagem e do outro o corpo todo, pois o personagem não possui corpo e existe apenas como um símbolo mágico dentro de uma armadura de metal). Nessa animação, existem cenas nas quais é apresentada uma religião com todas as indicações de ser uma paródia da Igreja Católica (possuindo padres, bispos e Papa), em que todos os membros são corruptos e enganam seus fiéis. Os protagonistas consideram essa religião ultrapassada e cega diante do funcionamento do universo, pois ela rejeita a alquimia.
Vale lembrar que a Cabala supracitada se trata do esoterismo judaico, que ensina que o universo é composto em suas características por emanações de Deus e que essas emanações fundamentam toda a realidade. Os cabalistas judeus utilizam as práticas da Cabala como métodos para a vinda do Messias Judeu (que possui assustadoras semelhanças com o anticristo) e como método de conhecimento salvífico individual (Gnose), no qual o homem retorna ao Absoluto. Já a Alquimia é um pensamento gnóstico nascido na Idade Média; seus membros acreditavam que práticas alquímicas, que consistiam na alteração material de substâncias físicas como minérios por processos “químicos” (como a tão buscada transformação de chumbo em ouro), refletiam-se de forma análoga na alma do indivíduo que realizava o processo, transformando a alma inferior, chumbo, em uma alma superior, ouro.
Algumas outras amostras menos ideológicas e mais simbólicas da Gnose na mídia moderna são alguns desenhos infantis extremamente populares entre o público desta idade, que trazem muita simbologia pagã por trás de seus traços infantis. Desenhos como Gravity Falls, da Disney, trazem um enredo completamente gnóstico, no qual um dos tios do personagem principal investiga fenômenos paranormais e tenta descobrir a origem desses fenômenos, utilizando a intuição (o desenho usa essa exata linguagem). Uma entidade chamada de “Mentor” guia o homem à construção de um portal que traz o ser para o plano terreno. Esse ser é um triângulo com um olho na ponta (simbologia muito utilizada por seitas esotéricas e pela maçonaria). O desenho é repleto de simbologia esotérica como runas nórdicas, simbologias maçônicas como o esquadro e compasso e possui até mesmo um livro real criado em sua homenagem. Esse livro traz vários símbolos e encantamentos “de brincadeira” em latim para as crianças recitarem. O livro foi um Best Seller em Nova York e é voltado para o público infantil.
Outros desenhos como Hora de Aventura, da Cartoon Network, por tratarem de um universo de fantasia, trazem várias referências ao paganismo, como símbolos celtas e nórdicos. Em um episódio intitulado “Todos os Baixinhos”, um mágico, ao recitar um encantamento, diz: "Fazes o que tu queres, mas há de ser o todo da lei", uma referência mais do que clara ao mote de Aleister Crowley e das ordens de Thelema: "Faze o que tu queres, há de ser o todo da lei”.
As aparições de conteúdo filosófico explícito da Gnose nas mídias de entretenimento são por motivos óbvios perigosas, pois claramente influenciam os consumidores de tais conteúdos a se interessar e imitar as ideias, como ocorre nas diversas religiões criadas em torno da mitologia de Star Wars ou de Senhor dos Anéis. Porém as aparições por simbolismo, sem nenhuma filosofia explícita, como nos desenhos infantis acima citados, são igualmente perigosas, enquanto trazem símbolos e frases de fato satânicas para crianças repetirem e usarem para brincar. Isso também cria uma familiaridade e um interesse na criança, preparando-a para que, quando se deparar de fato com as ideias expressas aberta e diretamente, já esteja condicionada a assumi-las para si.
Considerando o meu próprio caso, muito do que me influenciou a me interessar por Gnose para ter buscado e participado de seitas esotéricas foram livros como dos autores H. P. Lovecraft e Tolkien; jogos de RPG (World of Warcraft, Dungeons & Dragons), que tratavam de magia abertamente; músicas; entre outros. Desde minha infância, sempre tive acesso à informação muito facilmente graças à internet. O tema “fantasia” me instigou e me interessou. Nas aulas de filosofia do ensino fundamental em minha escola, adorava a temática da mitologia grega que nos foi muito bem passada (apesar de a escola ser católica). Após exaustivamente consumir conteúdo fantástico, músicas, livros e jogos, frustrava-me cada vez mais com a realidade. O mundo real me parecia inicialmente tedioso, até que desenvolvi uma visão tão negativa acerca da realidade que passei a encará-la como má. Nesse momento, com cerca de 12 anos, deparei-me na internet com o tema ateísmo. Fui tomado por uma curiosidade por saber que havia pessoas que negavam a existência de Deus, algo que até aquela idade não me passava pela cabeça. Pouco tempo durou meu ateísmo: aos 14 já possuía ideias muito existencialistas, considerando que, se havia um criador, ele era mal ou nos ignorava. Nessa época, já conhecia bem a existência do esoterismo, mas não me interessava tanto, considerando-o como outra superstição qualquer.
