Arte e Cultura

Nos labirintos de Eco
Orlando Fedeli


 

 "Di fronte a un libro non dobbiamo chiedere cosa dica, ma cosa vuol dire"
(
Umberto Eco, Il Nome della Rosa)

 



 

 

O livro O Nome da Rosa certamente foi o mais lido na década 80-90 e, muito provavelmente, o menos compreendido. Milhões de leitores foram cativados pela misteriosa trama policial do romance, lendo muito em diagonal os áridos diálogos filosóficos que entremeiam os crimes da abadia imaginada por Eco. Outros se intrigaram com os significados cambiantes da obra e se perguntaram qual o seu sentido mais profundo. Se existia um sentido mais profundo, desejado pelo autor...

Os críticos, em geral, lembraram que era próprio de uma obra aberta ser essencialmente ambígua e, portanto, susceptível das mais variadas interpretações.

O desnorteamento e o interesse foram tais que Eco julgou conveniente publicar as suas "Postille a Il Nome della Rosa" (Pós-escrito a O Nome da Rosa, que citaremos sob a abreviatura "P"), que poucos esclarecimentos trouxeram à massa dos leitores, embora fornecendo algumas preciosas confissões.

Com este ensaio, objetivamos dar algumas informações, além de uma interpretação, que possam ajudar o grande público a melhor compreender o romance de Eco.

 

*****

 

1 - Obrigações do intérprete e intenções do autor

Ao procurar interpretar uma obra, é obrigatório considerar, em primeiro lugar, o que o próprio autor disse de suas intenções ao escrevê-la. Porque é natural que ele queira ser entendido. E se, não sendo compreendido, publica um Pós-escrito elucidativo, é porque deseja afinal que fique mais claro o que quis dizer. A menos que o autor tenha a intenção expressa de confundir os seus leitores...

 

2 - Eco quis iludir a grande massa de seus leitores

Nas suas Postille a Il Nome delle Rosa, Eco fornece alguns indícios importantes sobre seus objetivos ao fazer o romance. É certo que ele pretendeu dar à sua obra toda a ambigüidade de uma obra aberta. Desejou fazer um texto capaz de "gerar leituras sempre diversas, sem nunca esgotar-se plenamente" (P.13). Para Eco, o romance "é máquina para gerar interpretações" (P.8). Por isso mesmo, ele se recusa a "oferecer interpretações de sua obra" (P.8). Em contrapartida, não pretende impedir, nem negar, qualquer interpretação que se faça.

Ele informa ainda que não quis dar a seu livro o título de "A abadia do crime" porque essa escolha teria enganado alguns leitores. Porém, diz depois que "um título deve confundir as idéias e nunca discipliná-las" (P.9). Mais ainda, ele afirma que a trama policial do livro "ilude o leitor ingênuo até o fim" (P.45).

O grande êxito de O Nome da Rosa consistiu em ter sido um livro lido por multidões, embora escrito para poucos.

Propositadamente, Eco manteve no texto longos trechos didáticos que os editores queriam eliminar. Segundo o autor, as primeiras páginas deveriam ter uma "função penitencial, iniciatória". Pior para os leitores que não suportassem: "permaneceriam nas encostas da colina" (P.36). Isto faria uma primeira seleção.

Evidentemente, Eco desejava que seu livro fosse muito lido. Ninguém escreve para não ser lido. Entretanto, ele afirma que sua obra foi dirigida para um público surpreendentemente reduzido. "Se antes de O nome da rosa alguém me perguntasse para que público ele era destinado, eu diria que a quatro ou cinco medievalistas e talvez um ou dois cardeais" (U. Eco em entrevista à revista Veja 19/VII/89 p.5)

Não se poderia ser mais elitista. Isto é, somente Borges imaginou ser tão elitista ou esotérico. Certa vez ele combinou "a elaboração de uma novela na primeira pessoa, cujo narrador omitisse ou desfigurasse os fatos e incorresse em diversas contradições que permitissem a poucos leitores - a muito poucos leitores - a adivinhação de uma realidade atroz ou banal" (Jorge L. Borges, Ficciones -1944- Tlon Uqbar, Orbis Tertius, Obras completas, 1923 - 1972, Emece editores, Buenos Aires, 1974, p.431). (O sublinhado e a tradução são nossos).