Finalmente, com cerca de 16 anos, já tomado por uma angústia gigantesca em minha alma, condizente com a vida de alguém que crê que a não-existência é um sumo bem, resolvi dar crédito ao ocultismo, que eu tanto consumia por meio de músicas e autores abertamente esotéricos. Após alguma pesquisa e leitura acerca do tema, a magia me interessou imediatamente e parecia suprir cada vez mais o vazio que se encontrava dentro de mim. Nunca havia me dedicado tanto a um tema anteriormente, devorava livros e mais livros, pesquisava sobre simbolismos e iniciações em seitas diversas. Com 17 anos já conversava com integrantes de seitas conhecidas e já frequentava a Gnosis Brasil (seita gnóstica sul-americana). Até os 19 anos, já havia passado brevemente por algumas reuniões da Rosacruz, mas me interessei mesmo por Thelema, seita que mais estudei, troquei e-mails com membros e praticava certos rituais até diariamente.
No fim dos meus 19 anos, por uma ação muito forte da graça divina, alguns amigos católicos e leitores do site Montfort começaram a me alertar e me enviar diversos artigos e vídeos. O fato de os artigos fazerem sentido foi o que me espantou, pois, para mim o Catolicismo não passava de uma crença sentimental, já que era essa a experiência que tive vendo certos grupos de jovens católicos relacionados à RCC. Contrariado, logo tive medo do inferno. Lembro que me afastei subitamente dos grupos esotéricos e comecei buscar um estoicismo panteísta para tentar achar paz, ignorando tudo o que havia praticado, como se o mal não existisse. Um dia fui chamado para uma aula de alguns amigos da Montfort na minha cidade, que tratou sobre “As Três Revoluções”, baseada nas grandes aulas do Prof. Orlando Fedeli e do Prof. Alberto Zucchi. O conteúdo era extremamente esclarecedor e atacava diretamente minhas antigas crenças; me vi na aula como o “lado mal” da história, o que me ajudou a amar mais o bem. As pessoas, mesmo após saberem por onde passei, me acolheram muito bem e me ensinaram pacientemente a doutrina católica. Após começar a frequentar este grupo, estudar cada vez mais a verdadeira doutrina, rezar muito e me ligar novamente à Santa Igreja, finalmente encontrei a Verdade que é Cristo, e desprezei a mentira da Gnose.
VI – Conclusão
O Antropoteísmo nos é apresentado atualmente de diversas formas: para os menos inclinados às obras intelectuais e mais inclinados às paixões, na forma de um panteísmo materialista crasso, no qual a busca pelo prazer é incessante e incentivada pelos comerciais, produtos, mídias sociais e influenciadores; para os mais inclinados ao pensamento racional, porém sem interesse pela metafísica, cegos para a existência da alma, apresenta-se como racionalismo acadêmico, antropocentrista e progressista, colocando pautas como política e evolução no centro da mente do homem; para os que se frustraram com o racionalismo, porém se deixaram levar pelas emoções, entra a Gnose voluntarista, com todo seu romantismo acerca de Deus e seus devaneios e buscas incessantes por alguma prova do sobrenatural e do amor de Deus que seja sensível; para os que se frustraram com o racionalismo, porém não possuem inclinações para emoções românticas e sim para o orgulho escancarado, as portas da Gnose em seu grau mais intuitivo se abrem, com a promessa de evolução espiritual por meio de magia, ritualística, retorno a raízes pagãs e delírios de grandeza e superioridade.
Os remédios e prevenções para essas calamidades, que seguem tentando os homens desde o pecado original, são obviamente a oração e o estudo e compreensão de Deus, para que nossa fé permaneça firme e ativa, além do estudo das artimanhas dos inimigos de Deus, filhos do demônio e habitantes da cidade do homem, como caracteriza Santo Agostinho em sua obra “Civitas Dei” (A Cidade de Deus):
"Dois amores construíram duas cidades. O amor de Deus levado até ao desprezo de si mesmo, construiu a Cidade de Deus [a Civilização católica, teocêntrica]. O amor de si mesmo, levado até ao desprezo de Deus, construiu a cidade terrena [a cidade do Homem, antropoteísta]”. (Santo Agostinho, Civitas Dei, Vozes, Petrópolis, 1990, vol. II, Livro XIV, cap. XXVIII).
Apesar de o erro ser sempre múltiplo, foi dito “cidade do Homem”, não “cidades”. Há uma união daqueles que combatem a Deus em uma única cidade, e essa união começa pela falsa metafísica. Panteístas negam a limitação da criação; gnósticos negam a sua excelência. Apesar de aparentemente opostos, ambos partem da mesma recusa: não ver a criação limitada como uma boa escadaria que, pela analogia, faz aos homens apelo para buscar e amar o Absoluto, transcendente. Por isso, tanto gnósticos como panteístas professam o Antropoteísmo. Pertencem a uma única cidade: a cidade do Homem.
Percebemos a precisão do Prof. Orlando Fedeli se compararmos algumas frases de seu livro com algumas frases de gnósticos famosos. Aqui vou me ater a comparar com frases do mago ocultista Aleister Crowley, pois foi com textos dele que tive muito mais contato e por ser ele um dos ocultistas com maior influência deste século.
“A Gnose e o Panteísmo, ambos formam a Religião do Homem que nega, entre tantas coisas, a limitação do conhecimento para atingir de cheio o Mistério e a Transcendência Divina, as limitações da vontade, recusando a aceitação e imposição de qualquer lei até desembocar no absurdo da negação do livre arbítrio e, assim, fugir da responsabilidade e da aceitação de toda ordem ontológica. Aqui aparece o homem como o Salvator Dei”. (FEDELI, Orlando. Antropoteísmo - A Religião do Homem São Paulo: Editora Celta, 2011) – grifou-se.
“Faze o que tu queres há de ser tudo da Lei. Não há nenhuma lei além de Faze o que tu queres. (…) Tu não tens direito a não ser fazer a tua vontade. (…) A Lei é a apoteose da Liberdade; mas é também a mais estrita das injunções. Faze o que tu queres então faze nada mais. Deixa que nada te desvie daquela tarefa austera e santa. (…) Todo ato que não está definitivamente no curso daquela órbita única é um ato errático e um empecilho. A vontade não pode ser duas, mas uma. (…) Então, e somente então, tu estás em harmonia com o Movimento das Coisas, tua vontade parte da, e portanto é igual à Vontade de Deus. E desde que a Vontade não é mais que o aspecto dinâmico do ente, e desde que dois entes diversos não podem possuir vontades idênticas; então, se tua vontade é a vontade de Deus, Tu és Aquilo”. (Liber II A Mensagem do Mestre Therion Publicação da A∴A∴ em Classe E) – grifou-se.
Percebe-se como, ao mesmo tempo que se apresenta como um caminho livre de restrições, quase que hedonista, o veio gnóstico asceta se sobressai e vemos a real doutrina pregada, a negação total da vontade para, após a deificação, todo ato ser permitido, pensamento gnóstico comum que Prof. Orlando apresenta de forma lúcida em seu texto.
“A Gnose condena a matéria ao afirmar que ela é uma ilusão e uma prisão para o espírito divino. Consequentemente, ela prega uma moral ascética, de tipo budista, repudiando tudo o que vem do corpo e pregando até mesmo o suicídio. Ela se opõe per diametrum à moral do ramo panteísta, naturalista e até materialista, que prega o gozo livre de todos os prazeres. Entretanto, os gnósticos afirmam que, quando o homem alcança a união mística pelo êxtase, ele atinge um tal nível de perfeição que seu ser se funde com o próprio Deus. Desse modo, então, o homem se situa acima de toda lei moral, e tudo passa a ser permitido para ele”. (FEDELI, Orlando. Antropoteísmo – A Religião do Homem São Paulo: Editora Celta, 2011) – grifou-se.
Desde minha conversão, percebi entre alguns do meio católico o desejo de tentar descredibilizar a Montfort, dizendo que essa Associação Cultural “vê Gnose em tudo”. Se querem imputar a alguém essa acusação descabida, imputem também a tantos outros estudiosos do tema, de diversos contextos históricos diferentes. É surpreendente o número de autores, citados abundantemente pelo Professor Orlando Fedeli em sua obra Antropoteísmo, que reconhecem a presença de uma religião comum subjacente às mais variadas seitas e sistemas e a designam como Gnose. Até hoje, noto que aquilo em que a Montfort afirma haver influência da Gnose de fato há, eu bem o compreendi quando ainda era gnóstico. E foi justamente isso que me fez dar algum crédito ao que dizia um professor católico. Se, no intento de completar aquele já mencionado trabalho de associar todas as religiões com o pensamento gnóstico, eu tivesse entrado em contato com o Catolicismo por alguma fonte omissa em denunciar a falsidade da Gnose, poderia ter, desgraçadamente, permanecido naquelas seitas e, quem sabe, estaria hoje bem avançado em práticas satânicas.
Por fim, ensina-nos São Luís Maria Grignion de Montfort:
“Deus estabeleceu inimizades, antipatias e ódios secretos entre os verdadeiros filhos e servos da Santíssima Virgem e os filhos e escravos do demônio. […] Os filhos de Belial, os escravos de Satã, os amigos do mundo (pois é a mesma coisa) sempre perseguiram até hoje e perseguirão no futuro aqueles que pertencem à Santíssima Virgem, como outrora Caim perseguiu seu irmão Abel, e Esaú, seu irmão Jacob, figurando os réprobos e os predestinados. Mas a humilde Maria será sempre vitoriosa na luta contra esse orgulhoso, e tão grande será a vitória final que ela chegará ao ponto de esmagar-lhe a cabeça, sede de todo o orgulho. Ela descobrirá sempre sua malícia de serpente, desvendará suas tramas infernais, desfará seus conselhos diabólicos, e até ao fim dos tempos garantirá seus fiéis servidores contra as garras de tão cruel inimigo”. (Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. 19ª edição, Editora Vozes: Petrópolis, 1992) – grifou-se.
Que Nossa Senhora Auxiliadora nos livre de tantas ciladas do demônio e nos anime no combate contra seus asseclas.
Para citar este texto:
"Antropoteísmo na Atualidade: A importância do estudo do tema"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/cadernos/religiao/AntropAtual2021/
Online, 21/11/2024 às 09:00:45h