A obra "O Nome da Rosa" é, ao mesmo tempo, uma obra-aberta e um livro-mensagem. E com endereço muito particular.

À primeira vista, a resposta a essa questão parece ser "não". Obra-aberta é aquela que, por sua estrutura, permite um sem número de leituras diversas, sem violentar o texto, elaborado pelo autor com intencional ambigüidade. Em contraposição, obra-fechada é aquela construída para ter um só e determinado significado. Parece pois que uma exclui a outra, e que não seria possível existir uma obra-aberta com uma mensagem expressamente desejada pelo autor.

Entretanto, o próprio Eco afirma que o Finnegans Wake de Joyce é uma obra-aberta que contém, todavia, um sentido oculto desejado pelo autor. Eco lembra que, embora Joyce tenha redigido sua obra com o máximo de ambigüidade, "isto não significa que a obra não tenha um sentido: se Joyce nela introduz chaves, é exatamente porque deseja que a obra seja lida em um certo sentido. Mas, esse sentido tem a riqueza do cosmos, e o autor quer ambiciosamente que ele implique a totalidade do espaço e do tempo, dos espaços e dos tempos possíveis. O instrumento príncipe desta integral ambigüidade é o "pun", o "calembour" (U. Eco, Opera Aperta, Bompiani, Milão, 1962, VI ed.p.43).

Portanto, é possível existir uma obra-aberta contendo uma determinada mensagem do autor, subjacente às mil interpretações possíveis. O autor, entretanto, teria que fornecer a chave para que certos leitores pudessem atingi-la. Um livro assim construído seria uma obra-aberta de um tipo particular.

Seria O Nome da Rosa uma obra-aberta desse tipo?

Que o romance de Eco é uma obra-aberta, não há dúvida alguma. Que ele tenha destinatários certos - quatro ou cinco medievalistas, e um ou dois cardeais - o próprio Eco o diz. Aliás, a própria editora Bompiani - certamente com a anuência do autor - apresenta O Nome da rosa como "gothic novel, crônica medieval, romance policial, narrativa ideológica cifrada, alegoria, (...)" (U. Eco, Opera aperta,ed. cit. p. 310, O sublinhado é nosso).

O Nome da Rosa foi apresentado, então, como uma obra-aberta cifrada, contendo uma mensagem oculta. Trata-se pois de encontrá-la no labirinto de interpretações possíveis de uma obra-aberta. Para isso, é preciso encontrar, antes de tudo, as chaves que o autor deixou em seu texto e nas suas Postille.

A multiplicidade de leituras possíveis da obra de Eco forma um verdadeiro labirinto.

"Até o leitor ingênuo farejou que se encontrava diante de uma história de labirintos, e não de labirintos espaciais" (P.47), diz Eco. Ele distingue três tipos de labirintos:

a) - O labirinto grego, no qual há um só caminho, da entrada ao centro;

b) - O labirinto maneirista, semelhante a uma árvore que se esgalha em seus ramos e raízes. Nesse tipo de labirinto há muitos caminhos falsos. Porém, "a saída é uma, mas pode enganar" (P.47);

c) - A rede ou rizoma, labirinto no qual todos os caminhos se interligam. Nele não há um centro, nem periferia. "Um labirinto (...) que conduza a toda parte e não leve a lugar algum" (U.Eco, Il Pendolo di Foucault, Bompiani, Milano, 1988, p.415. A tradução é nossa).

Qual destes labirintos utilizou Eco em O Nome da Rosa? Ele mesmo o diz: "O labirinto de minha biblioteca é ainda maneirista, mas o mundo em que Guilherme pensa viver é estruturado em forma de rizoma" (P.47). Portanto, labirinto maneirista para a biblioteca e rizoma para o mundo medieval em que Frei Guilherme pensa viver. Um labirinto maneirista, num mundo imaginado como rizoma.

A ação de O Nome da Rosa gira em torno da biblioteca de uma abadia medieval. Esta é tomada como um símbolo do mundo e o que nela se passa é uma imagem da história. Daí o romance de Eco ser um fato cosmológico (P.47). Entretanto, para Eco, a História parece ser um labirinto-rizoma, um labirinto cujos caminhos não conduzem a lugar algum e não contêm mensagem nenhuma.

Contando episódios que teriam se passado na Idade Média, Eco retrata, na narração, sua própria visão da História. Com isso, ele se vê à vontade para utilizar um esquema apocalíptico, dado que no livro do Apocalipse é profetizada a História do mundo. Em decorrência disso, ele adapta certas circunstâncias dos crimes da abadia às palavras proféticas anunciadas pelas sete trombetas do Apocalipse (P.25).

Ora, segundo a tradição apocalíptica, o fim do mundo virá por meio de um grande incêndio universal. No final da Idade Média compôs-se a famosa seqüência sobre o fim dos tempos e o Juízo final:

 

"Dies irae, dies illa
solvet saeculum in favilla,
teste David cum Sybila."

 

...que tão bem refletia as angústias do fim de uma época histórica, imagem do fim do mundo.

Portanto, a História do mundo e a história de O Nome da Rosa deveriam terminar com um grande incêndio: "(...) que no final, o edifício devesse incendiar-se, isto era claro para mim, inclusive por razões histórico-cosmológicas", confirma Eco nas Postille (P.27).

A Idade Média assistiu, em sua agonia, a um grande debate filosófico-religioso. Perdido o equilíbrio do tomismo, o homem medieval caiu em dois extremos opostos. De um lado, estavam os humanistas racionalistas de tendência panteísta, cuja figura-símbolo foi Frei Guilherme de Ockham, um Édipo moderno. Tais humanistas cultuavam o Homem como supremo valor e medida de um universo divino. Queriam destruir a sociedade medieval teocêntrica e estabelecer uma nova cosmovisão antropocêntrica. Julgavam que, graças à ciência e à técnica, o homem seria capaz de vencer todas as misérias do mundo, até criar uma era de grande prosperidade material e de completa felicidade natural. Eles punham essa esperança no Homem, redentor de si mesmo, construtor da Utopia.

Do lado oposto, situavam-se os místicos de tendências gnósticas, cuja figura mais característica foi, nessa época, Mestre Eckhart. Esses místicos tinham uma visão extremamente pessimista da realidade. Para eles, o mundo era intrinsecamente mau e irredimível por ser obra de um deus perverso, distinto da Divindade. Entre a Divindade boa e o mundo, haveria um abismo absoluto. Se a Divindade era o Ser, o mundo criado seria o Nada. Se o mundo das criaturas era formado por seres, então a Divindade era o Nada absoluto (Cfr. Sermões de Mestre Eckhart, introduction et traduction de J. Ancelet-Hustache, Seuil, Paris, Sermão Quasi Stella matutina, p. 102 e Sermão N. 23, p. 201. Cfr. V. Lossky, Théologie négative et connaissance de Dieu chez Maître Eckhart, Vrin, Paris, 1973).

Para estes místicos, a razão humana era má e só seria desejável perder-se no Nada divino. O demiurgo, criador mau, dotara o homem de razão para que esta o enganasse, apresentando-lhe o mundo como inteligível e, portanto, como bom. A ciência e a técnica eram ilusórias. A redenção seria obtida por uma fuga mágica do mundo real. A saída não estava numa Utopia futura, e sim na volta ao Paraíso original. O homem não deveria pretender construir um Reino neste mundo; pelo contrário, o Reino deveria ser o fruto do retorno ao passado primevo, ao Éden original adâmico, o que só se poderia obter por uma irrupção divina na História, nunca por força do intelecto.

Nas Universidades do fim da Idade Média, ockhamistas e eckhartianos se digladiavam. Nos tribunais da Inquisição, eles testemunhavam uns contra os outros, acusando-se mutuamente de heresia. O Papa João XXII condenou tanto uns quanto outros.

As condenações papais não puseram fim ao embate entre místicos gnósticos e racionalistas panteístas, entre herméticos e positivistas. Aliados contra o inimigo comum - a Igreja de Roma - logo que detinham o poder em algum lugar, imediatamente se entredevoravam. Como dois fios de carga elétrica oposta, ao se unirem desencadeavam uma faísca brilhante, mas imediatamente em seguida se repeliam. Foi o que se assistiu na Reforma protestante, no Renascimento, e mais tarde, de novo, na Revolução Francesa e, finalmente, no século XX, com a aliança nazista-comunista, logo seguida pela guerra entre a Alemanha e a União Soviética. De fato, na segunda guerra mundial, houve um entrechoque sangrento entre uma força claramente gnóstica e anti-racional - o Nazismo - e outra corrente racionalista e materialista, o marxismo. Inicialmente aliados, Nazismo e Comunismo logo se repeliram numa luta atroz. A corrente gnóstica foi vencida, porém não desapareceu. Sob outros nomes, dividida em minúsculos grupelhos de caráter mágico e esotérico, a Gnose fermentava nos porões da chamada cultura moderna, até que a inesperada queda do muro de Berlim e o desmoronamento do império comunista a trouxeram de volta à superfície da História. A Mass-Midia imediatamente trocou os slogans socialistas pelo "Eu creio em duendes". Arquivou as abstrusas e imbecis teorias do obsoleto Marx, passando a divulgar as imbecis e abstrusas teorias esotéricas.

Conforme Eco, "o filão hermético, e o pensamento de semelhança universal, continua paralelamente ao pensamento da quantidade, muitas vezes se entrelaça com ele, mais comumente se opõe a ele, e nem sempre em surdina, nem sempre como pensamento menor e escondido sob aparências bizarras" (U. Eco, Introdução ao livro L'Idea Deforme, interpretazioni esoteriche di Dante, a cura di Maria Pia Pozzato et alii, Bompiani, Milano,1989,p 10).

Eco mostra ainda que: "Na história do pensamento ocidental, deram-se casos evidentes, nos quais o filão hermético ia diretamente nutrir alguns dos grandes sistemas do idealismo transcendente e/ou inteiros filões de prática hermenêutica" (U. Eco, L'Idea Deforme,p.10).

Pode-se então dizer que, na História, é possível encontrar a ação de duas correntes de pensamento opostas e cooperantes, que se enroscam uma na outra como as duas serpentes do caduceu de Hermes: a corrente gnóstica, analógica e irracional, e a corrente racionalista, ambas combatendo a Igreja Católica, ambas aliadas contra ela.

Como se concluirá essa luta? Na perspectiva histórica em que Eco escreveu O Nome da Rosa, havia quem pensasse que seria com um incêndio atômico, desencadeado por algum místico cego e louco, desesperado com a vitória - que parecia iminente - da corrente racionalista sua inimiga...Pelo menos essa era uma hipótese plausível no tempo em que Eco escreveu seu livro, nos tempos da guerra fria, quando a URSS era um espantalho ameaçador nas telas de TV e nas páginas dos jornais, que anunciavam com estardalhaço as façanhas astronáuticas e foguetórias da Rússia comunista, deixando de noticiar, porém, que lá não havia nem manteiga, nem fósforos...

"Comecei a escrever em março de 1976, movido por uma idéia seminal. Eu tinha vontade de envenenar um monge", diz Eco nas Postille (P.15). Seria esse "monge" real? Seria ele realmente um monge? Seria o desejo de Eco puramente literário? Pouco importa. O certo é que ele não poderia dizer como Beatriz a Virgílio: "Amor mi mosse che mi fa parlare" (Dante, Inferno, II,72).

Movido por ódio contra um "monge", antes mesmo de fazer o esboço de seu livro, Eco escreveu a Introdução (P.20). Nela se podem encontrar, talvez, indícios desse ódio mortal, que dêem alguma idéia a respeito do tipo humano que o autor queria envenenar.

Ora, essa Introdução é extremamente interessante. Nela, Eco imita claramente o estilo do famoso escritor argentino Jorge Luís Borges. Pois era próprio desse escritor contar que encontrara uma obra rara, numa velha biblioteca, no qual se citava um manuscrito perdido há muito tempo, no qual, por sua vez, se dava notícia de uma outra obra, à qual, quando encontrada, faltava precisamente a página citada, e etc. E, em sua Introdução, Eco usa o mesmo sistema, além de falar de espelhos e de labirintos, outras duas obsessões de Borges.

Não bastasse isso, há claras semelhanças entre o monge Jorge de Burgos, o vilão de O Nome da Rosa, e Jorge Luís Borges. Não são apenas os nomes que se parecem. Ambos são cegos. Ambos, bibliotecários. Ambos, anti-racionalistas.

Eco não quis esconder, nem negou essa ligação.

"Todos me perguntam por que o meu Jorge, pelo nome, evoca Borges, e por que Borges é tão perverso (Sic!). Mas eu não sei. Eu queria um cego como guardião de uma biblioteca (...) e biblioteca mais cego só pode dar Borges, mesmo porque as dívidas se pagam" (P26. O sublinhado é nosso).

Nesse texto, queremos salientar:

1 - a afirmação de que, de fato, Eco pretendeu representar Jorge Luís Borges no monge cego, Jorge de Burgos.

2 - que ele considera perverso, não Jorge de Burgos, mas Borges é que é perverso, e ele não sabe o porquê.

3 - que ele aludiu a Jorge Luís Borges, para pagar uma dívida, porque "as dívidas se pagam".

Onde e como Jorge Luís Borges, o antigo poeta que cantou a Revolução Russa de 1917 e, depois, apoiou a República Roja espanhola em 1936, para, enfim, se tornar discípulo do maior especialista em Cabala no século XX, Gershom G. Scholem, onde e como o racionalista que se tornou místico gnóstico atacou o racionalista Eco? Que houve entre eles, para Eco falar em dívidas, e fazer questão de pagá-las?

Eco se queixa. Acreditê-mo-lo. O que importa é saber que em O Nome da Rosa ele quis pagar uma dívida que tinha com Borges. Dívida literária? Dívida ideológica? Dívida política? E Eco pagou a dívida identificando seu credor gnóstico com o monge cego e fanático, com o assassino Jorge de Burgos.

Poder-se-ia então perguntar: seria Borges a pessoa que Eco odiou a ponto de querer envenená-la? Mas, Borges não era monge...

Também Eco não é monge, e, entretanto, ele termina as Postille dizendo: "Cada um tem sua idéia própria da Idade Média. Só nós, monges daquela época, sabemos a verdade, mas, ao dizê-la, podemos ser queimados vivos" (P.65 O sublinhado é nosso).

Evidentemente, a palavra "monge" tem aí um sentido figurado ou irônico, pois Eco não é monge. Não se poderia dizer, de modo figurado ou irônico, por alguma razão analógica qualquer, que Borges também não é "monge"? E quem é esse misterioso "nós"? A que "ordem" Eco e Borges teriam pertencido? É claro que um autor "semiótico" não quer dizer nada do que diz, o que lhe permite rir de qualquer interpretação que se faça do que ele afirme. É muito cômodo, pois permite-lhe dizer o que bem quiser, sem risco de afirmar nada. Mas, não cremos que as palavras "ordem" e "monge" escondam realmente algo de importante. Julgamos que provavelmente sejam apenas brincadeiras de um autor de obra-aberta...

Há ainda outra coincidência entre o cego Jorge de Burgos e Jorge Luís Borges: ambos tinham tendências místicas profundas que os colocavam no campo adverso ao do racionalismo. Quer na filosofia, quer na política, Jorge Luís Borges, especialmente no fim de sua vida, tomou inúmeras posições anti - esquerdistas e anti-comunistas. Declarou-se mesmo simpático a Pinochet, o que lhe valeu uma onda de recriminações, e, possivelmente, a perda do prêmio Nobel de literatura.

Por sua vez, Jorge de Burgos não hesita em usar até veneno para combater o racionalismo. Seu ódio à razão o levava a considerar Aristóteles e o próprio São Tomás de Aquino como racionalistas e, no fundo, inimigos da religião (Cfr. R.532).

Nesse ódio à razão, quer em Borges, quer em Jorge de Burgos, nota-se uma tendência que os aproxima das posições assumidas pelos grandes movimentos gnósticos da Idade Média... e do século XX.

Este pequeno ensaio teve origem em palestras que pronunciamos em faculdades paulistas, em 1988. Considerando as reações favoráveis dos auditórios universitários e o grande interesse despertado pelo livro de Eco, do qual não conhecemos interpretação satisfatória, julgamos útil publicar nossa leitura de "O Nome da Rosa".

Para facilitar o cotejamento das citações, usamos a edição brasileira da obra de Eco (Nova Fronteira, Rio de Janeiro,1983, 18a edição), embora se trate de uma tradução lamentável. Citaremos essa edição pela abreviatura "R", seguida da página citada.

Da mesma forma, citaremos a versão em português das "Postille al nome della Rosa, publicada pela mesma editora, em 1985, sob o título de "Pós-escrito a 'O Nome da Rosa", que citaremos pela abreviatura "P", com o número da página da citação.

O livro de Eco pressupõe um largo conhecimento da Idade Média, envolvendo dados políticos, religiosos, filosóficos e estéticos. A fim de auxiliar os leitores, damos, no final deste trabalho, uma pequena bibliografia relativa aos temas abordados. Com base nela, o paciente leitor poderá verificar e completar as informações para fazer uma leitura mais proveitosa do livro de Eco, assim como aquilatar se alcançamos realmente o objetivo de guiá-lo Nos labirintos de Eco.

Sabemos bem que para a semiótica atual é discutível o que seja "uma boa interpretação" de um texto, ou mesmo se é possível existir uma interpretação verdadeira e boa de uma obra, especialmente se se trata de uma obra-aberta, e ainda mais cifrada (Cfr. Maria Pia Pozzato "L'Idea Deforme", p. 49).

Essa mesma posição é adotada também por Alberto Asor Rosa no Postfácio da mesma obra: "É evidente que a verdade do texto é um objetivo aproximável ao infinito e não um dado em si, imóvel, que se possa pensar em agarrar por inteiro de uma vez para sempre" ("L 'Idea Deforme",315).

"E quando digo "a verdade do texto(...) entendo propriamente aquela verdade, que o autor quis incorporar no seu sistema de sinais, e, se não quis, de fato incorporou, edificando aquela construção (Alberto Asor Rosa, Postfácio de L 'Idea Deforme,316).

E Regina Psaky, em sua contribuição para L'Idea Deforme, declara que "o meu primeiro pressuposto neste trabalho é que não existe uma "verdade única", e que não podemos reencontrar integralmente nenhuma relação histórica do passado na literatura" (Regina Psaki in L'Idea Deforme p.276).

Em conseqüência, ela afirma:

"A priori podemos considerar absurda (ou "pouco conveniente", para usar um eufemismo) uma coisa, sem que nosso juízo tenha algum efeito sobre a "bondade intrínseca" do trabalho, exatamente porque não existe bondade intrínseca. Nem o autor é capaz de transmitir sua verdade nem o leitor é capaz de captá-la" (Regina Psaki in op. cit. p.275)

Essa é uma posição relativista e cética que não aceitamos por razões filosóficas. Cremos na Verdade. Cremos na objetividade dela e cremos na eficácia do pensamento e da palavra humana capaz de atingir a Verdade e transmiti-la.

Aliás, mesmo para os semióticos.

"O fato que (para eles) a verdade do texto seja um objetivo aproximável ao infinito e não um dado em si, imóvel, não significa que se deva parar de procurar e agir a fim de que um reflexo da verdade emerja de quando em quando através da análise" (Alberto Asor Rosa in L'Idea Deforme p. 316)

Embora os semióticos neguem a priori a bondade e veracidade de qualquer leitura de O Nome da Rosa, esperamos que nossa leitura permita vislumbrar um pequeno reflexo de Verdade nela existente malgrado o autor.

Teremos acertado com a saída dos labirintos de O Nome da Rosa? Se não acertamos, pelo menos, Eco terá satisfação em saber que foi elaborada uma conjetura a mais sobre a sua obra, ainda que negue sua objetividade.

Mas, se tivermos acertado com a saída talvez isso o desagrade tanto quanto a Minos ver Teseu saindo pela porta do labirinto de Creta.

Quanto a nós, teremos satisfação se nossas páginas puderem iluminar para o leitor - ainda que um tanto apenas - os obscuros caminhos dos labirintos de Eco. Ainda que fosse com um vislumbre - um "barlume" - da Verdade objetiva. Seria como a alegria de resolver um quebra-cabeças. Ainda que nossa interpretação irritasse o autor do labirinto. Ou por isso.

 

 

 


    Para citar este texto:
"Nos labirintos de Eco"
MONTFORT Associação Cultural
http://www.montfort.org.br/bra/cadernos/arte/labirintos/
Online, 21/11/2024 às 08:30:34h